Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
492/15.3T9VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: RECORRIBILIDADE DE DESPACHO
CASO JULGADO FORMAL
CUSTAS DE INCIDENTE ANÓMALO
CRIME DIVERSO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
NULIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: RP20230712492/15.3T9VLG.P1
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AOS RECURSOS INTERLOCUTÓRIO E DA SENTENÇA INTERPOSTOS PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - O meio adequado para reagir contra decisão judicial que, no decurso da audiência de julgamento, indefere diligência de prova requerida por um sujeito processual, ao abrigo do artigo 340.º do Código de Processo Penal, é o recurso, pelo que, ao não ter sido oportunamente interposto recurso do despacho que indeferiu a realização daquela diligência probatória requerida, o mesmo transitou em julgado, impedindo a respetiva sindicância por parte do tribunal de recurso.
II - Um despacho que apenas se limita a deferir a junção aos autos de documentos requerida por determinado sujeito processual só fará caso julgado formal dentro do processo mantendo-se os seus pressupostos, isto é, faz caso julgado contingente de alteração das circunstâncias (rebus sic stantibus) em que assentou –– não o fazendo, paradigmaticamente, quando o tribunal, apreciando as circunstâncias processuais supervenientes entretanto ocorridas, verificar que as mesmas se alteraram, determinando agora decisão, por isso também, diversa.
III - Se a pretensão incidental deduzida foi submetida no momento processual apropriado, e surgiu no seio da dinâmica normal do processo – isto é, não se apresentando como totalmente descabida ou abusiva em face da atividade processual já originada anteriormente e que vinha sendo também seguida pelo tribunal a quo –, não dando causa a um acréscimo anormal da atividade processual, nem tão pouco a uma excessiva demora na tramitação do processo, o respetivo requerimento não deve ser qualificado como incidente anómalo para efeitos de tributação.
IV - A noção de «crime diverso» plasmada no artigo 1.º, f) do Código de Processo Penal não corresponde exatamente à singela consideração do mesmo tipo legal de crime – tal abriria a porta a uma modificação de tal forma ampla do objeto de facto do processo que, no final das contas, a única circunstância similar entre aquilo que fora submetido a julgamento e aquele que fosse o resultado do mesmo, estivesse na mera correspondência típica do crime pelo qual o arguido fosse condenado.
V - O regime previsto no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal impõe que a comunicação da alteração não substancial de factos em causa não encerre um juízo definitivo sobre a prova positiva dos mesmos, de tal forma que, no entender do tribunal, in limine esteja condenada à inutilidade qualquer atividade probatória subsequente relativamente aos mesmos; consequentemente, determina também que a concessão de oportunidade de defesa relativamente aos novos factos, seja real e efetiva, isto é, deve traduzir–se, pelo menos, numa substantiva ponderação sobre a utilidade e essencialidade material da produção dos meios de prova suplementar que venha a ser requerida pelo arguido.
VI – No caso vertente, resulta das incidências processuais reportadas à comunicação de alteração de factos ocorrida em julgamento que aquilo que o Tribunal a quo comunicou foram, afinal, factos cuja demonstração já considerava perfeitamente assentes e indiscutíveis no momento daquela comunicação, e, por outro lado, que o prazo que concedeu ao arguido, na sequência da mesma comunicação, não foi «para preparar a sua defesa» em termos materiais, mas tão só para tomar melhor conhecimento da factualidade alterada e, querendo, simplesmente se pronunciar quanto à mesma – não apreciando sequer o Tribunal da material relevância dos meios suplementares de prova requeridos; assim, não se mostram respeitados os pressupostos do regime aqui em causa, sendo, por isso, a sentença (que considerou assentes os factos em causa) nula nos termos do artigo 379.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal, tendo como consequência a invalidade de toda a tramitação processual subsequente à apresentação do requerimento do arguido na parte do mesmo que se reporta à produção suplementar de meios de prova.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 492/15.3T9VLG.P1
Referência: 17077359
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Valongo, Juiz 2 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto



Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 492/15.3T9VLG que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Valongo – Juiz 2, em 14/07/2022 foi proferida Sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor:
« 5. Decisão
Pelo exposto, e atentos os fundamentos de facto e de Direito invocados, julgo:
A. Procedente, por provada, a acusação pública deduzida contra o arguido AA, em consequência do que decido condená-lo, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelo art. 205.º, n.º 1 e 4, al. b), por referência ao disposto no art. 202.º, al. b), ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, cuja execução, ao abrigo do disposto nos arts. 50.º, 53.º e 54.º do mesmo Código, se suspende por igual período de tempo subordinada a regime de prova, para efeito devendo os serviços da DGRSP elaborar o PRS a que alude o art. 494.º, n.º 3 do Código do Processo Penal.
B. Parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil formulado pela “União Ciclista de ...”, enquanto demandante cível, contra AA, enquanto demandado cível, em consequência do que decido condená-lo no pagamento àquela do valor global de €48.865,00 (quarenta e oito mil, oitocentos e sessenta e cinco euros), acrescido de juros moratórios vincendos, a contabilizar à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
*
Custas criminais pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC – arts. 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e art. 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais– sendo as custas cíveis a suportar por demandante e demandado cível na proporção do respectivo decaimento – art. 527.º do Código do Processo Penal, ex vi art. 523.º do Código do Processo Penal.
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Notifique e deposite – art. 372.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
Após trânsito:
a. Boletins – art. 6.º, al. a) da L. n.º 37/15 de 05/05;
b. Envio de certidão da sentença aos autos n.º 17373/15.3T8PRT. »
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A. Do recurso interlocutório.

Previamente ao recurso interposto da decisão final, veio o arguido AA a dar entrada no processo de recurso do despacho proferido em 01/06/2022, na parte em que indeferiu várias diligências probatórias requeridas por aquele e em que o condenou em multa de 3 UC....
Apresenta em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação:
A. Vem o presente recurso interposto do despacho datado de 01.06.2022 – sob referência 437317447 - que, entre o demais, indeferiu diligência probatória previamente ordenada pelo Tribunal a quo, mais precisamente, a junção aos autos de documentos pela Assistente/Demandante consubstanciados nas actas de tal associação desde 2013 até à presente data, indeferiu a requerida notificação da Assistente/Demandante para esta identificar quem é o seu legal representante, nomeadamente, o seu presidente e demais órgãos sociais, juntando documento que titule tal legitimidade, indeferiu a requerida notificação do legal representante da Assistente/Demandante para que sejam tomadas as suas declarações, nos termos do artigo 145.º n.º 1, 346.º e 347.ºdo CPP, na audiência de julgamento agendada para 20.06.2022, e condenou o arguido em multa no valor de 3 UC’s.
B. Entende, pois, o Recorrente que o despacho proferido deverá ser alterado, por não ter plasmado e concretizado a solução jurídica adequada.
C. Destarte, o Recorrente discorda frontalmente da decisão em sindicância, apresentando as suas conclusões, nos termos que se seguem.
