Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5962/20.9T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: GARANTIA DE ACESSO AOS TRIBUNAIS
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
PROCESSO ESPECIAL
DIVISÃO DE COISA COMUM
PROCESSO DECLARATIVO COMUM
Nº do Documento: RP202104275962/20.9T8VNG.P1
Data do Acordão: 04/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Por força do princípio geral previsto no artigo 2.º, n.º 2, do Código do Processo Civil (CPC) relativo à garantia de acesso aos tribunais, no âmbito de uma ação especial de divisão de coisa comum, haverá sempre todo o interesse, na medida do possível, em procurar discutir e decidir as questões que, para além da divisão, envolvam o prédio dividendo.
II – Não é necessariamente inviável a cumulação de pedidos, envolvendo um deles a forma de processo de divisão de coisa comum e o outro a forma de processo comum, conquanto se possam verificar os pressupostos do art. 555º CPC, conjugado com o art. 37º, nº2 do mesmo Código.
III – Uma vez apurada a indivisibilidade do prédio e restando discernir das questões relativas ao contributo de cada um dos comproprietários para a aquisição do imóvel, decidindo-se pela prossecução dos autos, no essencial, como processo comum, nada obsta, à luz de uma adequada gestão processual, que o litígio possa ser dirimido numa mesma ação.
IV – Perante as exigências de simplificação e agilização processuais impostas pelo artigo 6º do CPC, apenas se deve considerar como tramitação “manifestamente incompatível”, nos termos e para os efeitos dos art.s 266.º, n.º 3 e 37.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aquela que obrigue à pratica de atos processuais concretamente inconciliáveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5.962/20.9T8VNG.P1
Sumário
(artigo 663º, nº7 do CPC):
..........................................................
..........................................................
..........................................................
*
Acórdão
I – Relatório
Foi proferida a decisão, ora sob recurso, que se reproduz na íntegra:
No presente litígio que B… move contra C…, ambos devidamente identificados nos autos, veio a autora peticionar que se proceda à divisão de um imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Nova de Gaia sob o n.º 525, mais tendo peticionado que o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de 17.903,16 €, respeitante ao valor que o mesmo seria obrigado a liquidar pelo restante dos contratos de crédito referenciados no articulado inicial.
O réu contestou, arguindo a excepção de erro na forma do processo em virtude de a autora pretender enxertar numa acção especial de divisão de coisa comum uma pretensão que diz respeito a um processo que deve seguir a forma declarativa comum.
Em resposta, a autora pronunciou-se no sentido da improcedência da invocada excepção.
Cumpre decidir.
Compulsados os autos, constata-se que assiste razão ao réu, uma vez que a autora cumula dois pedidos que correspondem a formas de processo distintas, ou seja, pretende que se proceda à divisão do imóvel supra referenciado – pedido que segue a tramitação prevista nos arts. 925º e segs. do C.P.C. (processo especial de divisão de coisa comum) – e, paralelamente, que o réu seja condenado a pagar-lhe a mencionada importância, pretensão para a qual é adequada a forma de processo comum regulada nos arts. 552º e segs. do mesmo diploma legal.
Ora a cumulação de pedidos, por força do disposto no art. 555º, nº1, do C.P.C., apenas é possível se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação, sendo que uma dessas circunstâncias é precisamente o facto de aos pedidos corresponderem formas de processo diferentes (art. 37º, nº1, do C.P.C.).
Estamos perante uma excepção dilatória que, nos termos previstos no art. 576º, nº2, do Código que temos vindo a citar, implica que o Tribunal não possa conhecer do mérito da causa.
Termos em que julgo verificada a apontada exceção e, em consequência, absolvo o réu da instância.
Custas pela autora, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Valor da causa: 67.602,86€ (sessenta e sete mil seiscentos e dois euros e oitenta e seis cêntimos).
Registe/notifique.
A decisão foi proferida após os articulados e um despacho prévio no qual o tribunal notificou as partes conterem os autos todos os elementos para ser proferida decisão no que concerne à matéria de exceção (dilatória) arguida pelo réu e, por isso, convidando-as para apresentarem as respetivas alegações finais.
