Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16772/20.3T8SNT.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
LEGITIMIDADE
CABEÇA DE CASAL
SUSPENSÃO DA CESSAÇÃO DO CONTRATO
AUMENTO DA RENDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/05/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I -   O cabeça-de-casal tem legitimidade para intentar ação de despejo relativa a imóvel que integra o acervo hereditário.
II - O mecanismo de suspensão da faculdade do senhorio fazer cessar o contrato de arrendamento previsto no art.º 8º da Lei nº 1-A/2020, de 19-03, na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 75-A/2020 de 30-12 não se aplica aos casos de resolução, nem às inerentes ações de despejo.
III - Cumpridos os procedimentos previstos no art.º 35º do NRAU para o aumento da renda do locado, com integral cumprimento das disposições legais que o regem, tanto do ponto de vista procedimental, como do ponto de vista material (cálculo da renda atualizada), fica o inquilino obrigado a pagar o valor actualizado.
IV - Persistindo o inquilino em pagar a renda pelo valor anterior à atualização, e prolongando-se a mora por pelo menos três meses, pode o senhorio resolver o contrato, nos termos previstos no art.º 1083º, nºs 1, e 3 do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
A  intentou a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra B   e  C , deduzindo os seguintes pedidos:
1- Ser declarado resolvido o contrato de arrendamento existente entre as partes, pelo não pagamento das rendas mensais devidas pelos RR., desde 1 de Junho de 2019 até à presente, o que perfaz um total de 19 rendas, com fundamento no disposto no art.º 1083.º, n.º 3 do CC;
2- Serem os RR. condenados no pagamento à A. da quantia de €1.720,25, correspondente ao valor das 19 rendas mensais vencidas e não pagas, referentes ao período que medeia Junho de 2019 (esta, parcialmente, no valor em dívida de €49,67) e Dezembro de 2020, acrescida dos juros de mora contabilizados à taxa legal de juros civis, desde a data de vencimento de cada renda mensal e até à presente data, e que totalizam a quantia de €57,50, perfazendo o valor total de €1.777,75 (Mil Setecentos e Setenta e Sete Euros e Setenta e Cinco Cêntimos), a que devem acrescer os juros vincendos calculados até efetivo e integral pagamento;
3- Serem os RR. condenados a proceder à entrega do locado à A., livre de pessoas e bens, no prazo legal de um mês contado da data da resolução do contrato de arrendamento, nos termos do art.º 1087.º, do CC;
4- Serem os RR. condenados ao pagamento, a título indemnizatório, de valor, mensal, igual ao da renda, elevada ao dobro, nos termos e para os efeitos do artigo 1045º do Código Civil, em caso de atraso na entrega do imóvel após trânsito da decisão que venha a ser proferida;
5- Condenando-se os RR. no pagamento das custas processuais e demais encargos legais
Para tanto alegou, em síntese, que:
a) é comproprietária de determinada fração autónoma de imóvel constituído em propriedade horizontal, que identifica, o qual foi arrendado aos réus em 01 de abril de 1976, para habitação;
b) no início do ano de 2018, o valor da renda mensal era de €25,00 (vinte e cinco euros);
c) por carta datada de 08.01.2018, os senhorios notificaram os réus da sua intenção de proceder à transição do contrato de arrendamento para o NRAU, assim como da atualização da renda, propondo a atualização extraordinária da mesma para €232,68/mês;
d) em virtude de os réus terem invocado e comprovado que o seu agregado familiar possuía um rendimento anual bruto corrigido inferior a 5 RMNA, foi fixado o valor da renda na quantia mensal de €92,81 (noventa e dois euros e oitenta e um cêntimo), devida a partir de 01.11.2018, o que foi comunicado aos réus por carta datada de 12.09.2018;
e) os réus nunca efetuaram o pagamento do valor da renda atualizada, persistindo no pagamento do valor da anterior renda.
Citados, os réus contestaram:
- invocando a exceção de incompetência do Tribunal, porquanto em seu entender, o Balcão do Arrendamento seria exclusivamente competente para a apreciação da pretensão da autora;
- sustentando que se opuseram à intenção dos senhorios de proceder o contrato para o NRAU, quer pela sua idade, mais de 65 anos, quer pela sua saúde, bem como nível de rendimentos e estado do imóvel; que a carta datada de 12.09.2018 referida pela autora ficou prejudicada pelos contactos que entretanto houve com a agência Predial Tomarense que contactou os réus em 31.05.2016 comunicando que o imóvel locado passou a ser propriedade da herança de JG e que era esta agência quem passaria a ser a interlocutora perante os réus em tudo o que pudesse envolver o locado, sendo que nunca foi exigido ou indicado outro valor de renda; que a situação dos réus se agravou, seja pela muita idade, ambos com mais de 80 anos, estando a R. mulher acamada; sendo que nunca a autora suscitou ou alegou o conhecimento da completude da alegada mora, estando por tal caducado tal direito; que os senhorios, quer pela sua idade, pobreza e estado do imóvel nunca colocaram a questão do seu despejo ou da atualização da renda, e que iria viver e habitar o imóvel até ao fim da sua vida, mesmo que não pudessem, em algum momento, pagar o valor da renda, pedindo apenas que tivessem paciência e não denunciassem a situação do locado às entidades fiscalizadoras competentes, e que um dia fariam obras.
A autora respondeu às exceções invocadas, concluindo pela improcedência das mesmas e concluindo como na petição inicial.
Realizou-se audiência prévia e, subsequentemente a audiência final, após o que veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Nestes termos julga-se a ação integralmente procedente por provada e consequentemente:
1. Decreta-se a resolução do contrato de arrendamento relativo à fração autónoma designada pela letra "C” correspondente ao ... do prédio urbano sito na Av. …, Queluz, União das freguesias de Queluz e Belas, concelho de Sintra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o n.º … e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … da mesma União de freguesias;
2. Condenam-se os RR. a entregar o imóvel identificado em 1. à A. livre de pessoas e bens;
3. Condenam-se os RR. a pagar à A. a quantia peticionada correspondente às rendas vencidas e não pagas, bem como as rendas vincendas até ao trânsito em julgado da presente decisão;
4. Condenam-se os RR. a pagar à A. uma indemnização mensal, pela não restituição do locado, desde o trânsito em julgado até à entrega efetiva do imóvel, correspondente ao dobro do valor da renda mensal, por cada mês de atraso.
Custas a cargo dos RR.”
Inconformados com tal sentença, vieram os réus interpor o presente recurso, cuja motivação sintetizaram nas seguintes conclusões:
A. A douta sentença recorrida não fez a adequada e justa ponderação dos factos de acordo com os elementos fornecidos pelo processo assim como não fez a boa aplicação do direito competente, que imporia decisão diferente;
B. A mesma não cumpre, integralmente, o previsto e estatuído no Nº4 do Art.º 607 do CPC., não estando fundamentada, em termos absolutos, de facto e, especialmente de direito, nulidade prevista no art.º 615 do CPC que se argui;
C. Esta nulidade decorre também dos próprios termos da douta sentença recorrida no que exara, seja pelo erro que padece na construção do silogismo judiciário, que lhe são intrínsecos, como na desarmonia formal que tem, não só entre as premissas como na sua conclusão, no seu discurso ilógico e, acima de tudo, nos vícios de que enferma e que inquinam a sua consistência, coerência da decisão;
D. Apenas o recorrente marido foi citado pessoal e directamente para o presente processo, dado que a recorrente mulher não o foi, sendo aquele quem assinou os dois avisos de recepção que visavam a citação, o que configura uma nulidade nos termos conjugados do previsto e estatuído no Art.º 233 e № 2 do Art.º 228 do CPC em consonância com o disposto no № 1 do Art.º 12 e Art.º 9 da Lei № 6/2006, de 27 de Fevereiro, que impõe o envio de uma carta registada, após aquela, no prazo de dez dias;
E. Esta omissão, para alem da nulidade que padece configura de ineficácia tal citação, que abarca o próprio pedido, ou seja, a declaração da resolução do contrato de arrendamento;
F. Na data e momento em que foi que os recorrentes foram citados, ou seja, 9 de Março de 2021, num processo que foi instaurado em 30 de Dezembro de 2020, estava em vigor a Lei № 75-A/2020, de 30 de Dezembro, que, mais especificamente, nos termos do seu Art.º 2 em articulação com a al. c) e a) da Lei № 1-a/2020, de 19 de Março, determinava suspensa a possibilidade e prerrogativa de o senhorio, ora recorrida, em proceder à resolução do contrato de arrendamento, especialmente, também, na invocação do período das rendas vencidas e não pagas;
G. O imóvel, objecto mediato dos autos é da titularidade t não de comproprietários, porque não partilhado, mas sim englobado no que se qualifica numa comunhão de bens, ou seja, pertence a um património colectivo em que existe um direito com vários titulares, e daí, a falta de legitimidade da recorrida, sem os demais titulares inscritos, de, só por si, suscitar a resolução do contrato de arrendamento assim como para propor a presente acção, sem olvidar que, em matéria de factos dado como provados, mormente al. XII dos facos provados, foi dado como provado que, “ a agencia Predial Tomarense contactou os RR. em 31 de maio de 2016 comunicando que o imóvel locado passou a ser propriedade da herança de JG e que seria ela quem passaria a ser a interlocutora perante os RR. de tudo o que envolvesse o locado;
H. Não tem a recorrida, por falta de legitimidade de, só por si, ter instaurado o presente processo como suscitado a resolução do contrato de arrendamento;
I. Os recorrentes, não estão nem se encontram em mora no pagamento do valor de quaisquer rendas, dado que, apesar de terem suscitado e o douto tribunal a quo recorrido não considerou, a comunicação que foi efectivada, foi apenas ao recorrente marido que não há recorrente mulher, que a não recebeu e recepcionou, por quem não tinha legitimidade e capacidade, em 8 de Janeiro de 2018;
J. O documento Nº 3 junto com a p.i. sob a epígrafe, “actualização do contrato de arrendamento” não cumpriu os requisitos e premissas consignadas no Art.º 30 da Lei № 6/2006, de 27 de Fevereiro, mormente, entre outros, o valor da renda, o tipo e a duração do contrato proposto, o conteúdo que pode apresentar a renda, sem esquecer que o valor da actualização que enuncia de 92,81 € não é nem corresponde ao valor de 1/5 do valor do locado, ou seja, é uma comunicação e notificação que é ineficaz;
K. Na resposta que o recorrente marido deu, que não recorrente mulher, em 23 de Fevereiro de 2013, referir apenas que, sem embargo de não estar obrigado a dar resposta, de que não concorda com o valor da renda proposto, até porque não possuía rendimentos para o aumento de renda proposto, não tendo respondido de acordo com o disposto no Art.º 31 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro;
L. Os recorrentes continuaram como continuam a pagar, o valor da legal e correcto da renda a legalmente estão obrigados e vinculados, não tendo incumprido o contrato, como, erradamente, a douta decisão recorrida decidiu, não podendo ser declarado a resolução do contrato, condenação dos recorrentes na entrega do mesmo e muito menos na condenação no pagamento de rendas vencidas e vincendas em valor que não deve.