D. Ante omnia, cumpre ter presente que a 16 de Fevereiro de 2015 a Assistente/Demandante nos presentes autos apresentou Denúncia Criminal tendo junto um documento manifestamente incompleto (sob fls 12 a 14 dos autos), mais concretamente, uma acta sob o n.º 3 datada de 10.05.2012, da qual resultava, entre o demais, que o presidente da direcção da Assistente/Demandante era, alegadamente, o Sr. BB , sendo certo que tal documento, na data de apresentação da Denúncia Criminal, já não refletia a estrutura orgânica da Assistente/Demandante, o que se veio a apurar em sede de audiência de julgamento, nomeadamente, do depoimento da Testemunha BB. (Ficheiro Áudio n.º 20210513141956_15838875_2871601 (mn) 00:00:26 – (mn) 00:02:16)
E. Da supra identificada acta consta como secretário o aqui Arguido que, pelo menos, desde 2014, já não integrava os órgãos sociais da Assistente/Demandante conforme resulta abundantemente dos autos.
F. Pelo que o referido documento, com o devido respeito não demonstra a legitimidade da Testemunha BB para, no dia 16 de Fevereiro de 2015, apresentar em nome e representação da Assistente/Demandante, Denúncia Criminal contra o aqui arguido e posteriormente deduzir pedido de indemnização civil.
G. Para além de a Testemunha BB ter declarado no seu depoimento que já não é o legal representante da Assistente/Demandante, tal Testemunha em 19 de Novembro de 2014, constituiu uma nova associação denominada A... – Clube de Ciclismo, com o mesmo objeto e mesma finalidade, como resulta dos documentos juntos aos autos.
H. Mais resulta do documento junto em 18.04.2022 pelo Banco 1... que a conta bancária da Assistente/Demandante até “até 05 de Dezembro de 2014 era movimentada pelo Sr. BB”, desconhecendo-se quem após tal data assumiu as funções, i.e. quem é o novo legal representante e se o mesmo existe, ou se a Assistente/Demandante foi extinta.
I. Do depoimento da Testemunha CC e dos depoimentos por este juntos resultou que existia um contrato relativo ao ano de 2014 e 2015 (junto aos autos em 28.10.2021 – sob referencia citius n.º 30347622 -) com a Assistente/Demandante que alegadamente havia originado uma divida que deu origem a um processo judicial, sendo que foi a A... – Clube de Ciclismo que se veio a responsabilizar pela referida divida, conforme resulta da transacção judicial homologada por sentença junta aos autos.
J. Face a todas estas circunstancias, e considerando que a associação A... – Clube de Ciclismo foi reiteradamente referida pelas diversas testemunhas, o Recorrente nos termos do artigo 340.º do CPP, requereu, entre o demais que fosse ordenada a junção aos autos das actas da União Ciclista de ... (Assistente/Demandante), desde o ano de 2013 até à presente data.
K. Tal requerimento veio a ter acolhimento, tendo o Tribunal a quo ordenado a Assistente/Demandante juntasse tais documentos aos autos e prestasse os referidos esclarecimentos
L. Face ao incumprimento pela Assistente do mencionado despacho, o Recorrente por requerimento de 20.12.2021 – sob referência 30855447 - , requereu que o Tribunal ordenasse, uma vez mais, que a Assistente procedesse à junção aos autos de tais documentos e providenciasse pelos cabais esclarecimentos.
M. Por despacho de 06.01.2022 - sob referência 431877041 -, o Douto Tribunal a quo ordenou, uma vez mais, que a Assistente/Demandante promovesse pelo cumprimento do ordenado sob pena de condenação em multa.
N. A Assistente/Demandante mesmo assim não promoveu pelo cumprimento do despacho.
O. O Arguido, aqui Recorrente, insistiu, novamente, por requerimento de 10.03.2022, - sob referência 31627385 - porém, o Tribunal a quo não se pronunciou
P. Ainda assim o Recorrente volveu a insistir, por requerimento de 26.04.2022 - sob referência citius n.º 32065769-, tendo inclusivamente transcrito parcialmente o depoimento da testemunha BB, demonstrando a pertinência do requerido meio de prova.
Q. Neste enfoque, por douto despacho datado de 28.04.2022 -sob referência n.º 435965371 -, o Tribunal a quo renovou o mencionado despacho e condenou a Assistente em multa por omissão do dever de colaboração para com o Tribunal na descoberta da verdade.
R. Por despacho datado de 24.05.2022 o Tribunal a quo proferiu novo despacho que só foi remetido via citius em 26.05.2022, data em que se realizou a audiência de julgamento.
S. O Recorrente considerando que não havia sido notificado do despacho proferida, ressalvou que não prescindia do prazo legal para arguição de potenciais vícios do mesmo.
T. Em sede de audiência de julgamento o Recorrente referiu, ainda, que se encontravam em falta as actas requeridas, tendo o Ministério Publico igualmente promovido pela sua junção.
U. Sucede que a Mma Juiz a quo entendeu reverter, com o devido respeito, sem fundamento legal, a sua decisão anteriormente proferida por despachos sucessivos transitados em julgado.
V. Neste desiderato, o Recorrente, por requerimento de 30.05.2022, invocou os vícios que, no seu entendimento, o referido despacho padecia, alegando, entre o demais, que o mesmo violava o caso julgado formal.
W. Como é por demais consabido, a contraditoriedade das decisões é resolvida mediante o cumprimento da decisão que tiver passado em julgado, em primeiro lugar – cfr. arts. 625º, nº 1 e 2, ex vi art. 613º, nº 3 CPC.
X. Mais requerendo que o Tribunal a quo ordenasse que a Assistente identificasse o seu legal representante nomeadamente, o seu presidente e demais órgãos sociais, juntando documento que titule tal legitimidade e ordenasse a notificação do legal representante da Assistente/Demandante para que sejam tomadas as suas declarações, nos termos do artigo 145.º n.º 1, 346.º e 347.º do CPP, na audiência de julgamento agendada para 20.06.2022.
Y. Por despacho de 01.06.2022, que aqui se recorre, o Tribunal a quo indeferiu os vícios invocados, manteve a decisão de não promover pela junção aos autos das actas, nos termos previamente, ordenados, bem como indeferiu as diligencias probatórias requeridas, tendo condenado o Recorrente em multa de 3 UC’s.
Z. Para tal sufragou o Tribunal a quo que o deferimento da junção das actas da assistente se tratou de decisão tabular e genérica, porém, com o devido respeito não poderá tal fundamentação acolher, não só porque o Tribunal insistiu pelo cumprimento do despacho, como condenou efectivamente a Assistente/Demandante em multa por omissão do dever de colaboração para com o Tribunal, tendo, inclusivamente o Ministério Publico promovido pela junção dos documentos.
AA. Mais sustenta o despacho sob recurso que o legal representante da Assistente é a testemunha BB, porém, inexiste nos autos qualquer documento que sustente tal tese, sendo que a própria testemunha negou tal facto aquando do seu depoimento.