*
A autora B… não se conformou com o decidido e deduziu o presente recurso apresentando as seguintes conclusões:
a) A A., em sede de questão prévia no articulado inicial, aduziu as razões para a cumulação de pedidos que realiza, no que concerne a factos atinentes a uma acção especial de divisão de coisa comum e a uma acção sob a forma de processo comum.
b) In casu, a A. conciliou uma acção especial com uma acção comum, naquela pedindo a divisão de um prédio que considera indivisível e nesta a condenação do R. por valor referente a um enriquecimento sem causa do R. por conta do aludido prédio e, consequentemente, a sua condenação na devolução do enriquecimento.
c) Por seu turno, o R., não obstante a dedução da excepção dilatória cujo julgamento ora nos prende, não deixa de igualmente realizar um pedido reconvencional, exactamente por referência ao prédio objecto dos autos.
d) São estes os factos, grosso modo, que levam ao insurgimento da A. relativamente à sentença proferida que julga procedente a excepção do erro na forma do processo.
e) Ora, é manifesto que o prédio é bem em regime de compropriedade e indivisível, conforme o confessa o R., na sua contestação.
f) Pelo que o único litígio que ora nos prende tem a ver com o outro pedido formulado pela A. e pelo pedido formulado pelo R., em sede de reconvenção.
g) No caso concreto, conforme decorre das posições vertidas nos respectivos articulados, A. e R. não colocam em causa nem a aquisição da fracção em compropriedade nem a natureza indivisível da coisa. O que cristalinamente transparece dos autos é que o litígio entre os mesmos decorre de não chegarem a um entendimento quanto à alegada quantia própria da A. de que o R. se serviu para liquidar integralmente o que ainda faltava liquidar por conta do empréstimo bancário contraído por ambas as partes para a aquisição do identificado imóvel, bem como quanto à alegada quantia própria do R. para a aquisição do referido prédio, numa fase inicial, como impetra em sede de reconvenção.
h) Salvo o devido respeito, consideramos que o entendimento preconizado na sentença proferida não é o mais consentâneo com a interpretação conjugada dos preceitos pertinentes para encontrar a almejada justa-composição do litígio, quando é certo que o único verdadeiramente existente entre as partes se prende precisamente com as questões relativas à aquisição da fracção autónoma em comum e na mesma proporção por ambos os comproprietários, com recurso a pedido de empréstimo bancário e uso de dinheiros próprios para a sua liquidação, que um alega ter suportado em quantia superior ao outro e viceversa.
i) Ora, com a visão preconizada na decisão recorrida, na conferência de interessados, caso exista adjudicação a um dos comproprietários, o valor a entregar de tornas ao outro, não terá em conta o verdadeiro cerne do litígio, tudo se passando como se ambos tivessem contribuído/beneficiado igualmente na proporção da quota respectiva.
j) Diz cada uma das partes, e por diferentes razões, que tal não aconteceu, significando isso que as partes terão que recorrer a outro processo para resolver aquilo que verdadeiramente as divide e que é, em rectas contas, o encontro entre o “deve” e o “haver”, entre a contribuição de cada um para o valor da sua quota ou, noutra visão, o benefício que cada um retirou para além da quota parte respectiva.
k) Mas, para dirimir o litígio fará isso sentido remeter as partes para outra acção? Pensamos que não.
l) Efectivamente, sendo certo que na acção de divisão de coisa comum quando o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, de acordo com o n.º 3 do artigo 926.º do CPC manda seguir, após a contestação, os termos subsequentes do processo comum, o único obstáculo que existe à determinação da convolação do processo especial em processo comum, será o decorrente da forma de processo, previsto no n.º 3 do artigo 266.º do CPC, que rege sobre a admissibilidade da reconvenção, porquanto a mesma, nos termos em que foi deduzida, sempre se enquadraria na previsão da alínea c) do n.º 2 do mesmo preceito.
m) Porém, logo no próprio n.º 3 do mesmo preceito consta salvaguardada a possibilidade de o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º do CPC, com as necessárias adaptações.
n) Assim, sendo as diversas formas de processo - especial e comum -, o único obstáculo formal à admissibilidade da cumulação e da reconvenção, mas não seguindo as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a transmutação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o preceituado nos n.ºs 2 e 3 do indicado artigo 37.º, pode o juiz autorizar a cumulação e a reconvenção, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa-composição do litígio.
o) Ora, quando o artigo 2.º, n.º 2, do CPC adverte para a garantia de acesso aos tribunais, mediante todos os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção, salvo se a lei disser o contrário, o que neste caso não diz; e, por via do artigo 6.º da mesma codificação compete ao juiz adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a almejada justa-composição do litígio em prazo razoável.
p) Deste modo, fazemos nossas as judiciosas considerações tecidas no Ac. TRG de 20.09.2014, proc. n.º 260/12.4TBMNC-A.G1 in www.dgsi.pt.
q) Chamamos, outrossim, à colação o vertido no atento Ac. do TRP, de 30/11/2015, processo 272/14.3TVPRT.P1, disponível in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: …
II - Em processo que segue a forma de processo comum, não constitui obstáculo à cumulação inicial de pedidos, a dedução de um pedido ao qual corresponde a forma de processo de divisão de coisa comum, por se verificarem os pressupostos do art. 555º CPC, conjugado com o art. 37º/2 CPC.
