Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4ª SECÇÃO | ||
Relator: | PEREIRA RODRIGUES | ||
Descritores: | NULIDADE DE SENTENÇA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO EXCESSO DE PRONÚNCIA ABUSO DO DIREITO | ||
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Data do Acordão: | 12/15/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
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Sumário : | I - A nulidade da sentença por falta de fundamentação não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final. II - Quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia susceptível de integrar nulidade. III - Age com abuso do direito aleguem que, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado. IV - O facto de o trabalhador vir a juízo exigir do empregador prestações salariais que há longos anos lhe eram devidas, prestações que na altura podia ter exigido, mas que não exigiu, por qualquer motivo – imperfeito conhecimento dos seus direitos, receio de perda do emprego, expectativa de reparação do incumprimento do empregador, etc. – integra, por princípio, uma actuação com abuso do direito, mas antes um exercício incensurável do mesmo direito. | ||
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Decisão Texto Integral: |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR. No Tribunal do Trabalho de Lamego, Leonel da Silva Santos intentou a presente acção, n° 2/08.9TTLMG, com processo comum, contra Sociedade Agrícola AA, Lda., pedindo o pagamento das seguintes quantias: - € 64.071,52, a título de actualizações salariais entre 1987 e 2007; - € 2.200, referente a pagamentos que o Autor fez a pessoal contratado ao serviço da Ré; - € 2.039,94, referente às retribuições devidas nos meses de Outubro a Dezembro de 2007; - € 1.775,94, a título de férias não gozadas, subsídios de férias e de Natal do ano de 2007; - tudo, acrescido de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento. Alegou, para tanto, em suma, que foi admitido ao serviço da Ré em 1980, exercendo as funções de feitor da Quinta do Vale, sita em Várzea de Abrunhais, Lamego, e auferindo, desde 1987, uma retribuição mensal abaixo do valor da retribuição mínima garantida por lei, sendo que, a partir de 2001, com a publicação da Portaria de Regulamentação de Trabalho para os trabalhadores agrícolas, publicada no Boletim de Trabalho e Emprego n.° 33/2001, de 8 de Setembro, passou a integrar a primeira classe salarial, sendo-lhe devida a retribuição ali prevista, bem como as suas actualizações. Mais aduziu que entre 1987 e 2006 nunca gozou férias e que a Ré está em dívida para consigo pelos valores despendidos com o pagamento de pessoal em 2003 e 2004, e retribuições relativas aos meses de Outubro a Dezembro de 2007, inclusive, subsídios de férias e de Natal do referido ano. A Ré contestou, alegando, em suma, que o Autor apenas exerce as funções de caseiro desde 1986 e que durante todos estes anos nunca manifestou o seu descontentamento com o vencimento recebido, nem pediu a actualização do mesmo. Invoca, por isso, o abuso do direito por parte do Autor em exigir a actualização dos salários recebidos de 1987 a 2007. Mais aduziu que à retribuição do Autor acrescia o direito de residir, com o seu agregado familiar, na casa do caseiro, composta por três divisões, cozinha e casa de banho, prestação que integra a sua retribuição. Por outro lado, defendeu não serem aplicáveis aos presentes autos as invocadas Portaria de Regulamentação do Trabalho, porquanto o seu âmbito territorial de aplicação restringe-se ao concelho de Vila Real. O Autor respondeu à contestação. Por despacho de 26 de Janeiro de 2009, foi determinada a apensação aos presentes autos da acção que corria termos no tribunal, sob o n° 317/08.6TTLMG, intentada pelo A. contra a mesma Ré. Nesta acção, n.° 317/08.6TTLMG, pediu o Autor a anulação da sanção disciplinar de suspensão e perda de antiguidade aplicada pela Ré, declarando-se a mesma abusiva, e o reconhecimento da quantia de € 679,98, a título de salário mensal, pedindo o pagamento das seguintes quantias: - € 169,95, relativa à retribuição da semana de suspensão, acrescida de € 1.669,95, correspondente ao décuplo, em virtude de se tratar de sanção abusiva e da quantia de € 10.000, a título de indemnização por danos morais; - € 3.709,86, a título de diferenças salariais desde Janeiro a Julho de 2008 e da quantia de € 679,98, a título de subsídio de férias; - tudo, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento. Alegou, para tanto, em suma, que como represália da 1.