Remataram as suas conclusões pugnando pela procedência do recurso e consequente revogação da sentença recorrida.
A apelada apresentou contra-alegações, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:
A) Atentas as Conclusões de Recurso interposto pelos RR., e percorrida a Sentença é possível vislumbrar que a mesma se encontra devidamente fundamentada, resultando de forma clara e coerente a decisão proferida, atendendo à conjugação entre a fundamentação estribada, a matéria de facto dada como provada, os elementos probatórios constantes dos Autos e a correta aplicação do Direito, não existindo qualquer causa de nulidade, nos termos e para os efeitos do artigo 615º do CPC, por falta de fundamentação;
B) Ao contrário do Alegado pelos Recorrentes a Ré / Recorrente C foi regularmente citada, nos presentes Autos, em respeito do disposto no artigo 228º nº 2 do CPC, não se verificando qualquer irregularidade ou ineficácia, não assistindo razão aos Recorrentes.
C) Ao contrário do alegado pelos Recorrentes, quanto à suspensão da eficácia da comunicação quanto à resolução do contrato, atento o disposto na Lei 75-A/2020, de 30 de Dezembro e o artigo 2º alínea c) e a) da Lei 1-a/2020, de 19 de Março, as situações de resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de renda, não é uma das circunstâncias que se mostra abrangida pela suspensão previstas nos supra referidos dispositivos legais, sendo certo que, conforme decorre do alegado, o incumprimento contratual, decorre de momento anterior à entrada em vigor dos referidos diplomas legais.
D) Ao contrário do alegado pelos Recorrentes, cumpre referir que a A. / Recorrida tem legitimidade ativa, na medida em que é comproprietária do locado, conforme decorre do Registo Predial junto aos presentes Autos, especificamente na AP 13 de 2017/08/08, pelo que, atento o disposto no artigo 1405º nº 2 do CC, pode, sozinha, propor a ação que tem por objeto a resolução do contrato de arrendamento e a entrega do imóvel, sem que a circunstância de o locado não lhe pertencer por inteiro lhe possa ser suscitada, conferindo, como tal, legitimidade ativa para a presente Ação;
E) Ao contrário do alegado pelos Recorrentes, a Recorrente mulher rececionou a comunicação referente ao Aumento Extraordinário da Renda, nos termos do artigo 30º da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, conforme decorre do Doc. 3 junto com a Petição Inicial, sendo certo que a referida questão nunca foi suscitada pelos Recorrentes, previamente ao presente Recurso, sendo certo que a Contestação é subscrita por ambos os Recorrentes.
F) Os Recorrentes têm conhecimento do Despacho proferido em sede de Audiência de Julgamento e que indeferiu a junção aos Autos do Documento a que alude no ponto K) das suas Conclusões de Recurso, não obstante não se inibirem de alegar, em sede de Recurso, o teor do dito documento, como se o mesmo fosse parte integrante dos presentes Autos, razão pela qual deverá tal conduta ser configurada como de litigância de má-fé nos termos e para os efeitos do artigo 542º nº 2 alíneas a), b) e d) do CPC, importando a sua condenação como tal, o que se requer a Vs. Exas..
G) Nesta conformidade, e face às motivações apresentadas, deverá a Sentença Recorrida ser mantida, nos exatos termos em que foi proferida, porquanto bem andou a Mmª. Juiz “a quo” na apreciação dos factos e na aplicação da Lei, assim se julgando o Recurso Interposto como Improcedente.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o relator proferiu despacho dando conta da possibilidade de, no acórdão a proferir, este Tribunal alterar oficiosamente a decisão sobre matéria de facto, no sentido de consignar que a autora e ora apelada é herdeira de herança que integra o imóvel dos autos, e não comproprietária do imóvel em apreço, como consta do ponto 1 dos factos provados, e convidando a mesma a esclarecer quem exerce as funções de cabeça-de-casal de tal herança.
Na sequência, a autora e ora apelada veio esclarecer que efetivamente é herdeira e cabeça-de-casal daquela herança, juntando aos autos certidão da escritura de habilitação de herdeiros do falecido, e da relação de bens apresentada nas Finanças.
Notificados daquele despacho e deste requerimento, os apelantes nada disseram.
Foram colhidos os vistos.
2. Questões a decidir
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[1]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do Código de Processo Civil).
Assim, das conclusões de recurso emergem as seguintes questões[2]:
1. Ilegitimidade ativa – als. G e H;
2. Nulidade por falta de citação – als. D e E;
3. Nulidade da sentença – als B e C;
4. Ineficácia da comunicação do aumento da renda – als. I (2ª parte), J e K;
5. Suspensão da faculdade de resolver o contrato – al. F;
6. Da resolução do contrato por falta de pagamento de rendas – als. I (1ª parte) e L.
Não obstante, a este Tribunal está vedada apreciação de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
Com efeito, estabelece o art.º  573º do nº 1 do CPC que “toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado”, acrescentando o nº 3 do mesmo preceito que “Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes, e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente”.
O preceito citado consagra o princípio da concentração da defesa, do qual decorre que o demandado deve deduzir na contestação ou oposição todos os meios de defesa que tenha ao seu alcance, sob pena de preclusão dos mesmos.
Não obstante, a lei processual consagra quatro exceções a esse princípio:
- os incidentes que devem ser deduzidos em separado;
- os meios de defesa supervenientes, ou seja, os fundados em factos que se verifiquem depois de esgotado o prazo para contestar ou deduzir oposição (superveniência objetiva), ou de que o demandado só tenha conhecimento depois de esgotado esse prazo (superveniência subjetiva);
- os meios de defesa que a lei expressamente admita após tal momento;
- os meios de defesa de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente.
Como decorrência deste princípio, a doutrina e a jurisprudência têm sublinhado que os recursos não servem para apreciar questões (de direito ou de facto) novas, mas apenas reapreciar questões já debatidas.
Nessa medida, bem aponta ABRANTES GERALDES[4], “A natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Segundo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos um modelo de reponderação que vis o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”
Por seu turno sustenta FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA[5]: “No nosso sistema processual (no que concerne à apelação e à revista) predomina o «esquema do recurso de reponderação: o objeto do recurso é a decisão impugnada, encontrando-se à partida, vedada a produção de efeitos jurídicos “ex-novo”. Através do recurso, o que se visa é a impugnação de uma decisão já ex ante proferida, que não o julgamento de uma qualquer questão nova.”
RUI PINTO[6] sintetiza os efeitos práticos do sistema de reponderação nos seguintes termos: “não se admitem nem novos factos, nem novos fundamentos de ação ou de defesa, nem novas provas. A estes recursos dá-se a qualificação de recursos de reponderação: a decisão impugnada é reavaliada no quadro do seu próprio objeto e em razão dos seus vícios específicos, pelo que o objeto do pedido é na parte da revogação a própria decisão e na substituição a matéria que fora objeto da decisão revogada, tal e qual fora conhecida pelo tribunal a quo.”
Este entendimento foi amplamente acolhido pela jurisprudência. Como se refere no ac. STJ de 07-07-2016 (Gonçalves Rocha), p.156/12.0TTCSC.L1.S1, “Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”. – No mesmo sentido, cfr. RC 14-01-2014 (Mª Inês Moura), p. 154/12.3TBMGR.C1, e RP 16-10-2017 (Miguel Baldaia de Morais), p. 379/16.2T8PVZ.P1.
Mas precisamente porque a lei processual admite a invocação de exceções de conhecimento oficioso após a contestação, a jurisprudência tem sublinhado que essas questões podem ser suscitadas apenas em sede de recurso – neste sentido cfr. ac. STJ 17-11-2016 (Ana Luísa Geraldes), p. 861/13.3TTVIS.C1.S2.
Tal vem a propósito, na medida em que os apelantes invocaram em sede de recurso a exceção de ilegitimidade e a nulidade da citação, questões jurídicas que não suscitaram na contestação.
No tocante à ilegitimidade haverá, contudo, que reconhecer que se trata de uma questão de conhecimento oficioso (arts. 576º, nº 3, al. e) e 578º 1ª parte do CPC), pelo que
Já no tocante à invocada nulidade da citação da ré e ora recorrente C, a conclusão que se impõe é a inversa.
Vejamos então.
