Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:041/14.0BECTB 01177/17
Data do Acordão:11/28/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
IVA
ELEMENTO SUBJECTIVO
Sumário:I - Na actual redacção da alínea a) do n.º 5 do art. 114.º do RGIT (introduzida pelo art. 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro e que, nos termos do art. 174.º da mesma Lei, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009), da qual decorre que deixou de ser elemento constitutivo do tipo legal de contra-ordenação aí prevista que o arguido tenha recebido o IVA em questão, a não indicação dessa circunstância ou da dedução do imposto nos termos legais, no auto de notícia ou na decisão de aplicação de coima, não integra nulidade insuprível de tal decisão.
II - A referência feita na decisão administrativa de aplicação de coima a que a contra-ordenação foi praticada com negligência (ainda que não na descrição sumária dos factos, mas na graduação da medida da coima) deve ter-se como bastante para que se considere respeitada a referência ao elemento subjectivo da infracção.
III - Nos casos em que se prevêem tipos legais de infracção cometida com dolo e com negligência preenchidos pela mesma materialidade, a descrição factual terá implícita uma afirmação da existência de culpa, que, na falta de referência explícita ao dolo, se deverá entender ser a negligência, como forma mínima de imputação subjectiva de uma conduta a uma actuação.
Nº Convencional:JSTA000P23901
Nº do Documento:SA220181128041/14
Data de Entrada:10/26/2017
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da decisão proferida no processo de contra-ordenação com o n.º 41/14.0BECTB

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada (adiante Arguida ou Recorrente) interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão por que a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco julgou improcedente o recurso judicial por ela interposto da decisão administrativa que lhe aplicou uma coima em processo de contra-ordenação tributária.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso apresentou as alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«I. Da sentença sob recurso, não se vislumbra a imputação à arguida de qualquer comportamento, doloso ou negligente;

II. Não basta, para sustentar a acusação, mencionar a violação de determinado preceito legal por parte da arguida;

III. É necessário invocar factos concretos, que permitam aferir da conduta culposa do agente na violação da lei;

IV. Não está preenchido o elemento subjectivo do tipo de infracção de que a arguida vem acusada;

V. O que faz precludir a punibilidade do facto;

VI. É uma decorrência do princípio da culpa;

VII. Consagrado no RGIT, no seu art. 2.º n.º 1;

VIII. Não há pena sem culpa;

IX. A pena é a medida da culpa, nos termos do art. 27.º n.º 1 do mesmo regime;

X. Este princípio, tem também consagração constitucional, no art. 1.º e 25.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP);

XI. A arguida não pode ser condenada, com base numa presunção, atenta a aplicação subsidiária das regras penais;

XII. Também o art. 32.º do RGCO por remissão da alínea b) do art. 3.º do RGIT manda aplicar subsidiariamente o Código Penal (CP);

XIII. O que exige o preenchimento dos requisitos que possibilitam a imputação à arguida da infracção em causa;

XIV. Nada na lei prevê a imputação, de forma directa e objectiva, deste tipo de infracções, ao sujeito passivo;

XV. Por outro lado a decisão que aplica a coima além da identificação do infractor tem que conter a descrição sumária dos factos e indicações das normas violadas e punitivas, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT;

XVI. Não consta da descrição, ainda que sumária dos factos, e por referência ao texto que aplicou a coima, qualquer referência à diferença do imposto suportado e a entregar à Administração Tributária;

XVII. O que salvo melhor opinião afasta desde logo a possibilidade de preenchimento da hipótese vertida no n.º 2 do art. 114.º do RGIT com referência à conduta típica prevista no n.º 1 do citado preceito legal;

XVIII. Sempre com o devido respeito, se outro fundamento não existisse, bastaria a citada omissão para gerar a invocada nulidade;

XIX. Veja-se quanto a este ponto em concreto a doutrina emanada do arresto da 2.ª Secção do STA de 23.11.2011 no proc. n.º 855/11, que teve como relator o Conselheiro Pedro Delgado;

XX. Ou ainda a mesma doutrina emanada do arresto da 2.ª Secção do STA de 08.07.2009 no proc. n.º 0268/09, que teve como relatora a Conselheira Isabel Marques da Silva;

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consonância revogada a decisão recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA».

