Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
781/11.6TBMTJ.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
INADMISSIBILIDADE
ESCRITURA PÚBLICA
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
INCONSTITUCIONALIDADE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
PRESUNÇÕES LEGAIS
SIMULAÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
OBSCURIDADE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JUÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Doutrina:
- A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed.,1985, 670/672.
- José Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, vol. V, 151.
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra 1983, 214.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol. I, 4.ª ed. Revista e Actualizada, 342.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 344.º, N.º 1, 350.º, 393.º, 394.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC):- ARTIGOS 154.º, 607.º, N.º5, 608.º, N.º2, 615.º, N.º1, AL. B) E C), 662.º, 666.º, 668.º, N.º1, AL. B), 674.º, 682.º, 685.º.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGO 7.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 209.º, N.º1, AL. A), 210.º, N.ºS 1, 3, 4 E 5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 9.12.1987, IN BMJ 372/369.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 561/2014, PUBLICADO NO DR 2ª SÉRIE DE 27.11.2014.
Sumário :
I - O dever de fundamentar as decisões (art. 154.º do NCPC (2013)) impõe-se por razões de ordem substancial – cabe ao juiz demonstrar que, da norma geral e abstracta, soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto – e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão a fim de, podendo, a impugnar.

II - Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.

III - O vício a que se refere a primeira parte da al. c) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC radica na desarmonia lógica entre motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diversa. A obscuridade e a ambiguidade mencionadas na segunda parte desse preceito verificam-se, respectivamente, quando alguma passagem da decisão seja inintelegível ou quando se preste mais do que um sentido.

IV - A apreciação da admissibilidade do recurso à prova testemunhal para determinar as circunstâncias em que ocorreu a intervenção de uma pessoa numa escritura pública (art. 393.º do CC) cabe nos poderes cognitivos do STJ (n.º 2 do art. 674.º do NCPC).

V - Não tendo o resultado da prova testemunhal sido empregue para infirmar o âmago da força probatória plena reconhecida a esse documento – a prestação, pelos outorgantes nesse acto notarial, das declarações consignadas na escritura pública de compra e venda – mas antes para demonstrar a falta de correspondência entre a vontade real e a vontade declarada do comprador para efeitos de ilisão da presunção legal (art. 344.º, n.º 1 e art. 350.º, ambos do CC) derivada do registo predial (e não os requisitos da simulação), inexiste violação do disposto no n.º 2 do art. 393.º daquele diploma.

VI - A interpretação do preceituado do art. 674.º do NCPC segundo a qual, fora dos casos excepcionais expressamente prevenidos no seu n.º 3, cabe apenas ao STJ aplicar aos factos apurados pelas instâncias o pertinente regime legal (de onde, consequentemente, se retira que lhe é vedado apreciar o eventual erro de julgamento cometido pela Relação na alteração da matéria de facto decidida em 1.ª instância), não viola qualquer imperativo constitucional, já que a CRP não garante o acesso das partes a diferentes graus de jurisdição mas somente, no domínio do processo civil, o direito ao recurso (al. a) do n.º 1 do art. 209.º e n.os 1, 3, 4 e 5 do art. 210.º da Lei Fundamental), cabendo ao legislador a concreta conformação do seu regime.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:

A Herança aberta por óbito de AA, representada pelos herdeiros BB, CC, DD, EE, FF, GG, propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra a Herança aberta por óbito de HH, representada pelos herdeiros II, JJ e KK.