Sustentam os apelantes que a ré mulher não foi corretamente citada, porquanto o aviso de receção da carta de citação que lhe foi dirigido foi assinado pela ré e ora recorrente marido, não tendo sido cumprido o disposto no art.º 233º do CPC.
A nulidade decorrente da inobservância do procedimento de envio da carta a que se reporta o art.º 233º do CPC seria então a prevista no art.º 191º, nº 1 do CPC, que dispõe que “sem prejuízo do disposto no artigo 188º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei”.
Note-se que o art.º 188º do CPC não se aplica ao caso vertente porque ali se abordam situações de falta absoluta de citação.
Ora, decorre claramente do disposto no art.º 196º do CPC que a nulidade a que se reporta o nº 1 do art.º 191º do CPC não é de conhecimento oficioso, porquanto aquele preceito só qualifica como de conhecimento oficioso as nulidades mencionadas nos art.ºs 186 e 187º, na segunda parte do nº 2 do art.º 191º[7], e nos art.ºs 193º e 194º.
Não tendo esta nulidade sido invocada antes de proferida a sentença apelada, não pode a mesma ser arguida em sede de recurso.
Termos em que se decide não tomar conhecimento desta nulidade.[8]
Quanto às demais questões suscitadas, embora nem todas tenham sido expressamente invocadas na contestação, diremos que todas se prendem com o mérito do despejo, razão pela qual se considera deverem ser apreciadas em sede de recurso.
Nesta conformidade, as questões a equacionar e decidir são as seguintes[9]:
1. Ilegitimidade ativa;
2. Nulidade da sentença;
3. Irregularidade da comunicação do aumento da renda;
4. Falta de resposta à oposição deduzida pelo réu marido ao aumento da renda;
5. Suspensão da faculdade de resolver o contrato;
6. Ineficácia da resolução;
7. Mérito do despejo: mora, incumprimento e resolução.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. A A. é comproprietária do imóvel sito na Av. …, Queluz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o nº … da freguesia de Queluz, fração designada pela letra "C” e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … da União de freguesias de Queluz e Belas.
2. O imóvel acima identificado foi arrendado aos RR. por contrato de arrendamento celebrado no dia 01 de abril de 1976, destinando-se exclusivamente a fim habitacional.
3. Ao início do ano de 2018, os RR. suportavam, a título de renda mensal, o valor de €25,00 (vinte e cinco euros), vencendo-se cada uma no 1º dia do mês imediatamente anterior aquele a que dissesse respeito.
4. Por carta datada de 08 de janeiro de 2018, os senhorios notificaram os RR. da sua intenção de proceder à transição do contrato de arrendamento, suprarreferido, para o NRAU, assim como da atualização da renda.
5. Na referida missiva os Senhorios propuseram a atualização extraordinária da renda para €232,68 (duzentos e trinta e dois euros e sessenta e oito cêntimos) / mês.
6. Em sequência, e em virtude de os RR. terem invocado e comprovado que o seu agregado familiar possuía um rendimento anual bruto corrigido inferior a 5 RMNA, o valor da renda foi fixado na quantia mensal de €92,81 (noventa e dois euros e oitenta e um cêntimo), devida a partir do dia 1 de novembro de 2018, o que foi comunicado aos RR. por missiva, endereçada aos mesmos, datada de 12 de setembro de 2018.
7. Desde essa data, (01 de novembro de 2018) nunca os RR. procederam ao pagamento das rendas devidas pelo arrendamento, no valor de €92,81 (noventa e dois euros e oitenta e um cêntimo.
8. Persistindo no pagamento do valor anterior de renda, ou seja, pagando mensalmente a quantia de €25,00 (vinte e cinco euros).
9. Os valores pagos pelos RR. foram sendo deduzidos aos valores de renda que se haviam vencido há mais tempo.
10. Mostrando-se, como tal, em dívida as rendas que se venceram entre 01 de junho de 2019 (esta, parcialmente, no valor em dívida de €49,67) e 01 de dezembro de 2020, inclusive.
11. O valor de rendas em dívida, num total de 19 (dezanove), ascende à quantia de €1.720,25 (€92,81 X 18 meses + € 49,67 correspondente à renda parcial em dívida do mês de junho de 2019).
12. A Agência Predial Tomarense contactou os RR. em 31 de maio de 2016 comunicando que o imóvel locado passou a ser propriedade da herança de JG e que seria ela quem passaria a ser a interlocutora perante os RR. de tudo o que pudesse envolver o locado.
13. O locado não tem parte do teto da cozinha, casa de banho e hall de entrada, que caiu e deixa os ferros à vista, com inundações constantes de águas sujas.
14. Os RR. só vivem no locado por falta de alternativas.
15. Os RR. não obtiveram provimento aos pedidos por si apresentados junto da Câmara Municipal para que lhes fosse adstrita uma habitação condigna.
3.1.2. Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
a) Nunca foi exigido ou indicado qualquer outro valor de renda, atualizando a mesma de acordo com o valor patrimonial do prédio.
b) Ambos os RR. têm mais de 80 anos, estando a R. mulher acamada.
c) Era dito e repetido aos RR. que, pela sua idade e pobreza nunca os proprietários iriam despeja-los ou suscitar o despejo dos mesmos ou pedir a atualização da renda, e que iriam viver e habitar o imóvel até ao fim da sua vida, mesmo que por ventura não pudessem, em algum momento, pagar o valor da renda.
d) Pedindo apenas que tivessem paciência e não denunciassem a situação do locado às entidades fiscalizadoras competentes,
e) Sempre com a promessa que um dia iriam deixar de ter o mau viver que têm e que um dia, no que alegavam ser a causa principal do estado do locado, fosse possível fazer obras e intervenções, substituiriam a coluna de esgotos de todo o prédio.
3.2. Os factos e o Direito
Estabelecidas as questões suscitadas na apelação cuja apreciação importará fazer, cumprirá então que sobre elas nos debrucemos, respeitando no seu conhecimento a ordem de precedência lógica.
3.2.1. Da alteração oficiosa da decisão sobre matéria de facto
Do ponto 1 dos factos provados consta que a autora é comproprietária do imóvel a que se reportam os presentes autos, ressaltando da motivação da decisão sobre matéria de facto que a convicção do Tribunal relativamente a este facto resulta da certidão de registo predial junta com o requerimento inicial.
Sucede, contudo, que da análise do mencionado documento não resulta que a autora seja comproprietária de tal imóvel, mas sim que o mesmo integra a herança de JG, sendo a autora uma das herdeiras do falecido, e que exerce as funções de cabeça-de-casal da herança do mesmo. Essa conclusão é aliás reforçada pelos seguintes documentos autênticos, juntos pela apelada a instâncias deste Tribunal:
a) Certidão da escritura de habilitação de herdeiros da qual emerge que a autora é herdeira do falecido, JG na sua qualidade de cônjuge sobrevivo;
b) Documento emitido pela Autoridade Tributária, comprovativa do exercício, pela autora, das funções de cabeça-de-casal da herança do falecido JG.
Dispõe o art.º 662.º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Em comentário a esta disposição legal ensinam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[10]:
“1. A decisão sobre matéria de facto pode ser impugnada pelo recorrente quando os elementos fornecidos pelo processo possam determinar uma decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, como sucede quando não tenha sido respeitado documento confissão ou acordo das partes com força probatória plena (…). Outrossim quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (…), situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (..).
2. Em qualquer destas situações a Relação, no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e naturalmente dentro dos limites objetivo e subjetivo do recurso, deve agir oficiosamente, mediante aplicação das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, modificando a decisão da matéria de facto advinda da 1ª instância (art.ºs 607º, nº 4, e 663º, nº 2). A oficiosidade desta atuação é decorrência da regra geral sobre a aplicação do direito (in casu, das normas de direito probatório material), na medida em que possam interferir no resultado do recurso que foi interposto e, é claro, respeitando o seu objeto global, que, no essencial, é delimitado pelo recorrente, nos termos do art.º 635º, e respeitando também o eventual caso julgado parcelar que porventura se tenha formado sobre alguma questão ou segmento decisório.”
Como bem explicam os citados autores, nos casos mencionados a alteração da decisão sobre matéria de facto pode ter lugar por iniciativa do Tribunal da Relação e ainda que nenhuma das partes o requeira, isto é, pode ter lugar oficiosamente. E o uso da forma verbal deve não deixa margem para dúvidas: não se trata de uma mera faculdade, mas de um dever imposto à Relação.
Nas palavras de ABRANTES GERALDES[11], “Como a nova redação do art.º 662.º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo da correção mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto, (v.g. contradição) e também sempre juízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art.º 640.º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.
(…)
Obviamente que a modificação continuará a justificar-se (…) designadamente quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova, o que ocorre quando, apesar de ter sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto (art.ºs 371.º, n.º 1, e 376.º, n.º 1 do CC), o considere não provado, relevando para o efeito prova testemunhal produzida ou presunções judiciais.
O mesmo deve acontecer quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art.º 358.º do CC e art.ºs 484.º, n.º 1, e 463.º do CPC) ou quando tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art.º 574º.º, n.º 2, do CPC) (…), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada a partir de outros elementos probatórios (v.g. testemunhas, documento particular sem valor confessório ou prova pericial). Ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimento testemunhal, nos termos dos art.ºs 351.º e 393.º do CC), situação em que modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (art.º 364.º, n.º 1, do CC).
 Em qualquer destes casos a relação limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material deve integrar na decisão o facto que a 1.ªinstância considerou não provado o retirar dela o facto que ultimamente foi considerado provado sempre juízo neste caso da sua sustentação no torneio de prova alteração que nem sequer Depende da iniciativa da parte.
Com efeito nos termos do art.º 663.º n.º 2 aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para elaboração da sentença entre as quais se insere o art.º 607.º, n.º 4, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na fundamentação da sentença (que agora integra também a decisão sobre os “temas da prova”) dos factos admitidos por acordo e plenamente provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.
Por outro lado, continua a ser impedido que se considerem provados os factos relativamente aos quais foram violadas regras prova vinculada, como aquelas que impõem a apresentação de prova documental.
Tal como o tribunal de 1.ª instância, também a Relação tem poderes que tanto podem determinar a assunção de factos segundo regras imperativas de direito probatório como a desconsideração de factos cuja prova tem respeitado essas mesmas regras.”
À luz destes ensinamentos, e no tocante ao exercício, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de reapreciação da prova, a jurisprudência do STJ tem sublinhado os seguintes princípios norteadores:
1.º Os poderes de averiguação oficiosa da Relação a que se reporta o nº 1 do art.º 662º do CPC limitam-se às situações de desrespeito por regras de direito probatório material, e bem assim às situações em que, em virtude da apreciação de impugnação da decisão sobre matéria de facto que julgue procedente, seja necessário alterar pontos de facto não impugnados, a fim de evitar contradições – Cfr. STJ 12-09-2013 (Fonseca Ramos), p. 2154/08.9TBMGR.C1.S1; STJ 07-11-2019 (Rosa Tching), p. 2929/17.8T8ALM.L1.S1, STJ 08-04-2021 (Maria Rosário Morgado), p. 453/14.0TBVRS.L1.S1; e STJ 08-09-2021 (Rosa Tching), p. 1721/17.4T8VIS-A.C1.S1;
2.º Tais poderes oficiosos podem também ser exercidos em caso de insuficiência da decisão sobre matéria de facto, a fim de evitar anulação da sentença apelada, nos termos do nº 2 do mesmo art.º 662º - cfr. o mesmo acórdão;
3.º Ao apreciar a impugnação da decisão sobre matéria de facto, a Relação pode, de acordo com as circunstâncias:
a. concluir pela desnecessidade de ouvir os trechos invocados por apelante e apelado, se considerar que tal é desnecessário, nomeadamente se considerar aplicável qualquer meio de prova plena, ou proibição de prova testemunhal;
b. limitar-se a ouvir o registo dos depoimentos invocados por apelante e apelado ou ainda;
c. ouvir toda a prova gravada (e não apenas o registo dos depoimentos invocados por apelante e apelado)
STJ 17-11-2021 (Tibério Silva), p. 8344/17.6T8STB.E1.S1.
No caso vertente está em causa a prova de factos obtida com base em documento autêntico, que tem o valor de prova plena – certidão de registo predial – sendo certo que o Tribunal a quo errou na interpretação desse documento.
É por isso manifesto que este Tribunal pode e deve alterar a decisão sobre matéria de facto quanto ao ponto 1 dos factos provados, e completar essa factualidade, de modo a que fique consignado quem exerce as funções de cabeça-de-casal da herança cujo acervo patrimonial o imóvel dos autos integra.
Nesta conformidade, decide este Tribunal alterar a decisão sobre matéria de facto, de modo a que:
a) O ponto 1 dos factos provados passe a ter a seguinte redação:
1. O registo predial relativo à fração autónoma C, correspondente a … – Habitação, e quintal com a área de 35m2, do prédio sito na Avenida …, nºs … e …-A, em Queluz, descrita na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob a ficha nº … da Freguesia de Queluz, e inscrito na matriz sob o art.º … ostenta as seguintes inscrições:
“AP. 25 de 1995/03/30 - Aquisição   HISTÓRICO
ABRANGE 3 FRAÇÕES
CAUSA: Compra SUJEITO(S) ATIVO(S):
** JG
Casado/a com A no regime de Comunhão de adquiridos Morada: Avenida …
Localidade: Lisboa
** MS Divorciado(a)
Morada: Rua …
Localidade: Lisboa SUJEITO(S) PASSIVO(S):
** NB
(…)
Conservatória do Registo Predial de Oleiros
Ap. 13 de 2017/08/08 08:31:03 UTC
ABRANGE 3 FRAÇÕES
CAUSA: Transação em Ação de Divisão de Coisa Comum
SUJEITO(S) ATIVO(S):
** CO NIF …
Casado/a com JO no regime de Comunhão de adquiridos NIF do Cônjuge …
Morada: Rua … Localidade: Lisboa
** A NIF … Viúvo(a)
Morada: Av. …
Localidade: Lisboa
** SG
NIF …
Casado/a com TC no regime de Comunhão de adquiridos
NIF do Cônjuge …
Morada: Alameda … Localidade: Lisboa
SUJEITO(S) PASSIVO(S):
** JFS
NIF …
** LFS
NIF …
** PFS
NIF …
Sujeitos ativos e passivos - únicos e universais herdeiros, respectivamente de JG, NIF … (Herança …) e de MS, NIF… (herança …).
Sentença proferida no proc. nº 16529/10.0T2SNT - Comarca Lisboa Oeste - Sintra Inst. Central – 1ª Secção Cível - J...”
b) Se adite ao elenco de factos provados dois novos pontos, com os n.ºs 2, 3, e 4 com o seguinte teor:
2. JG faleceu em 15-08-2008;
3. Em foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros da qual consta que o falecido JG não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, e que lhe sucedem as seguintes herdeiras:
a. A sua cônjuge, A,
b. As suas filhas, CO e SG.
4. Da relação de bens da herança do falecido JG apresentada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, sob o campo intitulado ”Identificação do cabeça de casal e do NIF da herança” constam os dizeres “A”.
C) Os pontos 2 a 15 dos factos provados passem a ser, respetivamente, os pontos 5 a 18 do mesmo elenco de factos provados.
3.2.1.1. Factos provados e não provados - Recapitulação
3.2.1.1.1. Factos provados
1. O registo predial relativo à fração autónoma C, correspondente a … – Habitação, e quintal com a área de 35m2, do prédio sito na Avenida …, em Queluz, descrita na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob a ficha nº … da Freguesia de Queluz, e inscrito na matriz sob o art.º … ostenta as seguintes inscrições:
“AP. 25 de 1995/03/30 - Aquisição   HISTÓRICO
ABRANGE 3 FRAÇÕES
CAUSA: Compra SUJEITO(S) ATIVO(S):
** JG
Casado/a com A no regime de Comunhão de adquiridos Morada: Avenida…
Localidade: Lisboa
** MS Divorciado(a)
Morada: Rua …
Localidade: Lisboa SUJEITO(S) PASSIVO(S):
** NB
(…)
Conservatória do Registo Predial de Oleiros
Ap. 13 de 2017/08/08 08:31:03 UTC
ABRANGE 3 FRAÇÕES
CAUSA: Transação em Ação de Divisão de Coisa Comum
SUJEITO(S) ATIVO(S):
** CO NIF …
Casado/a com JO no regime de Comunhão de adquiridos NIF do Cônjuge …
Morada: Rua … Localidade: Lisboa
** A NIF 117130869 Viúvo(a)
Morada: Av. …
Localidade: Lisboa
** SG
NIF …
Casado/a com TC no regime de Comunhão de adquiridos
NIF do Cônjuge …
Morada: Alameda … Localidade: Lisboa
SUJEITO(S) PASSIVO(S):
** JFS
NIF …
** LFS
NIF …
** PFS
NIF …
Sujeitos ativos e passivos - únicos e universais herdeiros, respectivamente de JG, NIF … (Herança …) e de MS, NIF… (herança …).
Sentença proferida no proc. nº 16529/10.0T2SNT - Comarca Lisboa Oeste - Sintra Inst. Central – 1ª Secção Cível - J...”
2. JG faleceu em 15-08-2008;
3. Em foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros da qual consta que o falecido JG não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, e que lhe sucedem as seguintes herdeiras:
a. A sua cônjuge, A,
b. As suas filhas, CO, e SG.
4. Da relação de bens da herança do falecido JG apresentada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, sob o campo intitulado “Identificação do cabeça de casal e do NIF da herança” constam os dizeres “A”.
5. O imóvel acima identificado foi arrendado aos RR. por contrato de arrendamento celebrado no dia 01 de abril de 1976, destinando-se exclusivamente a fim habitacional.
6. Ao início do ano de 2018, os RR. suportavam, a título de renda mensal, o valor de €25,00 (vinte e cinco euros), vencendo-se cada uma no 1º dia do mês imediatamente anterior aquele a que dissesse respeito.
7. Por carta datada de 08 de janeiro de 2018, os senhorios notificaram os RR. da sua intenção de proceder à transição do contrato de arrendamento, suprarreferido, para o NRAU, assim como da atualização da renda.
8. Na referida missiva os Senhorios propuseram a atualização extraordinária da renda para €232,68 (duzentos e trinta e dois euros e sessenta e oito cêntimos) / mês.
9. Em sequência, e em virtude de os RR. terem invocado e comprovado que o seu agregado familiar possuía um rendimento anual bruto corrigido inferior a 5 RMNA, o valor da renda foi fixado na quantia mensal de €92,81 (noventa e dois euros e oitenta e um cêntimo), devida a partir do dia 1 de novembro de 2018, o que foi comunicado aos RR. por missiva, endereçada aos mesmos, datada de 12 de setembro de 2018.
10. Desde essa data, (01 de novembro de 2018) nunca os RR. procederam ao pagamento das rendas devidas pelo arrendamento, no valor de €92,81 (noventa e dois euros e oitenta e um cêntimo.
11. Persistindo no pagamento do valor anterior de renda, ou seja, pagando mensalmente a quantia de €25,00 (vinte e cinco euros).
12. Os valores pagos pelos RR. foram sendo deduzidos aos valores de renda que se haviam vencido há mais tempo.
13. Mostrando-se, como tal, em dívida as rendas que se venceram entre 01 de junho de 2019 (esta, parcialmente, no valor em dívida de €49,67) e 01 de dezembro de 2020, inclusive.
14. O valor de rendas em dívida, num total de 19 (dezanove), ascende à quantia de €1.720,25 (€92,81 X 18 meses + €49,67 correspondente à renda parcial em dívida do mês de junho de 2019).
15. A Agência Predial Tomarense contactou os RR. em 31 de maio de 2016 comunicando que o imóvel locado passou a ser propriedade da herança de JG e que seria ela quem passaria a ser a interlocutora perante os RR. de tudo o que pudesse envolver o locado.
16. O locado não tem parte do teto da cozinha, casa de banho e hall de entrada, que caiu e deixa os ferros à vista, com inundações constantes de águas sujas.
17. Os RR. só vivem no locado por falta de alternativas.
18. Os RR. não obtiveram provimento aos pedidos por si apresentados junto da Câmara Municipal para que lhes fosse adstrita uma habitação condigna.
3.2.1.1.2. Factos não provados
a) Nunca foi exigido ou indicado qualquer outro valor de renda, atualizando a mesma de acordo com o valor patrimonial do prédio.
b) Ambos os RR. têm mais de 80 anos, estando a R. mulher acamada.
c) Era dito e repetido aos RR. que, pela sua idade e pobreza nunca os proprietários iriam despeja-los ou suscitar o despejo dos mesmos ou pedir a atualização da renda, e que iriam viver e habitar o imóvel até ao fim da sua vida, mesmo que por ventura não pudessem, em algum momento, pagar o valor da renda.
d) Pedindo apenas que tivessem paciência e não denunciassem a situação do locado às entidades fiscalizadoras competentes,
e) Sempre com a promessa que um dia iriam deixar de ter o mau viver que têm e que um dia, no que alegavam ser a causa principal do estado do locado, fosse possível fazer obras e intervenções, substituiriam a coluna de esgotos de todo o prédio.
3.2.2. Da ilegitimidade ativa
Embora sem definir cabalmente o conceito de legitimidade processual, o art.º 30º do CPC reporta-o ao interesse em demandar ou contradizer.
E, no nº 2 do mesmo preceito esclarece-se que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação, enquanto que o interesse em contradizer se exprime pelo prejuízo que dela advenha.
Estas regras aplicam-se quer às situações de legitimidade singular, quer às situações de legitimidade plural, ou seja, aos casos de litisconsórcio e coligação (vd. arts. 32º a 36º do CPC).
Finalmente, e de acordo com o nº 3 do mesmo art.º 30º do CPC, o critério supletivo para aferição da titularidade do interesse relevante para o efeito da legitimidade é o da titularidade da relação material controvertida tal como o autor a configura.
Mantém-se por isso atual a definição doutrinária de legitimidade processual proposta por CASTRO MENDES[12]: “A legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo.”
Mais recentemente, CASTRO MENDES E MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[13]precisam que “Legitimidade processual é a possibilidade estarem juízo conta certo objecto. Mais em concreto, a legitimidade há de causam faculdade de demandar (legitimidade activa) e a sujeição a ser de mandado (legitimidade passiva) quanta determinado objecto. A legitimidade processual é independente de qualquer titularidade efetiva do objeto do processo: Aquela legitimidade é um pressuposto processual; esta titularidade é uma condição da procedência da ação.”
Em sentido semelhante sustenta PAULO PIMENTA[14] que “a legitimidade consiste numa relação concreta da parte perante uma causa. Por isso a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute”.
Do mesmo modo, dizem RITA LOBO XAVIER, INÊS FOLHADELA, E GONÇALO ANDRADE E CASTRO[15] que “ser parte legítima é ter uma relação direta com o objeto do litígio”.
Finalmente, esclarecem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[16] que “o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva ser for diretamente prejudicado com a procedência da ação. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo, ou mediato, ou ainda um interesse diletante ou de ordem moral ou académica”.
Não obstante, os mesmos autores advertem para a circunstância de que “casos há (…) em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual alegação do autor em sentido inverso (…)”.
No caso em apreço, sustentaram os apelantes que “O imóvel, objecto mediato dos autos é da titularidade não de comproprietários, porque não partilhado, mas sim englobado no que se qualifica numa comunhão de bens, ou seja, pertence a um património colectivo em que existe um direito com vários titulares, e daí, a falta de legitimidade da recorrida, sem os demais titulares inscritos, de, só por si, suscitar a resolução do contrato de arrendamento assim como para propor a presente acção”.
Objeta a apelada que “a referida questão foi decidida em sede de Despacho Saneador, onde se decidiu que as partes tinham legitimidade, não tendo sido objeto de Recurso”.
Sucede, contudo, que a exceção de ilegitimidade ativa não foi invocada pelos réus na contestação, nem foi objeto de apreciação concreta pelo Tribunal a quo no despacho saneador. A citada menção à legitimidade das partes no mencionado despacho constitui uma mera referência tabelar não se traduzindo numa apreciação concreta da mencionada exceção.
É certo que o Assento do STJ de 01-02-1963[17] dispunha que decisão genérica feita no saneador sobre a legitimidade das partes, da qual não fosse em devido tempo interposto recurso, constituía caso julgado formal.
Contudo, com a reforma do processo civil de 1995-1996 sobreveio a caducidade deste instituto, e a doutrina e a jurisprudência passaram a entender que o despacho saneador só se reveste de caso julgado formal relativamente às questões concretamente apreciadas.
Tal era o entendimento que melhor se compatibilizava com a redação do art.º 510º, nº 3 do CPC1961, na redação emergente da reforma processual e 1995-1996 da qual resultava agora expressamente que o despacho saneador só se revestia do efeito de caso julgado formal quanto a questões concretamente apreciadas. A mesma fórmula transitou para o art.º 595º, nº 1, al. a) e nº 3 do CPC.
Nesta conformidade, as afirmações meramente tabelares constantes do despacho saneador relativamente aos pressupostos processuais e a inexistência de exceções a apreciar não têm valor de caso julgado formal e, por isso, não impedem a apreciação ulterior de exceções dilatórias de conhecimento oficioso. – vd., entre outros, os acs. STJ 04-10-2007 (Salvador da Costa), p. 07B3350; 09-10-2008 (Mário Cruz), p. 08A953; 07-01-2010 (Lázaro Faria), p. 1557/2002.S1; 16-12-2010 (Mª dos Prazeres Pizarro Beleza), p. 16/1999.P1.S1; e 19-05-2021 (Chambel Mourisco), p. 713/19.3T8BJA.E1.S1.
Conforme decorre do ponto 1 dos factos provados, na redação que lhe foi conferida por este coletivo, o imóvel dos autos pertencia, em compropriedade, a JG e MS, que o compraram a NB.
Mais tarde, e porque os comproprietários faleceram, este mesmo imóvel veio a ser objeto de ação de divisão de coisa comum, em que foram partes os herdeiros de JG e de MS, tendo o mesmo imóvel sido adjudicado aos herdeiros do mencionado JG, a saber: a autora, a CO, e SG.
Estas três pessoas não são comproprietárias do referido imóvel, mas sim co-herdeiras do falecido JG, sendo certo que por efeito da ação de divisão de coisa comum acima referida, o imóvel dos autos passou a integrar o acervo hereditário da mencionada herança.
Significa isto que, ao contrário do que sustenta a apelada, o art.º 1405º do Código Civil não é aplicável ao caso dos autos, na medida em que este preceito se reporta ao regime da compropriedade.
Não obstante, o referido bem integra a herança do falecido JG.
Ora os herdeiros não são comproprietários dos bens que integram a herança, mas sim titulares de um direito sobre esta, vulgarmente denominado quota hereditária.
Só com a partilha dos bens da herança a titularidade desses bens se transmite aos herdeiros, podendo até dar-se o caso de os mesmos serem vendidos a terceiros, caso em que os quinhões hereditários serão compostos em dinheiro.
Até à partilha da herança, os atos de administração da herança devem ser praticados pelo/a cabeça-de-casal (art.º 2079º do CC), sendo que os demais direitos relativos a bens da herança devem ser exercidos por todos os herdeiros ou contra todos eles (art.º 2091º). Não obstante, a lei admite expressamente que qualquer co-herdeiro possa intentar ação de petição de herança contra eventual detentor de bens da herança (art.º 2078º, nº 1 do CC).
À luz destes preceitos, a jurisprudência tem entendido, segundo cremos de modo unânime, que a propositura de ação de despejo que tenha por objeto imóvel que integra o acervo da herança constitui um ato de administração da competência do cabeça-de-casal, o que lhe confere legitimidade para intentar tal ação mesmo desacompanhado dos/as demais herdeiros/as – Neste sentido cfr., entre muitos outros, os acs. RP 29-06-1995 (Alves Velho), p. 9530196;  RL 08-10-2001 (Nunes Ricardo), p. 0086532; RL 27-04-2006 (Manuela Gomes), p. 1567/2006-6; RC 03-10-2006 (Barateiro Martins), p. 642/05.8TBAVR.C1; RP 02-02-2021 (Manuel Domingos Fernandes), p. 5674/19.6T8VNG.P1; RP 08-06-2022 (Rodrigues Pires), p. 3084/19.4T8VLG.P1; RC 28-03-2023 (Cristina Neves), p. 164/22.2T8OHP.C1.
Revertendo ao caso dos autos cumpre reconhecer que sendo a autora cabeça-de-casal da herança de JG (art.º 2080, nº 1, al. a) do CC)[18], dispunha de legitimidade para intentar a presente ação, visto que mesma visa obter o despejo de imóvel que integra o acervo de bens a partilhar.
Note-se que como bem apontou o ac. RL 10-01-2023 (José Capacete), p. 11273/20.2T8LSB-L1-7 que “Se, numa ação de despejo, os autores se apresentam a litigar como comproprietários do imóvel despejando quando o deveriam ter feito na qualidade de herdeiros de uma herança indivisa que integra aquele imóvel, não é caso para os julgar partes ilegítimas para os termos da causa; (...) antes se impondo ao julgar, desde logo a coberto do poder/dever de direção formal do processo que legalmente sobre si impende, e ouvidas as partes, a adoção dos procedimentos necessários tendentes à retificação da qualidade jurídica com que os autores se apresentaram a demandar, o que, no caso, mais não exigia do que uma simples interpretação corretiva que definisse exatamente a qualidade jurídica dos demandantes: em vez de «donos e possuidores» do imóvel despejando, herdeiros da herança aberta e ainda indivisa.”
Termos em que se conclui pela improcedência da exceção de ilegitimidade passiva.
3.2.3. Das nulidades da sentença
3.2.3.1. Da falta de fundamentação
Sustentaram os apelantes que a sentença apelada “não cumpre, integralmente, o previsto e estatuído no Nº 4 do Art.º 607 do CPC, não estando fundamentada, em termos absolutos, de facto e, especialmente de direito, nulidade prevista no art.º 315 do CPS que se argui“[19].
Muito embora os apelantes não o especifiquem, creio que se reportam ao disposto na al. d) do nº 1 do mencionado art.º 615º do CPC, que dispõe que a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
O vício em questão reside na violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no art.º 208º, nº 1 da Constituição da República, e no art.º 154º, do CPC.
Dispõe o nº 1 deste preceito que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
E acrescenta o nº 2 que “a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Resulta desta disposição que o dever de fundamentação das decisões judiciais conhece diferentes graus, consoante o tipo de decisão a proferir e a sua complexidade.
O grau máximo da exigência legal de fundamentação das decisões judiciais é representado pela sentença em ação contestada (art.º 607º, nºs 3 e 4 do CPC), sendo a lei processual menos exigente, por exemplo, no caso das ações não contestadas (vd. art.º 567º, nº 3 do CPC), nas decisões relativas aos incidentes da instância e procedimentos cautelares (arts. 295º e 365º, nº 2 do mesmo Código[20]), e nos despachos interlocutórios em que não tenha sido deduzida oposição e a questão a proferir seja manifestamente simples (art.º 154º, n.º 2 do CPC).
Não obstante, nem todas as situações de incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de fundamentação configuram a nulidade em apreço.
Com efeito, a doutrina e a jurisprudência têm salientado com insistência que tal vício só se verifica em situações de falta absoluta ou total ininteligibilidade da indicação das razões de facto e de Direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência, laconismo ou mediocridade, se deve considerar a fundamentação deficiente.
Com efeito, já ALBERTO DOS REIS[21], ensinava que «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.»
Por outro lado, como bem salientou TOMÉ GOMES[22], «(…) a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão7.»
No mesmo sentido se pronunciou o ac. STJ de 26-04-1995 (Raul Mateus), CJ 1995 – II, p. 58[23], “(...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.”
Em sintonia com tal entendimento vd. ac. STJ 15-12-2011 (Pereira Rodrigues), p. 2/08.9TTLMG.P1 [24] onde se sustentou que o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação não ocorre em situações de escassez, deficiência, ou implausibilidade das razões de facto e/ou direito indicadas para justificar a decisão, mas apenas quando se verifique uma total falta de motivação que impossibilite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final.
No fundo, como lapidarmente se consignou no sumário do ac. STJ 02-06-2016 (Fernanda Isabel Pereira), p. 781/11.6TBMTJ.L1.S1, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.”
E porque assim é, concluímos, como fez o ac. RL 17-05-2012 (Gilberto Jorge), p. 91/09.9T2MFR.L1-6, em cujo sumário se pode ler que “A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (…)”.
A exigência do caráter absoluto da falta de fundamentação incide separadamente sobre os fundamentos de facto e os fundamentos de Direito. Tal significa que se uma sentença ou despacho que decide uma questão de Direito suscitada pelas partes contiver a indicação dos factos em que se estriba, mas for absolutamente omissa quanto às razões de Direito que a sustentam, será nula. E o inverso é igualmente verdadeiro: a mesma decisão será nula se contiver a indicação das razões de Direito que a determinam, mas for absolutamente omissa quanto aos factos que a sustentam.
No caso vertente, é por demais manifesto que a sentença não padece do vício de falta de fundamentação, visto que enumera os factos que o Tribunal a quo considerou provados e não provados[25], indicando igualmente os meios de prova em que se fundou a sua convicção[26], seguido da subsunção dos factos ao Direito que entendeu aplicável ao caso[27].
Com efeito, como referimos, só a absoluta falta de fundamentação de facto e/ou de Direito configura a nulidade a que se reporta a al. b) do nº 1 do art.º 615º do CPC.
Termos em que se conclui que a sentença apelada não padece desta nulidade
3.2.1.3.2. Da contradição entre os fundamentos e a decisão
Sustentam igualmente os apelantes que “esta nulidade decorre também dos próprios termos da douta sentença recorrida no que exara, seja pelo erro que padece na construção do silogismo judiciário, que lhe são intrínsecos, como na desarmonia formal que tem, não só entre as premissas como na sua conclusão, no seu discurso ilógico e, acima de tudo, nos vícios de que enferma e que inquinam a sua consistência, coerência da decisão”[28].
E, na motivação do recurso acrescenta ainda que a sentença apeada padece de “deficiências, obscuridade e contradições”.
Não esclarecem os apelantes qual o fundamento legal de tal afirmação, mas cremos que se reportam à al. c) do nº 1 do mesmo art.º 615º do CPC.
Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. c) do CPC que a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão, ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Como ensinava ALBERTO DOS REIS[29], a sentença ou acórdão serão obscuros quando neles se contenha “algum passo cujo sentido seja ininteligível” ou cujo sentido exato não se logre alcançar. Já a ambiguidade ocorre quando “alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”.
Por seu turno, sustenta MANUEL TOMÉ SOARES GOMES[30]:
“segundo o artigo 607º, nº 3, parte final, o juiz na sentença deverá concluir pela decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre:
- A base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável – a dita premissa maior;
- A factualidade dada como provada – a dita premissa menor; e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo.
Entre tais premissas e conclusão deve existir, portanto, um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de exclusão lógica. Na verdade, sobre dois termos excludentes nem tão pouco é possível formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito.
Ora, a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da acção.”
Finalmente, dizem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[31]:
“9. A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.
10. A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.”
No caso vertente é manifesto que os apelantes não esclarecem por que razão entendem que a sentença apelada enferma da nulidade invocada.
E lida a mesma, não descortina este Tribunal nenhuma desarmonia entre os seus fundamentos e a decisão, nem qualquer ponto obscuro ou ambíguo que a torne ininteligível.
Termos em que, sem necessidade de quaisquer outras considerações, se conclui que a sentença apelada não padece desta nulidade.
3.2.4. Da ineficácia da comunicação do aumento da renda
Como resulta da factualidade provada, o imóvel dos autos foi arrendado aos réus e ora apelantes por contrato celebrado no dia 01-04-1976, destinando-se exclusivamente a fim habitacional[32].
À data regiam tal contrato as disposições do Código Civil, relativas ao contrato de locação e arrendamento, na sua redação originária, ou seja, a resultante do DL 47344/66, de 25-11.
Mais tarde, o arrendamento urbano passou a reger-se pelo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo DR nº 321-B/90, de 15-10, até que este foi revogado e substituído pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27-02 (NRAU).
Nos termos do disposto no art.º 27º do NRAU, os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU regem-se pelas disposições do capítulo II do NRAU.
Entre tais disposições legais conta-se o art.º 30º do NRAU que estabelece que transição das regras que regulam o contrato de arrendamento para habitação para o regime do NRAU “depende de iniciativa do senhorio, que deve indicar, sob pena de ineficácia da sua comunicação:
a) O valor da renda, o tipo, e a duração do contrato propostos;
b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;
c) Cópia da caderneta predial urbana;
d) Que o prazo de resposta é de 30 dias;
e) O conteúdo que pode apresentar a resposta, nos termos do n.º 3 do artigo seguinte;
f) As circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou conjuntamente com a resposta prevista na alínea anterior e. no mesmo prazo, conforme previsto no nº 4 do artigo seguinte, nos termos do artigo 32º;
g) As consequências da falta de resposta, bem como da não invocação de qualquer das circunstâncias previstas no nº 4 do artigo seguinte.”
No caso dos autos, provado ficou que em 08-01-2018 os senhorios notificaram os réus da sua intenção de proceder à transição do contrato de arrendamento para o NRAU.
O teor completo de tal carta é o que segue:
“ASSUNTO: Atualização do contrato do arrendamento - Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, com as alterações da Lei 31/2012, de 14 de Agosto e, da Lei 79/2014, de 19 de Dezembro.
Exmo. Sr.,
Serve a presente para comunicar а V. Exa. que. nos termos e ao abrigo do disposto no novo Regime de Arrendamento Urbano, definido pela Lei nº 31/2012. de 14 de Agosto, com as alterações da Lei 79/2014, de 19 de Dezembro, a nossa proposta para atualização da renda mensal do ... do prédio sito na AV. ..., no qual V. Exa. é arrendatário é de €232,68 (duzentos e trinta e dois euros e sessenta e oito cêntimos) devida a partir do prazo fixado na lei, isto é, do 1º dia do 2º mês seguinte ao da receção desta comunicação.
Mais comunico que o contrato de arrendamento em causa ficará com uma duração de 5 anos a contar da data efetiva da atualização.
Em cumprimento do disposto no artigo 30º do referido diploma legal, informo que o valor do locado é de €41.881,60, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código imposto Municipal sobre Imóveis, constante da caderneta predial urbana, cuja cópia anexo para o seu conhecimento.
Deverá V. Exa., nos termos da lei, responder a esta proposta por carta, no prazo máximo de 30 dias a contar da data de correio. Em conformidade com o disposto no referido artigo 30º, comunico que V. Exa, pode aceitar esta proposta, apresentar uma contraproposta, pôr fim ao contraio ou informar se beneficia de uma ou mais das situações de exceção previstas na lei, a saber:
- Rendimento Anual Bruto Corrigido (RABC) do seu agregado familiar é inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA);
- idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%.
Caso invoque alguma destas circunstâncias, deverá a sua resposta fazer-se acompanhar dos respetivos documentos comprovativos. 
Mais alerto para o facto de que a falta de resposta a esta carta s/ou da Invocação de qualquer das circunstâncias excecionais acima referidas, pressupõe a aceitação da atualização da renda e da duração do contrato para o valor e prazo agora propostos.
(…)
Em anexo: Cópia da caderneta predial urbana.”
Os apelantes objetam que esta comunicação “foi efectivada e apenas ao recorrente marido que não à recorrente mulher”[33].
Contudo, resultou provado que essa carta foi remetida a ambos os réus, ora apelantes – ponto 5 dos factos provados. Não tendo os apelantes impugnado a decisão sobre matéria de facto, e inexistindo fundamento suficiente para a sua alteração oficiosa, conclui-se pela improcedência deste argumento.
Mais sustentam os apelantes que esta carta “não cumpriu os requisitos e premissas consignadas no Art.º 30 da Lei № 6/2006, de 27 de Fevereiro, mormente, entre outros, o valor da renda, o tipo e a duração do contrato proposto, o conteúdo que pode apresentar a renda, sem esquecer que o valor da actualização que enuncia de 92,81€ não é nem corresponde ao valor de 1/5 do valor do locado”.
Relativamente ao valor da renda, o mesmo é expressamente indicado: €232,68.
No tocante ao tipo e duração do contrato proposto, refere a mesma carta que será um contrato “com uma duração de 05 anos a contar da data efetiva da atualização”.
No tocante ao valor do locado refere a mesma carta que o mesmo “é de € 41.881,60, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, constante da caderneta predial urbana cuja cópia anexo para seu conhecimento”. E da cópia da caderneta predial urbana da fração locada junta aos autos (fls. 19) consta efetivamente tal valor.
Portanto, não descortinamos que a carta supratranscrita tenha desrespeitado qualquer dos requisitos consagrados no art.º 30º do NRAU.
No que respeita ao valor de €92,81, ele não foi comunicado na carta acima referida, mas sim numa outra carta, remetida em 12-09-2018[34].
Esta missiva foi dirigida aos apelantes na sequência da posição que estes assumiram, no sentido de não aceitarem a renda proposta na carta de 08-01-2018, e terem invocado que auferiam um rendimento bruto corrigido inferior a 5 RMNA.
O texto de tal carta consta do doc. nº 5 junto com a petição inicial, e dele consta o que segue:
“ASSUNTO: Atualização do contrato de arrendamento - Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, com as alterações da Lei 31/2012, de 14 de Agosto, da Lei 79/2014, de 19 de Dezembro e, da Lei 43/2017 de 14 de Junho.
Exmos. Srs.,
Na qualidade de Proprietária do imóvel acima identificado, e tendo recebido a vossa carta cie resposta à formalização de iniciativa de transição para o NRAU e atualização da renda a 24 de Agosto de 2018, temos a informar que:
Não tendo sido efetuada por V, Exas. a oposição à transição do contrato de arrendamento para o NRAU, ficará o mesmo submetido a esse regime, de acordo com o estipulado no art.º 35º, nº 1, da Lei 43/2017, de 14 de Junho, transitando para o NRAU oito anos a contar da receção da sua resposta.
Tendo V. Exas. efetuado oposição ao valor de renda proposta, invocando que o vosso agregado familiar possui um Rendimento Anual Bruto Corrigido inferior a 5 RMNA e, apresentando para o efeito a declaração do RABC referente ao ano de 2017, atenta a aplicação da percentagem a que se refere o art.º 35º, nº 2, al. c), ponto iv) da Lei 79/2014 de 19 Dezembro, o mesmo permite a atualização da renda para o valor de €92,81 (noventa e dois euros e oitenta e um cêntimos), sendo este devido a partir do prazo fixado na lei, isto é, do 1º dia do 2º mês seguinte ao da receção desta comunicação, ou seja a partir do próximo mês de Novembro de 2018.
Com os melhores cumprimentos.”
Ora, estabelece o art.º 35º, nº 1 do NRAU que “caso o arrendatário invoque e comprove que o RABC do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA, o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo das partes ou, na falta deste, no prazo de oito anos a contar da receção, pelo senhorio, da resposta do arrendatário nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 31º”.
Portanto, considerando a posição manifestada pelos apelantes e a falta de acordo, o contrato transita para o regime do NRAU apenas quando decorrer o referido período de 8 anos.
Reconhecendo o senhorio esse período de carência, a transcrita comunicação de 12-09-2018 respeitou o disposto no citado preceito.
Relativamente ao montante da renda, nos termos do disposto no nº 2 als. a), b) e c) do mesmo preceito, enquanto não decorrer aquele período de carência de oito anos, o mesmo estava sujeito aos seguintes limites máximos:
- 1/15 do valor da avaliação realizada nos termos do disposto no art.º 38º do CIMI;
- 25% do RABC do agregado familiar do arrendatário; caso o mesmo seja igual ou superior a €1.500 mensais;
- 17% do RABC do agregado familiar do arrendatário; caso o mesmo seja inferior a €1.500 mensais;
- 15% do RABC do agregado familiar do arrendatário; caso o mesmo seja inferior a €1.000 mensais;
- 13% do RABC do agregado familiar do arrendatário; caso o mesmo seja inferior a €750 mensais
- 10% do RABC do agregado familiar do arrendatário; caso o mesmo seja inferior a €500 mensais
No caso dos autos, como vimos, o valor da avaliação do imóvel, efetuada nos termos previstos nesta disposição legal, e exarado na respetiva caderneta predial urbana é de €41.881,60.
Assim, o mencionado limite de 1/15 deve ser calculado do seguinte modo:
41881,60 : 15 = 2.792,10666666666667 = €2.792,11
Contudo, o senhorio considerou o limite de 13% do RABC previsto na subalínea iv).  Desconhece-se qual o exato RABC à data em que foi efetuada essa comunicação, porquanto nenhuma das partes o alegou, e não constam dos autos quaisquer documentos que permitam descortinar qual fosse.
Porém, os apelantes não invocaram o desrespeito deste preceito, tendo-se limitado a sustentar o desrespeito do limite de “1/5 do valor do locado” (crendo nós que pretendia escrever 1/15 e não 1/5).
Assim, resultando do já exposto que a renda comunicada (€92,81) era manifestamente inferior ao limite consagrado na al. a) do nº 2, temos por indemonstrada a desconsideração do estatuído nesta disposição.
Em consequência concluímos pela validade e eficácia do aumento do valor da renda mensal, nos termos comunicados aos apelantes.
3.2.5. Da suspensão da faculdade legal de resolver o contrato
Argumentam os apelantes que à data da propositura da ação se achava suspensa a faculdade de resolução do contrato de arrendamento dos autos, nos termos das disposições conjugadas da Lei nº 75-A/2020 de 30-12, e do art.º 2º, als. c) e a) da Lei nº 1-A/2020, de 19-03.[35]
A referida Lei nº 75-A/2020 veio alterar a Lei 1-A/2020, nomeadamente conferindo nova redação ao art.º 8º desta última, o qual, sob a epígrafe “Regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários” estabelecia:

1- Sem prejuízo do disposto no n.º 4, ficam suspensos até 30 de junho de 2021:
a) A produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio;
b) A caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação;
c) A produção de efeitos da revogação, da oposição à renovação de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio;
d) O prazo indicado no artigo 1053.º do Código Civil, se o término desse prazo ocorrer durante o período de tempo em que vigorarem as referidas medidas;
e) A execução de hipoteca sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado.
2- O disposto no número anterior depende do regular pagamento da renda devida nesse mês, salvo se os arrendatários estiverem abrangidos pelo regime previsto nos artigos 8.º ou 8.º-B da Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril, na sua redação atual.
3- O disposto no número anterior aplica-se às rendas devidas nos meses de outubro a dezembro de 2020 e de janeiro a junho de 2021.
4- No caso de contrato de arrendamento para fins não habitacionais relativo a estabelecimentos que, por determinação legal ou administrativa da responsabilidade do Governo, tenham sido encerrados em março de 2020 e que ainda permaneçam encerrados a 1 de janeiro de 2021, a duração do respetivo contrato é prorrogada por período igual ao da duração da medida de encerramento, aplicando-se, durante o novo período de duração do contrato, a suspensão de efeitos prevista no n.º 1.
5- A prorrogação prevista no número anterior conta-se desde o termo original do contrato e dela nunca pode resultar um novo período de duração do contrato cujo termo ocorra antes de decorridos seis meses após o levantamento da medida de encerramento e depende do efetivo pagamento das rendas que se vencerem a partir da data de reabertura do estabelecimento, salvo se tiverem efetuado o respetivo diferimento.
6- A suspensão de efeitos prevista no n.º 1 e a prorrogação prevista no n.º 5 cessam se, a qualquer momento, o arrendatário manifestar ao senhorio que não pretende beneficiar das mesmas ou se o arrendatário se constituir em mora quanto ao pagamento da renda vencida a partir da data da reabertura do estabelecimento, salvo se tiverem efetuado o respetivo diferimento.”
Como resulta claramente deste preceito, o mecanismo de suspensão da faculdade de fazer cessar o contrato a que se reporta o nº 1 não abrange as situações de resolução do contrato por falta de pagamento da renda.
Daí que tal mecanismo não tenha aplicação no caso dos autos.
Poder-se-ia, contudo, questionar se a suspensão da faculdade do senhorio resolver o contrato de arrendamento não poderia emergir do disposto na Lei nº 4-C/2020, de 06-04.
Com efeito, estabelece o art.º 1º deste diploma que o mesmo consagra “um regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, atendendo à situação epidemiológica provocada pela doença COVID-19”.
Dispõe o art.º 3º desse mesmo diploma:
1- No caso de arrendamentos habitacionais, a presente lei é aplicável quando se verifique:
a) Uma quebra superior a 20 % dos rendimentos do agregado familiar do arrendatário face aos rendimentos do mês anterior ou do período homólogo do ano anterior; e
b) A taxa de esforço do agregado familiar do arrendatário, calculada como percentagem dos rendimentos de todos os membros daquele agregado destinada ao pagamento da renda, seja ou se torne superior a 35 %; ou
c) Uma quebra superior a 20 % dos rendimentos do agregado familiar do senhorio face aos rendimentos do mês anterior ou do período homólogo do ano anterior; e
d) Essa percentagem da quebra de rendimentos seja provocada pelo não pagamento de rendas pelos arrendatários ao abrigo do disposto na presente lei.
2- A demonstração da quebra de rendimentos é efetuada nos termos de portaria a aprovar pelo membro do Governo responsável pela área da habitação.
E, sob a epígrafe “Mora do arrendatário habitacional” estipula o art.º 4º deste mesmo diploma que “Nas situações previstas no artigo anterior, o senhorio só tem direito à resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento das rendas vencidas nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, se o arrendatário não efetuar o seu pagamento, no prazo de 12 meses contados do termo desse período, em prestações mensais não inferiores a um duodécimo do montante total, pagas juntamente com a renda de cada mês.”
Da análise conjugada destes preceitos resulta, de forma evidente, que o mecanismo de suspensão da faculdade de resolver o contrato de arrendamento para habitação com fundamento na mora do arrendatário, consagrado no art.º 4º só se aplica quando fique demonstrada a diminuição dos rendimentos do arrendatário, nos termos referidos no art.º 3º.
Ora, no caso vertente, não resultou provado qualquer facto que permita considerar verificada uma situação de diminuição dos rendimentos do agregado familiar dos apelantes, nos termos referidos no art.º 3º, ou quaisquer outros.
Este mecanismo legal de suspensão constitui um facto impeditivo do direito de resolver o contrato por mora do arrendatário habitacional, o que significa que o ónus da alegação e prova dos factos que o consubstanciam impendia sobre os apelantes – art.º 342º, nº 2 do CC.
Termos em que se conclui pela improcedência desta exceção.
3.2.6. Da resolução do contrato por falta de pagamento
Estabelece o art.º 1038º, al. a) do Código Civil que constitui obrigação do locatário pagar a renda ou aluguer.
Por seu turno, dispõe o art.º 1083º, nº 1 do mesmo código que “qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com fundamento em incumprimento da outra parte”.
E acrescenta o nº 2, do mesmo preceito que “É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade e consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento (…)”.
No tocante à falta de pagamento da renda, especifica o nº 3 do mesmo artigo que “é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda (…)”.
Interpretando este preceito, PINTO FURTADO sublinha que este fundamento de resolução do contrato tanto se verifica quando o inquilino nada pague a título de renda como nas situações em que liquida a renda por valor inferior ao devido.[36]
Por seu turno EDGAR VALLES salienta que não se exige que a mora se refira a três rendas mensais, podendo incidir sobre apenas uma delas, desde que perdure por três ou mais meses.[37] No mesmo sentido, se pronunciaram LAURINDA GEMAS, ALBERTINA PEDROSO, e JOÃO CALDEIRA JORGE.[38]
Da conjugação destes preceitos resulta que em caso de mora no pagamento da renda que se prolongue por três ou mais meses, pode o senhorio resolver o contrato de arrendamento.
Tal resolução pode ser feita por via judicial ou extrajudicial – art.º 1047º do CC.
No caso vertente, resultou provado que tendo o senhorio comunicado aos inquilinos (réus e ora apelantes) o aumento da renda mensal para €92,81 com efeitos a partir da renda devida em 01-11-2018[39], os apelantes continuaram a pagar o valor anterior (€25)[40] e, posteriormente, deixaram mesmo de pagar a totalidade da renda.[41]
Tendo a presente ação sido intentada em 02-12-2020, é manifesto que a mora no pagamento das rendas superou o limiar temporal de três meses.
Encontram-se por isso reunidos os requisitos da declaração judicial de resolução do contrato de arrendamento dos autos e a consequente condenação dos réus a entregar o locado à autora livre de pessoas e desocupado de bens.
Uma vez que os efeitos da resolução do contrato se produzem com o trânsito em julgado da decisão final da presente causa, assiste aos apelados direito a receber dos apelantes a quantia correspondente às rendas vencidas e não pagas, bem como as vincendas até ao trânsito em julgado da decisão final, e bem assim, a título de indemnização, a quantia correspondente ao dobro da renda mensal por cada mês de atraso que decorra entre a data do trânsito em julgado da decisão final da causa e a entrega efetiva do locado (art.º 1045º, n.ºs 1 e 2 do CC).
Tendo condenado os réus nestes precisos termos, a sentença apelada não merece qualquer censura.
Termos em que se conclui pela total improcedência da presente apelação.
3.2.7. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
No caso vertente, atenta a total improcedência do presente recurso, deverão os apelantes suportar as inerentes custas.
4- Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 05 de dezembro de 2023
Diogo Ravara
Paulo Ramos de Faria
Ana Rodrigues da Silva
_______________________________________________________
[1] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116.
[2] As questões são indicadas de acordo com aquilo que nos parece dever ser a respetiva ordem lógica de apreciação. Omitimos qualquer referência à al. A das conclusões por considerarmos que a mesma não se reporta a nenhuma questão concreta a apreciar e decidir por este Tribunal.
[3] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116.
[4] Ob. cit., p. 119.
[5] “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2.ª Ed., Almedina, 2019, p. 468.
[6] “O Recurso Civil. Uma Teoria Geral”, AAFDL, 2017, p. 69.
[7] Isto é, a nulidade de citação edital e a nulidade decorrente do facto de não ter sido indicado prazo para a defesa.
[8] Ainda assim sempre diremos que mesmo que assim não fosse sempre chegaríamos à mesma conclusão, dado que a ré C contestou, não tendo invocado, nesse articulado, a referida nulidade da sua citação, o que fez precludir, desde tal momento, a possibilidade de invocar tal nulidade – vd. art. 191º, nº 2, 1ª parte, do CPC.
[9] Entendemos que as conclusões 1) a 5) não enunciam qualquer questão a apreciar e decidir por este Tribunal.
[10] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2018, p.796.
[11] “Recursos no novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 286-289
[12] “Direito processual civil”, II vol., AAFDL, 1987, p. 187.
[13] “Manual de Processo Civil”, vol. I, AAFDL, 2022, p. 334.
[14] “Processo Civil declarativo”, 2ª ed., Almedina, 2018, p. 75.
[15] “Elementos de direito processual civil – Teoria geral – Princípios – Pressupostos”, Universidade Católica Portuguesa Editora – Porto, 2014, p. 164
[16] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, p. 59.
[17] Publicado no Diário no do Governo, I série, de 1963.02.21.
[18] Cfr. pontos 2 e 3 dos factos provados.
[19] Al. B das conclusões.
[20] Cremos que a expressão “com as necessárias adaptações”, constante do art. 295º do CPC permite concluir que face à natureza urgente e tramitação simplificada dos procedimentos cautelares, se justifica que a sua fundamentação seja igualmente aligeirada.
[21] “Código de Processo Civil Anotado”, V Volume, 3ª Ed., Coimbra Editora, p. 140.
[22] “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[23] Tanto quanto apurámos, este aresto não se acha publicado nas bases de dados de jurisprudência de acesso livre e gratuito.
[24] Todos os arestos invocados no presente acórdão sem indicação e proveniência se acham publicados nas bases de dados de jurisprudência dos Tribunais judiciais, de acesso universal e gratuito, disponíveis em https://jurisprudencia.csm.org.pt e http://www.dgsi.pt. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para os acórdãos nele citados.
[25] Pontos III- A) e B)., pp. 3-5 da sentença.
[26] Ponto V-, pp. 5-6.
[27] Ponto V-, fls. 7-8 da sentença.
[28] Conclusão C.
[29] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 151.
[30] “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[31] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2018, 737-738.
[32] Ponto 3 dos factos provados.
[33] Vd. 3º par. da 3ª p. da motivação do recurso.
[34] Ponto 7 dos factos provados.
[35] Conclusão F.
[36] “Manual do arrendamento urbano”, 2ª ed., Almedina, 1999, p. 740, e “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”, Almedina, 2019, p. 470.
[37] “Arrendamento urbano”, 2ª ed., Almedina, 2020, p. 123.
[38] “Arrendamento urbano”, 3ª ed., Quid Juris, 2009, p. 376.
[39] Ponto 7 dos factos provados.
[40] Pontos 8 e 9 dos factos provados.
[41] Pontos 11 e 12 dos factos provados.