1.3 O recurso foi admitido, para subir imediatamente nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

1.4 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:

«A questão que resulta para apreciação é relativa à nulidade da decisão de aplicação da coima por falta de descrição sumária dos factos, nos termos do disposto no art. 79.º n.º 1 al. b) do R.G.I.T.
No auto de notícia a infracção mostra-se descrita por referência a n.ºs constantes de modelo de declaração periódica de IVA e a falta de entrega é ainda considerada quanto ao imposto “exigível”.
Foi proferida decisão condenatória pela autoridade tributária por contra-ordenação fiscal p. e p. pelos artigos 27.º n.º 1 e 41.º n.º 1 al. b) do C.I.V.A. e 114.º n.º 2 e 5 al. a) e 26.º n.º 4 do R.G.I.T.
Na sentença recorrida decidiu-se pelo preenchimento da dita descrição com fundamento na imputação efectuada, segundo a percepção da destinatária, bem como ainda em não ser necessário constar a diferença entre o imposto suportado e a entregar à A.T.
Vai-se acrescentar o seguinte:
A imputação efectuada pelo dito art. 114.º n.º 2, não basta para imputar a contra-ordenação a título de “negligência”, pois tal é de relacionar com os factos constantes da dita contra-ordenação entre os quais o acima referido imposto.
Aliás, a recorrente levantou a questão de não recebimento das quantias liquidadas para justificar a não entrega das mesmas.
Assim sendo, não basta para a decisão a proferir que no tipo legal se encontrasse abrangida “a falta de entrega de imposto liquidado ou que devesse ter sido liquidado em factura ou documento equivalente” conforme aditamento efectuado ao n.º 5 do dito art. 114.º pela Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, e ainda que tal fosse aplicável à data dos factos.
Em face do que se encontrava previsto antes dessa alteração, vários acórdãos do S.T.A. se pronunciaram no sentido de ser de proceder à especificação quanto ao elemento subjectivo, bem como ainda à dita diferença entre o imposto suportado e a entregar à A.T. – para além do acórdão do S.T.A. citado no recurso interposto, os proferidos a 22-3-11, 11-5-11, 18-1-12 e 26-9-12, respectivamente, nos processos n.º 01037/10 (com um voto de vencido), 0209/11, 0801/11, e 0729/12.
E se tal foi abandonado posteriormente, tal como foi decidido em vários outros acórdãos – para além do acórdão citado na sentença recorrida, os de 3-2-2016, 30-11- 2016 e 25-1-2017 proferidos nos processos n.º 753/15, 1290/15 e 881/16 –, não será tal solução, no caso, a adequada.
Merecendo tal acolhimento, o recurso é de proceder, sendo de revogar o decidido e julgar nula a decisão de aplicação de coima que foi proferida, bem como mandar devolver os autos ao serviço de finanças de Sousel, atento o previsto na parte final do art. 53.º n.º 3 do R.G.I.T. Concluindo:
A “descrição sumária dos factos” prevista no art. 79.º n.º 1 al. b) do R.G.I.T. não se basta, no caso, e no que respeita a “negligência” bem como quanto à “não entrega do imposto” com as referências que foram ainda efectuadas quanto aos n.º 2 e 5 al. a) do art. 114.º do dito R.G.I.T.».

1.6 Com dispensa de vistos, cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco efectuou o julgamento da matéria de factos nos seguintes termos (Permitimo-nos corrigir a alineação dos factos (os dois primeiros factos foram sujeitos à alínea a), lapso que se repercutiu nos seguintes). ):

«a) A 25/07/2013, foi levantado auto de notícia, sendo em consequência instaurado o processo de contra-ordenação fiscal com o n.º 1740201306001858, contra a arguida A……….., Lda., por falta de pagamento do imposto, respeitante ao período 2013/03T, o que corresponde a infracção ao disposto no n.º 1 do artigo 27.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 41.º, ambos do CIVA, punida pelo artigo 26.º, n.º 4 e artigo 114.º, n.º 2 e n.º 5 alínea a), do RGIT (cfr. fls. 5 e 6 dos autos);

b) A 25/07/2013, foi emitido ofício de notificação dirigido à arguida para apresentação de defesa ou efectuar o pagamento antecipado das coimas ao abrigo do artigo 70.º do RGIT, no processo de contra-ordenação a que se refere a alínea anterior do probatório (cfr. fls. 7 dos autos);