III - Em ação que segue a forma de processo comum, através da qual se visa regular os efeitos patrimoniais decorrentes da dissolução da união de facto há um interesse relevante na resolução das várias questões na mesma ação, porque se trata no essencial de proceder à liquidação do património constituído na pendência da união de facto e por outro lado, existe entre os vários pedidos uma conexão e dependência, como seja a imputação do crédito da apelante na quota que o apelado possui no imóvel adquirido em compropriedade e a determinação da responsabilidade no crédito hipotecário.
IV - A adaptação do processado considerando a especificidade dos pedidos enxertando na ação, que segue a forma de processo comum, a tramitação própria da ação de divisão de coisa comum prevista no art. 925º e seg. do CPC, para efeitos de proceder à divisão do imóvel adquirido em compropriedade, respeita os princípios nucleares do processo civil, observa-se a forma processual legal para operar a divisão e sem necessidade de recurso a novos processos, com o esforço e encargos económicos que esse procedimento implicaria para as partes, obtém-se a resolução do litigio que opõe as partes e que consiste tão só na liquidação do património comum constituído durante a união de facto.
r) Por último, por igual pertinência, vertemos o sumário do Ac. STJ, de 01/10/2019, proc. N.º 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, igualmente disponível in www.dgsi.pt:
I - Tramitação “manifestamente incompatível”, nos termos e para os efeitos dos art.s 266.º, n.º 3 e 37.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, só existirá naqueles casos em que se imporia (ou, pelo menos, em que houvesse o risco disso suceder) praticar atos processuais contraditórios ou inconciliáveis. Não basta que se esteja perante tramitações desajustadas umas das outras, pois que isso sempre acontece, em maior ou menor grau, em formas processuais diferentes.
II - Na ação de divisão de coisa comum, se for deduzida reconvenção tendente a obter indemnização por benfeitorias feitas no prédio dividendo, deverá a reconvenção ser autorizada, ao abrigo do disposto nos artigos 266.º, n.º 3 e 37.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil, ordenando-se, em consequência, que o processo siga os termos do processo comum.
s) Mas, mesmo que assim não se entendesse, sempre seria possível o aproveitamento máximo dos presentes autos, extirpando a forma especial e mantendo os efeitos da acção declarativa sob a forma de processo comum.
t) Ora, repetindo os ensinamentos supra vertidos, quando o artigo 2.º, n.º 2, do CPC, é esta a interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efectiva composição do litígio que reponha a paz social quebrada com as visões antagónicas que as partes têm do caso que as divide e que são o fundamento da demanda.
u) Foram violados, em nosso modesto entendimento, os art.ºs 37.º, n.ºs 2 e 3, 266.º, n.º 3, 547.º e 555.º, todos do CPC.
Termina a apelante requerendo que se julgue procedente o presente recurso e se revogue a sentença proferida, deferindo-se a cumulação dos pedidos e consequente adequação formal do processo, enxertando-se na tramitação do processo a forma do processo de divisão de coisa comum, ou, em último caso, mantendo o pedido sob a forma de processo comum e extirpando a especial.
Houve resposta às alegações pelo réu na qual termina peticionando a improcedência do recurso, com a decorrente manutenção da decisão proferida. Invoca o recorrido que a aceitação da peticionada cumulação de pedidos, além de inadmissível pelas razões já aduzidas na sentença, implicaria a incompetência do tribunal “a quo” para julgar a causa em função das regras de competência em razão da matéria.
Esta exceção relativa à incompetência do tribunal fora já arguida nas alegações prévias à decisão proferida pelo tribunal recorrido e, portanto, foi já esgrimida em primeira instância, ainda que sem tomada de posição específica pelo tribunal “a quo”.
II – Delimitação do objeto do recurso; questões a apreciar.