Peticionou a autora que:

a) se declarasse que pertence, em exclusivo, à herança aberta por óbito de AA a "Quinta", correspondente aos prédios rústicos inscritos na matriz predial rústica da freguesia de Canha sob os art. 27 e art. 28 da secção AH (que anteriormente eram parte do art. 10 da secção AH da mesma freguesia de Canha) e descritos na Conservatória do Registo Predial do Montijo sob a ficha n.o 008…/… da mesma freguesia de Canha (correspondendo à anterior descrição n.o 21.115 do Livro 6-62).

b) se condenassem os "herdeiros do falecido HH" a reconhecer que aqueles prédios rústicos sempre foram propriedade exclusiva de AA e que actualmente fazem parte da herança aberta por seu óbito;

c) se ordenasse o cancelamento de registos na Conservatória do Registo Predial do Montijo, devendo, em sua substituição, consignar-se a aquisição a favor do falecido AA "ou, e desde já, em comum e sem determinação de parte ou direito em nome de todos os ora AA., por força da sucessão hereditária por morte do falecido AA";

d) e o cancelamento da titularidade fiscal dos prédios rústico a favor do falecido HH e dos seus herdeiros.

Para o efeito, alegou, em síntese, que o falecido AA pretendeu adquirir terreno com recurso ao sistema de poupança-emigrante, que lhe era mais favorável.

Como apenas aquele e o seu filho mais novo podiam ser titulares de conta poupança-emigrante, o falecido HH, com o estatuto de emigrante, disponibilizou-se a assumir formalmente a posição de comprador e peticionário do financiamento, passando procuração ao seu genro CC (ora co-autor), que era, por sua vez, filho do falecido AA.

Apesar de agir formalmente como procurador do sogro (HH), CC actuou ao longo dos anos por conta do seu pai, AA, o qual pagou todos os encargos e exerceu com a sua mulher a posse pública e pacífica, cultivando a terra, por si ou através de empregados, tal como posteriormente os herdeiros o fizeram, até que, após a morte de HH, o seu filho KK pôs em causa que o AA fosse o único e exclusivo dono da Quinta.


Apenas KK apresentou contestação.

Alegou existir uso anormal do processo, porquanto alguns dos herdeiros de AA são igualmente herdeiros de HH. Mais alegou que a propriedade registada em nome do falecido HH foi comprada e paga exclusivamente pelo próprio.

Concluiu pela improcedência da acção e deduziu incidente de verificação da causa.


Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus dos pedidos contra si formulados.

Desta sentença apelou a autora.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 17 de Dezembro de 2015, julgou a apelação procedente e revogou aquela sentença, julgando a acção procedente nos seguintes termos:

« declara-se que pertence, em exclusivo à herança aberta por óbito do Sr. AA, a "Quinta", correspondente aos prédios rústicos inscritos na matriz predial rústica da freguesia de Canha sob os art. 27 e art. 28 da secção AH (que anteriormente eram parte do art. 10 da secção AH da mesma freguesia de Canha) e descritos na Conservatória do Registo Predial do Montijo sob a ficha nº. 008…/… da mesma freguesia de Canha (correspondendo à anterior descrição nº. 21.115 do Livro 6-62).

- condenam-se os "herdeiros do falecido HH" a reconhecer que aqueles prédios rústicos sempre foram propriedade exclusiva do Sr. AA e que actualmente fazem parte da herança aberta por seu óbito;

- Ordena[r]-se o cancelamento do registo na Conservatória do Registo Predial do Montijo».


Inconformado, recorreu KK para este Supremo Tribunal de Justiça.

Na sua alegação de recurso aduziu a seguinte síntese conclusiva:

«A. A não aceitação da (fantasiosa) tese da simulação, invocada pelos AA., deixou sem justificação nem explicação a desconsideração da escritura aquisitiva celebrada em 17.12.1984 a favor de HH, e o afastamento da presunção registral de que beneficiava este (como autor da sucessão que legitima o R. ora recorrente).

B. Tendo em conta que a questão suscitada pelos RR., só nasceu quando estes acederam à herança de AA e interpuseram acção contra os herdeiros de HH, nunca tendo essa questão sido contenciosa na vida dos dois, segue-se que ou a escritura aquisitiva (e a presunção registral) da propriedade deste último eram verdadeiras (como alegam os RR., e a 1.a instância reconheceu) - ou eram falsas (e só se podiam explicar por simulação - como pretendiam os AA.).

