Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2372/23.0T8SXL.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
RECONVENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Numa acção de divisão de coisa comum deve ser admitida a reconvenção em que o réu invoque a existência de créditos seus contra a autora que tenham a ver com o prédio a dividir e que possam influenciar o valor daquilo que a autora tenha direito a receber no fim dessa acção, de modo a evitar que tenha que ser intentada nova acção para discutir esses créditos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A 11/10/2023, A intentou contra P uma acção especial de divisão de um imóvel de que ambos são comproprietários, nos termos dos artigos 925 e seguintes do CPC, pedindo que se julgue o prédio indivisível e se ponha termo à indivisão procedendo-se à adjudicação do mesmo à autora ou ao réu, preenchendo-se em dinheiro as quotas do outro, in casu de 50%, ou, não sendo possível a dita adjudicação, vendendo-se o prédio e repartindo o produto da venda por ambos os proprietários.
Alega, entre o mais que o imóvel foi adquirido por ambos em partes iguais, com um empréstimo bancário, que foi totalmente pago em prestações mensais, e a indivisibilidade do imóvel (já que não podem ser constituídas duas fracções autónomas sobre ele), do que decorre o que ela pede (adjudicação ou venda).
O réu não contestou a compropriedade em partes iguais nem a indivisibilidade do prédio, mas reconveio contra a autora pedindo que se determine que ela é devedora ao réu, relativamente aos empréstimos, seguros e IMI assumidos pelos dois, no valor, pelo menos, de 12.359,21€, fixando-se o valor a atribuir ao imóvel de forma a compor-se o quinhão de cada consorte, atendendo à sua contribuição para o pagamento do correspondente preço e despesas de aquisição.
Para o efeito, alega que, desde de Setembro de 2017 até Abril de 2023, a autora permaneceu a habitar sozinha no imóvel, mas que as prestações do crédito bancário, seguros associados ao crédito e os IMI dos anos de 2017 e 2018 foram pagos, exclusivamente, pelo réu.
A autora replicou, impugnando os factos base da reconvenção.
Por despacho de 28/05/2024, não foi admitida “a apreciação do pedido reconvencional”, com a seguinte fundamentação, em síntese:
O processo de divisão de coisa comum é um processo especial, destina-se a pôr termo à contitularidade de direitos reais (artigos 925 do CPC e 1412 do Código Civil) e comporta duas fases distintas, declarativa (artigos 925 a 928 do CPC) e executiva (art.º 929 do CPC).
A fase declarativa processa-se de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância (art.º 926/2 do CPC), excepto se o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, caso em que é determinado que se sigam os termos do processo comum (art.º 926/3 do CPC).
É nesta fase declarativa que se apreciam as questões relativas à natureza comum da coisa e das suas características materiais, dos quinhões e da divisibilidade material e jurídica da coisa dividenda. Decididas as referidas questões passa-se à fase executiva que se destina essencialmente à adjudicação ou venda.
No caso em apreço, o réu aceitou expressamente a compropriedade e a indivisibilidade do imóvel objecto da divisão requerida, pelo que o pedido objecto da petição inicial pode ser apreciado de forma sumária.
Com o pedido reconvencional pretende o réu efectivar um direito de crédito, o qual não é passível de ser objecto de decisão sumária, implicando a produção de prova e a tramitação dos autos sob a forma de processo comum.
Dispõe o artigo 266/3 do CPC que «Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações.»
Ora, se em abstracto é possível deduzir reconvenção no caso de apresentação de contestação em acção de divisão de coisa comum, verificados os requisitos substanciais e processuais, como decorre dos preceitos citados, certo é que no caso que nos ocupa, e relativamente ao pedido de divisão, verificando-se a possibilidade de acção sumária devem os autos prosseguir nos termos do disposto no art.º 926/2 e 929/2 do CPC, não podendo ser enxertada uma acção comum que alterará, de forma substancial os termos da acção e a sua celeridade (no mesmo sentido, o acórdão do TRL de 25/06/2020, processo 329/18.T8FNC-A.L-8).
Nestes termos e face ao exposto, entendemos existir, no caso em apreço, uma incompatibilidade manifesta das duas formais processuais em causa, fundamentadora da inadmissibilidade da apreciação do pedido reconvencional no caso em apreço.