BB. Sendo ainda de salientar que a testemunha BB foi ouvido na qualidade de testemunha do ministério público e da assistente e não na qualidade de legal representante, o que resulta da acta da audiência de julgamento do dia 13.05.2021. (v. Ficheiro Áudio n.º 20210513141956_15838875_2871601, (mn) 00:00:26 – (mn) 00:01:00)
CC. É, por demais, evidente, com o devido respeito que os sujeitos processuais têm que estar devidamente identificados em juízo, sendo que o Recorrente tem o direito de saber e conhecer quem é efectivamente o legal representante da Assistente/Demandante e que o mesmo preste declarações nessa qualidade.
DD. De facto, as declarações do actual legal representante reputam-se essenciais e necessárias à boa decisão da causa, porquanto, poderá esclarecer efectivamente como foi a gestão da Assistente/Demandante pela Testemunha BB durante o período em crise nestes autos, que era à data o seu presidente.
EE. Mas mais, as requeridas actas da Assistente são essenciais para aferir da legitimidade da Testemunha BB para obrigar a Assistente/Demandante na data em que foi apresentada denuncia criminal e posteriormente deduzido pedido de indemnização civil.
FF. Sem olvidar que tais actas poderão reflectir quem efectivamente detinha competência para a gestão financeira da Assistente/Demandante, identificando e demonstrando que não era o Arguido!
GG. Desta feita, requer-se que V. Exas. se dignem ordenar pela produção dos requeridos meios de prova nos termos do artigo 340.º do CPP.
HH. Sopesa, ainda, que o Recorrente foi condenado ao pagamento de 3 UC’s, por despacho que, numa clara violação do disposto nos artigos 97º, nº 5, do CPP e 205º, nº 1, da CRP, não se encontra fundamentado nem de facto nem de direito, sendo que face ao teor do despacho a arguição da irregularidade teria determinado nova condenação do Recorrente em multa caso o tribunal não acolhesse a argumentação veiculada.
II. O que manifestamente coarta as garantias de defesa do Recorrente com assento na lei fundamental.
JJ. Por outro lado, também não se vê qualquer fundamento, de facto ou de direito, e seja a que luz for, que integre a reação do ora recorrente ao despacho de indeferimento de diligências probatórias e correcção do despacho, num incidente processual anómalo ou estranho ao andamento normal do processo, a justificar a sua tributação em custas.
KK. Em abono da verdade, não se encontra prevista para o processo penal, qualquer tributação para incidentes por arguição de nulidades, pelo que não tem a decisão recorrida, no excerto visado, salvo o devido respeito, qualquer suporte legal, sendo por isso inadmissível por ilegal.
LL. Refira-se, a propósito, que a retificação do despacho requerida pelo Recorrente veio, inclusivamente, a ter acolhimento.
MM. O ora recorrente usou de uma prerrogativa legal que lhe permite, no prazo concedido para o efeito, o que aconteceu, suscitar a questão da nulidade do despacho que lhe indeferiu a junção das actas que havia previamente, e por despacho transitado em julgado, sido ordenada, não podendo tal requerimento considerar-se incidente ou procedimento anómalo, tributável nos termos estabelecidos nos artigos 7º ou 8º do RCP e na Tabela anexa II, nem se prefigura qualquer justificação para a condenação do ora recorrente em custas, a qualquer outra luz.
NN. Desta feita, apenas se pode concluir que a condenação do ora recorrente imposta no aludido segmento do despacho visado carece de qualquer fundamento legal, pelo que deve ser o mesmo integralmente revogado, ficando sem efeito a sua condenação em 3UC`s, porquanto, entende o recorrente que foram violados pelo douto tribunal a quo, entre outros, os artigos 97º, nº 5, 515º, 521º, 524º do Código de Processo Penal, 7º e 8º do Regulamento das Custas Processuais e 205º da Constituição da República Portuguesa e os preceitos, penal e constitucionalmente consagrados, da legalidade, da tipicidade, da proporcionalidade e da adequação
OO. Tudo isto sem nunca descorar o facto de a Assistente/Demandante no decurso da fase de julgamento ter submetido dezenas de requerimentos aos autos, tendo ainda requerido a produção de inúmeros meios de prova, nomeadamente, testemunhal e documental, tendo o Recorrente, inclusivamente, em inúmeros casos arguido a nulidade, sem que nunca se tenha promovido pela condenação da Assistente/Demandante em multa.
PP. Na verdade, os Requerimentos da Assistente/Demandante foram na sua maioria, se não na totalidade deferidos, apesar de o Recorrente ter, em tempo, arguido os vícios que as mesmas padeciam (por não terem qualquer relação com o objecto do processo, tendo sido, mesmo assim, ordenada a junção aos autos de documentação que não se descortina sequer a sua relevância, até porque a Assistente/Demandante nunca a explanou ou enquadrou, limitando-se a requerer.
QQ. Desta feita, apenas se pode concluir que o despacho sob recurso viola o princípio da igualdade que, consagrado no artigo 13.º da CRP, que, como é por demais consabido impõe a igualdade de tratamento para situações iguais.
RR. A omissão de produção de meio de prova necessário, no sentido de essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, constitui nulidade relativa, nos termos da alínea d) do n.º2 do artigo 120.º, que aqui expressamente se invoca para o douto conhecimento de V. Exas, porquanto incumbe ao tribunal o poder/dever de ordenar oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, o que constitui a consagração, no nosso sistema, do princípio da investigação ou da oficialidade, o que – repete-se – havia sido deferido.
SS. É manifesta a necessidade e essencialidade da produção dos meios de prova acima identificados, face aos fundamentos invocados, pelo que o seu indeferimento viola flagrantemente o artigo 340.º do CPP, bem como as garantias de defesa do Arguido, aqui Recorrente.
TT. Neste contexto, impõe-se o provimento ao presente recurso, revogando o despacho recorrido de indeferimento de prova e admitindo os requerimentos de prova formulados pelo Recorrente, ordenando a assistente e/ou as Testemunhas BB, DD, EE a instruírem os autos com todas actas da Assistente/Demandante posteriores à acta n.º 3, desde 2013 até à presente data, e que titulem a legitimidade do(s) titulares dos cargos dos órgão sociais que procederam à apresentação da denuncia criminal e dedução de pedido de indemnização civil, e como tal, em representação e em nome da União Ciclista de ... a constituíram Assistente/Demandante.
UU. Consequentemente, deve o despacho sob recurso de indeferimento de prova ser revogado e substituído por outro que ordene que a Assistente/Demandante identifique quem é o seu legal representante, nomeadamente, o seu presidente e demais órgãos sociais, juntando documento que titule tal legitimidade, e consequentemente ordene a requerida notificação do legal representante da Assistente/Demandante para que sejam tomadas as suas declarações, nos termos do artigo 145.º n.º 1, 346.º e 347.ºdo CPP, em audiência de julgamento.
VV. Por fim, deve o despacho aqui em crise ser revogado na parte em que procede à condenação em multa do arguido no valor de 3 UC’S, não sendo o mesmo condenado a qualquer em qualquer multa por utilizar meio processual adequado e tempestivo.
Face ao exposto, entende-se que a Meritíssima Juiz A Quo decidiu mal e, por conseguinte, deverá o presente Recurso ser julgado totalmente procedente. A douta decisão recorrida violou os dispositivos legais acima enunciados bem como os princípios gerais de direito, pelo que, não poderá mantida.
Nestes termos, e nos melhores de direito que v. Exa. Doutamente suprirá, deverá o presente recurso ser considerado totalmente procedente, por provado, e em consequência deve o despacho recorrido:
a. Ser julgada verificada a violação de caso julgado formal e como tal ser o despacho sob recurso revogado e substituído por outro que ordene a assistente e/ou as Testemunhas BB, DD, EE a instruírem os autos com todas actas da Assistente/Demandante posteriores à acta n.º 3, desde 2013 até à presente data, e que titulem a legitimidade do(s) titulares dos cargos dos órgão sociais que procederam à apresentação da denuncia criminal e dedução de pedido de indemnização civil, e como tal, em representação e em nome da União Ciclista de ... a constituíram Assistente/Demandante, ou mesmo que se entenda que inexiste violação de caso julgado, deve tal meios de prova ser ordenado por essencial e necessário a boa decisão da causa, nos termos do artigo 340.º do CPP,
b. ser revogado e substituído por outro que ordene que a Assistente/Demandante identifique quem é o seu legal representante, nomeadamente, o seu presidente e demais órgãos sociais, juntando documento que titule tal legitimidade, e consequentemente ordene a requerida notificação do legal representante da Assistente/Demandante para que sejam tomadas as suas declarações, nos termos do artigo 145.º n.º 1, 346.º e 347.ºdo CPP, em audiência de julgamento;
c. ser revogado na parte em que procede à condenação em multa do arguido no valor de 3 UC’S, sendo substituído por outro, não o condenando em qualquer multa porquanto se considere ter utilizado meio processual adequado e tempestivo.

O recurso, em 05/07/2022, foi admitido.
A este recurso respondeu o Ministério Público, em 03/11/2022, concluindo da seguinte forma:
1. Não assiste qualquer razão ao recorrente, devendo o douto despacho recorrido ser mantido em toda a linha.
2. Nenhuma norma se mostra ter sido violada no despacho recorrido.
3. O recorrente sustenta que, pelo tribunal a quo não foram realizadas diligências essenciais à descoberta da verdade, por si requeridas, nos termos do artigo 340º do Código de Processo Penal.
4. Ora, o tribunal deve, oficiosamente, ou a requerimento das partes, ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, competindo-lhe investigar o facto sujeito a julgamento e construir por si os alicerces da decisão, independentemente da contribuição dada quer pela acusação quer pela defesa. No entanto, tal princípio sofre as limitações impostas pelos princípios da necessidade (só são admissíveis os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade), da legalidade (só são admissíveis os meios de prova não proibidos por lei) e da adequação (não são admissíveis os meios de prova notoriamente irrelevantes, inadequados ou dilatórios).
5. Nos termos dos n.ºs 3 e 4 do citado art. 340º, os requerimentos de prova são indeferidos quando a prova ou o respetivo meio forem legalmente inadmissíveis (n.º 3) ou se for notório que: - as provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa [n.º 4, al. a)]; - as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas [n.º 4, al. b)]; - o meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa [n.º 4, al. c)]; - ou o requerimento tem finalidade meramente dilatória [n.º 4, al. d)].
6. Na verdade, o Ministério Público, o assistente, o arguido e as partes civis podem requerer a produção de meios de prova durante a audiência de julgamento no tribunal de 1.ª instância. O art. 340.º n.º1 e 2 do Código de Processo Penal permite-o expressamente. Contudo, esta faculdade é excecional. Por isso se estabelecem prazos para requerer a produção de prova (art. 79.º n.º1, 165.º n.º1 e 315.º n.º1, todos do Código de Processo Penal).
7. Assim, os meios de prova requeridos na audiência de julgamento têm de ser meios de prova “supervenientes” (art. 328.º n.º3 e 360.º n.º4), ou cuja junção no momento próprio “não foi possível” – art. 165.º n.º1 do CPP.
8. O Tribunal pode ordenar a produção de prova requerida pelo arguido ou pelo assistente durante a audiência, ao abrigo do disposto no artº 340º do Código de Processo Penal, se o seu conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
9. No caso em apreço, a MMª Juíza ad quo, no douto despacho ora posto em causa, indeferiu as diligências probatórias requeridas pelo arguido ao abrigo do disposto no artº 340º do Código de Processo Penal, por entender que as mesmas em nada serviam o interesse da descoberta da verdade material, ao invés servindo para protelar tal objetivo. E aqui não se vislumbra qualquer violação do princípio da igualdade tal como invocado pelo recorrente, ao afirmar que à assistente/demandante foram deferidos maioritariamente ou na totalidade os respetivos requerimentos pois, se foram admitidos à assistente foi porque os mesmos foram considerados adequados, pertinentes e relevantes para a descoberta da verdade, assim como ao arguido também foram deferidos os requerimentos pertinentes a servir tal desiderato.
10. Invocar a coartação das garantias de defesa do arguido não pode servir como forma de pressionar o julgador a admitir indefinidamente requerimentos, que na sua ótica, são manifestamente redundantes e dilatórios, como entendeu a MMª Juíza ad quo no caso vertente, razão pela qual se nos afigura não assistir razão ao ora recorrente.
11. O recorrente insurge-se, ainda, contra a condenação em custas, alegando tratar-se de uma clara violação do disposto nos artºs 97º, nº 5, do Código de Processo Penal e 205º da Constituição da República Portuguesa e não se encontrar fundamentado de facto e de direito.
12. Resulta à evidência do despacho posto em crise e do próprio segmento que condena em custas que o arguido é condenado por persistir em requerimentos do jaez do apresentado, repetitivos em termos de diligências requeridas ou de diligências dilatórias, configurando, no fundo, um incidente anómalo, como resulta à evidência das atas das inúmeras sessões do julgamento e dos inúmeros e sucessivos requerimentos juntos pelo arguido. Ora, tal condenação encontra justificação no Regulamento das Custas Judiciais aplicável subsidiariamente ao processo penal por força do disposto no artº 524º do Código de Processo Penal, mais concretamente no artº7º.
Nestes termos e noutros que Vas Exas doutamente saberão suprir, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida na íntegra e nos seus termos, assim se fazendo, como sempre.

Nesta parte, e neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no parecer que emitiu, acolheu a posição da resposta ao recurso pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, pugnando igualmente pela respectiva improcedência, aditando:
« Quanto ao âmbito de aplicação do artigo 340.º do CPP, o mesmo insere-se nos princípios que regem a prova e neles se conjuga a necessidade de criar momentos processuais próprios para a sua apresentação, com vista a assegurar-se o contraditório e a estabelecer-se uma abertura de caracter excepcional para produção suplementar de prova durante o julgamento, em consonância com os princípios conformadores do CPP de busca da verdade material e da investigação, podendo o tribunal de julgamento, por mote próprio ou a requerimento, permitir essa prova superveniente.