C. A decisão ora recorrida logrou, porém, recusar ambas as coisas: ignorando totalmente a escritura de aquisição a seu favor, considerou falsa a presunção registral de que beneficiava HH, ao mesmo tempo que considerou que a simulação que poderia explicar a inscrição da propriedade em seu nome não tinha sido invocada/não era relevante.

D. Acabou, assim:

 a. por desconsiderar o conteúdo de um documento autêntico, com base em prova testemunhal, em violação do disposto no artigo 393.° do CC ("Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunha)

 b. por afastar a presunção da propriedade conferida pelo registo, com base em coisa nenhuma.

E. O que veio a calhar para não ter de enfrentar as dificuldades que adviriam de ter de provar a simulação sem recurso à prova testemunhal (proibida entre simuladores - ou seus sucessores - pelo disposto no n.º 2 do artigo 394.° do CC), uma vez que, a ter existido simulação, os simuladores eram o "aparente adquirente" HH (de quem os RR. são herdeiros) e o "oculto adquirente" AA (de quem os AA. são herdeiros).

F. Quer dizer que a recusa de aceitar a simulação invocada pelos AA. foi instrumental para lhes dar razão, mesmo que à custa de uma total omissão de justificação da recusa em dar relevo a um documento autêntico (a escritura pública de aquisição a favor de HH) e à presunção de titularidade do direito decorrente do registo.

G. Perante estas deficiências e omissões o acórdão recorrido padece pelo menos de uma das nulidades previstas no artigo 615.°, n.º 1 - seja a da alínea c) seja a da alínea b) - aplicáveis por força do disposto no n.º 1 do artigo 666.° do CPC.

H. Tendo havido alteração (e muito substancial) da matéria de facto na 2.a instância (na medida em que o que foi considerado provado foi o oposto do que antes tinha sido), a restrição dos fundamentos do recurso de revista (fixados nos n.ºs 1 e 3 do artigo 674.° do CPC), redundam na inconstitucionalidade destas normas desde logo por violação do princípio da igualdade: no caso concreto foi possível aos AA. obter a reapreciação da matéria de facto fixada na 1ª instância, ao passo que não é possível ao ora recorrente obter a reapreciação da matéria de facto fixada na 2ª instância.

Termos em que, e nos mais de Direito, deve a decisão recorrida ser revogada, retomando-se, por justa e adequada, a proferida na 1ª instância».


Contra-alegou a autora, pugnando pela manutenção do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

Na sequência da decisão do Tribunal da Relação relativa à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mostra-se consolidada a seguinte facticidade:

1. Conforme apresentação 10 de 29.08.1984, encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial do Montijo a favor de HH, casado com II, a aquisição do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Montijo, sob o nº 8..., de 25.01.2002 e inscrito na matriz sob o nº 27, Secção AH e nº 28, Secção AH (que anteriormente eram parte da descrição nº 21.115 do livro B-62), composto de parcela A com 23.766, m2, que confronta a norte com vários, a sul com AA, a nascente com a Auto-estrada A-13 e a poente com caminho municipal; parcela B com 54.070 m2, que confronta a norte com vários, a sul com AA, a nascente com LL e poente com a Auto-estrada A-13, conforme certidão de fls. 280-284.

2. Foram desanexados da área que o prédio tinha inicialmente 10.164 m2 para domínio público por expropriação, sendo paga a CC, na qualidade de procurador de HH, casado com II, a quantia de € 39.886,37.