De seguida, o tribunal proferiu decisão sumária considerando indivisível o imóvel e fixando os quinhões de cada consorte em 50% para cada um e designou dia para a conferência de interessados.
O réu recorre do indeferimento liminar da reconvenção – para que seja revogado (incluindo a condenação nas custas inerentes) e substituído por despacho que admita o pedido reconvencional e ordene que a tramitação processual passe a observar os termos do processo comum subsequentes à contestação com vista ao reconhecido do respectivo crédito e compensação -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem na parte útil:
E\ Ainda que a apreciação deste pedido reconvencional possa implicar do ponto de vista processual a transmutação do processo especial em comum, tal é legalmente admissível nos termos do art.º 266/2, alíneas a), b) e c) e art.º 37, n.ºs 2 e 3, todos do CPC.
F\ A existência de consenso quanto às demais questões trazidas aos autos, nomeadamente indivisibilidade, compropriedade e quotas-partes, não obsta ao conhecimento da reconvenção nem conduz à sua inadmissibilidade.
G\ Não se discutindo entre as partes nem a proporção na titularidade do direito sobre o bem comum nem a indivisibilidade deste em substância, tendo sido formulado pedido reconvencional pelo Recorrente com fundamento na titularidade de créditos sobre a Autora Recorrida decorrentes da satisfação de encargos bancários relativos ao bem comum, em valor superior ao da sua quota, deve o juiz admitir tal pedido e ordenar que a tramitação processual observe os termos do processo comum subsequentes à contestação (artigo 926/3 do CPC).
H\ Neste sentido vai a orientação actualmente observada pelo STJ e pela maioria da jurisprudência [das Relações],
I\ De facto, o STJ, secundando jurisprudência das Relações que tem vindo a ser publicada no mesmo sentido [o réu arrola 23 acórdãos das Relações neste sentido], reconheceu já o direito à discussão na própria acção de divisão de coisa comum da existência de créditos emergentes da aquisição da coisa comum, considerando não fazer sentido obrigar as partes a instaurar nova acção declarativa para nela discutir questões directamente relacionadas com a extinção da compropriedade sobre o bem comum e os conexos e alegados direitos de crédito dos comproprietários (acórdãos de 26/01/2021 na revista 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1, de 25/05/2021 na revista 1761/19.9T8PBL-A.C1.S1 e de 01/10/2019 na revista 385/18).
J\ Sendo forçoso concluir-se ser admissível a reconvenção quando suscitada a compensação do crédito de despesas suportadas além da quota respectiva, devendo a acção seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então depois se entrando na fase executiva do processo.
K\ Na verdade, o poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, sendo esta a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil.
L\ Pesam aqui critérios de economia processual e justa composição do litígio que o tribunal recorrido descurou.
A autora não apresentou contra-alegações.
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Questão que importa decidir: se a reconvenção devia ter sido admitida.
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Apreciação:
Precisamente a propósito do ac. do TRL de 25/6/2020 (329/18.T8FNC-A.L-8) que serviu de base ao despacho recorrido, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa fez o seguinte comentário crítico publicado a 08/01/2021 no blog do IPPC, Jurisprudência 2020 (122):
“a) O problema decidido pela RL não tem uma solução linear, mas, salvo o devido respeito, propende-se para uma orientação diferente.
Ao contrário do entendimento da RL, não parece impossível aplicar, numa acção de divisão de coisa comum, o disposto, quanto ao pedido reconvencional relativo a benfeitorias, no art.º 266.º, n.º 2, al. b), CPC. No fundo, o que o autor dessa acção pretende é a entrega da parcela que tem na coisa indivisa, pelo que não é impossível entender que, se a parte demandada tiver direito a benfeitorias por obras que realizou na coisa indivisa, possa fazer valer esse direito na acção pendente. Portanto, o requisito da conexão objectiva entre os pedidos encontra-se preenchido.
Sendo assim, o que importa analisar é se permanecem outros obstáculos à admissibilidade do pedido reconvencional relativo a benfeitorias na acção de divisão de coisa comum.
A alternativa à inadmissibilidade da dedução do pedido reconvencional relativo a benfeitorias é, naturalmente, a necessidade de fazer valer esse direito numa acção autónoma. Por isso, o que, em termos de exercício dos poderes de gestão processual, tem de ser ponderado é se é justificado "complicar" a acção de divisão de coisa comum para permitir a resolução definitiva da situação das partes e evitar uma acção autónoma. É claro que a acção de divisão se "complica"; mas o que tem de ser ponderado é se essa "complicação" evita outras "complicações".
