Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
164/22.2T8OHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: INEXACTIDÃO NA IDENTIFICAÇÃO DAS PARTES EM FORMULÁRIO ELECTRÓNICO
HERANÇA NÃO PARTILHADA
LEGITIMIDADE PARA PROPOSITURA DE ACÇÃO DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PODERES DO CABEÇA DE CASAL
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 6.º E 7.º, 2, DA PORTARIA 280/2013, DE 26/8
ARTIGOS 2079.º E 2091.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 30.º; 144.º, 10, B) E 552.º, 1, C), DO CPC
Sumário: I-Em caso de desconformidade entre a identificação das partes nos formulários electrónicos e a constante do cabeçalho da petição inicial, estatui o 144 nº10, al. b), do C.P.C. que “prevalece a informação constante dos formulários”, apenas se admitindo a rectificação em caso de discordância, se a parte o requerer (conforme resulta do artº 7, nº3, da Portaria 280/2013 de 26 de Agosto, aplicável ex vi do artº 132 do C.P.C.).

 

II-É parte legítima para a acção em que se peticiona a resolução de contrato de arrendamento e a entrega do locado, as partes que nele outorgaram, quer do lado passivo, quer do lado activo, ou as que vierem a suceder, por via contratual ou legal, nos seus direitos (artº 30 do C.P.C.)

III-A locação de um bem integrado numa herança não partilhada, integra os poderes ordinários de administração da herança que, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal (artigo 2079.º do Código Civil).

IV- Nessa medida, o cabeça-de-casal que, nessa qualidade, outorgou no arrendamento de imóvel integrado em herança indivisa, é parte legítima para intentar acção de despejo contra a locatária, por esta acção se enquadrar no âmbito dos poderes contidos no artº 2079 do C.C.

Decisão Texto Integral:
Proc. Nº 164/22.2T8OHP.C1- Apelação

Recorrente:  A... Unipessoal, Lda.

Juíza Desembargadora Relatora: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos:  Teresa Albuquerque

                                                               Falcão de Magalhães        

                                                           *


RELATÓRIO

            AA, BB, e mulher CC, e DD, solteiro, partes identificadas no formulário da petição inicial vieram propor a presente ação declarativa, com processo comum, contra “A... Unipessoal, Lda.”, pedindo que:

i) sejam reconhecidos os contratos de arrendamento celebrados entre a proprietária / senhoria (Autora) e a arrendatária (Ré), à data de outorga dos contratos de arrendamento;

ii) seja declarada a cessação, por resolução, dos contratos de arrendamento existentes entre a Autora e a Ré, dos locados identificados nos artigos 2.º e 6.º da petição inicial, por falta de pagamento das rendas vencidas e não pagas, nos termos do artigo 1083.º, n.º 3 do Código Civil;

iii) a condenação da Ré a pagar à Autora, as rendas vencidas e não pagas, no montante de €2.200,00 euros (dois mil e duzentos euros) [resultante do montante de 1.600,00 euros das rendas em dívida da loja do R/chão Esquerdo e 600,00 euros das rendas em dívida do 1.º Frente Esquerdo] e ainda no pagamento das rendas vincendas até efetiva entrega do bem locado, acrescidas de juros de mora contabilizados desde a data dos respetivos vencimentos até integral e efetivo pagamento;

iv) bem como, consequentemente, a condenação da Ré a despejar imediatamente os locados e a entregá-los à Autora, livres e devolutos de pessoas e bens.


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A Ré foi regularmente citada e advertida do prazo para contestar e da cominação aplicável, mas não contestou a ação.