3. A fls. 22-25 encontra-se cópia de escritura de compra e venda datada de 17.12.1984, na qual CC declarou comprar, na qualidade de procurador de HH, casado com II, ao primeiro outorgante, pelo preço de Esc.: 1.500.000$00, o prédio rústico com a área de 80.008 m2, situado em …, freguesia de Canha, descrito sob o nº. 21115, do livro B-62, da Conservatória do Registo Predial do Montijo, inscrito na matriz da referida freguesia sob parte do artigo rústico nº 10, secção AH (hoje inscrito na matriz sob o nº 27, Secção AH e nº 28, Secção AH). Mais declararam ser a aquisição feita ao abrigo do sistema Poupança-Crédito.

4. A fls. 26-30 encontra-se cópia de título particular de empréstimo hipotecário com amortização, no qual HH, casado com II, representados por CC, se constituíram devedores ao Crédito Predial Português da quantia de Esc.: 1.000.000$00, que dele receberam de empréstimo para a aquisição do prédio identificado, hipotecado, e que se obrigaram a pagar no prazo de 12 anos.

5. A fls. 18-21 encontra-se cópia de escritura de compra e venda datada de 17.12.1984, na qual DD declarou comprar ao primeiro outorgante, pelo preço de Esc.: 450.000$00, o prédio rústico com a área 245.000 m2, situado em …, freguesia de Canha, descrito sob o nº 21116, do livro B-62, da Conservatória do Registo Predial do Montijo, inscrito na matriz da referida freguesia sob parte o artigo rústico nº. 10, secção AH. Mais declararam ser a aquisição feita ao abrigo do sistema Poupança-Crédito.

6. A fls. 31-35 encontra-se cópia de escritura de compra e venda datada de 17.12.1984, na qual AA, casado com BB, representados por CC, declarou comprar ao primeiro outorgante, pelo preço de Esc.: 450.000$00, o prédio rústico com a área de 241.300 m2, situado em …, freguesia de Canha, composto de parte urbana e inscrito na matriz sob o artigo nº. 610 e parte rústica inscrita na matriz sob parte do artigo rústico nº. 10, secção AH. Mais declararam que aquisição é feita ao abrigo do sistema Poupança-Crédito.

7. O falecido AA e a mulher começaram a exploração do terreno registado a favor de HH, desde a sua compra, cultivando a terra, por si ou através de empregados a quem pagavam, semeando, plantando e colhendo os frutos.

8. Posteriormente, também os herdeiros do AA o fizeram.

9. O HH deslocava-se à quinta em algumas épocas festivas.

10. Apesar de ter agido formalmente como procurador do sogro (HH), o Engenheiro CC agiu ao longo dos anos por conta do seu pai AA (Ponto 13)

11. O HH não gastou dinheiro com a compra, financiamento do terreno e obras de beneficiação (Ponto 15).

12. Foi o falecido AA que custeou todas as despesas atinentes ao terreno, nomeadamente, contribuições fiscais, e prestações à segurança social das pessoas que trabalhavam no terreno (Ponto 16).

13. E, posteriormente à sua morte, passaram os herdeiros a custear todas estas despesas (Ponto 16-A).

14. Os factos descritos em 7 e 8 foram exercidos de forma pública, pacífica, e à vista de toda a gente (Ponto 21).


De direito:

Vistas as conclusões da alegação de recurso, as quais delimitam o seu objecto, salvo questão de conhecimento oficioso, delas emergem como questões essenciais a dilucidar saber:

- se o acórdão recorrido é nulo nos termos do disposto no artigo 615° n.º 1 alíneas b) e c) do Código de Processo Civil;

- se foi admitida prova testemunhal em violação do estabelecido no artigo 393º nº 2 do Código de Processo Civil;

- se, tendo havido alteração da matéria de facto na 2ª instância, a restrição dos fundamentos do recurso de revista fixados nos n.ºs 1 e 3 do artigo 674° do Código de Processo Civil redundam na inconstitucionalidade destas normas por violação do princípio da igualdade.