O objeto do recurso é delimitado, no essencial, pelas conclusões das alegações do apelante. Assim, temos em causa nos autos a questão relativa à admissibilidade da cumulação dos pedidos formulados pela autora. Caso se entenda ser possível tal cumulação terá depois que se discernir da eventual violação das regras de competência em razão da matéria dos tribunais.
III– Fundamentação de Direito
Delimitemos, brevemente, o que está em causa na presente sede de recurso.
A sentença sob escrutínio entendeu verificar-se uma exceção dilatória que impede o tribunal de conhecer do mérito da causa. Segundo a decisão apelada, a cumulação de pedidos, por força do disposto no art. 555º, nº1, do Código do Processo Civil (CPC) apenas é possível se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação nomeadamente o facto de aos pedidos corresponderem formas de processo diferentes (art. 37º, nº1, do CPC). Ora, estando em causa a divisão do imóvel em causa no processo – pedido que segue a tramitação prevista nos arts. 925º e segs. do CPC (processo especial de divisão de coisa comum) – e, paralelamente, a condenação do réu no âmbito de uma ação que segue a forma de processo comum regulada nos arts. 552º e segs. do mesmo diploma legal, estaria verificada a dita impossibilidade.
Entende diferentemente a recorrente. Alega que as diversas formas de processo - especial e comum – não são incompatíveis e que, de acordo com o preceituado nos n.ºs 2 e 3 do indicado artigo 37.º, pode o juiz autorizar a cumulação e a reconvenção, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio. Adenda a apelante que o artigo 2.º, n.º 2, do CPC adverte para a garantia de acesso aos tribunais e que, por via do artigo 6.º, compete ao juiz adotar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a resolução do litígio em prazo razoável.
Perante este litígio, cumpre apreciar e decidir.
Como arrimo jurisprudencial, logo no petitório, a autora invoca um acórdão desta Relação do Porto de 30.11.2015, processo nº 272/14.3TVPRT.P1, no qual se sumariou: “em processo que segue a forma de processo comum, não constitui obstáculo à cumulação inicial de pedidos, a dedução de um pedido ao qual corresponde a forma de processo de divisão de coisa comum, por se verificarem os pressupostos do art. 555º CPC, conjugado com o art. 37º/2 CPC”; por sua vez, o ora recorrido invoca, na contestação, um outro Acórdão este do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/09/2018, processo 358/17.2T8SNT-2, disponível em www.dgsi.pt, onde, ao invés, se defende, assumindo-se a divergência com o citado acórdão da Relação do Porto (TRP), que “o processo comum é um processo declarativo de tramitação linear, grosso modo com petição e contestação, produção de prova e decisão de facto e de direito. O processo especial de divisão de coisa comum é um processo misto, parte declarativo (em que se define o direito) e parte executivo (em que se procura dar execução ao direito declarado (...) Enxertar num processo comum, em que se discutem direitos de crédito de uma parte contra a outra, um processo especial com aquelas características de tramitação, em que se visa apenas pôr termo à indivisão de um imóvel, é algo quase impossível, o que se diz como outra forma de afirmar a manifesta incompatibilidade, que não se confunde com impossibilidade de adaptação.
O douto aresto vai mais além analisando o acórdão que contraria o seu entendimento: “daí que, por exemplo, o ac. do TRP de 2015, que entendeu o contrário do que aqui se defende (...) e mandou o processo prosseguir com pedidos cumulados do mesmo tipo dos destes autos, não disse minimamente como é que se faria tal adaptação processual (o que devia ter feito tendo em conta que essa adaptação deve ser feita no despacho que dá a autorização: art. 37/3 do CPC e que o juiz recorrido tinha entendido que a tramitação era manifestamente incompatível; entendendo-se o contrário, devia ter sido demonstrada essa compatibilidade, especificando a adaptação necessária, para que o juiz recorrido pudesse cumprir tal acórdão).”
Já recenseado nas doutas alegações de recurso, surge-nos, com interesse, um outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 01/10/2019, proc. N.º 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, o qual entendeu que: “na ação de divisão de coisa comum, se for deduzida reconvenção tendente a obter indemnização por benfeitorias feitas no prédio dividendo, deverá a reconvenção ser autorizada, ao abrigo do disposto nos artigos 266.º, n.º 3 e 37.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil, ordenando-se, em consequência, que o processo siga os termos do processo comum.
Descrita a querela jurisprudencial, atenhamo-nos ao caso concreto.