ª acção intentada contra a Ré, esta instaurou ao Autor um processo disciplinar que culminou na sanção disciplinar de uma semana de suspensão com perda da correspondente retribuição e, ainda, o desconto de cinco anos de antiguidade na empresa. Acrescentou que os factos que fundamentaram tal decisão, além de falsos, encontravam-se prescritos, acarretando aquela sanção pânico, nervosismo e transtorno para o Autor. Mais aduziu que, não obstante ter já solicitado a actualização do seu salário, a Ré continua a pagar-lhe a retribuição mensal de € 150. A Ré contestou esta acção, por impugnação, alegando, em síntese, que o Autor nunca manifestou qualquer descontentamento com a sua retribuição pelo que vir agora decorridos mais de 20 anos de execução do contrato constitui manifesto abuso do direito. Mais acrescentou que os factos que motivaram o processo disciplinar são verdadeiros, pois há muito que o Autor não cumpre, com a diligência devida, as suas obrigações, não se verificando, por isso, os pressupostos de responsabilidade da Ré por danos morais. Mais contestou, invocando a excepção de litispendência entre esta acção e a que corre termos sob o n° 2/08.9TTLMG, alegando, ainda, verificar-se uma relação de prejudicialidade entre ambas. Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção de litispendência invocada e indeferida a suspensão da instância por pendência de causa prejudicial. Não se conformando com tal despacho, dele recorreu a Ré, tendo o recurso sido admitido como de agravo, com subida diferida e efeito meramente devolutivo, nele se suscitando as seguintes questões: - a da ocorrência in casu da alegada excepção de litispendência, na justa medida em, quer num, quer no outro, mas em ambos os processos, se visa obter o mesmo efeito jurídico, atinente ao salário pretensamente devido, ou seja, - determinação do valor da remuneração mensal do autor, após o que se concretizarão, se devidas (ou não, na hipótese contrária) as eventuais diferenças salariais; - nos autos, não se encontra preenchido nenhum dos requisitos legais previstos no n° 1 do art. 275° do CPC que sustente a pretextada apensação; - tão-pouco se diz ou fundamenta qual o pressuposto processual preenchido, pelo que a decisão enferma do vício da nulidade a que alude o art. 668°, n°1, b), do CPC; - não tendo, no saneador, sido designada uma data para o julgamento, jamais podia ser exigida a taxa de justiça subsequente e a correspondente multa, por tardio cumprimento da obrigação; Igualmente, não se conformando com o despacho que ordenou a apensação dos processos, dele recorreu a Ré, tendo o recurso sido admitido como de agravo, com subida diferida, nele se formulando as seguintes conclusões: - Não se encontrando preenchido nenhum dos requisitos que poderiam sustentar a determinada apensação de processos, previstos no n.° 1 do art. 275.° do CPC, ela não poderia ter sido determinada pelo Tribunal a quo; - É inadmissível a interpretação extensiva que o M.mo Juiz a quo fez do art. 275.°, n.° 1, do CPC - ex vi do art. 9.°, n.° 2, do CC; - O despacho recorrido violou os arts. 275.°, 668.°, n.° 1, al. c), do CPC, e 9.°, n.° 2, do CC. Os dois recursos de agravo foram objecto de contra-alegações, neles se pedindo a confirmação do decidido. Realizada a audiência de discussão e julgamento - tendo sido deferido a ampliação do pedido, no tocante à actualização dos salários desde Agosto de 2008 até Setembro de 2009 - foi, posteriormente, proferida sentença, julgando a acção procedente e condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 42.039,60, a título de diferenças salariais entre Janeiro de 1987 e Setembro de 2009, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, sendo sobre o valor de € 39.136,58, desde 3 de Abril de 2008 (fls. 69 dos autos 2/08.9TTLMG) e sobre o valor de € 2.903,02, desde 19 de Setembro de 2008 (fls. 45 dos autos 317/08.6TTLMG) até efectivo e integral pagamento. Mais se julgou ilícita a sanção disciplinar aplicada ao Autor, por prescrição do procedimento disciplinar, condenando a Ré a revogar a mesma. Inconformadas com esta decisão, dela recorreram Autor e Ré, vindo o Tribunal da Relação do Porto a negar provimento aos agravos; a julgar improcedente a apelação da Ré e procedente a do Autor, condenando a Ré a pagar-lhe a quantia de global de € 70.958,81. Mais uma vez inconformada, a Ré interpôs recurso de Revista para este STJ, apresentando alegações, com as seguintes CONCLUSÕES: O A. contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e concluindo: A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da negação da Revista. Foram colhidos os legais vistos, pelo que cumpre enunciar as questões que se colocam à apreciação, que se passam a discriminar, pela ordem em que abaixo se conhecerão, e que são as relativas: a) À litispendência, prejudicialidade e apensação de acções; b) Às nulidades do Acórdão Recorrido; c) Ao abuso do direito. II. FUNDAMENTOS DE FACTO. Os factos considerados provados nas instâncias são os seguintes: - Processo 2/08.9TTLMG 1. O Autor foi admitido ao serviço da Ré em Agosto de 1980 até à presente data. 2. Entre Autor e Ré foi reduzido a escrito um contrato de trabalho em 27.01.1986. 