1. Sustenta o recorrente que o acórdão recorrido, ignorando totalmente a escritura de aquisição a favor de seu pai, HH, afastou a presunção registral de que beneficiava, ao mesmo tempo que considerou que a simulação, que poderia explicar a inscrição da propriedade em seu nome, não tinha sido invocada ou era irrelevante, acabando por desconsiderar o conteúdo de um documento autêntico com base em prova testemunhal, em violação do disposto no artigo 393° do Código Civil, e por afastar a presunção da propriedade conferida pelo registo.

Alega ainda que a recusa em aceitar a simulação invocada pelos autores foi instrumental para lhes dar razão, mesmo que à custa de uma total omissão de justificação da recusa em dar relevo a um documento autêntico (a escritura pública de aquisição a favor de HH) e à presunção de titularidade do direito decorrente do registo.

Deficiências e omissões que, em seu entender, configuram a invocada nulidade do acórdão sob impugnação.

As causas de nulidade tipificadas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 615º, aplicável por força do disposto nos artigos 685º e 666º, todos do Código de Processo Civil, ocorrem quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão (al. b)) ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (c)).

O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154º do Código de Processo Civil e impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento ou fundamentos (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 9.12.1987, in BMJ 372/369).

Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 668º citado, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, p.670/672), ao escreverem “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Só a total omissão dos fundamentos, a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada.

In casu, o douto acórdão recorrido mostra-se devidamente fundamentado, apresentando, no que agora releva, a descrição fáctica considerada pertinente e a correspondente subsunção jurídica. Nele foram discriminados e analisados criticamente os factos considerados provados no âmbito do julgamento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e proficientemente integrados juridicamente no instituto da usucapião, dando-se rigoroso cumprimento ao comando legal inserto nos artigos 662º, 607º nº 5 e 608º nº 2 do Código de Processo Civil.

O acerto ou desacerto da respectiva decisão é questão diversa, que não cabe no campo dos vícios geradores de nulidade, mas no domínio do eventual erro de julgamento.

Não ocorre, por conseguinte, a invocada causa de nulidade previstas na al. b) do nº 1 do citado artigo 615º.

No tocante à causa de nulidade prevista na c) do nº 1 do mesmo preceito, vem-se entendendo, sem controvérsia, que a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão. Radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso.

Por sua vez, verifica-se obscuridade quando a sentença ou acórdão contenham “algum passo cujo sentido seja ininteligível” ou do qual não possa apreender-se o seu sentido exacto, enquanto a ambiguidade ocorre quando “alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos” (cfr. Prof. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 151).

Tecidas estas breves considerações e volvendo ao caso em análise, verifica-se que o recorrente não caracterizou qualquer situação evidenciadora da invocada contradição entre os fundamentos e a decisão insertos no acórdão recorrido, o qual está estruturado numa linha de argumentação – factual e jurídica – lógica, emergindo a decisão como a consequência natural e plausível dos fundamentos em que se alicerça.

Não se vislumbram, igualmente, as apontadas obscuridade e ambiguidade, sendo perfeitamente apreensíveis e claros quer o sentido da fundamentação, quer do segmento decisório do acórdão recorrido, os quais não se prestam a interpretações dúbias.

Inverificadas estão, por conseguinte, as causas de nulidade que o recorrente pretende assacar ao acórdão recorrido.


2. A questão verdadeiramente essencial no presente recurso, suscitada a coberto dos vícios imputados ao acórdão recorrido, prende-se com a admissibilidade ou não da prova testemunhal no tocante à materialidade alegada na petição inicial relativa às circunstâncias que determinaram a intervenção de HH como comprador na escritura pública de compra e venda.

No caso sub judice, estamos perante uma acção de reivindicação relativa a um terreno, correspondente aos prédios rústicos inscritos na matriz predial rústica da freguesia de Canha sob os artigos 27 e 28 da secção AH (que anteriormente eram parte do artigo 10 da secção AH da mesma freguesia de Canha) e descritos na Conservatória do Registo Predial do Montijo sob a ficha n.o 008…/… da mesma freguesia de Canha (correspondendo à anterior descrição n.o 21.115 do Livro 6-62).