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            Proferido despacho a declarar confessados os factos, foi após proferida sentença que identificando como partes as indicadas no cabeçalho da p.i., Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de EE, contribuinte n.º ..., e representada pela cabeça-de-casal AA, e herdeiros BB, e mulher CC, e DD, julgou “a presente ação procedente por provada e, consequência:

a) Declaro resolvidos os dois contratos de arrendamento celebrados entre as AA. e a Ré, relativo aos imoveis identificados nos artigos 2.º e 6.º da petição inicial;

b) Condeno a Ré “A... Unipessoal, Lda.”, a despejar imediatamente os dois imóveis e a entregá-los às Autoras, livres e devolutos de pessoas e bens;

c) Condeno a Ré “A... Unipessoal, Lda.”, a pagar às Autoras, a quantia global de €2.200,00 (dois mil e duzentos euros) por rendas vencidas desde janeiro a abril de 2022, e ainda no pagamento das rendas que se vierem a vencer a data da propositura da ação até à efetiva entrega do locado ou efetiva desocupação deste, livre de pessoas e bens, acrescido de juros de mora vencidos e contabilizados desde a data dos respetivos vencimentos até integral e efetivo pagamento, à taxa legal.”


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Não se conformando com esta decisão, dela apelou a R., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“1- O Apelante, salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, discordam da Douta Sentença ora recorrida, que declarou a ação procedente e.

2- Salvo o devido e merecido respeito pela posição sufragada na douta sentença ora em crise, entende o Apelantes que a mesma padece de alguns vícios, pois procedeu a um incorreto julgamento da matéria de direito.

3- A herança ilíquida e indivisa, ao invés do que sucede com a herança jacente (ainda não aceite), carece de personalidade judiciária.

4- Aceite a herança, mas permanecendo a situação de indivisão dos bens que a integram, cabe perguntar quem tem legitimidade processual passiva nas acções em que se discutem direitos ou interesses relativos àquela herança: o cabeça-de-casal ou o conjunto de herdeiros em litisconsórcio necessário.

5- Ora, a regra que resulta do art. 2091.º do Código Civil exige o litisconsórcio de todos os herdeiros, salvo quando outra solução derivar da lei.

6- A sua ausência configura a preterição de um litisconsórcio necessário passivo e será motivo de ilegitimidade, com a consequente absolvição da instância – arts. 278º, n.º 1, alínea d), 576º, n.º 2, 577º, alínea e) e 578º do C.P.C.

7- Como assim, a herança indivisa ou não partilhada apenas enquanto se mantiver na situação de jacente goza de personalidade judiciária, passando a […] partir da cessação daquela situação, operada mediante a sua aceitação por parte dos sucessíveis chamados, a não dispor de tal prerrogativa processual pelo que não poderá, em seu próprio nome, desempenhar o papel de parte processual em lide forense, demandar ou ser demandada.

8- Portanto, aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à herança jacente e, quem pode intervir como partes são os respectivos titulares, enquanto herdeiros do de cujus, ou o cabeça-de-casal naquelas situações em que a lei expressamente o prevê.

9- Aliás, isso mesmo resulta do artigo 2091,º, nº 1, do Cód. Civil, no qual se estatui que : “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. ”

10- Ou seja, fora dos casos excepcionais em que se poderá verificar a intervenção do cabeça de casal, ou de qualquer herdeiro ou mesmo terceiro, casos esses previstos nos artigos 2075.º, 2078.º e 2087.º a 2089.º do mesmo diploma (e que no caso se não aplicam, pois que nenhum deles é a parte nos presentes autos), as acções com interesses respeitantes ao acervo hereditário ainda por partilhar terão de ser intentadas por ou contra a totalidade dos herdeiros, actuando estes em litisconsórcio necessário, activo ou passivo – cfr. art. 33º, n.º 1 do CPC. Vide, neste sentido, inter alia, AC RP de 19.05.2010, relator Des. SILVIA PIRES, in www.dgsi.pt.

11- Trata-se, portanto, de legitimidade imposta por lei, decorrente da falta de personalidade judiciária por parte da herança ilíquida e indivisa.

12- Destarte, estando os herdeiros já determinados e tendo os mesmos aceite a herança – e tocado, assim, o período de pendência da herança, portanto, o termo da herança jacente –, tornando-se inviável a essa massa patrimonial por si demandar ou contradizer, por falta de personalidade judiciária, necessário se torna que no lugar dela intervenham os respectivos titulares em bloco, seja, os ditos herdeiros que, mediante o competente acto de aceitação, nela se viram encabeçados.

13- Decorre, assim, do exposto, que o relevante, para efeitos de aferição da personalidade judiciária da Herança Autora, é saber, por um lado, se os seus herdeiros se encontram determinados e, ainda, se aceitaram eles a herança, pois que, assim sucedendo, será, a nosso ver, manifesto que a dita Herança (não sendo jacente) não dispõe de personalidade judiciária.

14- A aceitação da herança pode ser expressa ou tácita – art. 2056º, n.º 1 do Cód. Civil.

15- A aceitação, como manifestação de vontade positiva, pode ser feita expressa ou tacitamente, é irrevogável e, na modalidade de expressa, não está sujeita à forma […] exigida para a alienação da herança – cfr. arts. 2056º e 2063º, «a contrario sensu», e 2061º, todos do Cód. Civil.

16- A distinção entre a declaração expressa ou tácita tem a ver com a natureza directa ou indirecta da declaração.

17- O art. 2056º, n.º 2 do Cód. Civil define apenas a aceitação expressa.

18- Já quanto à aceitação tácita deixa o nosso Código ao intérprete a integração do conceito.

19- No entanto, conforme resulta da lição antes exposta, será de considerar aceitação tácita da herança aquela que se deduz de factos que, com toda a […] probabilidade, a revelem ou que não poderiam ser praticados senão nesse pressuposto (a aceitação), embora se excluam os actos de administração praticados pelo sucessível (art. 2056º, n.º 3 do Cód. Civil), na medida em que estes podem traduzir o cuidado em acautelar ou defender os bens da herança, sem significarem a defesa de um direito próprio.

20- No caso dos autos os herdeiros em apreço não declararam expressamente a aceitação da herança.

21- Desta forma, dúvidas existem devendo a Exma. Juíza a quo ter dado a subsequente normal prossecução aos autos, no quadro do art. 567º, nº2 do n.C.P.Civil, sendo que a persistir-se no conhecimento oficioso da exceção de ilegitimidade passiva em causa, deve previamente ser averiguado e certificado o efetivo estádio dessas heranças [no que à respetiva aceitação e/ou partilha diz respeito], e bem assim a identidade dos seus herdeiros, sendo disso caso, nos termos melhor explicitados supra.

22- Assim, porque a falta de personalidade judiciária é insuprível e resultam dos autos elementos suficientes para concluir de que a autora dos presentes autos é a herança de FF e que esta não constitui uma herança jacente; requer-se liminarmente, a petição inicial por resultar, de forma evidente, a excepção dilatória insuprível de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por falta de personalidade judiciária da autora herança indivisa de FF e e, consequentemente, a absolvição da Ré da instância, nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea c), 1.ª parte, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea c), 578.º, do Código de Processo Civil.

            TERMOS EM QUE E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXA.S VENERANDOS DESEMBARGADORES, DEVE SER DADO INTEIRO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, REVOGADA A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, POR SER DE INTEIRA E MERECIDA JUSTIÇA.”

 


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Foram interpostas contra – alegações pela A., concluindo da seguinte forma:

1. Alega a Ré / Recorrente que não se conformam com a douta decisão do Tribunal a quo, por no seu entender ser a petição inicial inepta, comprometendo desta forma a sua finalidade e determinando a nulidade de todo o processo, resultando na consequente absolvição da instância, conforme artigos 186.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b) e 278.º, alínea b) do Código de Processo Civil.

2. Alega que a herança ilíquida e indivisa, ao invés do que sucede com a herança jacente (ainda não aceite), carece de personalidade judiciária. Acrescentando que aceite a herança, tem legitimidade processual passiva nas acções em que discutem direitos ou interesses relativos àquela herança o Cabeça de Casal ou o conjunto de herdeiros em litisconsórcio necessário.

3. Alegando, ainda, que no caso dos autos os herdeiros em apreço não declararam expressamente a aceitação da herança e como tal o Tribunal a quo deveria ter conhecido da excepção de ilegitimidade passiva em causa.

4. Concluindo que a falta de personalidade judiciária é insuprível e resultam dos autos elementos para concluir que a Autora não constituiu herança jacente, requerendo a absolvição da instância da Ré.

5. Ora, naturalmente não assiste razão à Ré/Recorrente. Como também não lhe assiste razão quando alega que o Tribunal a não conheceu da excepção de legitimidade passiva.

6. Conforme alegado pela Ré/ Recorrente, a mesma foi devidamente citada da presente acção de despejo e não apresentou Contestação. Ora, por sua escolha não apresentou a Ré/Recorrente contestação, articulado onde esta poderia ter alegado as excepções que achasse por conveniente, o que não fez. Por isso, o presente Recuso nada mais é que uma última tentativa de protelar o desfecho da presente acção, o que demonstra a má-fé com que a mesma actua.

7. E é tanto assim que a Ré/Recorrente baseia as suas alegações de recurso na existência, nos presentes autos, da excepção de ilegitimidade passiva (a qual deveria ter sido conhecida pelo Tribunal a quo), o que deveras não se compreende, visto que na presente acção de despejo consta como «Ré» a A... Unipessoal, Lda. (a Ré/ Recorrente), na qualidade de arrendatária dos locados objecto dos presentes autos, tendo a mesma legitimidade passiva nessa qualidade, por ser quem ter interesse directo em contradizer.

8. Quanto à legitimidade activa há que considerar que o presente processo foi interposto pela Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de EE, contribuinte n.º ..., legalmente representada por:

 AA, viúva, contribuinte n.º ..., residente na Avenida ..., n.º 12, ... ...,

 BB, contribuinte n.º ... e mulher CC, contribuinte n.º ..., residentes no Largo ..., ... ... e

 DD, solteiro e maior, contribuinte n.º ..., residente na Avenida ..., n.º 12, ... ..., conforme consta da petição inicial.

9. Ora, conforme consta da nossa jurisprudência, não existe diferença significativa entre a afirmação de que a acção é intentada pela herança indivisa representada pela cabeça de casal ou pelos herdeiros e a afirmação de que a acção é intentada pela cabeça de casal ou pelos herdeiros, na qualidade de administradora ou herdeiros de determinada herança indivisa, devendo entender-se, em qualquer caso, que a verdadeira parte é a cabeça de casal ou os herdeiros e não a herança que está desprovida de personalidade judiciária (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26-02-2019, Pr. n.º 1222/16.8T8VIS-C.C1, disponível em www.dgsi.pt).

10. E, a propósito da herança, poderemos encontrar o Acórdão do STJ de 10- 07-1990 (Pr. n.º 078685), em cujo sumário se lê o seguinte: «perante uma petição em que no cabeçalho se diz que a acção é proposta contra a herança do falecido mas logo a seguir se identificam todos os herdeiros pedindo-se a citação destes para os termos da causa, é de entender que a acção foi proposta contra estes…», sendo que, nessa perspectiva, a mesma solução deverá ser adoptada quando a herança (o cabeça de casal ou os herdeiros) figura como autora.

11. Ainda no mesmo sentido e numa situação em que a autora era identificada nos mesmos termos em que está identificada nos presentes autos, lê-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-2008 (Pr. n.º 400/2002.C1) o seguinte: «No caso, permanecendo a situação de indivisão dos bens que integram a herança, despida ela de personalidade judiciária, como acima se disse, os direitos que lhe são relativos devem ser, conforme se salientou, exercidos pelos herdeiros. Ora, sendo eles conhecidos, estando terminada a situação de jacência, necessário se torna que no lugar da herança intervenham os respectivos titulares em bloco, ou seja, os herdeiros identificados na petição. Estes, na defesa dos interesses da herança por partilhar, intentam a acção apresentando-se como representantes da herança, embora impropriamente falem em “herança por eles representada”. São os herdeiros quem intervém como parte activa, actuando, não em nome próprio, mas em nome do património representado que não dispõe da possibilidade de ser parte em processo judicial, reunindo, assim, no conjunto deles, não só o requisito da personalidade judiciária, mas também o da legitimidade processual activa».

12. Nos termos do artigo 2091.º, n.º 1, do Código Civil, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros.

13. A presente acção tem por objecto o despejo e o pagamento de rendas devidas pela Ré /Recorrente em relação a espaços que fazem parte de um prédio que faz parte da Herança de EE, tendo sido intentada a por todos os herdeiros desta, os quais actuaram em representação e no interesse desta, não existindo por isso qualquer ilegitimidade.

14. Pelo que não existe qualquer ineptidão da petição inicial, nem qualquer excepção de ilegitimidade pelo que deve manter-se a douta sentença nos precisos termos em que foi proferida.

            Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso improceder, mantendo-se a sentença recorrida. Só assim se fazendo Justiça!”


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos dos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as únicas questões que importam decidir, apesar de não invocadas nem decididas pelo tribunal recorrido, mas que são de conhecimento oficioso, consiste em saber se

-se verifica a excepção dilatória insuprível de falta de personalidade judiciária e de ilegitimidade para a acção em que se peticiona a resolução de contrato de arrendamento respeitante a imóvel integrado em herança indivisa.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

            O tribunal recorrido fixou a seguinte matéria de facto:

“1. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da União de freguesias ... e ... com o artigo 1746 (que provém do artigo ...21 da extinta freguesia ...) o prédio urbano, sito no Largo ..., em ..., composto por R/chão Dto., R/chão Esq., 1.º, 2.º andares e sótão, com a área de 376,00 m2, na titularidade de EE.

2. A Autora AA, é cabeça de casal da herança aberta por óbito de EE.

3. No dia 4.03.2016, a Autora na qualidade de cabeça de casal e senhoria, a Ré na qualidade de arrendatária, celebraram contrato de arrendamento não habitacional da loja R/Chão esq, do prédio urbano sito no Largo ..., em ..., inscrita na matriz urbana sob o artigo ...46.

4. Tendo sido estabelecido que o prazo do mencionado arrendamento era de três anos, com inicio em 1 de março de 2016 e o témino a 28 de fevereiro de 2019, considerando-se prorrogado por iguais períodos, a menos que fosse denunciado por qualquer das partes (cláusula 1ª).

5. As partes estabeleceram que a renda seria de € 400,00 (quatrocentos euros) durante os primeiros três anos (2017,2018,2019) a pagar até ao dia 8 do mês a que disser respeito, sofrendo aumento de €75,00 a partir de março de 2019, e ficando posteriormente sujeita a aumento de €75,00 de três em três anos (cláusula 2ª).

6. Os aumentos de renda mensal, não chegaram a ser implementados, mantendo-se o pagamento da renda no valor de €400,00 euros.

7. No dia 4.03.2016, a Autora na qualidade de cabeça de casal e senhoria, a Ré na qualidade de arrendatária, celebraram contrato de arrendamento não habitacional do 1° frente esq, para servir de armazém e apoio à referida loja do R/chão Esquerdo, do prédio urbano sito no Largo ..., em ..., inscrita na matriz urbana sob o artigo ...46.

8. Tendo sido estabelecido que o prazo do mencionado arrendamento era de três anos, com inicio em 1 de março de 2016 e o término a 28 de fevereiro de 2019, considerando-se prorrogado por iguais períodos, a menos que fosse denunciado por qualquer das partes (cláusula 1ª).

9. As partes estabeleceram que a renda mensal seria de €150,00 (cento e cinquenta euros) a pagar até ao dia 8 do mês a que disser respeito, durante os três primeiros anos, ou seja 2017, 2018 e 2019, a que acresceria um aumento de €25,00 a partir de março de 2019, e ficando sujeito a aumentos de 3 em 3 anos de da quantia de €25,00 (cláusula 2ª).

10. Os aumentos de renda mensal, não chegaram a ser implementados, mantendo-se o pagamento da renda mensal do armazém, no valor de € 150,00.

11. A Ré apenas liquidou as rendas até €400,00 e €150,00 (respetivamente) até dezembro de 2021.

12. Referente à loja do R/chão Esquerdo do prédio urbano descrito no artigo 1.º da presente petição, encontra-se em falta o pagamento pela Ré, das rendas dos meses de janeiro a abril de 2022, perfazendo o total de €1.600,00.

13. No que respeita ao 1.º Frente Esquerdo do prédio urbano descrito no artigo 1.º da presente petição, encontra-se em falta o pagamento pela Ré, das rendas dos meses de janeiro a abril de 2022, perfazendo o total de €600,00.


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III. 2- Factos Não Provados
Não há factos não provados com interesse para a decisão.”

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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

            Alega a recorrente como fundamentos do seu recurso que:

- a herança ilíquida e indivisa carece de personalidade judiciária;

- a regra que resulta do art. 2091.º do Código Civil exige o litisconsórcio de todos os herdeiros, salvo quando outra solução derivar da lei;

-a sua ausência configura a preterição de um litisconsórcio necessário passivo e será motivo de ilegitimidade, com a consequente absolvição da instância – arts. 278º, n.º 1, alínea d), 576º, n.º 2, 577º, alínea e) e 578º do C.P.C.

É jurisprudência assente que a herança indivisa, ao contrário da herança jacente (cfr. artº 12 al. a) do C.P.C.), não tem personalidade nem jurídica nem judiciária e que a falta de personalidade judiciária, fora das situações previstas no artº 14 do C.P.C., é insanável.

Como é indiscutível que, como referido pela recorrente existe desconformidade entre as partes indicadas no formulário e as indicadas no cabeçalho da petição inicial: neste são identificados como partes, a Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de EE, contribuinte n.º ..., e representada pela cabeça-de-casal AA, e herdeiros BB, e mulher CC, e DD; no formulário electrónico indicam-se como partes, AA, BB, e mulher CC e, DD.

A referida AA é ainda identificada no articulado da petição inicial como Autora e cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de EE, identificados os demais AA. como seus herdeiros.  

O recorrente partiu desta desconformidade para invocar uma excepção que não invocou no momento processual próprio e que não tem, aliás, qualquer razão de ser.

Decorre do disposto no artº 552, nº1, al. a) do C.P.C., o ónus, imposto àquele que intenta uma acção em juízo, de identificar na petição inicial as partes demandantes e demandadas, indicação que deverá ser conforme à efectuada no formulário previsto no artº 6 da Portaria 280/2013 de 26 de Agosto, em observância da estatuição constante do artº 144 do actual C.P.C., ao dispor que “os actos processuais são apresentados a juízo por transmissão electrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no nº1 do artigo 132º (…).”

O artº 6, nº2, da aludida Portaria, dispõe que “A informação inserida nos formulários é refletida num documento que, juntamente com os ficheiros anexos referidos na alínea a) do número anterior, faz parte, para todos os efeitos, da peça processual.”

Em caso de desconformidade entre a informação constante dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, resulta expressamente do artº 7, nº2, desta Portaria e do artº 144 nº10 al. b) do C.P.C. (na redacção do DL n.º 97/2019, de 26/07) que “prevalece a informação constante dos formulários”.

A prevalência da informação constante do formulário, nomeadamente no que se reporta à identificação das partes é o corolário da obrigação que decorre do disposto no artº 144 do C.P.C., de transmissão electrónica de dados, que assim, ficam inseridos automaticamente no sistema citius. Partes, são pois as identificadas como tal no formulário, admitindo-se a rectificação em caso de discordância com a identificadas na petição inicial, se a parte o requerer (artº 7, nº3).[3]

 No caso em apreço não foi requerida a correcção da desconformidade, pelo que, sempre se imporia a consideração de que as partes AA. são as indicadas neste formulário e não as identificadas na sentença sob recurso.

A questão colocada pela recorrente, é afinal uma não questão e seria uma não questão, em qualquer caso, ainda que não existisse a apontada desconformidade, pois que nos autos, estão quer a cabeça-de-casal que outorgou neste contrato, nessa qualidade expressamente indicada, quer todos os herdeiros da herança ilíquida e indivisa e, nessa medida assegurada a legitimidade activa para esta acção, ainda se entendesse aplicável ao caso em apreço o artº 2091 do C.C.

Com efeito, é ponto assente que a legitimidade se afere pela relação controvertida, tal como ela é definida pelo autor. Nos dizeres do insigne processualista Castro Mendes[4], “a legitimidade é uma posição do autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo daquele objecto do processo”, assegurando que a lide se defina e co9m0pnha definitivamente entre aqueles que têm interesse na sua resolução.