3. O Autor trabalhava e trabalha sob as ordens, direcção e fiscalização da ora Ré. 4. Exercendo as funções de feitor, comummente designado por "caseiro", nos prédios rústicos e urbanos da propriedade da ora Ré e que compõem a denominada Quinta do …, em …, Lamego. 5. Sendo o responsável pela gestão da exploração agrícola, coordenar os trabalhos, contratar pessoal, ordenar e controlar a execução dos trabalhos efectuados pelos demais trabalhadores. 6. O Autor habita a casa do caseiro da quinta. 7. O mesmo auferia à data da redução a escrito do contrato o salário mensal ilíquido de Esc. 25.000$00, correspondente a € 124,70. 8. Em 1987, o Autor recebia de salário mensal a quantia de € 110,84. 9. A Ré não pagou ao Autor até esta data os salários de Janeiro, Fevereiro, Março, subsídio de férias e de Natal do ano de 1987. 10. No ano de 1988, o Autor auferiu o salário mensal de € 106,89, incluindo férias, subsídio de férias e de Natal. 11. No ano de 1989, o Autor auferiu o salário mensal de € 106,89, incluindo subsídio de férias e de Natal. 12. No ano de 1994, o Autor recebeu de salário mensal a quantia de € 175,29, incluindo subsídio de férias e de Natal. 13. No ano de 1999, o Autor recebeu mensalmente a quantia de € 149,64, incluindo subsídio de férias e de Natal. 14. No ano de 2000, o Autor auferiu mensalmente a quantia de € 149,64, incluindo subsídio de férias e de Natal. 15. No ano de 2001, a Ré pagou ao autor a quantia mensal de € 149,64, a título de salário, incluindo subsídio de férias e de Natal. 16. A Ré deve ao Autor o subsídio de refeição dos meses de Junho a Dezembro de 2001. 17. No ano de 2002, a Ré pagou ao Autor o salário mensal de € 150,00. 18. Nos anos de 2003, 2004, 2005 e 2006, a Ré pagou ao Autor o salário mensal de € 150,00. 19. O Autor entrou ao serviço da Ré em 1980, não como caseiro mas como empregado agrícola — à data a caseira era a mãe do Autor, a Senhora D. BB. 20. Desde 1981 que o Autor foi inscrito na Segurança Social tendo-lhe sempre sido feitos os respectivos descontos. 21. Só em 1986 é que o Autor passou a exercer as funções de caseiro, tendo para o efeito sido celebrado o contrato de trabalho junto com a petição inicial. 22. O Autor foi contratado para prestar mais serviços do que aqueles que alega, designadamente, a guarda da propriedade da Ré, elaboração da folha com o movimento semanal, elaboração do inventário mensal e a preparação de toda a documentação referenciada para a contabilidade. 23. Era assim o Autor quem mensalmente não só processava os próprios salários como elaborava os recibos de vencimento, desde 1986 até finais de 2006. 24. Durante todos esses anos nunca o autor manifestou o seu descontentamento com o seu vencimento nem pediu à Ré qualquer actualização do mesmo. 25. Igualmente nunca reclamou que a Ré lhe devesse quaisquer quantias em virtude do seu salário ser inferior ao salário mínimo nacional. 26. Ficou estabelecido no contrato de trabalho celebrado pelas partes que o Autor teria direito ao salário mensal ilíquido de Esc. 25.000$00, acrescendo a tal retribuição o direito de residir com o seu agregado familiar na casa do caseiro, composta por três divisões, cozinha e casa de banho. 27. Em 1987, o Autor auferia mensalmente € 124,70. 28. Em 1988, o Autor recebeu a quantia mensal de € 106,89. 29. Em 1989, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 106,89. 30. Em 1990, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 124,70, até Setembro, e € 149,64, a partir de Outubro. 31. Em 1991, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 149,64. 32. Em 1992, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 149,64. 33. Em 1993, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 149,64. 34. Em 1994, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 149,64. 35. Em 1995, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 149,64. 36. Em 1996, o Autor recebeu a retribuição mensal de 149,64. 37. Em 1997, o Autor recebeu a retribuição mensal de 149,64. 38. Em 1998, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 149,64. 39. Em 1999, o Autor recebeu a retribuição mensal de 149,64. 40. Em 2000, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 149,64. 41. Em 2001, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 149,64. 42. Em Fevereiro de 2002, o Autor passou a receber a retribuição mensal de € 150,00. 43. Em 2003, o Autor recebeu a retribuição mensal de € 150,00. 44. Em 2004, 2005, 2006 e 2007, o Autor recebeu a retribuição mensal de €150,00. 45. Desde 2004, a Ré passou a liquidar directamente aos trabalhadores eventuais vencimentos sem a intervenção do Autor. 