A causa petendi na acção de reivindicação de propriedade, ou seja, o facto jurídico de que deriva aquele direito consubstancia-se no título invocado como aquisitivo da propriedade. Funda-se no concreto acto ou facto jurídico alegado para justificar a aquisição desse direito, sendo que na presente acção a causa de pedir, ou seja, o título invocado como aquisitivo da propriedade é a usucapião.

A alegação da facticidade que rodeou e precedeu a celebração da escritura de compra e venda do aludido terreno, na qual figura como comprador o falecido HH, pai do ora recorrente, não teve em vista alcançar a declaração de simulação do negócio com a inerente declaração de nulidade, nos termos do disposto no artigo 240º do Código Civil, mas ilidir a presunção de propriedade a seu favor derivada do registo realizado com base na aquisição titulada nesse documento, em conformidade com o disposto no artigo 7º do Código do Registo Predial.

Daí que o recorrente tivesse vindo invocar a violação do disposto no artigo 393º, e não do artigo 394º, ambos do Código Civil.

A discordância do recorrente não radica no seu inconformismo face ao modo como os depoimentos testemunhais prestados em audiência foram livremente valorados pela Relação ao conhecer da impugnação da decisão fáctica, ao abrigo do estatuído no artigo 662º do Código de Processo Civil. Antes assenta na violação da proibição legal do uso da prova testemunhal para aferir da facticidade relativa ao circunstancialismo que envolveu a outorga da escritura pública de compra e venda do aludido terreno pelo pai do recorrente na veste de comprador.

O que está na origem da dissidência do recorrente não é o juízo de facto formulado quanto à materialidade em questão, não é um eventual erro de julgamento no âmbito da livre apreciação da prova testemunhal pelo julgador, mas a inadmissibilidade legal de produção de prova testemunhal decorrente do disposto no artigo 393º nº 2 do Código Civil, que, a verificar-se, conduziria à desconsideração, designadamente, dos seguintes factos:

10. Apesar de ter agido formalmente como procurador do sogro (HH), o Engenheiro CC agiu ao longo dos anos por conta do seu pai AA (Ponto 13)

11. O HH não gastou dinheiro com a compra, financiamento do terreno e obras de beneficiação (Ponto 15).

Colocada nestes termos a questão, cai no âmbito dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no artigo 674º nº 2 do Código Civil.

Reza assim o artigo 393º do Código Civil:

«1. Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.

2. Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.

3. As regras dos números anteriores não são aplicáveis à simples interpretação do contexto do documento».

Sobre a inadmissibilidade da prova testemunhal consagrada neste normativo escreveram Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed. Revista e Actualizada, pág. 342) ser necessário interpretar nos seus justos termos a doutrina do nº 2, cingindo-a aos factos cobertos pela força probatória plena do documento, nada impedindo o recurso à prova testemunhal para demonstrar a falta ou vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada.    

Também Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Coimbra 1983, pág. 214) escreveu que os documentos autênticos só fazem prova plena na parte em que contêm quaisquer atestações do notário relativamente a acções ou percepções suas, isto é, a actos por ele mesmo praticados ou a factos – ou palavras – por ele mesmo presenciados (propius sensibus visu et auditu).

A prova testemunhal a que se refere o recorrente não visou infirmar o que foi directamente percepcionado pelo notário no exercício das suas funções, ou seja, que pelos outorgantes foram prestadas as declarações consignadas na escritura pública de compra e venda, as quais estão cobertas pela prova plena de que este documento está dotado, mas demonstrar a falta de correspondência entre o que foi declarado naquele acto notarial pelo comprador HH, de quem o recorrente é herdeiro, e a sua vontade real, dessa forma ilidindo a presunção registral decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial.