c) A 06/09/2013, a arguida apresentou defesa, no processo de contra-ordenação supra referido (cfr. fls. 9 e segs. dos autos);

d) A 11/12/2013, foi proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças de Sousel decisão de aplicação de coima à arguida, pela prática de infracção ao disposto no n.º 1 do artigo 27.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º, ambos do CIVA, punida pelo artigo 26.º n.º 4 e n.º 2 e n.º 5, alínea a) do artigo 114.º, do RGIT na qual pode ler-se o seguinte (cfr. fls. 19 e 20 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido):
“A arguida A……………, Lda. com o NIPC ……………., com sede na …………….., ……….., em Sousel, responde nos autos por falta de entrega, simultaneamente com a declaração periódica do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) respeitante ao período 2013/03T, do valor de € 4.984,94 daquele imposto, infringindo assim o disposto no n.º 1 do art. 27.º e na alínea a) do n.º 1 do art. 41.º do Código do IVA.
Resulta dos autos, nomeadamente das diligências adicionais levadas a cabo, que a conduta descrita terá sido apenas negligente.
Tal comportamento ilícito está previsto nos n.ºs 1 e 2 e na alínea a) do n.º 5 do art. 114.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), e no n.º 4 do art. 26.º do mesmo diploma legal.
O processo tem por base um auto de notícia levantado nos termos do art. 57.º do RGIT, pelo que, nos termos do n.º 2 do art. 69.º do mesmo diploma legal está dispensada a investigação e instrução.
A arguida foi validamente notificada em 2013-09-02, de conformidade com o disposto no art. 70.º do mesmo Código para no prazo de 10 dias apresentar defesa […] vindo a apresentá-la por escrito, no dia 2013-09-09 por e-mail do mesmo dia com o registo de entrada n.º 2013E002779679.
Alega a arguida não ter recebido dos clientes o valor apurado e liquidado na declaração periódica respectiva antes mencionada e que o art. 114.º, n.º 1 do RGIT, que pune como contra-ordenação fiscal “a falta da entrega da prestação tributária” não abrange na sua previsão situações em que o imposto que deve ser entregue não está em poder do sujeito passivo por não ter sido recebido ou retido. Requer igualmente a produção de prova testemunhal, oferecendo duas.
Importa, portanto, saber se para o preenchimento típico da infracção normativa que é imputada à arguida e constante do n.º 1 do art. 114.º do RGIT se torna ou não essencial o apuramento do efectivo recebimento do montante desse IVA efectivamente, da descrição dos factos que são imputados à arguida não consta que esta tenha efectivamente recebido o valor do IVA em causa facturado.
Com efeito, antes da actual redacção do n.º 5 do art. 114.º do RCIT, dada pelo art. 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, era pacificamente aceite que apenas era sancionável como contra-ordenação o comportamento de quem tinha obrigação de liquidar na sequência do recebimento da quantia de imposto em falta. No entanto, com a nova redacção daquele normativo legal dada, como referido, pelo art. 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, tal vazio legal foi colmatado ao incluir-se na mesma a previsão da “falta de entrega, total ou parcial, ao credor tributário do imposto devido que tenha sido liquidado em factura ou documento equivalente …”, ficando assim prejudicado o conhecimento da questão de saber se o valor do IVA liquidado no período em apreço foi efectivamente recebido pela arguida.
A responsabilidade própria da arguida em relação à contra-ordenação deriva do art. 7.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, aplicável por força do art. 3.º do RGTI concluindo-se dos autos a prática, pela arguida e como autora material, da contra-ordenação supra identificada.
Em abstracto, a medida da coima aplicável ao arguido em relação à contra-ordenação praticada tem como limite mínimo o valor de € 1.495,48 e limite máximo o montante de € 4.984,94.
Para fixação da coima em concreto deve ter-se em conta a gravidade efectiva e subjectiva da contra-ordenação praticada; para tanto importa ter presente e considerar o seguinte quadro (art. 27.º do RGIT):
Actos de ocultação Não
Bem económico € 4.984,94
Frequência da prática Acidental
Negligência Simples
Obrigação de não cometer a infracção Não
Situação económica e financeira Normal
apresentou nos últimos três anos (2010, 2011 e 2012) os lucros tributáveis de € 17.127,47, € 30.304,89 e € 14.096,24, respectivamente
Tempo decorrido desde a prática da infracção <3 meses
Nestes termos, de acordo com o disposto no art. 79.º do RGIT, e no uso da competência conferida pelo art. 52.º do deste atendendo ao que determina o art. 27.º do mesmo diploma legal, isto é, vista a gravidade do facto, a culpa do agente, a sua situação económica e o benefício retirado da prática da contra-ordenação, aplico a coima de € 1.495,48 cominada no termos dos n.ºs 1, 2 e 5, al. a) do art. 114.º e do art. 26.º do RGIT com respeito pelos limites do art. 26.º do mesmo diploma, sendo ainda devidas custas nos termos do n.º 2 do Decreto-Lei n.º 29/98, de 11 de Fevereiro, no valor de € 76,50.
Notifique-se o arguido da presente decisão […]”

e) A 13/12/2013, o mandatário da arguida foi notificado da decisão de aplicação de coima a que se reporta a alínea anterior do probatório (cfr. fls. 21 e 2 dos autos);

f) A 14/01/2014, foi enviado ao serviço de finanças de Sousel o presente recurso de impugnação judicial da decisão de aplicação de coima (cfr. fls. 23 dos autos)».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

Na sequência da notificação de que lhe fora aplicada uma coima pela prática de um ilícito contra-ordenacional de natureza tributária prevista pelos arts. 27.º, n.º 1 e 41.º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA) e punida pelos arts. 114.º, n.ºs 2 e 5, alínea a), e 26.º, n.º 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) – apresentação dentro do prazo da declaração periódica de IVA respeitante ao primeiro trimestre de 2013 desacompanhada de meio de pagamento do imposto exigível, do montante de € 4.984,94, sendo que o prazo para cumprimento da obrigação terminou em 15 de Maio de 2013 –, a Arguida fez dar entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco recurso judicial dessa decisão administrativa, ao abrigo do art. 80.º, do RGIT.
No recurso judicial alegou, em síntese, que a decisão recorrida enferma de nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT
i) por falta de preenchimento do elemento objectivo do tipo, uma vez que dela não constam os factos que permitam integrar a sua conduta na previsão do n.º 1 do art. 114.º do RGIT, na medida em que o imposto em causa não estava na posse da Arguida, que ainda o não tinha recebido dos clientes a quem o tinha liquidado;
ii) por falta de preenchimento do elemento subjectivo do tipo, uma vez que dela não constam quaisquer factos que permitam estabelecer um nexo psicológico de ligação dos factos ilícitos ao agente e a sua imputação a título de negligência ou dolo, antes se limitando a decisão a afirmar uma conclusão, qual seja a de que «a conduta descrita terá sido apenas negligente».
Considerou a Arguida que essa falta de indicação da factualidade susceptível de integrar os elementos objectivo e subjectivo da contra-ordenação integra nulidade, por violação do n.º 1 do art. 27.º e do n.º 1 do art. 79.º do RGIT, bem como dos arts. 97.º, n.º 5, 283.º, n.º 3, alínea b), 374.º, n.º 2 e 375.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal (CPP), aplicáveis ex vi do art. 41.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco julgou o recurso improcedente. Depois de tecer diversos considerandos em torno do direito contra-ordenacional e de referir a razão de ser da exigência legal da “descrição sumária dos factos” e definir o respectivo conteúdo, salientando que a violação dessa exigência determina a nulidade da decisão da aplicação da coima, concluiu que na decisão sob recurso estão presentes quer o elemento objectivo quer o elemento subjectivo do tipo de ilícito contra-ordenacional pelo qual a Arguida foi condenada, bem como na determinação da medida legal da coima foram atendidos os elementos a que se refere o art. 27.º do RGIT, sendo que, porque a coima foi fixada no mínimo legal, a falta de referência a esses elementos nem sequer assumiria relevância.
A Arguida recorreu dessa decisão. Se bem interpretamos a motivação do recurso, este assenta em dois fundamentos que reconduz à nulidade da decisão administrativa por violação da alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT:
- primeiro, na decisão administrativa que lhe aplicou a coima não está preenchido o elemento subjectivo do tipo de infracção, uma vez que nela não são invocados factos concretos que «permitam aferir da conduta culposa do agente na violação da lei» (cfr. conclusões I a XIV);
- segundo, da decisão administrativa não consta «qualquer referência à diferença do imposto suportado e a entregar à Administração Tributária», o que «afasta desde logo a possibilidade de preenchimento da hipótese vertida no n.º 2 do art. 114.º do RGIT com referência à conduta típica prevista no n.º 1 do citado diploma» (cfr. conclusões XV a XX).
Cumpre apreciar e decidir se a decisão judicial recorrida (A decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco foi proferida nos termos do disposto no n.º 1 do art. 64.º do RGCO, aplicável ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT.), que manteve a condenação, fez correcto julgamento daquelas duas questões, sendo que, por razões metodológicas, começaremos pelo fundamento que a Recorrente invocou em segundo lugar.

2.2.2 DA NULIDADE POR FALTA DOS REQUISITOS PREVISTOS NA ALÍNEA B) DO N.º 1 DO ART. 79.º DO RGIT

2.2.2.1 Entende a Recorrente que a decisão administrativa enferma da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT por na descrição sumária dos factos não haver referência alguma a que o IVA em causa foi recebido antes da entrega da declaração periódica, o que afasta a possibilidade de preenchimento da hipótese prevista no n.º 2 do art. 114.º do RGIT.
Salvo o devido respeito, a Recorrente não atentou que essa decisão indica também como norma que prevê e pune o ilícito contra-ordenacional a alínea a) do n.º 5 do art. 114.º do RGIT.
Ora, à data em que se consumou a infracção – 15 de Maio de 2013, termo do prazo para a entrega do IVA respeitante ao primeiro trimestre de 2013, de acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 41.º do CIVA –, já estava em vigor a nova redacção dada ao art. 114.º do RGIT pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2009), que veio alargar o âmbito da previsão da alínea a) do n.º 5 do artigo (Esta nova redacção dada ao art. 114.º, n.º 5, alínea a), do RGIT, pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, ao fazer equivaler à falta de entrega da prestação tributária a falta de entrega total ou parcial do imposto devido que tenha sido liquidado ou que devesse ter sido liquidado em factura ou documento equivalente, teve como objectivo alargar a previsão legal de molde a abarcar todas as condutas omissivas da obrigação tributária, independentemente do recebimento do imposto por parte do adquirente dos bens ou serviços.
Neste sentido, JORGE DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 4.ª edição, Áreas Editora, nota 6 ao art. 114.º, págs. 813 a 815).), de modo a incluir no tipo de contra-ordenação falta de entrega da prestação tributária a falta de entrega, total ou parcial, ao credor tributário do imposto devido que tenha sido liquidado ou que devesse ter sido liquidado em factura ou documento equivalente.
Assim, com referência aos factos ulteriores a de 1 de Janeiro de 2009 – data em que entrou em vigor aquela alteração ao art. 114.º do RGIT (cfr. art. 174.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro) –, o facto de na decisão administrativa de aplicação da coima não haver referência à circunstância de o imposto ter ou não sido recebido deixou de relevar (Antes, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, o recebimento da prestação tributária era, em face do tipo legal de infracção, pressuposto essencial desta, pelo que o dever fiscal de entrega de IVA não recebido não gozava de protecção punitiva, por atipicidade do facto (cfr. ISABEL MARQUES DA SILVA, Nulla poena sine lege ou a não punibilidade da não entrega do IVA não recebido, Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de Maio de 2008, proferido no processo n.º 279/08, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 1, n.º 3, pág. 239 e segs.).), pois a partir da referida alteração introduzida na alínea a) do n.º 5 do art. 114.º do RGIT pela Lei do Orçamento do Estado para 2009, passou também a estar tipificada como contra-ordenação de falta de entrega da prestação tributária a falta de entrega ao credor tributário do imposto devido que tenha sido liquidado ou que o devesse ser e em relação à qual, contrariamente ao que sucede com o tipo previsto no n.º 3 do art. 114.º do RGIT, não é elemento essencial da infracção que o imposto tenha sido recebido. Do mesmo modo, da referida alteração decorre, também, que a prévia dedução da prestação tributária não entregue deixou de constitui elemento essencial do tipo legal da contra-ordenação em causa e, consequentemente, para que se cumpra a “descrição sumária dos factos”, que há-de constar da decisão administrativa de aplicação da coima, deixou de se impor a referência, ainda que sumária, ao facto da prestação tributária ter sido deduzida.
Assim, a tese que a Recorrente sustentou, com base na jurisprudência deste Supremo Tribunal (A Recorrente invoca os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 8 de Julho de 2009, proferido no processo n.º 268/09, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00fc6d6f172d2ab0802575f20055cd23;
- de 23 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 855/11, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/2a8c1f9cccaa65a88025795e00427903.), apenas lograria aplicação caso a infracção se tivesse consumado até 31 de Dezembro de 2008, inclusive, o que não ocorreu (Neste sentido, existe abundante jurisprudência da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de que são exemplo os seguintes acórdãos:
- de 3 de Fevereiro de 2016, proferido no processo n.º 753/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/36753883ec59c1aa80257f5c003950da;
- de 30 de Novembro de 2016, proferido no processo n.º 1290/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/JSTA.NSF/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9f59b39f5827612280258087003c5571;
- 25 de Janeiro de 2107, proferido no processo n.º 881/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/fa8bf2062891fa0f802580bb004ac461.). Na verdade, a punição da contra-ordenação é determinada pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que depende [cfr. art. 3.º, n.º 1, do RGCO, aplicável por força do disposto no art. 3.º, alínea b), do RGIT].
Note-se que a decisão administrativa de aplicação da coima indicou expressamente como norma onde está previsto o ilícito contra-ordenacional a da alínea a) do n.º 5 do art. 114.º do RGIT o que, salvo o devido respeito, afasta a tese sustentada pelo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal (Sobre a questão, vide, por todos, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 1 de Fevereiro de 2017, proferido no processo n.º 723/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ccffe73d50c7891f802580c60052b780;
- de 8 de Março de 2017, proferido no processo n.º 1406/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/280120a281677770802580e200389562.).
O recurso não pode, pois, ser provido com o primeiro dos fundamentos apreciados.