No mesmo, cumula-se um pedido no qual é requerida a declaração da compropriedade do prédio em causa nos autos e da sua natureza indivisível com um outro onde se pede a condenação do réu a pagar à autora o valor de €17.903,16, acrescido de juros desde a citação até efetivo e integral pagamento. Na contestação apresentada foi, entretanto, aceite a natureza indivisível do imóvel e deduzido pedido reconvencional, decorrente dessa indivisibilidade, no qual se requer a condenação da autora/reconvinda a pagar ao réu/reconvinte a quantia de €4.239,78.
Ou seja, concluindo-se que o imóvel em apreço é, por natureza, indivisível, estão concretamente em causa as questões relativas ao contributo, à proporção, de cada um dos comproprietários para a aquisição do imóvel na medida em que estes não chegam a um entendimento quer quanto à alegada quantia própria da A. de que o R. se serviu para liquidar integralmente o empréstimo bancário contraído por ambos para a aquisição do imóvel quer quanto à alegada quantia própria do R. despendida numa fase inicial para a aquisição do referido prédio.
E, neste cenário concreto, entendemos, salvo o devido respeito, que o poder/dever de gestão processual abarca a dita cumulação. Neste sentido, remetendo para a fundamentação expressa no acórdão citado do STJ, deve considerar-se, genericamente, que a “perturbação” na tramitação processual resultante da cumulação de formas processuais distintas não é “enjeitada” pela lei processual civil salvo se a mesma for manifestamente incompatível (artigo 37º, nºs. 2 e 3 do CPC). Materializando, o Supremo Tribunal explica que “incompatibilidade manifesta (intolerável, gritante) só existirá naqueles casos em que se imporia (ou, pelo menos, em que houvesse o risco de isso suceder) praticar atos processuais contraditórios ou inconciliáveis. Não basta que se esteja perante tramitações desajustadas umas das outras, pois que isso sempre acontece, em maior ou menor grau, em formas processuais diferentes.
Neste mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 17 de Janeiro de 2019, processo nº 764/18.5T8STB.E, recenseado pelo STJ, assume uma opção igualmente por nós sufragada e que evita remeter as partes para uma outra ação com o prejuízo decorrente em termos de acesso à justiça.
Deste modo, “data venia”, citemos o percurso argumentativo num caso similar ao nosso: “(...) o artigo 2.º, n.º 2, do CPC adverte para a garantia de acesso aos tribunais, mediante todos os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção, salvo se a lei disser o contrário, o que neste caso não diz; e, por via do artigo 6.º da mesma codificação compete ao juiz adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a almejada justa-composição do litígio em prazo razoável.
Deste modo, fazemos nossas as judiciosas considerações tecidas no Ac. TRG de 20.09.2014, para concluir que «o interesse em discutir e decidir todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos, (…) evitando dessa forma que ele se veja compelido a recorrer à propositura de uma outra acção para ver o seu direito reconhecido, para além de não beliscar qualquer daqueles princípios estruturantes, assume indiscutível relevância e que justifica plenamente a admissão da reconvenção.
E o próprio processo especial de divisão de coisa comum contém em si os mecanismos adequados para adaptar o processo à cumulação autorizada bastando, para o efeito, seguir o “iter” inverso ao do despacho recorrido: em vez de decidir em primeiro lugar da possibilidade de proferir logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão para, em face disso, concluir depois pela incompatibilidade de tramitação, começar por, reconhecendo o interesse relevante na admissão da reconvenção e, verificada a impossibilidade de conhecer sumariamente das questões suscitadas, mandar seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum.
Parece-nos, assim, que os princípios subjacentes àqueles poderes/deveres de gestão e adequação processual atribuídos ao juiz impõem que, acção de divisão de coisa comum, se for deduzida reconvenção em que o demandado formule pedido de indemnização por benfeitorias feitas no prédio dividendo, deverá a reconvenção ser admitida, ao abrigo do disposto nos artigos 266º, n.º 3 e 37º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil ordenando-se, em consequência, que o processo siga os termos, subsequentes à contestação, do processo comum.
É certo que a questão relativa a eventuais créditos dos comproprietários aquando da aquisição do imóvel não surge, neste processo, apenas a partir do pedido reconvencional mas é logo articulada no próprio petitório, invocando um enriquecimento sem causa aquando do pagamento do imóvel, através da amortização total do empréstimo bancário, e depois novamente trazida à colação por força da reconvenção aduzida que alega uma contribuição acrescida do comproprietário demandado. Mas, ainda assim, o argumento expendido acima mantém-se incólume. Assim, apurando-se da indivisibilidade do prédio, sempre se concluiria, em sede de ação especial de divisão de coisa comum, não poder a questão ser sumariamente decidida e como tal a mesma teria que seguir os termos do processo comum, conforme imposto pelo artigo 926º, nº3 do CPC.