Atendendo especialmente ao disposto no art.º 929.º, n.º 2, CPC (aplicável no caso sub iudice pela circunstância de a coisa ser indivisível), era desejável que, no acerto de contas entre as partes, pudesse tomar-se em consideração o eventual direito a benfeitorias da parte demandada.
Pelo exposto, nada impediria que, através da aplicação dos poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1, e 547.º CPC), o pedido reconvencional relativo às benfeitorias fosse considerado admissível. Note-se que o exercício desses poderes pode ir para além do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 37.º CPC, para o qual remete o art.º 266.º, n.º 3, CPC.
b) Num outro plano, pode ainda perguntar-se se, na hipótese de o direito a benfeitorias pertencer à parte demandante, seria impensável admitir que esse direito pudesse ser feito valer na acção de divisão de coisa comum. Se não se descortinam razões para considerar inadmissível essa cumulação de pedidos pela parte demandante, então, por imposição do princípio da igualdade das partes, também a dedução de um idêntico pedido pela parte demandada não pode ser inadmissível.”
Esta posição corresponde àquela que se considera a melhor e maioritária jurisprudência sobre a matéria (daí que o réu possa ter arrolado 26 acórdãos do STJ e das Relações no mesmo sentido), sendo também a posição assumida pelo relator do actual no ac. do TRL de 12/09/2024, proc. 16759/21.9T8LSB-A.L1-2, de que se passam a transcrever apenas algumas partes [visto que muitas outras dizem respeito a questões que foram então levantadas pelas partes ou pelo respectivo despacho recorrido e não se levantam nestas] com apenas algumas adaptações:
Visto que a acção especial de divisão de coisa comum permite ao juiz vir a decidir, quando verificar que as questões não podem ser sumariamente decididas, mandar seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum (art.º 926/3 do CPC), a jurisprudência está hoje praticamente estabilizada no sentido de o juiz dever autorizar (ao abrigo dos artigos 266/3, 37/2-3, 6 e 547, todos do CPC) a reconvenção – normalmente em situações que têm sido enquadradas nas hipóteses (b) e (c) do art.º 266/2 do CPC: quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;  quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor, - pois que vê nisso interesse relevante ou considera mesmo que a apreciação conjunta das pretensões é indispensável para a justa composição do litígio, fazendo-se, se necessário, adaptação do processado. Isto porque, se se vai acabar com a compropriedade, se considera que todas as questões conexas devem ser resolvidas de uma vez por todas, sem dar origem a novos processos.
Para além de todos aqueles já invocados ao longo de todo o relatório deste acórdão, vejam-se, ainda, por exemplo, os acórdãos (alguns já referidos): do TRE de 27/06/2024, proc. 58/23.4TBLAG.E1; do TRP de 06/06/2024, proc. 408/23.3T8VCD.P1; do TRP de 20/02/2024, proc. 183/22.9T8PNI-B.C1; do TRP de 27/11/2023, proc. 654/22.7T8PVZ-A.P1; do TRL de 28/09/2023, proc. 2212/21.4T8PDL.L1-6; do TRL de 13/07/2023, proc. 1845/20.0T8AMD-A.L1-7; do TRL de 11/05/2023, proc. 2772/22.2T8OER-A.L1-2; do TRG de 04/05/2023, proc. 121/22.9T8MNC-A.G1; do STJ de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1; do TRP de 28/03/2023, proc. 8188/21.0T8VNG.P1; do TRP de 8/11/2022, proc. 5744/20.4T8MTS.P1; do TRG de 13/07/2022, proc. 1889/21.5T8VCT.G1; do TRP de 30/06/2022, proc. 179/22.0T8OVR.P1; do STJ de 25/05/2021, proc. 1761/19.9T8PBL.C1.S1; do STJ de 26/01/2021, proc. 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1; do TRP de 27/4/2021, proc. 5962/20.9T8VNG.P1; do STJ de 01/10/2019, proc. 385/18.2T8LMG-A.C1.S2; do TRE de 17/01/2019, proc. 764/18.5T8STB.E1; do TRG de 20/09/2018, proc. 242/17.0T8VPC-A.G1; do TRL de 15/03/2018, proc. 2886/15.5T8CSC.L1.L1-8; do TRL de 24/09/2015, proc. 2510/14.3T8OER-A.L1-2; do TRG de 25/09/2014, proc. 260/12.4TBMNC-A.G1.
No mesmo sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2021, página 536, referem dois destes acórdãos; Miguel Teixeira de Sousa, também tem aderido a alguns acórdãos com a mesma posição [16/11/2023, Jurisprudência 2023 (52), ac. do TRL 2/3/2023 (102/22.2T8VLS.L1-2); 24/02/2022, Jurisprudência 2021 (140), ac. do TRL 8/6/2021 (13686/20.0T8LSB.L1-7); 06/12/2021, Jurisprudência 2021 (91), ac. do TRP 27/4/2021(5962/20.9T8VNG.P1)] e num comentário publicado no blog do IPPC, em 21/07/2021, Jurisprudência 2021 (17), ao ac. do TRP de 26/01/2021 (1509/19.8T8GDM.P1), aventa a possibilidade de enquadrar algumas das despesas reconvindas na alínea (a) do art.º 266 do CPC. Num outro – publicado em 11/04/2023, Jurisprudência 2022 (160), quanto ao ac. do TRG de 13/7/2022 (1889/21.5T8VCT.G1) - chama “a atenção para que o que estava em causa nos citados STJ 01/10/2019 e STJ 26/07/2021 era a admissibilidade de um pedido reconvencional de compensação de um crédito por despesas suportadas para além da quota respectiva. Faltou, portanto, dizer que o que vale para a admissibilidade desse pedido reconvencional também vale para a cumulação inicial de um semelhante pedido na acção de divisão de coisa comum.” Num outro, de 08/01/2021, Jurisprudência 2020 (122), quanto ao ac. do TRL de 25/6/2020 (329/18.T8FNC-A.L-8), desenvolve a defesa da admissibilidade da reconvenção no caso das benfeitorias, ao abrigo do art.º 266/2-b do CPC, com fundamentos que permitem a defesa ampla da admissibilidade da reconvenção para as situações que estão em causa em muitos outros daqueles acórdãos e ainda defende que não só a parte demandada pode reconvir, como o demandante pode cumular pedidos com o pedido da acção especial. Já no sentido defendido, mas em termos iniciais e menos desenvolvidos, veja-se ainda o comentário publicado em 24/04/2018, Jurisprudência 2018 (10), quanto ao ac. do TRL de 11/01/2018 (386-15.2T8MFR.L2-8).
Note-se que a solução é diferente para a situação inversa, isto é, quando se pretenda enxertar, num processo comum, um processo especial de divisão de um imóvel comum: acórdão do TRL de 13/09/2018, proc. 358/17.2T8SNT.L1-2 [do relator do actual], acórdão que não segue, assim, ao contrário do que por vezes se vê escrito, a posição de negar a admissibilidade da reconvenção neste processo especial, antes pelo contrário como se pode ver em obiter dictum dele constante (o acórdão foi publicado por Miguel Teixeira de Sousa, no que parece ser uma aceitação da posição seguida, a 20/12/2018, no blog do IPPC, 20/12/2018, Jurisprudência 2018 (140); veja-se também o já citado ac. do TRL de 17/06/2014, proc. 2548/12.TJLSB.L1-1 no mesmo sentido de na acção comum não poder ser enxertada uma acção especial de divisão).
Naturalmente, o que vale para empréstimos para pagamento do preço de aquisição, ou outros créditos conexos, como tem sido dito por aquela jurisprudência, com referência, por exemplo, a seguros, impostos, quotas de condomínio, etc., vale também para empréstimos, feitos por ambos, para pagamento de obras no prédio; a norma do art.º 266/2-c do CPC não faz qualquer restrição a créditos relativos à aquisição e as razões que têm sido dadas para a admissibilidade da reconvenção abrange uns e outros.
A jurisprudência que ia em sentido contrário tem sido revogada (por acórdãos do STJ em revistas excepcionais) e os argumentos dela, que no caso são defendidos pelo despacho recorrido, têm sido sistematicamente afastados:
Assim, um dos fundamentos do despacho recorrido foi o de que “face aos elementos constantes dos autos, é possível proferir de seguida decisão sumária, […] posto que não está colocada em causa nem a compropriedade nem a indivisibilidade do imóvel.” Mas, ao pôr assim as coisas, o despacho recorrido não está a considerar tudo o que está nos autos, ou seja, também a contestação com a reconvenção. E esta omissão é o reconhecimento de que o está nos autos não permite a decisão sumária de todas as questões que eles levantam. Pelo que o raciocínio certo é o contrário: se as questões levantadas pela contestação, com a reconvenção, não puderem ser decididas sumariamente, tal não deve ser visto como impeditivo da admissibilidade da reconvenção, mas apenas como razão para que o processo não seja decidido sumariamente, devendo-se passar a seguir os termos de uma acção comum, onde se decidam também as questões que a reconvenção levanta, o que tem por pressuposto que esta seja admitida. Sendo que as questões que a contestação pode levantar, como diz o ac. do STJ de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1, são muito mais amplas do que a da fixação dos quinhões ou da divisibilidade: “a acção de divisão de coisa comum é o meio processual adequado a regular as relações jurídicas entre as partes, nomeadamente, os direitos de crédito relacionados com aquisição ou amortização de empréstimos bancários com vista à aquisição da coisa comum para além da respectiva quota. Tais questões não poderão deixar de ser enquadradas como ‘questões suscitadas pelo pedido de divisão’ já que é a cessação da indivisão do prédio que faz nascer o direito à repartição do valor do bem comum de acordo com as quotas dos comproprietários.”
Note-se que aquele argumento do despacho recorrido vem ainda do ac. do TRL de 04/03/2010, proc. 1392/08.9TCSNT.L1-6, sendo que este acórdão é expressamente referido nos acórdãos do STJ de 01/10/2019, proc. 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, de 26/01/2021, proc. 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1, e de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1, já citados acima, que o afastaram com os argumentos acima sintetizados.
Outro argumento que costuma ser avançado contra a posição que se entende melhor, vem de um ac. do TRP de 26/01/2021, proc. 1509/19.8T8GDM.P1, repetindo muitos outros e sendo repetido por muitos outros: “o pedido reconvencional fundamentado em despesas alegadamente efectuadas apenas pela ré na aquisição e manutenção do imóvel cuja divisão se peticiona, […], com vista ao reconhecimento desse crédito sobre o autor a ser efectivado/compensado aquando da adjudicação ou venda do imóvel, não é admissível à míngua da não verificação de qualquer requisito substancial de conexão, cf. art.º 266/2 do CPC.”
Mas a jurisprudência actual tem sistematicamente respondido que os créditos que os réus possam ter, contra os autores, por pagamentos relacionados com os bens a dividir, feitos a mais para além do que seria devido pela quota de cada um, têm conexão com os direitos que afinal virão a ser reconhecidos ao autor, pois que estes, independentemente da forma que vierem a assumir, virão a ser afectados (reduzidos) devido à existência daqueles créditos (assim, no voto de vencido junto ao ac. do TRE de 07/03/2024, proc. 5182/21.5T8STB-B-E1: quando a ré refere que pretende ver reconhecido o seu crédito com o crédito de tornas que possa ser adjudicado a um dos comproprietários (onde se inclui o autor) uma vez que a fracção autónoma é indivisível (logo obriga a adjudicação ou venda), está a invocar um requisito substancial de conexão entre o pedido reconvencional e o pedido do autor. Isto porque ao intentar uma acção de divisão de coisa comum o autor está a formular um pedido abrangente e complexo, formado por tantos pedidos quantos caibam na fase declarativa e executiva desta acção especial, nomeadamente a adjudicação a si do imóvel ou a entrega a si de 1/2 do preço que terceiro pagar, e é sobre esse crédito que assenta o contra crédito da ré. Se a ré quer obter o pagamento do seu "sacrifício patrimonial" com a "vantagem patrimonial" do autor no momento da divisão do produto da venda, sendo ambos credores de metade, embora essa pretensão a um encontro de contas não constitua uma compensação em sentido estrito, cabe ainda assim na previsão da alínea (c) do artigo 266/2, na parte em que prevê a possibilidade de reconvenção para o reconhecimento de um crédito para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor.); e o ac. do STJ de 28/03/2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1, ainda lembra: II. Não impede o funcionamento do mecanismo da compensação a circunstância de os créditos do autor e da ré em relação ao bem comum serem ilíquidos no momento da formulação do pedido, já que o valor económico do direito de cada um deles só fica definido na conferência de interessados.