46. Os ordenados de Outubro de 2007 a Dezembro de 2007, férias, subsídio de férias e de Natal de 2007, foram processados e pagos. - Processo 317/08.6TTLMG 47. O Autor foi admitido ao serviço da Ré em Agosto de 1980 até à presente data. 48. Entre Autor e Ré foi reduzido a escrito um contrato de trabalho em 27.01.1986. 49. O Autor trabalhava e trabalha sob as ordens, direcção e fiscalização da ora Ré. 50. Exercendo as funções de feitor, comummente designado por "caseiro", nos prédios rústicos e urbanos da propriedade da ora Ré e que compõem a denominada Quinta do …, em …, Lamego. 51. Sendo o responsável pela gestão da exploração agrícola, coordenar os trabalhos, contratar pessoal, ordenar e controlar a execução dos trabalhos efectuados pelos demais trabalhadores. 52. O Autor habita a título gratuito a casa do caseiro da quinta. 53. O mesmo auferia à data da redução a escrito do contrato o salário mensal de Esc. 25.000$00, correspondente a € 124,70. 54. O Autor aufere actualmente a quantia de € 150,00 ilíquidos mensais. 55. A Ré instaurou um processo disciplinar ao Autor. 56. Imputando-lhe a prática dos factos constantes da Nota de Culpa, junta aos autos. 57. Tendo o Autor apresentado a respectiva defesa ou resposta por escrito e remetida em 4.04.2008, conforme documento junto aos autos. 58. Onde, em resumo, impugna os factos que lhe são imputados, bem como invoca a prescrição do procedimento disciplinar e arrola testemunhas de defesa. 59. Pese embora a Ré tenha a sua sede em Várzea de Abrunhais, e ser este o local de trabalho do Autor, marcou a cidade de Lisboa como local para inquirição das testemunhas. 60. A Ré marcou a inquirição das testemunhas em Lisboa quando eram todas de Lamego. 61. Tal veio a suceder no dia 15 de Maio de 2008. 62. Após o que a Ré considerou que, da prova produzida, foram apurados os seguintes factos constantes da Nota de Culpa: 1- Até à presente data não foram entregues à entidade patronal os comprovativos referentes aos pedidos de subsídio anteriores a 2006, pese embora a entidade patronal os tenha solicitado. 2- Apenas a partir de Outubro de 2007 e após interpelação da entidade patronal o trabalhador arguido começou a enviar as folhas semanais de ocupação que antes eram enviadas de forma irregular. 3- A carrinha era utilizada pelo arguido tanto ao serviço da entidade patronal como em proveito próprio, sendo apenas em meados de 2008 que a mesma foi imobilizada por iniciativa da entidade patronal em virtude de não ter o selo nem a inspecção em dia. 4- O dispêndio de gasóleo e quilómetros percorridos com a carrinha era excessivo principalmente nos meses em que não havia trabalhadores eventuais contratados para trabalhar na quinta. 5- A criação não autorizada de animais e legumes na quinta por parte do arguido destina-se apenas a consumo próprio e não para venda a terceiros. 6- No ano de 2007, a quebra acentuada de produção de uva foi generalizada na região. 7- Pese embora o mau ano agrícola, em 2007, o arguido manteve inalterados os custos com a vindima, não tendo solicitado a entidade patronal o seu assentimento prévio para a contratação de pessoal tendo aquela sido confrontada posteriormente com essa contratação. 8- Nunca a entidade patronal foi avisada previamente por parte do arguido do roubo de pinheiros ocorrido em Dezembro de 2007, tendo apenas tido conhecimento do mesmo através de uma folha semanal de ocupação na qual o arguido referiu estar a guardar o pinhal. 9- O trabalhador nunca participou tal roubo às autoridades policiais da zona. 10- Os garrafões depositados na casa da quinta são propriedade do Sr. CC e servem para trazer água potável para a quinta uma vez que a fonte/nascente da quinta está imprópria desde a construção da ETAR. 63. E com base nos mesmos veio a final a proferir a decisão no processo disciplinar aplicando ao Autor a sanção de "uma semana de suspensão, com perda de retribuição e, ainda, o desconto de cinco anos de antiguidade na empresa". 64. Os alegados comprovativos de pedido de subsídio anteriores a 2006 foram entregues tanto que a Ré os contabiliza na Nota de Culpa. 65. O Autor é um trabalhador exemplar, incansável, disponível dia e noite, sempre com esforço e dedicação no desempenho das suas funções. 66. O Autor trabalha todos os dias. 67. O Autor entrou ao serviço da Ré em 1980, não como caseiro, mas como empregado agrícola, à data a caseira era a mãe do Autor, a Senhora D. BB. 68. Só em 1986, com a aposentação da sua mãe, é que o Autor passou a exercer as funções de caseiro tendo para o efeito sido celebrado o contrato de trabalho junto com a petição inicial e tendo os descontos a partir dessa data sido feitos com referência a essa nova categoria profissional. 69. O Autor foi contratado para prestar mais serviços do que aqueles que alega, designadamente, a guarda da propriedade da Ré, elaboração da folha com o movimento semanal, elaboração do inventário mensal e a preparação de toda a documentação referenciada para a contabilidade. 70. Era assim o Autor quem mensalmente não só processava os próprios salários como elaborava os recibos de vencimento, desde 1986 até finais de 2006. 71. Durante todos esses anos nunca o autor manifestou o seu descontentamento com o seu vencimento nem pediu à Ré qualquer actualização do mesmo. 72. A Ré só foi citada para contestar a acção 2/08.9TTLMG em data posterior àquela em que foi instaurado o processo disciplinar. 73. As testemunhas arroladas pelo Autor no processo disciplinar compareceram na data designada e foram regularmente inquiridas sobre os factos constantes da Nota de Culpa e dos seus depoimentos foram lavrados os respectivos autos que foram a final assinados pelos próprios. 74. Era excessivo o consumo de combustível e de quilómetros percorridos pela carrinha quando confrontado com o serviço que a Quinta exigia e era declarado pelo Autor. 75. Quanto à criação de animais e plantação de legumes na quinta deveria o mesmo ter sido precedido de autorização expressa da entidade patronal conforme previsto na cláusula 7 do contrato de trabalho, a qual nunca foi concedida nem solicitada. 76. Em Setembro de 2008 e Dezembro de 2008, a Ré pagou ao Autor a retribuição base de 426,00, a que deduziu o valor de 29,93, a título de renda de casa. 77. A partir de Janeiro de 2009, a Ré começou a pagar ao Autor € 450,00 aos quais deduziu o valor de € 29,93, a título de renda de casa.
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO. a) Quanto à litispendência, prejudicialidade e apensação de acções: Nas alíneas g) a n) das conclusões do recurso, coloca a Recorrente as questões relativas à litispendência, prejudicialidade e apensação de acções, invocando, no essencial, que deveria o acórdão recorrido ter revogado a sentença de 1.ª instância, julgando procedente por provada a excepção de litispendência alegada pela Recorrente; que deveria o acórdão recorrido reconhecer a existência de uma questão prejudicial da qual dependeria a boa decisão do Proc. n° 317/08.6TTLMG e que a apensação entre processos não poderia ter sido ordenada pelo Tribunal «a quo» e confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto. Como já se deixou admitido no despacho liminar proferido nos autos, o presente recurso é inadmissível relativamente às questões processuais suscitadas, da litispendência, prejudicialidade e apensação de acções, por não se tratar de qualquer uma das matérias admissíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Na verdade, as questões em apreço foram objecto dos agravos, oportunamente, interpostos na 1.ª instância, sendo decididos pelo Tribunal da Relação no sentido da sua improcedência. Não obstante estes recursos terem sido processados como de agravo, o certo é que aplicando-se à acção o regime do Processo Civil, com as alterações introduzidas pelo DL 303/2007, de 24 de Agosto, estando em causa decisões interlocutórias, integráveis na previsão do n.º 3 do art. 691.º não podem ser objecto do recurso de revista, conforme o estabelece o art. 721.º, n.º 5. Aliás, o regime anterior ao do DL 303/2007, de 24 de Agosto, igualmente não facultava o recurso — de agravo na 2.ª instância — relativamente às questões em apreço, como decorria dos n.ºs 2 e 3 do art. 754.º, entretanto revogado. Assim sendo não se conhece das questões suscitadas, por inadmissibilidade da revista nesta parte. b) Quanto às alegadas nulidades do Acórdão Recorrido. Invoca a Recorrente a nulidade do Acórdão, ao abrigo dos arts. 668°, n° 1, al. b) e art. 716° do C.P.C., por falta de fundamentação, porque em seu entender o acórdão se limita à adesão vaga e genérica às decisões proferidas pelo Tribunal de 1.ª Instância, o que não constitui fundamentação especificada da decisão proferida, nem tampouco sua fundamentação sumária, pelo que é o mesmo nulo. Nos termos do art. 668º, n.º 1, al. b) do CPC, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Como refere Teixeira de Sousa, “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (art. 208º, n.º 1, CRP; art. 158º, n.º 1)”. E acrescenta o mesmo autor: “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível” [In “Estudos sobre o Processo Civil”, pg. 221]. Ou, como refere Lebre de Freitas, “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação” [In CPC, pg. 297]. No mesmo sentido diz o Conselheiro Rodrigues Bastos, que “a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença” [in "Notas ao Código de Processo Civil", III, 194]. E como advertia o Professor Alberto dos Reis “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n.º 2.° do art. 668.°” [in "Código de Processo Civil Anotado", V, 140]. Deste modo, face à doutrina exposta, se conclui que a nulidade da sentença não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final. Assim se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação contiver, ainda que por remissão para a decisão recorrida, os elementos de facto e de direito suficientes para a declaração dos fundamentos da decisão final, não há falta de motivação. Ora, analisado o Acórdão recorrido, constata-se que todas as questões, que se colocaram à consideração do tribunal, foram devidamente ponderadas, aduzindo-se, se não uma profícua e exaustiva fundamentação, pelo menos uma fundamentação bastante em face da comedida dificuldade da lide, de modo que a decisão recorrida não pode ser havida por não motivada. Designadamente quanto à questão essencial que se colocava perante o tribunal «ad quem», que era a questão relativa ao abuso do direito, o mesmo pronunciou-se devidamente, ainda que subscrevendo a fundamentação já apresentada na 1.ª instância. E a fundamentação aduzida pelo Tribunal da Relação, ao contrário do que alega a Recorrente, não se configura como uma fundamentação sumária como aquela a que se alude no disposto no n.° 5 do art. 713.° do C.P.C, ou seja, por mera referência para os factos e normas que os subsumam, antes se mostra suficientemente arrazoada, com utilização do silogismo judiciário, onde a conclusão se estriba em premissas explanadas, pelo que se trata de uma fundamentação satisfatória das normas que a exigem, na interpretação que é feita pela doutrina acima citada. Não incorre, pois, a decisão decorrida no vício de falta de fundamentação. Invoca a Recorrente ainda a nulidade do Acórdão, ao abrigo dos arts. 668°, n° 1, al. d) do C.P.C., alegando que o Acórdão ao concluir pela existência do temor reverencial do A. perante a R. conhece de um facto não alegado por nenhuma das partes e muito menos dado como assente, extravasando a matéria assente dos autos e, até, a matéria controvertida, pelo que é o mesmo nulo. Ora, um dos princípios estruturantes do direito processual civil é o princípio do dispositivo, a que alude o artigo 264º, n.º 1, do CPC, segundo o qual “às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções”. E a que também se refere o art. 660º, n.º 2, do mesmo CPC, que diz que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. Conforme este princípio, cabe às partes alegar os factos que integram o direito que pretendem ver salvaguardado, impondo-se ao juiz o dever de fundamentar a sua decisão nesses factos e de resolver todas as questões por aquelas suscitadas, não podendo, por regra, ocupar-se de outras questões. A sentença ficará afectada de nulidade, quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (art. 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC). Mas importa precisar o que deve entender-se por «questões» cujo conhecimento ou não conhecimento integra nulidade por excesso ou falta de pronúncia. Como tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras «questões» de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no art. 668º/1/d) do CPC. Há, assim, que distinguir as verdadeiras questões dos meros “raciocínios, razões, argumentos ou considerações”, invocados pelas partes e de que o tribunal não tenha conhecido ou que o tribunal tenha aduzido sem invocação das partes [Ver Abílio Neto In “Código do Processo Civil”, Anotado, 14.ª ed., pág. 702 e Acórdão da Relação de Lisboa, de 2.07.1969, publicado JR, 15.]. Num caso como no outro não está em causa omissão ou excesso de pronúncia. No que concerne à falta de pronúncia dizia Alberto dos Reis, que «são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão» [In Código de Processo Civil, Anotado, Volume V, pg. 143]. Dentro deste raciocínio do ilustre mestre se poderá acrescentar que quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas partes não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia susceptível de integrar nulidade. Do que se conclui que apenas as questões essenciais, questões que decidem do mérito do pleito ou, convenhamos, de um problema de natureza processual relativo à validade dos pressupostos da instância, é que constituem os temas de que o julgador tem de conhecer, quando colocados pelas partes, ou não deve conhecer na hipótese inversa, sob pena de a sentença incorrer em nulidade por falta de pronúncia ou excesso de pronúncia. Obviamente sempre salvaguardadas as situações onde seja admissível o conhecimento oficioso do tribunal. Por último importa não confundir a nulidade por falta ou excesso de conhecimento com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz não decide acertadamente, por decidir «contra legem» ou contra os factos apurados [vd A. dos Reis, In “Código de Processo Civil”, Anotado, Volume V, pg. 130]. Ora, no caso em apreciação, o tribunal recorrido não conheceu de questão de que não devesse