Deste modo, sem prejuízo da situação de “fronteira” com que, efectivamente, lidamos nos autos, entendemos poder em ordem a salvaguardar o processado, em obediência a uma visão dúctil do processo civil, que procura, até ao limite, salvaguardar a possibilidade de as partes terem acesso à justiça sem terem que intentar, por questões de índole essencialmente formal, ações sucessivas, dever fazer improceder a exceção dilatória alegada pelo réu.
Donde, os autos devem prosseguir segundo os termos do processo declarativo comum para apuramento dos contributos de cada um dos comproprietários, salvaguardando-se, em sede de gestão processual, a admissibilidade do pedido reconvencional deduzido. Deste modo, pode promover-se uma audiência prévia, para os efeitos do art. 929º, nº 2 do CPC, e, na falta de acordo sobre a adjudicação, proceder à instrução e julgamento em sede de processo comum das questões controvertidas relativas às quotas detidas por cada uma das partes litigantes, analisando as causas de pedir atinentes a estes pedidos de cada um dos comproprietários, e após decisão final sobre esta matéria, fixados os quinhões, promover-se eventualmente a respetiva venda.
Miguel Teixeira de Sousa abordou igualmente esta polémica no seu blog defendendo uma solução que vai ao encontro daquela por nós sufragada (leia-se https://blogippc.blogspot.com/2019/05/jurisprudencia-2019-18.html ).
Por esta via, agora devidamente detalhada, afigura-se-nos possível, ainda que com o ónus da acrescida complexidade processual, compaginar numa só ação a apreciação dos pedidos vertidos no petitório e na contestação, sem que ocorra a prática de atos processuais inconciliáveis, “manifestamente incompatíveis”, logrando-se, então, cumprir princípios processuais fundamentais do nosso Código (vide epígrafe do Título I) no que concerne à garantia de acesso aos tribunais e ao dever, que impende sobre os tribunais, de gestão processual (artigos 2º e 6º do CPC)
Por força do princípio geral previsto no artigo 2.º, n.º 2, do Código do Processo Civil (CPC) relativo à garantia de acesso aos tribunais, no âmbito de uma ação especial de divisão de coisa comum, haverá sempre todo o interesse, na medida do possível, em procurar discutir e decidir as questões que, para além da divisão, envolvam o prédio dividendo.
Porém, o dissídio em apreço não queda ainda encerrado.
Na verdade, o apelado, em sede de resposta às alegações, levanta uma outra questão relativa às regras de competência dos tribunais em razão da matéria. Alega o recorrido que, ainda que se discorde da decisão do tribunal de primeira instância, sempre se depararia um segundo obstáculo inultrapassável quanto à cumulação de pedidos por ofensa das regras da competência dos Tribunais em razão da matéria. Destarte, a recorrente intentou a presente ação na Instância Central Cível de Vila Nova de Gaia face ao valor do pedido e tendo em conta a cumulação efetuada. Entende o apelado, que, como resulta do preceituado no art.º 130º nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º Lei n.º 107/2019, de 09/09), os presentes autos, porque de divisão de coisa comum, seriam da competência da Instância Local Cível. Acresce que a infração das regras de competência em razão da matéria integra a exceção dilatória da incompetência absoluta, a qual se apresenta de conhecimento oficioso – art.º 96º, alínea a) e 97º, nº 2 do CPC.
A resposta ao tema central em discussão abarca, a nosso ver, a solução para este novo problema formal.
É que, tendo-se optado pelo aproveitamento máximo dos presentes autos, extirpando-se, como vimos, a forma especial da ação de divisão de coisa comum, seguindo-se agora, no essencial, o formalismo da ação declarativa sob a forma de processo comum (artigo 926º, nº3 do CPC, já citado), conclui-se ser este o tribunal competente para julgamento do litígio atento o valor da ação e a sua natureza concreta agora delimitada.
V – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso deduzido revogando-se a sentença apelada e determinando-se o prosseguimento dos autos sob a forma de processo comum, devidamente adaptada.
Custas pelo recorrido.

Porto, 27 de Abril de 2021
José Igreja Matos
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues