Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0376/15
Data do Acordão:04/13/2016
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IRS
MAIS VALIAS
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
RETROACTIVIDADE
Sumário:I - O CIRS estabelece, de forma clara e expressa, que constituem mais-valias os ganhos obtidos com a alienação onerosa de partes sociais e que tais ganhos se consideram obtidos no momento da alienação [art. 10.º, n.ºs 1, alínea b), 3 e 4], motivo por que, face ao momento em que se apuram – pela diferença entre o valor de realização e o de aquisição do bem transmitido –, as mais-valias não podem deixar de reportar-se a cada ganho de per si.
II - Por essa razão, o facto tributário nasce e esgota-se no momento autónomo e completo da alienação e da realização das mais-valias, sendo, por isso, um facto tributário instantâneo e não um facto tributário complexo de formação sucessiva ao longo de um ano, sem prejuízo de o valor a considerar para a determinação da base tributável para efeitos de IRS ser o correspondente ao saldo anual apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano.
III - A Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, é omissa no que toca ao estabelecimento de regras específicas quanto à sua aplicação no tempo, pois não contém qualquer norma que deponha sobre a sua aplicação temporal, limitando-se a prescrever que «[a] presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação» (cfr. art. 5.º), motivo por que esta fica sujeita à regra geral que rege a aplicação da lei fiscal substantiva no tempo, plasmada no art. 12.º da LGT.
IV - As mais-valias produzidas antes de 27 de Julho 2010 com a alienação de acções detidas há mais de 12 meses continuam a seguir o regime de não sujeição que vinha determinado no art. 10.º, n.º 2, alínea a), do CIRS anteriormente às alterações introduzidas pela Lei nº 15/2010, de 26 de Julho, e, como tal, não concorrem para a formação do saldo anual tributável de mais-valias a que se refere o art. 43.º do CIRS.
Nº Convencional:JSTA000P20364
Nº do Documento:SA2201604130376
Data de Entrada:03/30/2015
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A... E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 1863/12.2BELRS

1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública (adiante Recorrente) recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que, julgando procedente a impugnação judicial deduzida por A…………… e mulher, B……………… (adiante Impugnantes ou Recorridos), anulou a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) que lhe foi efectuada relativamente ao ano de 2010, na parte respeitante à tributação autónoma dos ganhos (mais-valias) obtidos com a alienação de acções em data anterior a 27 de Julho de 2010, com o fundamento de que não lhe pode ser aplicado o regime fiscal introduzido pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, que entrou em vigor em 27 de Julho de 2010, sob pena de aplicação retroactiva da lei, vedada pelo art. 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

1.2 O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor (Porque usamos o itálico nas transcrições, os excertos que estavam em itálico no original surgirão, aqui como adiante, em tipo normal.):

«A) Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a impugnação deduzida por A……………… e B…………….. contra a liquidação sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) referente ao ano de 2010, com o n.º 20115004544237, no valor de € 10.702,70.

B) Analisando a questão de saber se a liquidação impugnada se encontrava inquinada de vício de violação de lei, porquanto havia emergido da aplicação retroactiva da Lei 15/2010, de 26 de Julho, considerou-se, na douta sentença aqui em análise, que “Por tudo o que ficou dito consideramos a liquidação impugnada é ilegal porquanto a Lei 15/2010, de 26 de Julho, apenas se aplica aos factos tributários ocorridos após a sua entrada em vigor”, concedendo-se assim procedência à presente impugnação.

C) Ora, com tal entendimento não nos podemos conformar, razão pela qual da sentença, que decide com base em tal fundamento, se recorre imputando-lhe vício de erro de julgamento, já que procede à interpretação e aplicação incorrectas da norma reguladora do caso ajuizado.

D) Assim considerou o Tribunal a quo que “… considerando que o facto tributário ocorre à data da realização da mais-valia, ou seja no momento da sua alienação, a Administração Tributária ao tributar a totalidade do saldo anual das mais-valias realizadas pela impugnante à taxa de 20% e ao não atender a que a sua alienação ocorreu na totalidade antes de 26 de Julho de 2010 e que as mesmas já eram detidas, à data da sua alienação há mais de 12 meses é manifesto que aplicou retroactivamente as alterações introduzidas pela Lei 15/2010 de 26 de Julho tratando-se da retroactividade autêntica constitucionalmente vedada pelo n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da Republica Portuguesa”.

E) Contrariamente, e em desabono da tese sustentada, consideramos que a retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa, é a retroactividade própria ou autêntica, ou melhor proíbe-se a retroactividade que se traduz na aplicação da lei nova a factos antigos.

F) E que assim sendo, é nosso entendimento que em tal conceito não se enquadram as situações em que o facto tributário, que a lei nova pretender regular, não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova.

G) E assim consideramos porque entendemos que, no que a rendimentos emergentes da alienação de acções, aquilo que, nos termos do CIRS, está sujeito a tributação é o saldo das transacções efectuadas, e como tal, e sendo que este só pode ser apurado no final do ano, nessa altura já estava em vigor a mencionada Lei 15/2010, pelo que esta seria de aplicar ao caso em apreço, sendo portanto legal e justa a liquidação aqui em causa.

H) Quer isto dizer que, contrariamente ao que se considera na sentença recorrida, a aplicação da lei que alterou o regime de tributação das mais-valias ao caso em apreço não resulta em retroactividade mas em aplicação retrospectiva, ou seja, é uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor. Mas que se mantém após tal data.

I) Ora, tal como resulta do teor do acórdão n.º 85/2010 do Tribunal Constitucional “(…) A retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroactividade que se traduz na aplicação de Lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da Lei nova)”.

J) E assim sendo, e considerando que in casu a alienação das acções ocorre, efectivamente, antes da entrada em vigor da Lei em análise, mas os seus efeitos, fiscalmente examinando, ocorrem já na sua vigência, dado que estes se consubstanciam em 31 de Dezembro de 2010, não existe aplicação retroactiva mas antes aplicação retrospectiva das normas, razão pela qual, consideramos nada haver a censurar a liquidação efectuada.

L) Pelo que, é nosso entendimento, assente na convicção de que a realidade sujeita a tributação no final do ano fiscal em causa não é apenas a mais-valia realizada individualmente na operação singular aqui em causa, mas no saldo positivo verificado, no final do ano fiscal, entre as mais-valias e as menos-valias geradas durante todo esse ano, ou seja, suportada na natureza de formação sucessiva do facto tributário, o qual só no final do ano se completa, que a situação aqui convertida fica sujeita à lei fiscal em vigor no último dia do ano, ou seja, ao quadro estabelecido pela Lei 15/2010, de 26 de Julho vigente no final do ano de 2010.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser reconhecida a legalidade da liquidação efectuada e assim ser revogada a douta sentença que determinou a anulação do acto tributário impugnado».

1.3 Os Recorrentes apresentaram contra-alegações, que remataram com as seguintes conclusões:

«A) O presente recurso foi interposto pelo Digno Representante da Fazenda Pública da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, no âmbito do processo n.º 1863/12.2BELRS, a qual julgou procedente a impugnação judicial apresentada pelos Recorridos contra o acto de liquidação de IRS, relativo ao ano de 2010, no montante de € 10.702,70;

B) Consideram os Recorridos que o presente recurso enferma de manifesta falta de fundamento, decorrente, desde logo, do facto de o Digno Representante da Fazenda Pública ter relegado para segundo plano o princípio que preside à tributação de mais-valias mobiliárias, qual seja, o de que os ganhos que resultem da alienação onerosa de partes sociais, as mais-valias, consideram-se obtidos no momento da respectiva alienação onerosa;

O) Este princípio encontra-se estabelecido no n.º 3 do artigo 10.º do Código do IRS e concretiza, no fundo, a regra segundo a qual a incidência do imposto depende da própria realização da mais-valia, isto é, da alienação onerosa de partes sociais, que constitui um facto isolado no tempo;

D) Estamos neste caso e ao contrário do que sustenta o Digno Representante da Fazenda Pública, perante um facto tributário de formação instantânea, pois, a cada alienação onerosa de partes sociais (de que resultem mais-valias), corresponde um facto gerador do imposto, entendimento que foi subscrito pelo Tribunal Recorrido e pelo STA, desde logo, no Acórdão de 04/12/2013, proferido no recurso n.º 01562/13;

E) Independentemente do facto de se poder dizer, embora apenas de uma forma genérica, que o IRS é um imposto cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, continuando a formar-se no decurso do ano fiscal até ao seu fim, a verdade é que o facto gerador da tributação de mais-valias surge num único momento, o da alienação onerosa de partes sociais, ou em vários momentos distintos e separáveis, em caso de várias alienações;

F) Não tem razão o Digno Representante da Fazenda Pública quando afirma que “aquilo que é sujeito a tributação no final do ano fiscal em causa não são as mais-valias realizadas individualmente em cada uma dessas operações, mas o saldo positivo verificado no final do ano fiscal, no caso de 2010, entre as mais-valias e as menos-valias realizadas durante esse mesmo ano”, pois, como muito bem referiu o Tribunal Recorrido, não devem, nem podem, confundir-se as normas de incidência do imposto com as normas relativas à determinação do rendimento colectável, isto é, não podem ser confundidos o facto gerador do imposto com o processo de determinação desse rendimento tributável;

G) Tal como igualmente nota o Tribunal Recorrido, trata-se esta “(...) de uma situação semelhante às tributações autónomas em sede de IRC, onde se conclui que «o facto de a liquidação do imposto ser efectuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de carácter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação [...]» [cf Ac. do Tribunal Constitucional n.º 310/2012]”;

H) De facto e acompanhando a sentença recorrida, diremos que, também na situação de tributação de mais-valias resultantes da alienação de participações sociais, como é o caso, o tributo “incide sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, surgindo o facto gerador do tributo isolado no tempo. Simplesmente há uma consolidação anual das mais-valias e menos-valias para efeito de apuramento da matéria colectável sobre a qual vai incidir a taxa especial ou que vai ser englobada aos rendimentos das demais categorias”;

I) Andou bem a sentença recorrida, ao considerar que a alienação onerosa de partes sociais em causa, por ter ocorrido no dia 03/02/2010, deveria estar sujeita a tributação à luz da lei vigente àquela data, e não, como sucedeu e pretende o Recorrente, segundo a Lei n.º 15/2010, de 26/07;

J) Neste, ponto o Digno Representante da Fazenda Pública parece ignorar um outro facto, que não pode deixar de ser tido em consideração: é que a Lei n.º 15/2010, de 26/07 entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, conforme determinou o respectivo artigo 5.º, ou seja, no dia 27/07/2010, sem que tenha incluído qualquer norma transitória que determinasse a sua aplicação a período anterior à data do início da sua vigência, como habitualmente sucede quando a intenção do legislador é a de estender a aplicação de uma determinada norma a factos tributários ocorridos antes da sua publicação e entrada em vigor;

K) Não tendo o legislado previsto tal norma transitória, e em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 12.º da Lei Geral Tributária (LGT), as alterações introduzidas, no regime de tributação de mais-valias, pela Lei n.º 15/2010, de 26/07, só podem aplicar-se aos factos tributários posteriores a 27/07/2010. Sob pena de aplicação retroactiva da lei, consubstanciada numa retroactividade autêntica, expressamente proibida pelo artigo 103.º, n.º 3 da CRP;

L) De facto, qualquer alegação constante do recurso agora apresentado pelo Digno Representante da Fazenda Pública, na tentativa de demonstrar o contrário, ainda que se compreenda na perspectiva do mero dever de patrocínio, está votada à sua improcedência, atenta a manifesta ilegalidade do procedimento adoptado pela Autoridade Tributária, de resto atestado pela quase totalidade da jurisprudência conhecida nesta matéria;

M) Mas, para além de violar o princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal, consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, a tributação das presentes mais-valias, da forma como pretende a Autoridade Tributária e o Recorrente, é igualmente susceptível de violar o princípio da Segurança Jurídica e da Protecção da Confiança, ínsito no artigo 2.º da CRP;

N) Parece evidente que, ao contrário do que quer fazer perpassar o Digno Representante da Fazenda Pública no seu recurso, a violação das legítimas expectativas dos Recorridos, neste caso, ocorre apenas e só no caso de se aplicar, à tributação das mais-valias realizadas pelos mesmos, uma lei que não se encontrava em vigor, quer no momento da aquisição das acções, quer no momento da sua alienação;