conhecer. Precisamente ao conhecer da questão do abuso do direito, questão suscitada pela Recorrente e de que cabia conhecer, aduziu a argumentação de que na relação laboral se verifica um desequilíbrio entre as partes susceptível de gerar um temor reverencial do Autor para com a entidade empregadora. O que poderia explicar o facto de o Autor nunca antes ter reclamado as actualizações salariais. Não se pretendeu dizer na decisão recorrida que de facto existisse um temor reverencial do Autor para com a entidade empregadora, nem essa matéria estava sequer questionada, invocou-se antes uma eventualidade que decorre das regras da experiência e do comum das situações, que é o de existir, por norma, um certo receio do trabalhador para reclamar no decurso da relação laboral diferenças salariais a que tenha direito. Independentemente da maior ou menor validade desta argumentação, com a qual se pretendia mostrar que não se verificava uma situação de abuso do direito pelo facto de o Autor nunca antes ter reclamado diferenças salariais só agora o vindo a fazer, o certo é que não se está em presença de excesso de pronúncia porque não se acha em causa o conhecimento de questão de que o tribunal não devesse conhecer, mas apenas em face do desenvolvimento de um raciocínio no âmbito da ponderação de determinada questão, no caso a atinente ao abuso do direito. Não se verifica, pois, a nulidade da decisão recorrida por excesso de pronúncia. c) Quanto ao invocado abuso do direito. Nos termos do art. 334º CC "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito". Atento o preceituado neste artigo, o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico. Por isso, os sujeitos de determinada relação jurídica devem agir como pessoas de bem, com correcção e probidade, de modo a contribuírem, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica. Serão excedidos limites impostos pela boa fé, designadamente, quando alguém pretenda fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior, quando tal conduta objectivamente interpretada, de harmonia com a lei, justificava a convicção de que se não faria valer o mesmo direito. Outro tanto se poderá dizer dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta no meio social onde se mostram integradas. Acresce que os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu. Se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, poderá haver abuso do direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante. Para Manuel de Andrade “há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual” [in ” Teoria Geral das Obrigações”, 3.ª ed., pg. 63-64.] De outro ponto de vista, o acto abusivo é, em regra, no pensamento de Vaz Serra, o acto de exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na colectividade social. Só excepcionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede [in “Abuso do Direito", BMJ nº 85, pág. 253, também citado por F. A. Cunha de Sá in “Abuso do Direito”, pg. 127]. Noutra perspectiva, para A. Varela, "para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” [in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 6.ª ed., pág. 516]. Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante [Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, pág. 299]. Na sequência do ensinamento dos ilustres mestres, poder-se-á dizer, em síntese, que existirá abuso do direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado. Como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito poderá mencionar-se, entre outras que aqui não importa considerar, a do “venire contra factum proprium”. Na sua estrutura, o “venire” pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire”), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso do direito. O “venire” tem a sua razão de ser no princípio da confiança enquanto exigência de que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido conduzidas a acreditar na manutenção de determinados comportamentos da comunidade humana, que se encontra organizada na base de relacionamentos estáveis, em que cada um deve ser congruente, não mudando, constante e arbitrariamente, de condutas, mormente que sejam prejudiciais para outrem. A questão que se coloca no caso vertente é a de saber se o Autor ao propor a presente acção contra a Ré actuou com abuso do direito. Alega a Recorrente que resulta da matéria provada que processou os vencimentos do Recorrido e emitiu os respectivos recibos durante mais de vinte anos consecutivamente, sem que aquele nunca reclamasse quaisquer actualizações salariais, nem tampouco demonstrasse descontentamento com o vencimento auferido. A peticionada actualização salarial, volvidos todos estes anos e sem nunca antes ter reclamado fosse o que fosse, constitui manifesto abuso do direito, por exceder