No entanto, esse mecanismo previsto no artigo 340.º do CPP tendo como base esses princípios, também pressupõe que o seu âmbito de aplicação não sirva à produção de actos de prova ilegais, inúteis ou dilatórios.
É nesse equilibro que deve ser avaliada a pertinência da aplicação do artigo 340.º do CPP.
Parece-me manifesto tendo presente a factualidade constante da acusação e os factos apurados em julgamento, que o requerimento de prova apresentado pelo arguido subverte essa lógica, colocando um ónus de produção de prova acrescido à assistente que não está contemplado, para suposta prova de versão alternativa dos factos que na verdade o arguido optou por não apresentar, sendo por isso manifesto que o requerimento em causa pretendia desviar o curso da produção de prova sem fundamento justificativo e percetível para a busca da verdade material, pelo que foi totalmente correcto o seu indeferimento. »

Cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, veio a assistente “União Ciclista de ...” declarar corroborar o parecer emitido pela PGA.


B. Do recurso da Sentença condenatória.

Inconformado com a Sentença condenatória proferida, dela recorreu, em 04/10/2022, o arguido AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem na parte relevante para a presente decisão :
(…)
D. Neste enfoque, no entender do Recorrente, a referida decisão padece dos seguintes vícios:
i. Nulidade da sentença recorrida nos termos do artigo 379.º n.º 1 al. b) do CPP, por violação do artigo 358.º do CPP, tendo ocorrido a alteração substancial dos factos.
ii. Do indeferimento dos meios de prova – nulidade art. 120.º n.º 2 al. d) do CPP
iii. Da condenação em custas pela arguição de vícios processuais
iv. Erro de julgamento na matéria de facto;
v. In dubio pro reo
vi. Do recurso do pedido de indemnização civil
vii. À cautela, sem prescindir, o que por mero dever de patrocínio se concede, e caso v. exas. da medida concreta da pena.
E. Entende, pois, o Recorrente que a sentença proferida deverá ser alterada, por não ter plasmado e concretizado a solução jurídica adequada à factualidade em causa nos autos.
F. Destarte, o Recorrente discorda frontalmente da decisão em sindicância, apresentando as suas conclusões, nos termos que se seguem.
I. DAS NULIDADES:
1.DA ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
G. Por despacho proferido no dia 05.07.2022 o Tribunal a quo veio aditar 10 (dez) novos factos ao objecto do processo, que qualificou como alteração não substancial dos factos, tendo o Recorrente promovido pela sua pronúncia quanto a tal alteração, no prazo concedido para o efeito, mais precisamente no dia 13.07.2022.
H. Em suma, invocou o Arguido que a alteração operada pelo Tribunal se traduzia numa alteração substancial dos factos, o que convocava a nulidade de tal despacho.
I. Alternativamente, e caso o Tribunal a quo não julgasse procedente a invocada nulidade, o Arguido requereu que se realizassem diligências probatórias adicionais uma vez que os factos aditados não havia sido oportunidade de o arguido se defender e de sob os mesmos produzir prova que afastasse tais condutas.
J. Sopesa que, por despacho de 14.07.2022, proferido em sede de audiência de julgamento, o Tribunal a quo julgou improcedente a aduzida nulidade, condenando o Recorrente no pagamento de custas, que fixou no máximo legal. (v. acta audiência de julgamento de 14.07.2022)
K. Cumpre salientar que o Recorrente invocou a irregularidade de tal despacho, nos termos do art. 97.º n.º 5 e 123.º ambos do CPP, o que não veio a ter acolhimento pelo Tribunal a quo. (v. acta audiência de julgamento de 14.07.2022)
L. Compulsada a sentença recorrida e a fundamentação na mesma expendida verificamos que, de facto, a alteração dos factos operada pelo Tribunal não se tratou de uma alteração não substancial dos factos mas antes de uma verdadeira alteração substancial dos factos, a qual se encontra expressamente pela Lei Processual penal.
M. Neste enfoque, entende o Recorrente que o Tribunal a quo promoveu pela alteração substancial dos factos que conformam o objecto do processo, o que consubstancia uma nulidade nos termos e para os efeitos do artigo 359.º n.º 1 e 379.º n.º 1 al. b), ambos, do CPP.
N. No caso concreto, constata-se que do cotejo da fundamentação da decisão recorrida com a acusação pública e decisão instrutória, o Tribunal a quo condenou o Recorrente pela prática do crime de abuso de confiança qualificado assentando-se em factualidade que não conforma o objecto do processo.
O. Tanto, assim, que a decisão recorrida excerta nos autos que o Recorrente praticou condutas que não vinham descritas na acusação e que em momento algum foram imputadas ao Recorrente.
P. Veja-se, o ponto a. do despacho a quo de 05.07.2022 que vem sufragar que O arguido logrou efectuar as discriminadas transferências bancárias por virtude da consideração de que a UC... e o próprio beneficiavam junto dos responsáveis do Banco 1...”, no que contava com o auxílio de EE (...).
Q. Por sua vez, o libelo acusatório acusava o Recorrente de em virtude de uma procuração ter logrado proceder a transferências bancárias para a sua conta. (cfr. pontos 2 e 5 a 8 da Acusação Pública)
R. Sucede que resultou provado que tal procuração (melhor identificada nos pontos 2 dos factos provados da sentença) não conferia poderes para o Recorrente movimentar a conta bancária da Assistente.
S. Mais resulta da prova documental junta pelo Banco 1... em 21 de Março de 2022 e 18 de Abril do mesmo ano ao autos, sob fls..., que o Arguido à data dos factos em crise nos autos não detinha sequer conta bancária no Banco 1..., pelo que naturalmente não detinha qualquer relação com a mencionada instituição bancária ou com os seus responsáveis.
T. Pese embora, não decorre da decisão sob recurso em que se consubstanciava o “auxilio” ou em que actos o mesmo se materializou.
U. Embora se reforce que o arguido não tenha praticado tais factos, certo é que estamos perante uma alteração resultante da requalificação da participação do agente de autoria para co-autoria (o que aqui não se aceita ou consente).
V. Com efeito, da sentença a quo decorre que o Arguido logrou efectuar as transferências devido ao auxílio de terceiro, o que para além de falso carece de sustento probatório, até porque as instituições bancárias estão sujeitas a apertados regimes de fiscalização e de actuação.
W. Sendo que, como acima se mencionou, o Banco 1... esclareceu os autos, mediante a junção de documentação da qual resulta inequívoco que a única pessoa com poderes para sozinho movimentar a conta da Assistente era a Testemunha BB. (cfr. prova documental e emails do Banco 1... junta aos autosem 21 de Março de 2022 e 18 de Abril do mesmo ano ao autos, sob fls...)
X. Lamentavelmente, nem admitiu Tribunal a quo que se produzisse prova para afastar tal facto, porém, lá chegaremos.
Y. A mesma linha de raciocínio, quanto à requalificação da participação do agente se aplica ao facto e. do despacho aqui em crise, visto que do mesmo decorre que o arguido “ou alguém a seu mando, no seu interesse e com o seu conhecimento, celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a “B... – Companhia de Seguros, SA (...).”