O) Como é bom de ver, pelo menos no momento em que decidiram proceder à venda das acções, os Recorridos tinham a expectativa de que essa alienação não estaria sujeita a tributação, o que não pode ser ignorado;

P) Efectivamente, nesta situação, o detentor das acções deve poder, livremente e em função das próprias expectativas de ganhos (ou perdas) que tenha, escolher o momento em que vai alienar as suas acções, prevendo as consequências que isso lhe trará, quer em termos de ganhos imediatos, quer em termos de tributação desses mesmos ganhos;

Q) A tributação ao abrigo de uma lei que não se encontrava em vigor no momento daquela alienação é susceptível de subverter, como vimos, a regra da verificação do facto tributário específico em causa, mas igualmente de coarctar o direito que o detentor das acções tem, de escolher o momento da sua venda;

R) Por fim e aderindo também ao que foi a este propósito subscrito na sentença recorrida, cumpre referir que, mesmo que estivéssemos perante um facto tributário de formação sucessiva (e não um facto tributário de formação instantânea, conforme se defende), sempre haveria uma aplicação retroactiva da Lei n.º 15/2010, de 26/07, implicando a ilegalidade do acto de liquidação em causa.

S) Com efeito, dispõe o n.º 2 do artigo 12.º da LGT que “Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”, o que significa que a Lei n.º 15/2010, de 26/07, só poderia aplicar-se ao período decorrido a partir de 27/07/2010;

T) Também a aplicação do artigo 12.º, n.º 2 da LGT, à tributação de mais-valias, foi já pacificamente aceite pelas Decisões Arbitrais do CAAD, proferidas no âmbito do processo n.º 25/2011-T e do processo n.º 135/2013-T;

U) Em resumo, quer se aplique o n.º 1 do artigo 12.º da LGT (conforme se defende, em face da natureza instantânea do facto tributário constituído pela realização de mais-valias, sufragando o entendimento da sentença recorrida e dos acórdãos do STA, conhecidos nesta matéria), quer se aplique o n.º 2 do mesmo artigo (para quem desconsidere a especificidade da tributação de mais-valias e atenda ao carácter periódico, de formação sucessiva, do IRS), conclui-se que as alterações introduzidas pela Lei n.º 15/2010, de 26107, só podem aplicar-se aos factos ocorridos após a sua entrada em vigor, i.e., às mais-valias realizadas a partir de 27/07/2010;

V) Assim, deve ser julgado improcedente o recurso agora interposto pelo Digno Representante da Fazenda Pública, mantendo-se a sentença recorrida, o que se requer.

Termos em que deverá ser julgado improcedente, por não provado, o recurso apresentado pela Fazenda Pública, por manifesta falta de fundamento e violação das normas e princípios acima identificados, devendo manter-se a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa nos autos, tudo com as demais consequências legais».

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, com a seguinte fundamentação:

«[…] A nosso ver, pelas razões aduzidas pelos recorridos nas suas alegações, cujo discurso fundamentador se subscreve, o recurso não merece provimento.
A questão controvertida traduz-se em saber se a Lei 15/2010 se aplica apenas às mais valias resultantes da alienação de acções ocorrida após a sua entrada em vigor, sob pena de aplicação retractiva da lei, constitucionalmente proibida.
É possível distinguir três graus de retroactividade.
- Retroactividade de 1.º grau, em que “o facto verificou-se por inteiro ao abrigo da lei antiga, tendo já produzido todos os seus efeitos no âmbito dessa lei, A lei nova pretende retirar dos mesmos factos efeitos jurídicos distintos”.
Trata-se de uma retroactividade patente;
- Retroactividade de 2.º grau, em que “o facto também se verificou ao abrigo da lei antiga, aproximando-se por isso da retroactividade de 1.º grau. Mas desta se distingue porque os seus efeitos não se esgotaram por inteiro à sombra da lei velha, antes continuam a produzir-se no domínio temporal da aplicação da lei nova”.
O que tem relevância para determinar a norma temporalmente aplicável é o momento da ocorrência do facto tributário e não aquele em que a norma é concretamente aplicada.
- Retroactividade de 3.º grau, em que “por o facto não se ter verificado por inteiro à sombra da lei antiga, antes se prolongar na sua produção concreta no domínio temporal da lei nova. A situação é particularmente relevante no campo dos impostos periódicos que pressupõem uma acção continuada ao longo do período a que respeitam” (Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, I, página 192).
Sustenta o referido autor que a retroactividade de 3.º grau não consubstancia uma verdadeira retroactividade, devendo dividir-se os rendimentos, proporcionalmente ao tempo – «pro rata temporis», posição que parece partilhar o normativo do n.º 2 do artigo 12.º da LGT (LGT, anotada e comentada, 4.ª edição, 2012, página 130, Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa).
Ora, como veremos adiante, a aplicação da Lei 15/2010 às mais-valias em causa, resultantes da venda de acções operada em 11 de Maio de 2010, portanto, antes da entrada em vigor da referida lei, consubstanciaria uma aplicação retroactiva de 1.º grau, claramente proibida nos termos do estatuído nos artigos 12.º/1 da LGT e 103.º/2 da CRP.
O IRS é um imposto unitário sobre o rendimento global das pessoas singulares, periódico ou de formação sucessiva (artigos 1.º e 22.º do CIRS).
No entanto, o IRS contempla elementos de obrigação única como as taxas liberatórias (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, página 293, nota. 470).
No caso em análise está em causa a tributação de mais valias, que consubstancia um elemento do IRS/tributo de obrigação única.
Na verdade, incide sobre operações que se verificam e esgotam de modo instantâneo, sem prejuízo da matéria colectável ser apurada, anualmente.
Com efeito, nos termos do estatuído no artigo 10.º/3 do CIRS os ganhos, qualificados como mais-valias provenientes da alienação onerosa de valores mobiliários, consideram-se obtidos no momento da prática do acto de alienação.
O facto gerador da tributação das mais-valias é, assim, a alienação onerosa desses bens.
É, pois essa data (e não a do apuramento da matéria colectável ou outro) a relevante para efeitos de determinação da aplicação no tempo da lei nova, quando esta não dispõe de forma diversa (neste sentido, sobre questão idêntica à, ora, em apreciação, acórdão do STA, de 2014.01.08-P.01078/12, disponível no sítio da Internet www.dgsi).
A Lei 15/2010, de 26 de Junho entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (artigo 5.º), ou seja no dia 27 de Julho de 2010, sendo certo que não estabeleceu nenhum regime transitório.
Assim sendo, nos termos do estatuído no artigo 12.º da LGT, as alterações introduzidas ao CIRS, pela citada lei, apenas se podem aplicar aos factos tributários ocorridos a partir de 27 de Julho de 2010, como bem decidiu a sentença recorrida.
Uma vez que as acções foram alienadas em 03 de Fevereiro de 2010, as mais-valias daí resultantes não estão sujeitas a tributação em sede de IRS, nos termos do disposto no artigo 10.º/2/a), na redacção anterior.
A interpretação sustentada pela recorrente Fazenda Pública, com o devido respeito, afigura-se materialmente inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroactividade fiscal estatuído no artigo 103.º/3 da CRP».

1.5 Colheram-se os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos.

1.6 A questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença fez correcto julgamento ao considerar que a tributação das mais-valias decorrentes de actos de venda em data anterior a 27 de Julho de 2010 de acções detidas por mais de 12 meses, efectuada nos termos do art. 43.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), à taxa especial de 20% prevista no art. 72.º, n.º 4, do mesmo Código, tudo de acordo com a disciplina legal introduzida pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, entrada em vigor em 27 de Julho de 2010, viola o princípio da não retroactividade da lei fiscal, consagrado no n.º 3 do art. 103.º da CRP.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

O Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa procedeu ao julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«A) Em 30 de Janeiro de 2009, o primeiro Impugnante adquiriu acções da empresa C………….., S.A. (conforme resulta do documento n.º 2 anexo à P.I.).

B) Por sua vez, a 3 de Fevereiro de 2010, procedeu à alienação das respectivas acções nos termos a seguir descritos:

Data da operaçãoQuantidadeValor de alienaçãoValor de aquisição
03-02-20107.883103.503,797.883,00

(conforme resulta do documento n.º 2 anexo à PI.)

C) No dia 26/07/2010, foi publicada no DR, Série 1, n.º 143, a Lei n.º 15/2010, de 26/07, com o título sumariado «Introduz um regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa de 20% com regime de isenção para os pequenos investidores e altera o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e o Estatuto dos Benefícios Fiscais», cujo artigo 2.º diz «Revogação de disposições no âmbito do Código do IRS» «São revogados os n.ºs 2 e 12 do artigo 10.º do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro» e cujo artigo 5.º tem a redacção seguinte: «Entrada em vigor» «A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação».

D) Posteriormente, os Impugnantes procederam à submissão electrónica da sua declaração de rendimentos através da entrega do Modelo 3 de IRS de 2010, em Maio de 2011 (conforme resulta do documento n.º 2 anexo à P.I.).

E) Reportaram no Anexo G da sua declaração a alienação de acções acima identificada, tendo, face aos rendimentos, sido aprovada uma mais-valia mobiliária no montante de Euro 95.620,79 (conforme resulta do documento n.º 2 anexo à P.I.).

F) Sucede porém que os Impugnantes foram notificados do acto tributário de liquidação n.º 2011.5004544237, conforme resulta do documento n.º 2 anexo à P.I. e que aqui se dá para todos os efeitos como integralmente reproduzido, e do qual resulta um imposto relativo a tributação autónoma nos seguintes termos:

RendimentosMontanteTributação autónomaTaxa
Mais-Valias mobiliárias95.620,7919.124,1620%

G) Os ora Impugnantes apresentaram uma Reclamação Graciosa contra o acto de liquidação que aqui se impugna, (conforme resulta do documento de fls. 2 e seguintes do processo administrativo apenso, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

H) A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 19/04/2012, (conforme resulta de fls. 14 e segs. do processo administrativo apenso).

I) A decisão a que se refere a alínea anterior foi notificada aos Impugnantes em 05/06/2012, através do Ofício n.º 044243 (conforme resulta dos documentos de fls. 36 a 38 do processo administrativo apenso).

J) A petição inicial foi apresentada em 15/06/2012, conforme carimbo aposto a fls. 2)».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

A Administração tributária (AT) entendeu que as mais-valias resultantes da venda em 3 de Fevereiro de 2010 de acções que os ora Recorridos compraram em 30 de Janeiro de 2009 estavam sujeitas a tributação ao abrigo do regime fiscal introduzido pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, não obstante esta apenas ter entrado em vigor no dia seguinte ao da sua publicação. Ou seja, que essas mais-valias deviam ser tributadas nos termos do art. 43.º, n.º 1, do CIRS, à taxa especial de 20% prevista no art. 72.º, n.º 4, do mesmo Código, tudo de acordo com a disciplina legal introduzida pela referida Lei n.º 15/2010. Foi nesses termos que efectuou a liquidação de IRS ora impugnada.
A tese da AT, em resumo, assenta no entendimento de que o facto tributário gerador das mais-valias é complexo e de formação sucessiva, por a tributação incidir sobre a diferença ou saldo entre as mais-valias e as menos-valias apuradas no final do ano, pelo que não haveria obstáculo à aplicação da Lei n.º 15/2010, uma vez que ela se encontrava já em vigor no final de 2010, não ocorrendo, portanto, qualquer retroactividade proibida pela CRP.
Os Contribuintes discordaram dessa tese e subscrevem tese diferente, que foi a adoptada na sentença recorrida, louvando-se na jurisprudência deste Supremo Tribunal (Referimo-nos aos seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 4 de Dezembro de 2013, proferido no processo n.º 1582/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 26 de Junho de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2013/32240.pdf), págs. 4846 a 4857, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/eb432a58340b5d5780257c3f00443349;
- de 8 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 1078/12, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Setembro de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2014/32210.pdf), págs. 21 a 34, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/96a4009dc81027b180257c66004d07e1.).
Entendeu o Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, em síntese, que as mais-valias derivam de um facto tributário instantâneo, que se produz e esgota no momento da venda, e que, nessa circunstância, a aplicação da Lei n.º 15/2010 a um facto tributário instantâneo ocorrido antes da sua entrada em vigor representaria uma retroactividade autêntica, proibida pelo art. 103.º, n.º 3, da CRP. Porque a Lei n.º 15/2010 se limitou a definir a data da sua entrada em vigor, sem nada mais dizer sobre a respectiva aplicação temporal, entendeu ainda, face às regras legais sobre a aplicação da lei no tempo contidas nos arts. 12.º da LGT e 12.º do Código Civil, que o novo regime legal tinha aplicação apenas às mais-valias realizadas a partir do início da sua vigência.
Assim, a questão que ora cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença fez correcto julgamento quando decidiu que a tributação das mais-valias em causa deveria ser efectuada à luz da lei vigente à data dessa venda e não, como foi, nos termos da disciplina legal introduzida pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho.

2.2.2 DA APLICAÇÃO NO TEMPO DA LEI N.º 15/2010, DE 26 DE JULHO

A questão, após amplo debate, encontra-se hoje solucionada por esta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em termos que constituem jurisprudência consolidada (Posição adoptada, por unanimidade, em recentes acórdãos proferidos com intervenção de todos os actuais conselheiros da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.). Isto após ter sido proferido pelo Pleno da Secção o acórdão de 16 de Setembro de 2015, proferido no processo n.º 1292/14 (Acórdão publicado no Diário da República de 26 de Outubro de 2015, n.º 209/2015, Série I (https://dre.pt/application/file/a/70807083), páginas 9229 a 9237, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/098569d74503fa6280257ec9004ce088.), ao qual se seguiram outros, todos no mesmo sentido (Vide os seguintes acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 16 de Setembro de 2015, proferido no processo n.º 1504/14, ainda não publicado no jornal oficial, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/957cf37c72de300a80257ec7003ce043;
- de 2 de Dezembro de 2015, proferido no processo n.º 734/15, ainda não publicado no jornal oficial, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/65f001c7c16265c980257f17005816df;
- de 17 de Fevereiro de 2016, proferido no processo n.º 668/15, ainda não publicado no jornal oficial, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/066f3373cf81e3fa80257f62005887ea.).
Assim, atentando na regra constante n.º 3 do art. 8.º do Código Civil – que impõe ao julgador o dever de considerar todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito – e não se vendo que a Recorrente invoque em juízo novas razões que infirmem a fundamentação em que assentou essa decisão ou que levem a inflectir ou a divergir do entendimento aí afirmado, impõe-se remeter para essa fundamentação, que assim se acolhe e subscreve na íntegra.
Termos em que negaremos provimento ao recurso com a fundamentação constante do aludido acórdão.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões, decalcadas do sumário doutrinal do referido acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I - O CIRS estabelece, de forma clara e expressa, que constituem mais-valias os ganhos obtidos com a alienação onerosa de partes sociais e que tais ganhos se consideram obtidos no momento da alienação [art. 10.º, n.ºs 1, alínea b), 3 e 4], motivo por que, face ao momento em que se apuram – pela diferença entre o valor de realização e o de aquisição do bem transmitido –, as mais-valias não podem deixar de reportar-se a cada ganho de per si.
II - Por essa razão, o facto tributário nasce e esgota-se no momento autónomo e completo da alienação e da realização das mais-valias, sendo, por isso, um facto tributário instantâneo e não um facto tributário complexo de formação sucessiva ao longo de um ano, sem prejuízo de o valor a considerar para a determinação da base tributável para efeitos de IRS ser o correspondente ao saldo anual apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano.
III - A Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, é omissa no que toca ao estabelecimento de regras específicas quanto à sua aplicação no tempo, pois não contém qualquer norma que deponha sobre a sua aplicação temporal, limitando-se a prescrever que «[a] presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação» (cfr. art. 5.º), motivo por que esta fica sujeita à regra geral que rege a aplicação da lei fiscal substantiva no tempo, plasmada no art. 12.º da LGT.
IV - As mais-valias produzidas antes de 27 de Julho 2010 com a alienação de acções detidas há mais de 12 meses continuam a seguir o regime de não sujeição que vinha determinado no art. 10.º, n.º 2, alínea a), do CIRS anteriormente às alterações introduzidas pela Lei nº 15/2010, de 26 de Julho, e, como tal, não concorrem para a formação do saldo anual tributável de mais-valias a que se refere o art. 43.º do CIRS.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Dispensa-se a junção do acórdão para cuja fundamentação se remeteu, por o mesmo estar já publicado no Diário da República, em local supra indicado.

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Lisboa, 13 de Abril de 2016. - Francisco Rothes (relator) - Aragão Seia - Casimiro Gonçalves.