os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, sendo, por isso, o pedido formulado pelo A. ilegítimo, devendo, por isso, o mesmo ser julgado improcedente. Ora, está provado que o Autor foi admitido ao serviço da Ré, em Agosto de 1980, para quem trabalha até à presente data, exercendo, ultimamente, as funções de feitor, nos prédios rústicos e urbanos da propriedade da ora Ré e que compõem a denominada Quinta …, em …, Lamego. A Ré não pagou ao Autor até esta data os salários de Janeiro, Fevereiro, Março, subsídio de férias e de Natal do ano de 1987, devendo também ao Autor o subsídio de refeição dos meses de Junho a Dezembro de 2001. O Autor foi contratado para prestar outros serviços, designadamente, a guarda da propriedade da Ré, elaboração da folha com o movimento semanal, elaboração do inventário mensal e a preparação de toda a documentação referenciada para a contabilidade, sendo, assim, o Autor quem mensalmente não só processava os próprios salários como elaborava os recibos de vencimento, desde 1986 até finais de 2006. Durante todos esses anos nunca o autor manifestou o seu descontentamento com o seu vencimento nem pediu à Ré qualquer actualização do mesmo e igualmente nunca reclamou que a Ré lhe devesse quaisquer quantias em virtude do seu salário ser inferior ao salário mínimo nacional. Perante estes factos será de concluir que o Autor actuou com abuso do direito, por só agora vir pedir da Ré quantias a que tinha direito, algumas delas, de há longos anos vencidas? A relação laboral é uma relação de natureza duradoura, que está sujeita ao longo da sua existência a ser questionada quanto ao imperfeito cumprimento pelas partes outorgantes. Mas se constitui tarefa nada dificultosa para a entidade empregadora interpelar o trabalhador, no momento que lhe aprouver, quanto ao defeituoso desempenho da sua função, outro tanto se não verifica por parte do trabalhador, quando o incumprimento se verifica do lado da primeira. Precisamente porque nessa relação não se verifica um equilíbrio de forças quanto à exigência da respectiva contraprestação. O trabalhador representa indubitavelmente a parte mais débil da relação de trabalho porque, por regra, é a que dela mais carece e, por isso, é humano e compreensível que não reclame de direitos que lhe assistam enquanto tenha interesse na manutenção dessa relação e não a queira colocar em risco com a reclamação de contraprestações não satisfeitas, sobretudo através de demanda judicial. Por tal motivo é que os créditos emergentes da relação laboral não prescrevem enquanto o contrato se mantiver em vigor, dando-se oportunidade ao trabalhador [e também ao empregador] de os poder reclamar durante o ano seguinte ao termo do contrato (art. 381.º, n.º do CT). E o facto de o trabalhador vir a exigir do empregador prestações salariais que há longos anos lhe eram devidas, prestações que na altura podia ter exigido, mas que não exigiu, qualquer que tenha sido o motivo — imperfeito conhecimento dos seus direitos, receio de perda do emprego, expectativa de reparação do incumprimento do empregador, etc. — não integra, por princípio, uma actuação com abuso do direito, mas antes um exercício incensurável do mesmo direito. É que a não reclamação na altura própria de direitos que assistam ao trabalhador não comporta o significado, atenta a natureza e posição das partes no contrato, que o mesmo deles tivesse pretendido abdicar, tanto mais tratando-se de direitos indisponíveis, para mais tarde assumir uma conduta antagónica e surpreender o empregador com um pedido inesperado. A relação laboral está concebida na lei em termos de ambas as partes poderem reclamar uma da outra créditos que lhes assistam, quer durante a vigência do contrato quer durante o ano seguinte ao seu termo, enquanto tais créditos se não mostrem prescritos. E, assim sendo, cada uma delas, tem de estar consciente e prevenida para a eventualidade de uma petição reclamadora de direitos, tanto mais nas situações em que não possam ignorar a falta de cumprimento da sua parte, por longínqua que ela já se mostre. E no caso dos autos nem releva que fosse o trabalhador, ora Recorrido, a processar os seus próprios vencimentos, pois que é suposto que o fazia nos termos determinados pela entidade empregadora e não por alvitre próprio. Conclui-se, assim, que o Recorrido ao intentar a presente acção não actuou com abuso do direito.
Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida. IV. DECISÃO: Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se a Revista e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente. [Anexa-se o sumário elaborado nos termos do artigo 713.º, n.º 7, do CPC]
Lisboa, 15 de Dezembro de 2011. Pereira Rodrigues (Relator) Pinto Hespanhol Fernandes da Silva
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