Perante a presunção legal de que o direito de propriedade existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define, sobre a parte contrária recai o ónus probatório de afastar essa presunção, alegando e provando os factos susceptíveis de demonstrar que a aquisição registada não tem correspondência com a realidade (artigos 350º e 344º nº 1 do Código Civil).

Em face dos contornos do presente litígio, a autora não se propunha provar a simulação. A prova da desconformidade entre a vontade real e a vontade expressa pelo comprador V... no acto notarial – escritura de compra e venda – com a finalidade de afastar a aludida presunção legal é passível de ser realizada através de testemunhas, sem que tal envolva violação do comando legal inserto no artigo 393º nº 2 do Código Civil. Tem de admitir-se numa tal situação prova testemunhal.

3. Alegou ainda o recorrente que, tendo ocorrido alteração «(e muito substancial)» da matéria de facto no Tribunal da Relação, a restrição dos fundamentos do recurso de revista estabelecida nos n.ºs 1 e 3 do artigo 674.° do Código de Processo Civil redunda na inconstitucionalidade destas normas por violação do princípio da igualdade, posto que, no caso concreto, foi possível à autora herança indivisa aberta por óbito de AA alcançar a reapreciação da matéria de facto fixada na 1ª instância, ao passo que não é possível ao ora recorrente obter a reapreciação da matéria de facto fixada na 2ª instância.

À luz do disposto no artigo 682º do Código de Processo Civil cabe ao Supremo Tribunal de Justiça aplicar em definitivo o adequado regime jurídico aos factos materiais fixados pela Relação, não podendo interferir na decisão proferida por esta quanto à matéria de facto, a qual não pode ser alterada a não ser no caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674.º (nºs 1 e 2)

Estabelece, por sua vez, este preceito que: “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

O que significa que a apreciação do Tribunal da Relação sobre a decisão da matéria de facto, no âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 662º do Código de Processo Civil, apenas nos casos excepcionais contemplados no citado nº 3 do artigo 674º pode ser submetida à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça e o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo “entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito” (nºs. 2 e 3 do artigo 682.º do referido código).

Está, assim, vedado a este Supremo Tribunal pronunciar-se sobre a problemática do erro sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo Tribunal da Relação em sede de apreciação de impugnação da decisão sobre a matéria de facto proferida pela 1ª instância, o mesmo sucedendo ainda que se pronuncie pela primeira vez sobre a mesma.

Por princípio, cabe ao Tribunal da Relação sindicar a fixação da matéria de facto como última instância.

Esta interpretação normativa do regime recursório, mormente do estabelecido no citado artigo 674º nºs 1 e 3, não viola qualquer imperativo constitucional.

O Tribunal Constitucional vem decidindo de forma consistente não se impor ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não existindo na nossa Lei Fundamental qualquer norma expressa relativamente ao aos recursos no direito processual civil, da qual apenas decorre a consagração do direito ao recurso, que se extrai da previsão dos seus artigos 209º nº 1 alínea a) e 210º nºs 1, 3, 4 e 5, deixando ao legislador ordinário a conformação do regime recursório.

Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 561/2014, publicado no DR 2ª série de 27.11.2014, o qual, conhecendo questão idêntica à que agora se aprecia, observou que a solução legal contida no preceito em causa «não viola o direito de acesso aos tribunais, não se vislumbrando também que viole qualquer directriz do direito a um processo equitativo, não fazendo qualquer sentido a convocação dos princípios da igualdade e da intangibilidade do caso julgado na fiscalização da constitucionalidade da norma sub iuditio».

Consequentemente, não julgou inconstitucional a norma constante dos artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, na interpretação de que é proibida a reapreciação da prova gravada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos casos em que a decisão da Relação incide sobre matéria fáctica nova contra a qual o Recorrente não pôde produzir prova, doutrina que acolhemos por nos merecer inteira concordância.

III. Decisão:

Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista e confirmar o douto acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 2 de Junho de 2016


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Pires da Rosa