Ainda outros argumentos contra a melhor jurisprudência:
Um deles é o de que “a tramitação da acção especial de divisão de coisa comum não se compatibiliza com a tramitação de acção declarativa.” Mas, pelo contrário, a jurisprudência actual estabilizada responde que já que as normas do processo especial prevêem que, em dados casos, ele siga, a partir de determinado momento, os termos da acção comum, esta não é incompatível com ele (ac. do TRE de 17/01/2019, proc. 764/18.5T8STB.E1, com anotação concordante de Miguel Teixeira de Sousa, em 13/05/2019, Jurisprudência 2019 (18); acórdão do STJ de 01/10/2019, proc. 385/18.2T8LMG-A.C1.S2).
 Outro é o de que “os valores monetários em causa sempre implicariam a incompetência deste tribunal em razão do valor”. Mas não é assim, já que a variação de valor não tem, só por si, influência na competência do tribunal, desde que o processo especial continue a ser um processo especial, como no caso, em que se trata, apenas de um processo especial passar a seguir, a partir de determinado momento, os termos de um processo comum, sem se converter num processo comum (ac. do TRL de 16/02/2016, proc. 7415/14.5T8LSB-A.L1-1, e ac. do TRE de 09/07/2021, proc. 24/20.1T8RMZ.E1); num estudo de 18/01/2015 de MTS publicado no blog do IPPC, sobre o título conversão da forma do processo; perpetuatio fori, conclui-se no mesmo sentido: “Na área dos processos civis declarativos ou executivos, a única situação de translatio iudicii prevista na LOSJ é a que se encontra regulada no seu art.º 117.º, n.º 3: são remetidos à secção cível da instância central os processos pendentes nas secções da instância local em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência. Logo, há que concluir que, não havendo outra excepção à regra da perpetuatio fori no âmbito daqueles processos, a secção genérica da instância local não perde a sua competência pelo facto de o processo especial que nela foi proposto passar, a partir de certo momento, a seguir a forma comum.”
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Consequências da revogação do despacho
Revogado o despacho interlocutório, importa tirar as consequências para o processado posterior, fazendo-se as necessárias adaptações do disposto no art.º 195/2 do CPC. No caso, a revogação deste despacho interlocutório vai implicar a anulação do processado posterior na medida e só na medida que possa pôr em causa o que resulta da admissão da reconvenção, o que não é o caso da decisão que fixou as quotas e a indivisibilidade do prédio (o post do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, de 21/01/2016, no Blog do IPPC, Recurso de decisão interlocutória e suspensão do trânsito em julgado, desenvolve a questão chegando às seguintes conclusões, que têm de ser adaptadas ao caso: “Enquanto estiver pendente um recurso sobre uma decisão interlocutória de cuja decisão depende a correcção da sentença final, esta sentença não pode transitar em julgado; Depois do proferimento da decisão de recurso sobre a decisão interlocutória, pode verificar-se uma de duas situações: (i) O recurso interposto da decisão interlocutória é decidido contra o recorrente; nesta hipótese, a sentença final transita em julgado no momento do trânsito em julgado da decisão de recurso; (ii) O recurso interposto é decidido a favor do recorrente; nesta situação, há que aplicar, por analogia, o disposto no art.º 195.º, n.º 2, CPC: a procedência do recurso implica a inutilização e a repetição de todos os actos que sejam afectados por aquela procedência; entre esses actos inclui-se a sentença final.”)
Deveria em princípio anular-se a conferência de interessados, mas o tribunal recorrido, por erro (afirmação que será fundamentada no despacho deste TRL a admitir o recurso e a inscrever o processo na tabela), determinou a subida do recurso nos próprios autos e com efeito suspensivo, pelo que o processo não prosseguiu, e, por isso, nada há a anular.
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido (incluindo, naturalmente, a condenação em custas) e em substituição do despacho recorrido admite-se a reconvenção do réu, devendo o tribunal recorrido ordenar que a tramitação processual passe a observar os termos do processo comum subsequentes à contestação para apreciação da reconvenção admitida (sem prejuízo do já decidido quanto à fixação das quotas e à indivisibilidade do imóvel).
Custas do recurso, na vertente de custas de parte, pela autora.

Lisboa, 07/11/2024
Pedro Martins
Higina Castelo
João Paulo Raposo