Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3844/19.6T8LSB.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
RISCOS COBERTOS
MORTE DA PESSOA SEGURA
ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-  Sempre que se verifique que a alteração da decisão sobre matéria de facto pretendida pelo apelante é manifestamente insuscetível de ter como efeito a alteração da decisão quanto ao fundo da causa, deve concluir-se que a apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto contraria os princípios da celeridade e celeridade e economia processuais (art.ºs 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do CPC), e constitui um ato inútil, e como tal proibido (art.º 130º), razão pelo qual deve o Tribunal da Relação rejeitá-la.
II- O contrato de seguro de acidentes pessoais cobre os riscos de lesão corporal, invalidez ou morte da pessoa segura - art.º 210º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
III- Por força da outorga de tal contrato fica a seguradora obrigada a reembolsar o segurado no valor dos danos pessoais emergentes daqueles eventos, nos termos previstos na apólice. No caso de morte, o valor a entregar aos beneficiários da pessoa segura corresponde ao capital seguro – art.º 198º, nº 2 da LCS, aplicável ex vi do art.º 211º, nº 1 do mesmo diploma.
IV- Nos termos do disposto no art.º 210º da LCS, o conceito de “acidente” relevante para a delimitação dos riscos cobertos por seguro de acidentes pessoais consiste num evento de natureza “súbita, externa, e imprevisível”, que causa “lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, ou morte da pessoa segura”.
V- Tendo a pessoa segura falecido em morte em consequência de enfarte agudo do miocárdio, e não se tendo apurado que tal enfarte tenha sido consequência de qualquer causa externa ao falecido, aquele evento não constitui “acidente pessoal”, razão pela qual não constitui um risco coberto pelo seguro de acidentes pessoais.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
A , intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra AXA Portugal – Companhia de Seguros de Vida, S.A. que atualmente usa AGEAS Portugal – Companhia de Seguros de Vida, S.A.[1] e AXA Portugal – Companhia de Seguros, S.A., que atualmente usa  AGEAS Portugal – Companhia de Seguros, S.A.[2], pedindo a condenação das rés a pagar-lhe “a título de capital, as quantias indemnizatórias previstas nos contratos de seguro”, acrescidas de "juros de mora, a quantificar sobre essas quantias, desde a data da citação, à taxa legal de 4% ao ano, até integral e efetivo pagamento”.
Convidado a concretizar o pedido relativo à quantia indemnizatória, indicou a quantia de €100.000,00[3].
Alegou, em síntese, que à data da sua morte, KP era titular de dois seguros, válidos e vigentes, nas seguradoras ora rés, e que o beneficiário de tais seguros era e é ainda o ora autor, por força da sua qualidade de herdeiro único do falecido.
Citadas as rés, as mesmas contestaram, sustentando que a 1ª ré não outorgou qualquer contrato de seguro com o falecido, tendo ambos sido celebrados com a 2ª ré; que a morte do falecido se deve a causas naturais, não tendo por isso cobertura nos contratos de seguro invocados, e que o beneficiário de um dos seguros era o Bankinter.
No desenvolvimento do processo, veio a ser dispensada a realização de audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador-sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo improcedente a presente ação, absolvendo as Rés do pedido.
Custas pelo autor.”
Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação, cuja motivação culminou nas seguintes conclusões:
Impugnação da matéria de facto:
1- O tribunal a quo sustenta a decisão absolutória na resposta dada à matéria de facto sob o número 8, com o seguinte conteúdo:
“8. A apólice de Acidentes Pessoais define, no artigo 1º das Condições Gerais da Apólice, “Acidente Pessoal” como “o acontecimento provocado por uma causa súbita externa, violenta e imprevisível, alheia à vontade da Pessoa Segura e que nela origine lesões corporais que possam ser clínica e objectivamente constatadas, invalidez permanente ou morte.”.”;
2- Sucede que não há evidência de que tal documento, junto pelas R.R., sejam as condições gerais do contrato de seguro celebrado com o falecido e de que o A. é beneficiário, vertido nas condições particulares juntas também pelas R.R. por requerimento de 17/10/2019;
3- Com efeito e em primeiro lugar, porque é uma mera impressão, um mero modelo (como consta, a final, da sua última folha - “Mod. A346”), não assinado por nenhuma das partes;
4- Em segundo lugar, porque é um modelo genérico datado de Maio de 2016 (vide ultima folha do Doc 6, canto inferior esquerdo, junto à contestação - “Mod. A346- 05/2016”), tendo o contrato de seguro sub judice sido celebrado em 2006, ou seja, 10 anos antes;
5- Sendo, pois, pacífico, que tais condições gerais de apólice, em que a sentença recorrida sustenta a sua decisão absolutória, não podem dizer respeito ao contrato de seguro celebrado entre as R.R. e o falecido e a que correspondem as condições particulares juntas também por estas no seu requerimento de 17/10/2019;
6- Este documento n.º 6 da contestação está, desde logo, em contradição com o vertido na petição inicial pelo A. e, portanto, só por isso, impugnado ab initio;
7- Porém, como é sabido e ainda que assim não fosse, nos termos do n.º 4, do artigo 3º, do CPC, seria no início da audiência prévia ou no início da audiência de julgamento, na falta daquela, que o A. iria exercer o contraditório relativamente à contestação apresentada pelas R.R. e respectivos documentos, impugnando-os, o que não teve oportunidade de fazer, face à decisão absolutória proferida em sede de saneador sentença;
8- Certo é, assim sendo, que não poderia o tribunal a quo ter dado como provado o ponto 8 da matéria de facto, por total falta de prova, relativamente a esta matéria, pelo contrario, deve este facto, alegado pelas R.R., ser dado como não provado, precisamente por inexistência de prova produzida a propósito;
9- Assim,
a) o ponto concreto da matéria de facto incorrectamente julgado é o número 8;
b) os meios probatórios constantes do processo que implicam decisão diversa é o documento junto pelas R.R. no seu requerimento de 17/10/2019 (condições particulares), a total ausência de prova relativamente à afirmação vertida nesta resposta número 8 da matéria de facto e ainda o próprio documento n.º 6, da contestação, que é o “Mod. A346, de 05/2016” emitido pela própria R. apenas 10 anos após o contrato de seguro celebrado com o falecido e, para mais, nem sequer assinado pelo falecido ou pelas R.R.;
c) a decisão que deve ser proferida quanto a esta alegação das R.R. é “não provado”;
Alegações stricto sensu:
10- Está provado que, entre as R.R. e o falecido KP, foi celebrado, no dia 13 de Novembro de 2006, o contrato de apólice de seguro número 030149/002010012983 (vide doc. junto pelas R.R. no seu requerimento de 17/10/2019), sendo que, de tal documento resulta que, em caso de morte do KP, o A. receberia, a título de indemnização, a quantia de €100.000,00 (cem mil euros);
11- Está provado que o KP faleceu no dia 15 de Março de 2009, pelo que tem o A. o direito a receber das R.R. o valor indemnizatório de €100.00,00, como resulta do documento supra referido;
12- Cumpria às R.R. alegar e fazer prova de qualquer circunstância, de facto ou de Direito, que impedissem o efeito jurídico peticionado pelo A. e só às R.R. cumpria o respectivo ónus da prova, o que não aconteceu;
13- Como bem se sustenta no Acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça datado de 26/11/2019, no processo n.º 18079/16.1T8LSB.L1.S1, tendo por Relator o Sr. Desembargador Fernando Samões:
“os contratos invocados regem-se pelas estipulações das respectivas apólices não proibidas pela lei, resultantes do mero consenso entre as partes, pelo regime do contrato de seguro, com os limites nele indicados e os decorrentes da lei geral, e, subsidiariamente, pelas disposições da lei comercial e da lei civil.”;
14- Ora, in casu, inexiste no único documento junto aos autos que titula o contrato de seguro celebrado em 13 de Novembro de 2006, entre as R.R. e o falecido KP - o documento junto pelas R.R. no seu requerimento de 17/10/2019 - qualquer “risco excluído” e/ou qualquer condição acrescida para o pagamento da indemnização aí prevista, para além da morte;
15- O KP morreu e o seguro de vida estava em vigor, pelo que as R.R. têm que indemnizar o A. pagando-lhe quantia de €100.000,00, conforme previsto claramente no supra citado documento, devendo, pois, ser alterada a decisão recorrida, sendo as R.R., em consequência, condenadas nesse pagamento ao A..
Rematou as suas conclusões nos seguintes termos:
“(…) deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por outra que absolva a Apelante dos pedidos formulados”
As apeladas apresentaram contra-alegações, pugnando pela intempestividade do recurso, e pela total improcedência da presente apelação.
O Mmº Juiz a quo rejeitou o recurso, por extemporâneo[4], mas tal decisão veio a ser revertida na sequência de reclamação interposta pelo autor e apelante, nos termos do disposto no art.º 643º do CPC[5].
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, e nada obstando à apreciação do mérito do recurso, foram colhidos os vistos.
2. Questões a decidir
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[6]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[7].
Assim, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
- A impugnação da decisão sobre matéria de facto;
- A delimitação do âmbito dos riscos cobertos pelos contratos de seguro a que se reportam os presentes autos, aferindo, em especial se os mesmos cobriam os riscos decorrentes da morte da pessoa segura por enfarte do miocárdio;
- Determinar se o autor tem direito a receber das rés a quantia relativa ao capital seguro.
 3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. KP, contribuinte fiscal número …, morreu em 15/03/2009.
2. O Autor foi habilitado como único herdeiro de KP, por escritura de 18/09/2015.
3. A 2ª Ré celebrou com KP dois contratos de seguro, um de Multirriscos Habitação (com a apólice nº 009610145533) e outro de Acidentes Pessoais (com a apólice nº 002010012983).
4. À data da sua morte, tais seguros mostravam-se válidos e vigentes.
5. O Bankinter era beneficiário do seguro Multirriscos Habitação, na qualidade de credor hipotecário.
6. O ora Autor era beneficiário do capital da cobertura de morte do contrato de seguro de Acidentes Pessoais no montante de €100.000,00.
7. Nos termos do ponto 1. do artigo 21º das Condições Gerais da Apólice de Multi Riscos Habitação, sob a epígrafe "Morte do Segurado”, “Esta cobertura garante o pagamento de uma indemnização por morte do Segurado ou do seu cônjuge (ou pessoa que viva com o Segurado em condições análogas às do cônjuge), em consequência dos riscos de incêndio, ação mecânica de queda de raio, explosão ou roubo (praticado, no local de risco indicado na Apólice, com violência contra as pessoas referidas de que resulte a morte das mesmas)".
8. A apólice de Acidentes Pessoais define, no artigo 1º das Condições Gerais da Apólice, “Acidente Pessoal” como “o acontecimento provocado por uma causa súbita externa, violenta e imprevisível, alheia à vontade da Pessoa Segura e que nela origine lesões corporais que possam ser clínica e objectivamente constatadas, invalidez permanente ou morte.”
9. A morte de KP deu-se devido a enfarte agudo do miocárdio.
3.1.2. Factos não provados
O despacho saneador-sentença apelado não contém qualquer elenco de factos não provados.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Da impugnação da decisão sobre matéria de facto
3.2.2.1. Considerações gerais
Dispõe o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Por seu turno estatui o art.º 640º n.º 1 do mesmo código que quando seja impugnada a decisão sobre matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, sempre que o recorrente se baseie no teor de depoimentos prestados, incumbe-lhe, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. A observância desse ónus pressupõe a indicação do início e fim das passagens dos depoimentos tidas por relevantes, podendo o recorrente, se assim o entender, proceder à transcrição dessas passagens. Tal indicação não tem necessariamente que constar das conclusões, mas deve constar da motivação do recurso. No sentido exposto cfr., entre muitos outros, os acs. RC de 17-12-2017 (Isaías Pádua), proc. 320/15.0T8MGR.C1; e STJ 06-12-2016 (Garcia Calejo), p. 437/11.0TBBGC.G1.S1.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
Sumariando os ónus impostos pelo citado preceito, ensina ABRANTES GERALDES[8]:
“(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso, e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
f) (…).”

3.2.2.2. O caso dos autos
No caso em apreço, o apelante impugnou a decisão sobre matéria de facto no tocante ao ponto 8 dos factos provados, o qual tem o seguinte teor:
“8.       A apólice de Acidentes Pessoais define, no artigo 1º das Condições Gerais da Apólice, “Acidente Pessoal” como “o acontecimento provocado por uma causa súbita externa, violenta e imprevisível, alheia à vontade da Pessoa Segura e que nela origine lesões corporais que possam ser clínica e objectivamente constatadas, invalidez permanente ou morte.”
O apelante considera que este facto deve ser considerado não provado.
Na sustentação observou de modo suficiente todos os ónus impugnatórios supra enunciados.
Sucede, contudo, que a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo, de modo pacífico, que sempre que se verifique que a alteração da decisão sobre matéria de facto pretendida pelo apelante é manifestamente insuscetível de ter como efeito a alteração da decisão quanto ao fundo da causa, deve concluir-se que a apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto contraria os princípios da celeridade e celeridade e economia processuais (art.ºs 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do CPC), e constitui um ato inútil, e como tal proibido (art.º 130º), razão pelo qual deve o Tribunal da Relação rejeitá-la.
Conforme refere Carlota Spínola[9] «(...) o TR[10] está eximido do exercício do dever de modificabilidade da decisão de facto nas situações de irrelevância processual que ficam, por conseguinte, excluídas do campo de aplicação do art.º 662.º. Esta constatação lapalissiana baseia-se no princípio da limitação dos atos expressamente previsto no art.º 130.º, enquanto manifestação do princípio da celeridade e da economia processual, acolhidos nos arts. 2.º/1 e 6.º/1.
Como é aludido nos acs. do TR de Guimarães (TRG) de 20/10/2016 (proc. n.º 2967/2012, ID 369508) e de 26/11/2018 (proc. n.º 272/2017, ID 400002), a Relação não deve reapreciar a matéria factual quando os concretos factos objecto da impugnação forem insuscetíveis, “face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito”, de ter “relevância jurídica”, sob pena de executar uma atividade processual que já previamente sabia ser “inútil” ou “inconsequente”. Por outras palavras, o exercício dos poderes-deveres de investigação pela Relação só é admissível se recair sobre factos com interesse para o recurso, i. e., factos que a serem demonstrados, modificados ou dados como provados alteram a solução ou o enquadramento jurídico do objeto recursório.».
No mesmo sentido afirma Henrique Antunes[11] que «de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância, seja qual for a modalidade considerada, só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (art.º 130 do nCPC).
Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância, a anulação da decisão ou o reenvio do processo para essa instância para que seja fundamentada, a renovação ou a produção de novas provas. Isso sucederá sempre que, por exemplo, mesmo com a substituição da decisão da matéria de facto impugnada, a solução ou enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, v.g., mesmo com a modificação, os factos adquiridos são insuficientes ou inidóneos para modificar a decisão de procedência ou de improcedência, da acção ou da excepção, contida no despacho ou na sentença recorrida.
Portanto, a actuação dos apontados poderes de controlo só deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção.».
 Neste sentido cfr. tb. acs. das Relações:
- RP 19-05-2014 (Carlos Gil), p.         2344/12.0TBVNG-A.P1;
- RC 16-02-2017 (Moreira do Carmo), p. 52/12.0TBMBR.C1;
- RG 11-07-2017 (Maria João Matos), p. 5527/16.0T8GMR.G1;
- RG 02-11-2017 (Maria João Matos), p. 501/12.8TBCBC.G1;
- RG 08-02-2018 (Maria Amália Santos), p. 96/14.8TBAMR.G1;
- RL 17-04-2018 (Torres Vouga), p. 3830/15.5T8LRA.L1-1;
- RC 16-10-2018 (Moreira do Carmo), p. 1467/15.8T8CBR-A.C1;
- RL 26-09-2019 (Carlos Castelo Branco), p. 144/15.4T8MTJ.L1-2;
- RL 24-09-2020 (Inês Moura), p. 35708/19.8YIPRT.L1-2;
- RG 02-03-2023 (Jorge Teixeira), p. 189/20.2T8ALJ.G1;
- RL 14-03-2023 (Alexandra Castro Rocha), proc. 176/17.8TNLSB.L1;
- RP 22-05-2023 (Miguel Baldaia Morais), p. 3602/14.4TBMAI-B.P1.
… bem como os seguintes ac. do STJ:
- STJ 17-05-2017 (Fernanda Isabel Pereira), p. 4111/13.4TBBRG.G1.S1;
- STJ 13-07-2017 (Fonseca Ramos), p. 442/15.7T8PVZ.P1.S1.;
- STJ 30-06-2020 (Graça Amaral), p. 4420/18.6T8GMR-B.G2.S1;
- STJ 09-02-2021 (Mª João Vaz Tomé), p. 26069/18.3T8PRT.P1.S1.
No caso em apreço, o ponto de facto impugnado traduz uma definição de “acidente pessoal” que em nada difere daqueloutra que consta do art.º 210º da LCS.
Daqui resulta que ainda que se excluísse o ponto 8 do elenco de factos provados, sempre teríamos que ter em consideração o referido art.º 210º da LCS, que tem teor em tudo semelhante ao da cláusula contratual referenciada naquele ponto de facto.
Termos que nesta parte, não se conhece da pretendida impugnação da decisão sobre matéria de facto.
3.2.2. Dos contratos de seguro dos autos e da sua caraterização
Nos presentes autos discute-se a alegada responsabilidade das rés pelo pagamento de quantia correspondente ao capital seguro, em consequência do falecimento da pessoa segura, pai do autor, vítima de enfarte do miocárdio, invocando o autor como fonte daquela obrigação a celebração de um contrato de seguro de acidentes pessoais, e de um contrato de seguros multirriscos habitação.
Interpretando o art.º 1º da LCS, ensina JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES[12] que contrato de seguro é “o contrato pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco económico da verificação de um dano, na esfera jurídica própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração” (o prémio – vd. art.º 51º da LCS).
Para o mesmo autor, “o contrato de seguro caracteriza-se ainda por possuir um determinado conteúdo típico, onde se destacam as obrigações recíprocas das partes contratantes: o segurador, que assume a cobertura do risco, tem o dever fundamental de “liquidar o sinistro”, ou seja, realizar a prestação convencionada em caso de verificação, total ou parcial, dos eventos compreendidos no risco coberto pelo contrato (art.ºs l.º, 99.º, e 102.º da LCS); e o tomador do seguro tem o dever fundamental de “pagar o prémio”, ou seja, realizar a prestação pecuniária convencionada que representa a contrapartida daquela cobertura (art.ºs l.º e 51.º da LCS)”.
3.2.3. Das coberturas contratadas
No caso dos autos sustentou o autor, na qualidade de herdeiro da pessoa segura, que se verificou um evento danoso coberto pelos contratos de seguro multirriscos habitação e de acidentes pessoais que o falecido tinha subscrito
Tal pretensão ancora-se no disposto nos arts. 406º, e 817º, nº 1 do Código Civil.
Da factualidade provada resulta que o falecido celebrou com a 2ª ré dois contratos de seguro, sendo um de “multirriscos habitação” (apólice 009610145533) e outro de acidentes pessoais (apólice 002010012983)[13].