Esta noção encontrou expressa consagração no artº 30 do C.P.C. que define como partes legítimas, como autoras, aquelas que têm interesse directo em demandar e, como rés as que tiverem interesse em contradizer.

Estabelece o nº 2 deste preceito legal que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade que advenha para a parte da procedência da acção e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

Por último, no seu nº 3 estabelece-se que, na falta de indicação legal em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo Autor.

Quem são, então, os sujeitos da relação material controvertida, numa acção em que se visa a resolução de um contrato de arrendamento, o pagamento das rendas em dívida e a entrega do locado?

Naturalmente que as partes que nele outorgaram, quer do lado passivo, quer do lado activo, ou as que vierem a suceder, por via contratual ou legal, nos seus direitos.

Nesta medida, a resolução da relação contratual locatícia e consequente despejo da arrendatária, afere-se pelo confronto das partes que outorgaram neste contrato, tendo legitimidade activa aquele que outorgou na qualidade de senhorio, como é entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência.

Acresce que, ao contrário do alegado pela apelante, a locação de um bem integrado numa herança não partilhada, integra os poderes ordinários de administração da herança que, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal (artigo 2079.º do Código Civil). Só fora destes casos, se exige a intervenção de todos os herdeiros (artº 2091 do C.C.)

Como refere Rui Pinto[5], a respeito da legitimidade para o procedimento especial de despejo “têm legitimidade activa e passiva, respectivamente, as partes que à data da instauração da acção–i.e., do recebimento da petição inicial não recusada ou beneficiando do art. 476.º CPC, após primeira recusa–estão nas posições de senhorio e de arrendatário nos termos contratuais (…). (…) se existir cabeça de casal de herança aberta por óbito do senhorio, tem aquele legitimidade para, desacompanhado dos restantes herdeiros, intentar acção de despejo relativamente a um imóvel da herança arrendado pelo falecido”.

Na jurisprudência, o Ac. do TRP de 08/02/21[6], defende que “A instauração de despejo visando a declaração da resolução do contrato de arrendamento, respeitante a imóvel pertencente a herança indivisa, constitui acto de administração da competência do cabeça-de-casal, podendo este proceder à sua instauração sem estar acompanhado dos restantes herdeiros.”

Assim se conclui que pode a cabeça-de-casal intentar, ainda que desacompanhada dos demais herdeiros, acção com vista à resolução do contrato de arrendamento e entrega do locado[7]. A cabeça-de-casal não necessitaria sequer de se fazer acompanhar dos demais herdeiros com vista à propositura desta acção, sendo a sua intervenção meramente voluntária e não com vista a assegurar a legitimidade desta cabeça-de-casal. 

Acresce que a resposta à excepção ora invocada pela recorrente não seria diferente, ainda que se entendesse que parte na causa eram os indicados no cabeçalho da petição inicial, por a referência à herança indivisa representada pela cabeça-de-casal, ter de ser interpretada no sentido de que é a cabeça-de-casal, na qualidade de representante desta herança que interpõe a acção em juízo.

Como liminarmente se refere no Ac. do TRP de 08/06/2022[8], “Tendo sido proposta uma ação onde se identifica como autor a herança, representada pelo respetivo cabeça-de-casal, nada impede que se considere que quem instaura a ação, nela figurando como autor é o cabeça de casal – ainda que atuando no interesse de todos os herdeiros.
(…) Este entendimento colhe apoio no espírito que atualmente subjaz à nossa legislação processual no sentido de que se deverá assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, procurando-se que o processo e a respetiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que funcionem como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes.”