2.2.2.2 A Recorrente sustenta também que a decisão administrativa enferma da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT por na descrição sumária dos factos não haver qualquer referência à imputação subjectiva do facto ilícito, a título de dolo ou negligência, ao agente.
Mais sustenta que a decisão judicial sob escrutínio fez errado julgamento ao não ter relevado a falta de factualidade na decisão administrativa de aplicação da coima respeitante ao elemento subjectivo. Salienta que a culpabilidade é elemento imprescindível das condutas contra-ordenacionais, sem o qual não pode haver aplicação da coima e salienta também que a modalidade da culpa é essencial para a determinação da medida da pena.
Concordamos com a Recorrente quando esta afirma que não pode julgar-se verificada a infracção contra-ordenacional sem a sua imputação subjectiva ao agente. Dito de outro modo, não é possível punir pela prática de uma contra-ordenação independentemente do carácter censurável do facto cometido.
Assim, para a responsabilidade do arguido pela prática de uma contra-ordenação os factos praticados ou omitidos pelo arguido que integram os elementos típicos da contra-ordenação terão de lhe ser imputados (nexo de imputação subjectiva), seja a título de dolo, seja a título de negligência (cfr. art. 8.º do RGCO e art. 24.º do RGIT).
Onde já não podemos acompanhar a Recorrente é quando esta afirma que na decisão administrativa não há qualquer referência à culpa, em qualquer das suas modalidades, nem consta factualidade alguma que permita estabelecer um nexo de imputação subjectiva do facto ilícito à ora Recorrente.
Desde logo, há que ter presente que na decisão de aplicação da coima se referiu que a contra-ordenação foi praticada com negligência. É certo que essa referência foi feita, não no segmento da decisão em que foi descrita a factualidade que integra o ilícito contra-ordenacional, mas já na parte onde a autoridade administrativa procedeu à graduação da medida da coima. No entanto, como este Supremo Tribunal tem vindo a dizer, essa menção, apesar de fora do lugar adequado na decisão administrativa condenatória, constitui uma efectiva descrição da factualidade que integra o tipo contra-ordenacional (Vide o comentário de JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, Áreas Editora, 2010, 4.ª edição, na nota de rodapé com o n.º 153, pág. 425, a propósito de uma situação paralela, objecto do acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 27 de Junho de 2007, proferido no processo n.º 353/07, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/0633394c326a59e6802573150037201b.
Vide também o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 17 de Outubro de 2018, proferido no processo n.º 588/18 (1004/17.0BEPRT), disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/578ab360ddd73fef8025832f002d6ff1.).
A Recorrente alega que essa alusão à negligência, porque conclusiva e não suportada em factos concretos integradores do elemento subjectivo, não serve o propósito que visava atingir. Mais alega que não pode ser condenada com base numa presunção.
Salvo o devido respeito, é possível considerar verificado o elemento subjectivo do tipo, retirando-o da factualidade dada como assente. Se, como consta da decisão de aplicação da coima, a Arguida não fez acompanhar a declaração de IVA remetida à AT do meio de pagamento destinado a pagar o montante de imposto a entregar que apurou, como estava obrigada, nos termos das disposições legais expressamente referidas na decisão de aplicação de coima, podemos deduzir, segundo as regras da experiência comum, que essa infracção das regras a que estava sujeita (e que não podia ignorar, dada a sua condição de sujeito passivo de IVA) foi cometida, pelo menos, com negligência. A nosso ver, nem seria necessário que a decisão afirmasse expressamente a verificação da negligência, como afirmou, pois é de considerar que essa imputação subjectiva se basta, na sua forma mínima (a negligência), com a descrição objectiva, podendo presumir-se aquela com base nesta.