Desta factualidade decorre desde logo que não incide sobre a 1ª ré nenhuma obrigação de pagamento da quantia peticionada, visto que não outorgou nenhum dos contratos de seguro dos autos, nem o autor invocou qualquer outra causa como fundamento do direito invocado.
Por outro lado, relativamente ao contrato de seguros multirriscos habitação resultou provado que nos termos do ponto 1. do art.º 21º das Condições Gerais da respetiva apólice, o mesmo garantia o pagamento de uma indemnização por morte do segurado em consequência dos riscos de incêndio, ação mecânica de queda de raio, explosão, ou roubo[14].
Tendo o decesso do falecido ocorrido em consequência de enfarte do miocárdio[15], é manifesto que este evento não se acha coberto pelo referido contrato de seguro multirriscos.
Aliás, ainda que assim não fosse, sempre se diria que conforme resultou provado, o beneficiário de tal seguro era o Bankinter, razão pela qual em caso algum poderia o autor pretender receber o capital seguro.[16]
Resta aferir se o evento que conduziu à morte do falecido se deve considerar abrangido pelo âmbito de cobertura do contrato de acidentes pessoais.
O contrato de seguro de acidentes pessoais é uma modalidade de contrato de seguro de pessoas, sendo este definido pelo art.º 175º, nº 1 da LCS como aquele que “compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas”.
Por outro lado, nos termos previstos no art.º 210º da LCS, o contrato de seguro que cobre o risco de morte da pessoa segura em consequência de acidente é também qualificável como seguro de acidentes pessoais.  Este preceito define acidente como um evento de natureza “súbita, externa, e imprevisível”, que causa “lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, ou morte da pessoa segura”.
Não obstante, nos termos do art.º 11º da LCS as normas deste diploma têm natureza supletiva, podendo por isso ser afastadas por acordo das partes, exceto se as mesmas se acharem abrangidas pela enumeração constante do art.º 12º, que prevê situações de imperatividade absoluta, ou 13º, que consagra casos de imperatividade relativa.
Esta disposição legal contém, no fundo, solução idêntica à consagrada no art.º 427º do Código Comercial, que estipulava que “o contrato de seguro regular-se-á pelas estipulações da respetiva apólice não proibidas pela lei (…)”.
Assim, e uma vez que nem o art.º 12º, nem o art.º 13º da LCS contêm qualquer referência ao art.º 210º, tal significa que o contrato de seguro de acidentes pessoais pode excluir do seu âmbito de cobertura determinados riscos.
Por outro lado, estabelece o art.º 198º, nº 1 da LCS, aplicável ex vi do art.º 211º do mesmo diploma que compete ao tomador de seguro ou quem este indique designar a pessoa segura, acrescentando o nº 2, al. a) do mesmo preceito que por falecimento da pessoa segura, e na falta de designação do beneficiário, aos herdeiros da pessoa segura.
Finalmente, decorre do nº 2 do mesmo art.º 198º da LCS que em caso de morte da pessoa segura, decorrente de evento abrangido pelos riscos cobertos no contrato, o beneficiário ou herdeiros têm direito a receber da seguradora o montante correspondente ao capital seguro.
No caso vertente, provado ficou que a pessoa segura faleceu em consequência de enfarte agudo do miocárdio.[17]
Ora, interpretando o já referido art.º 210º da LCS diz JOSÉ ALVES DE BRITO[18]:
«A qualificação da causa do sinistro como “súbita, externa e imprevisível” encontra-se nos projectos APS e Mário Raposo que, todavia, optam pela qualificação da causa como “violenta” ao invés de “imprevisível”. O conceito colhido na LCS segue de algum modo uma das concepções possíveis da noção de caso fortuito. A ideia de causa súbita permite distinguir o seguro de acidentes pessoais do seguro de saúde (maxime doença) nomeadamente quanto à causa interna e insidiosa.”