Z. Sem que se consiga antecipar a relevância de tal facto, visto que o arguido não vinha acusado nem pronunciado ou sequer foi apresentada queixa-crime relativamente a um qualquer contrato de seguro, que sempre se diga inexistem documentos assinados pelo Recorrente, porém, não permitiu o Tribunal a quo que se produzisse prova para afastar tal facto.
AA. Discorre ainda o despacho de 05.07.2022, no ponto f) que foi aditado do seguinte facto “(...) o arguido dispunha do cartão de débito associado à conta bancária da assistente e de cheques assinados por BB.”
BB. Facilmente se depreende da leitura da Acusação Pública bem como da decisão instrutória que nunca se imputou ao arguido que estivesse na posse do cartão multibanco da Assistente nem tampouco de cheques assinados pela Testemunha BB.
CC. Pelo contrário, existem três cheques em crise nos autos, sendo que a acusação publica consigna que os mesmos foram preenchidos e assinados pela Testemunha BB, presidente da Assistente (cfr. ponto 9 da Acusação Pública).
DD. De seu lado, transferências bancárias descritas na acusação o Arguido vinha acusado de ter logrado executar tais transferências em virtude de uma procuração melhor identificada nos pontos 2, 5 e 6 da Acusação Pública.
EE. Tendo-se provado que a referida procuração não concedia, como referimos, poderes para o Recorrente movimentar a conta bancária, nunca tendo sido imputado que o arguido estaria na posse do cartão multibanco da Assistente ou de cheques assinados e não preenchidos. (cfr. n.º 6 factos provado sentença recorrida)
FF. Nunca foi imputado ao ora Recorrente nenhuma conduta susceptível de enquadrar o preenchimento abusivo de cheques ou de possuir o cartão multibanco da Assistente e do mesmo ter realizado transferências abusivamente ou à revelia da Assistente, sendo que tal consubstanciam factos novos.
GG. Em bom rigor, a Acusação Pública e decisão instrutória não levantam sequer o véu de que a Testemunha BB, então presidente, desconhecia o destino de tais verbas, motivo pelo qual os preencheu e assinou, como decorre do libelo acusatório.
HH. De igual modo, os pontos g), h) e i) do despacho de 05.07.2022, vem imputar ao Arguido factos que em nada se relacionam com a matéria dos autos e cuja responsabilidade não estava acometida ao Recorrente, nomeadamente, a contabilidade organizada da Assistente.
II. Considerando que o Recorrente vinha acusado de se ter locupletado de quantias da Assistente, em virtude de uma procuração, mediante a qual havia logrado proceder a transferências bancárias, vir a sentença a quo considerar que tal procuração não lhe concedia tais poderes pelo que o descrito na acusação publica não corresponde à verdade, mas a final existia um cartão bancário na posse do recorrente, consubstancia uma verdadeira alteração no génese dos factos pelos quais o Recorrente vinha acusado, sendo as circunstâncias absolutamente dispares.
JJ. O mesmo se diga dos cheques em crise nos autos visto que nunca foi imputado que havia sido o Arguido a preencher tais cheques mas antes o presidente da Assistente, a Testemunha BB, o que resulta não só do ponto 9 da Acusação Pública, mas também do ponto 8 dos factos dados como provados da sentença recorrida.
KK. Também, o pedido de indemnização civil afirma que os referidos cheques foram emitidos pela Testemunha BB. (cfr. artigo 15 a 18 do pedido de indemnização civil da Assistente/Demandante)
LL. Naturalmente que se exige ao arguido – que se presume inocente (art. 32.º n,º 2 CRP) – que antecipe e preveja todas as imputações possíveis, independentemente da concreta acusação que contra si foi deduzida.
MM. Tendo presente que os cheques descritos na acusação foram preenchidos e assinados pelo Presidente da Assistente, a Testemunha BB, e depositados pelos beneficiários que a própria testemunha inseriu pelo seu punho, inexiste qualquer conduta ilícita da parte do Recorrente.
NN. Não tendo o Recorrente previsto que a final lhe viram imputar que teria cheques em branco, apesar de ser dado como provado que foram preenchidos pela Testemunha BB, o que é manifestamente contraditório.
OO. Por sua vez, as transferências bancárias o Recorrente visou demonstrar que não as poderia ter ordenado por tal procuração não lhe conceder poderes, pelo que as mesmas foram ordenadas pela Testemunha BB, porém, sem que o pudesse antecipar foi lhe imputada uma versão absolutamente díspar de que a final teria um cartão bancário.
PP. A acusação ou a pronúncia define e delimita o objecto do processo, fixando o thema decidendum, sendo o elemento estruturante de definição desse objecto, não podendo o tribunal promovê-lo para além dos limites daquela, o que constitui uma consequência da estrutura acusatória do processo penal.
QQ. O mecanismo da alteração dos factos em processo penal, a lei pretende que o arguido não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que não lhe foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente de se defender.
RR. Só assim se garantindo o cumprimento do mandamento constitucional previsto no artigo 32.º da CRP que impõe que ao Arguido sejam concedidas todas as garantias de defesa e que o processo criminal está subordinado ao princípio do contraditório.
SS. Observe-se, de resto, que a acusação não contém a narrativa dos factos passíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança não indiciando sequer os alegados factos que o Tribunal a quo visa, em sede de decisão final, enxertar no objecto do processo.
TT. Tal omissão obstou a que fosse possível exercer um direito de defesa na sua plenitude, o que deverá acarretar a nulidade da sentença, o que aqui expressamente se requer, na medida em que nos termos do disposto na al. b) do n.º 3 do art.º 283.º do Código de Processo Penal, não há lugar à existência de factos implícitos.
UU. Tais factos consubstanciam factos novos sobre os quais não foi dada oportunidade de sob os mesmos se defender, alteram categoricamente o substracto factual das condutas imputadas ao arguido.
VV. É, pois, inelutável que face à estrutura acusatória do processo penal português, constitucionalmente imposta (art.º 32.º, n.º 5, da CRP), os poderes de cognição do Douto Tribunal a quo estão, em fase de julgamento, rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação e pela decisão instrutória.
WW. Neste desiderato, e considerando que a Acusação Pública e bem assim a decisão instrutória não descrevendo ou tampouco concretizando as circunstâncias de tempo, lugar e modo em que poderia ter ocorrido uma inversão ilegítima da posse ou uma apropriação e muito menos qualquer conduta que revele que o recorrente usou as quantias como se fossem suas ou com dolo o Tribunal a quo apreciou factos novos que não foram sequer alegados pela Assistente ou denunciados.
XX. Acresce ao descrito, que não discorre da Acusação Pública nem decisão instrutória nem tampouco cuidou a sentença a quo de enunciar, com base nos factos que formulam o objecto do processo, o que fundamentou tal condenação do Recorrente e muito menos enunciou e demonstrou, os factos ou elementos que preencham o tipo objectivo e subjectivo dos ilícitos criminais aqui em crise.
YY. Desta sorte, não se antecipa como pode Douto Tribunal a quo pode sustentar que se tratou de uma mera alteração não substancial dos factos.
ZZ. É inelutável que os “factos” que constituem o objecto do processo têm que ter concretização suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o Arguido e, consequentemente, serem sujeitos a prova idónea, o que manifestamente não se verifica no caso concreto.
AAA. Os factos acima enunciados tratam-se de factos novos que não são autonomizáveis dos presentes autos, motivo pelo qual o Tribunal a quo se encontrava impossibilitado de conhecer, pelo que ao decidir como decidiu, incorreu, com o devido respeito, numa alteração substancial dos factos.
BBB. Com efeito, e sem prejuízo do Arguido não ter praticado os factos pelos quais vem acusado, cumpre, arguir a nulidade dos presentes autos nos termos e para os efeitos do artigo 379.º n.º 1 al. b) do CPP pela verificação de uma alteração substancial dos factos expressamente vedada nos termos do artigo 359.º n.º 1 do CPP.
CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, O QUE POR MERO DEVER DE PATROCÍNIO SE CONCEDE,
CCC. No seguimento do supra invocado, tendo o despacho de 05.05.2022 aditado ao objecto do processo factos pelos quais o Recorrente não vinha acusado ou pronunciado, deveria ad minimum, o Tribunal a quo ter deferido os meios de prova requeridos pelo Arguido, em sede de requerimento datado de 13.07.2022.
DDD. Refira-se, assim, que não sendo imputado ao arguido que este estaria na posse do cartão multibanco da Assistente ou de cheques assinados
EEE. Foi o Arguido absolutamente surpreendido com tais factos, sem que lhe fosse concedida oportunidade de sob os mesmos se defender, o que viola liminarmente as suas garantias de defesa (artigo 32.º CRP).
FFF. Desta sorte, não sendo ao Arguido, aqui Recorrente, imputada das condutas descritas no despacho de 05.07.2022, não antecipou que teria que inquirir as Testemunhas ou requerer a produção de meios de prova documental que demonstrassem que não tinha na sua posse cartão multibanco da Assistente, cheques em branco, nem tampouco subscreveu qualquer apólice de seguro, da qual sempre se digam resulta que existem mais elementos que foram segurados como ciclistas e exerciam outras funções.
GGG. O Arguido invocou quer a irregularidade (artigos 97.º n.º 5 e 123-º do CPP) quer a nulidade (120.º n.º 2 al. d) do CPP) do despacho que indeferiu os requeridos meios de prova face à alteração dos factos, conforme resulta da acta a audiência de julgamento de 14.07.2022.
HHH. O Tribunal a quo, por despachos, proferidos na mesma data, indeferiu os aduzidos vícios. (cfr. acta de audiência de julgamento de 14.07.2022)
III. Assim, vem o Recorrente interpor recurso.
JJJ. Porquanto, a exiguidade probatória é patente, motivo que leva a decisão recorrida a assentar em presunção ao invés de meios de prova.
KKK. A título exemplificativo, veja-se o segmento da sentença recorrida que consigna que: “queda por explicar por que motivo careceria o arguido, que dispunha de cheques assinados por BB e do cartão de débito associado à conta bancária da assistente.”
LLL. Tal denota a necessidade de se produzir os meios de prova requeridos por requerimento de 13.07.2022, que aqui se dá por integralmente reproduzido para os legais e devidos efeitos, sendo os mesmos imprescindíveis à boa decisão da causa e defesa do Recorrente.
MMM.É manifesta a necessidade e essencialidade da produção dos meios de prova melhor identificados no requerimento de 13.07.2022 do Arguido, face aos fundamentos invocados, pelo que o seu indeferimento viola flagrantemente o artigo 340.º do CPP, bem como as garantias de defesa do Arguido, aqui Recorrente.
NNN. A omissão de produção de meios de prova necessário, no sentido de essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, viola o artigo 340.º do CPP, e constitui nulidade relativa, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º, que aqui expressamente se invoca, uma vez mais, para o douto conhecimento de V. Exas.
OOO. Requer-se que V. Exas. se dignem julgar verificada a invocada nulidade, com as legais consequências.
II. DA CONDENAÇÃO DO RECORRENTE NO PAGAMENTO DE CUSTAS PELA ARGUIÇÃO DE VÍCIOS (IRREGULARIDADE E NULIDADES)
PPP. Como acima se mencionou, no dia 05.07.2022, foi proferido despacho no qual o Tribunal a quo notificou os sujeitos processuais da alteração dos factos, que qualificou como não substancial.
QQQ. O Recorrente, requereu prazo para pronuncia, nos termos do art. 358.º n.º 1 CPP, tendo junto aos autos a sua pronúncia no dia 13.07.2022, porém, no dia 14.07.2022 foi notificado do despacho que indeferiu as suas pretensões e o condenou no pagamento de custas que a Mma. Juiz a quo fixou no máximo legal. (v. acta audiência de julgamento de 14.07.2022)
RRR. Por conseguinte, na mesma data, em virtude de requerimento a arguir a irregularidade de tal despacho, porquanto, o mesmo não se encontrava fundamentado de facto e de direito (arts. 97.º n.º 5 e 123.º CPP) foi novamente o Recorrente condenado condenou no pagamento de custas que a Mma. Juiz a quo fixou no máximo legal. (v. acta audiência de julgamento de 14.07.2022)
SSS. A acrescer que invocando a nulidade (120.º n.º 2 al.d) do CPP) a Mma. Juiz a quo condenou o aqui Recorrente no pagamento de custas que fixou no máximo legal. (v. acta audiência de julgamento de 14.07.2022)
TTT. Sempre terá que se salientar que a lei processual penal nem qualquer outra prescrição normativa, prevê tributação para a arguição de nulidades ou irregularidades e muitos menos pelo exercício do direito a se pronunciar a coberto do artigo 358.º n.º 1 do CPP.
UUU. Com efeito, tais vícios têm que ser invocados no momento sob pena da sua sanação como prescreve o CPP, sendo que tal não constitui qualquer incidente anómalo ou um desvio à marcha do processo que justifique a sua tributação em custas.
VVV. Ao decidir da forma explanada o Tribunal a quo, violou, entre outros, os artigos 97º, nº 5, 514º, 521º, 524º do Código de Processo Penal, 7º e 8º do Regulamento das Custas Processuais e 205º da Constituição da República Portuguesa e os preceitos, penal e constitucionalmente consagrados, da legalidade, da tipicidade, da proporcionalidade e da adequação.
WWW. Desta feita, devem os despachos aqui em crise, proferidos em 14.07.2022 ser revogados na parte em que procedem à condenação em custas, no máximo legal, não sendo o mesmo condenado a qualquer título.
(…)

O recurso, em 10/10/2022, foi admitido.