No mesmo sentido, se pronunciou o Acórdão desta Relação de 24/02/2015[9], fundamentando esta sua posição com o facto de “o cabeça de casal, quando propõe uma acção por questões relacionadas com a herança (designadamente nos casos em que a lei lhe atribui competência para o efeito), não o faz em seu próprio nome e em seu benefício exclusivo e, como é natural, terá que fazer menção desse facto com vista a clarificar que não é o destinatário (ou, pelo menos, o único destinatário) da pretensão que vem exercer e que ela tem como destinatário a herança ou o conjunto dos herdeiros e, na identificação da qualidade em que propõe a acção, refere-se habitualmente, que o faz na qualidade de representante da herança. (…) É certo que ao concretizar a qualidade em que propõe a acção, a cabeça de casal identifica-se como representante da Herança que surge, aparentemente, como autora na acção. Não nos parece, no entanto, que essa circunstância deva impedir o normal prosseguimento da acção, na medida em que, em rigor, aquilo que está em causa, é uma mera incorrecção na expressão utilizada para identificar a parte e a qualidade em que interpõe a acção, devendo entender-se que a autora é a própria cabeça de casal e não a herança que diz representar. Note-se que a herança indivisa nem sequer corresponde a uma realidade diferente do conjunto dos herdeiros; a falta de personalidade da herança não jacente decorre precisamente da circunstância de os seus titulares já estarem determinados, pelo que a herança corresponde, na prática, ao conjunto dos herdeiros, afigurando-se-nos, por isso, ser excessivamente formalista a afirmação de que a acção não pode ser aproveitada e não pode prosseguir por falta de personalidade judiciária quando são os herdeiros ou a cabeça de casal (actuando no interesse daqueles e no âmbito dos poderes de administração da herança que a lei lhe atribui) que estão na acção (ainda que, incorrectamente, se tenham identificado como representantes de uma entidade ou realidade que não tem personalidade e cuja titularidade pertence aos herdeiros).”

Ou seja, o cabeça-de-casal que interpõe acção de despejo, fá-lo sempre, não em seu nome próprio e seu benefício exclusivo, mas antes em benefício da herança e na qualidade de seu representante, pelo que, ainda que não existisse qualquer discrepância na indicação das partes, ainda assim, improcederia o recurso interposto pela R., por estar em juízo, do lado activo a cabeça de casal que outorgou este contrato, acompanhada dos demais herdeiros.  

 


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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem esta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida com rectificação das partes autoras nela referidas, em conformidade com a indicação efectuada no formulário (artº 7, nº2, da Portaria 280/2013 e 144, nº10 al. b) do C.P.C.).
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Custas pela apelante (artº 527, nº1, do C.P.C.)

                                                                                                           Coimbra 28/03/2023





[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Neste sentido vide Ac. do TRL de 21/11/2019, proferido no rpoc. nº 2775/19.4T8FNC-A.L1-2, de que foi relator Carlos Castelo Branco; Ac. do TRP de 24/02/2015, proferido no proc. nº 1967/14.7TBPRD.P1, de que foi relator Vieira e Cunha; Ac. TR.L. de 19/6/2014, proferido no proc. nº 2485/13-8, de que foi relator Ferreira de Almeida e Ac. do TR.L. 25/11/2010, proferido no proc. nº 576/10.4TJLSB-8, de que foi relatora Maria Amélia Ameixoeira.
[4] MENDES, João de Castro, Direito Processual Civil, AAFDL, II Vol., pág. 187.
[5] PINTO, Rui, O Novo Regime Processual do Despejo, Coimbra Editora, 2.ª Ed., 2013, pág. 35 e 37-38.

[6] Proferido no proc. nº 5674/19.6T8VNG.P1, de que foi relator Manuel Domingos Fernandes.

[7] Neste sentido, vide os Acs. do TRL de 27/04/2006, proferido no proc. nº 1567/2006-6, de que foi relatora Manuela Gomes,  do TRL de 13/11/03,  proferido no proc. nº 6410/2003-8, de que foi relator Salazar Casanova e Ac. do TRL de 10/10/19, proferido no proc. nº 616/19.1YLPRT.L1-2, de que foi relator Vaz Gomes, todos disponíveis em www.dgsi.pt

[8] Proferido no proc. nº  3084/19.4T8VLG.P1, de que foi relator Rodrigues Pires, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Proferido no proc. 1530/12.7 TBPBL.C1, de que foi relatora Maria Catarina Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.