À luz destas considerações concluímos que as causas de morte que decorram de situações clínicas inerentes à pessoa segura e não possam considerar-se causadas por agentes externos não se encontram abrangidas pelo âmbito de cobertura do contrato de seguro de acidentes pessoais – Neste sentido cfr. tb., entre outros, os acs. RE 08-05-2014 (Mata Ribeiro), p. 1071/10.7TBSTR.E; RC 01-03-2016 (Mª Catarina Gonçalves), p. 4992/13.1TBLRA.C1; RG 01-02-2018 (Eugénia Cunha), p. 223/14.5T8FAF.G1; RP 24-04-2018 (Rodrigues Pires), p. 1410/13.9TBLSD.P1; e STJ 21-04-2009 (Fonseca Ramos), p.  09A0449.
Nesta conformidade, ainda que ancorados no conceito legal de acidente consagrado no art.º 210º da LCS concluímos, sem necessidade de outras considerações, que a morte causada por enfarte agudo do miocárdio, desacompanhada de quaisquer circunstâncias externas que tenham concorrido para a ocorrência do dito enfarte não constitui causa súbita, externa e imprevisível, não sendo por isso tal decesso abrangido pelo âmbito de cobertura do seguro de acidentes pessoais.
O art.º 1º das Condições Gerais da Apólice a que se reporta o ponto 8 dos factos provados nada acrescenta relativamente ao mencionado conceito legal, e nessa medida tem um papel meramente clarificativo.

3.2.4. Do direito à quantia peticionada
De todo o exposto decorre que nenhum dos contratos de seguro subscritos pelo falecido cobria o risco de danos pessoais emergentes de enfarte, nos termos apurados, pelo que o decesso do mesmo não se acha abrangido pelo respetivo âmbito de cobertura.
Consequentemente, conclui-se que o autor não tem direito a receber de nenhuma das rés a quantia reclamada a título de capital seguro.
A presente ação deve, pois, ser julgada improcedente.
Termos em que se conclui pela total improcedência da presente apelação.
3.2.65. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
Em sentido amplo, tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. art.ºs 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (art.ºs 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. art.ºs 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os art.ºs 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (art.ºs 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (art.ºs 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, face à total improcedência da presente apelação, forçoso é concluir que as custas devem ser suportadas pelo apelante.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente, confirmando integralmente o despacho saneador-sentença recorrido.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 7 de novembro de 2023 [19]
Diogo Ravara
Cristina Silva Maximiano
Ana Rodrigues da Silva

_______________________________________________________
[1] Pessoa coletiva nº 502220473.
[2] Pessoa coletiva nº 503454109.
[3] requerimento com a ref.ª 26965685/36308096, de 25-08-2020.
[4] Despacho com a ref.ª 412196364, de 18-01-2022.
[5] Vd. despacho com a ref.ª 427224873, de 04-07-2023.
[6] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[7] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[8] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pp. 165-166.
[9] “O segundo grau de jurisdição em matéria de facto no processo civil português”, AAFDL Editora, 2022, pp. 44-45.
[10] Tribunal da Relação.
[11] “Recurso de apelação e controlo da decisão da questão de facto”, pp. 44-45, in http://www.stj.pt (Consultado em 17.01.2023).
[12] “O contrato de Seguro na LCS de 2008”, ROA, ano 69,  n.º 3 e 4 (jul.-dez. 2009), pp. 815-858, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7Be96274ba-f961-4442-a4e4-46fb5338440e%7D.pdf, em especial, p. 819 e 822
[13] Ponto 3. dos factos provados.
[14] Ponto 7. dos factos provados.
[15] Ponto 9 dos factos provados.
[16] Embora pudesse pugnar pela condenação da seguradora que contratou tal seguro a entregar esse capital ao referido banco, de modo a liquidar a obrigação segura. Contudo, não foi esse o pedido deduzido pelo autor.
[17] Ponto 9. dos factos provados.
[18] “Lei do Contrato de Seguro Anotada”, (obra coletiva), 4ª ed., Almedina, 2020, p. 634.
[19]Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.