Mas, mesmo que se recuse a possibilidade de presunção da culpa, sempre diremos que a culpa «por ser algo que “em regra ou prima facie se liga ao carácter ilícito-típico do facto respectivo” (Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição em Jornadas de Direito Criminal, pág. 69), está, em princípio, ínsita na descrição deste facto. Nos casos em que se prevêem tipos legais de infracção cometida com dolo e com negligência preenchidos pela mesma materialidade, a descrição factual terá implícita uma afirmação da existência de culpa, que, na falta de referência explícita ao dolo, se deverá entender ser a negligência, como forma mínima de imputação subjectiva de uma conduta a uma actuação» (Cfr. o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 30 de Junho de 1999, proferido no processo n.º 23834, publicado no Apêndice ao Diário da República de 19 de Junho de 2002 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/1999/32223.pdf), págs. 2721 a 2729, com sumário disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/4199917f4c815a6f802568fc003a09b2.).
Assim, contrariamente ao que sustenta a Recorrente, nada mais se impunha à decisão administrativa para que se considere cumprida a exigência de descrição sumária dos factos da alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT também em relação ao elemento subjectivo da infracção.
O recurso também não pode ser provido com este fundamento.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Na actual redacção da alínea a) do n.º 5 do art. 114.º do RGIT (introduzida pelo art. 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro e que, nos termos do art. 174.º da mesma Lei, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009), da qual decorre que deixou de ser elemento constitutivo do tipo legal de contra-ordenação aí prevista que o arguido tenha recebido o IVA em questão, a não indicação dessa circunstância ou da dedução do imposto nos termos legais, no auto de notícia ou na decisão de aplicação de coima, não integra nulidade insuprível de tal decisão.
II - A referência feita na decisão administrativa de aplicação de coima a que a contra-ordenação foi praticada com negligência (ainda que não na descrição sumária dos factos, mas na graduação da medida da coima) deve ter-se como bastante para que se considere respeitada a referência ao elemento subjectivo da infracção.
III - Nos casos em que se prevêem tipos legais de infracção cometida com dolo e com negligência preenchidos pela mesma materialidade, a descrição factual terá implícita uma afirmação da existência de culpa, que, na falta de referência explícita ao dolo, se deverá entender ser a negligência, como forma mínima de imputação subjectiva de uma conduta a uma actuação.


* * *

3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

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Lisboa, 28 de Novembro de 2018. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Ascensão Lopes. (Votei a decisão na consideração de que não vem questionado o limite mínimo da coima aplicada e ainda por atenção ao disposto no artº 8º nº3 do C. Civil, sem prejuízo de melhor ponderação sobre a eventual violação (pela alteração efectuada ao artº 114º nº 5 al. a) do RGIT) dos princípios da capacidade contributiva e da proporcionalidade, com consagração constitucional.