A este recurso respondeu o Ministério Público, em 03/11/2022, concluindo da seguinte forma ,também na parte relevante para a presente decisão :
1. Não assiste qualquer razão ao recorrente, devendo a sentença recorrida ser mantida em toda a linha.
2. Nenhuma norma se mostra ter sido violada na sentença recorrida.
3. O recorrente invoca, como questão prévia, que mantém interesse na apreciação do recurso por si interposto em 20.06.2022, no qual sindica o despacho judicial de 01.06.2022. Relativamente a tal recurso o Ministério Público já apresentou a sua resposta, reiterando aqui, por uma questão de economia, os argumentos aí apresentados.
4. O tribunal ad quo operou à alteração não substancial dos factos aqui posta em causa, comunicou-a ao arguido e concedeu-lhe prazo para defesa, prazo que o arguido usou para dar a conhecer ao tribunal o seu entendimento de que considerava tratar-se de uma alteração substancial violadora de princípios do acusatório e da vinculação temática, entendimento que reitera no recurso.
5. Para que haja uma alteração substancial de factos tem de haver, obviamente, uma alteração de factos, tal alteração tem de ser relevante para a imputação de um crime diverso ao arguido, ou, em alternativa, para a agravação dos limites máximos das sanções.
6. A questão trazida pelo recorrente não contende nem com a imputação de um crime diverso, nem com a agravação dos limites da sanção.
7. É verdade que o processo penal tem estrutura acusatória como diz a Constituição da República Portuguesa no nº 5 do artigo 32º.
8. A estrutura acusatória do processo penal significa duas coisas: por um lado o reconhecimento da participação constitutiva dos sujeitos processuais na declaração do direito do caso; por outro, o reconhecimento do princípio da acusação, segundo o qual terá de haver uma diferenciação material (e não simplesmente formal) entre o órgão que instruiu o processo e dá acusação e o órgão que a vai julgar.
9. Assim, a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objeto do processo, é ela que delimita o conjunto dos factos que se entende consubstanciarem um crime, estabelecendo assim os limites à investigação do tribunal. É nisto que se traduz o princípio da vinculação temática. Assim se garante que o arguido não seja surpreendido com novos factos, com os quais não contava, nem podia contar. E se novos factos surgirem que impliquem uma alteração substancial, para que o arguido possa ser por eles julgado, tem de dar o seu acordo.
10. No entanto, o objeto do processo permite, sob o ponto de vista objetivo, alguma maleabilidade, traduzida no equilíbrio entre o princípio do acusatório e o dever de investigação. O que permite que se aditem ou suprimam factos.
11. A supressão, em princípio, não afeta o arguido. Já o aditamento pode ser substancial ou não substancial.
12. O que não pode ocorrer, tendo em conta a separação inultrapassável entre quem acusa e quem julga, é que na fase de julgamento sejam ultrapassados os poderes de cognição que estão limitados pela matéria de facto constante da acusação. É a essa factualidade que o juiz pode estender a investigação.
13. A alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de tempo ou espaço, que transforma o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, enquanto a alteração não substancial constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transforma o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas de modo parcelar e mais ou menos pontual e sem descaracterizar o quadro factual da acusação e sempre sem relevância para alterar a qualificação penal.
14. A questão que em concreto se põe para se poder afirmar se se está perante uma alteração substancial ou não substancial é a de saber se os factos aditados aqui postos em causa constituíram surpresa para o arguido, isto é, se com eles não poderia contar.
15. E a nossa resposta, neste caso, não pode deixar de ser negativa. Os factos aditados serviram para esclarecer, para esmiuçar, para concretizar, o que já constava da acusação, mas sem o pormenor necessário. Com o aditamento o arguido não foi surpreendido. Conhecia-os, sabia que eram aqueles mesmos factos que suportavam a conclusão final. Mesmo assim foi–lhe dada a possibilidade de os contrariar. Não o fez, limitando-se a requerer diligências manifestamente dilatórias e redundantes, mas o certo é que, a sentença não condenou o recorrente por factos diversos dos descritos na acusação, nem fora das condições previstas no artigo 358º do Código de Processo Penal, pelo que não padece, no nosso modo de ver, de imputada nulidade.
16. O mesmo se diga do invocado prejuízo para as garantias de defesa do arguido. Ao arguido foi dada a possibilidade de contraditar os factos aditados, sendo certo que eles não vieram para os autos de uma realidade exterior ao processo, mas constavam da documentação existente nos autos, documentação que o arguido conhecia desde o inquérito e dos depoimentos prestados pelas testemunhas em audiência. A violação das garantias de defesa do arguido é outra realidade que não a invocada, porque o arguido foi informado do que lhe estava a ser imputado, foi-lhe concedido tempo e meios para contestar a acusação, foi-lhe permitido defender-se, oferecer provas, enfim, foi-lhe garantida a globalidade dos direitos que a ordem jurídica lhe reconhece.
17. No caso vertente, a MMª Juíza ad quo indeferiu as diligências de prova requeridas pelo arguido, por entender não serem as mesmas de todo essenciais para a descoberta da verdade material, estando subjacente às mesmas uma finalidade meramente dilatória. Subcrevemos tal posição em toda a linha, não se nos afigurando ser de acolher as suscitadas nulidade ou irregularidade da decisão de 14.07.2022 também aqui posta em crise.
18. No que tange à condenação do arguido no dito despacho de 14.07.2022, em taxa de justiça no máximo legal, dir-se-á muito singelamente que, resulta à evidência do despacho posto em crise e do próprio segmento que condena em custas que o arguido é condenado por persistir em requerimentos do jaez do apresentado, repetitivos em termos de diligências requeridas ou de diligências dilatórias, configurando, no fundo, um incidente anómalo, cuja condenação encontra justificação no Regulamento das Custas Judiciais aplicável subsidiariamente ao processo penal por força do disposto no artº 524º do Código de Processo Penal, mais concretamente no artº 7º.
(…)

Ao recurso também respondeu a assistente “União Ciclista de ...”, em 21/11/2022, concluindo da seguinte forma – transcrição parcial e na parte relevante para a presente decisão):
III. e IV. AS NULIDADES: DA ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS e do INDEFERIMENTO DOS MEIOS DE PROVA REQUERIDOS EM VIRTUDE DA ALTERAÇÃO DOS FACTOS e DA CONDENAÇÃO DO RECORRENTE NO PAGAMENTO DE CUSTAS PELA ARGUIÇÃO DE VÍCIOS (IRREGULARIDADE E NULIDADES)
9. Ao longo de todo o processo constatou-se que o Arguido utilizou abusivamente o presente processo penal ao «enxameá-lo» com inúmeros requerimentos deveras extensos, maçudos, repetitivos, inúteis, desnecessários e desmedidamente fora do objeto do processo, enquanto verdadeiras manobras dilatórias, com vista a protelar o desfecho final do processo.
10. O Arguido procurou, desse modo, obter benefícios, para si ilegítimos, em total prejuízo da Assistente, do Tribunal e da Justiça em geral, brincando, literalmente, com o trabalho desenvolvido neste processo, pelo Tribunal, Ministério Público e Assistente,
11. pelo que, o Tribunal a quo, e muito bem, apercebendo-se de tão lamentável expediente, deveras reincidente, lesivo, escandalosamente ilícito e contrário aos princípios da boa fé e aos interesses da Justiça, decidiu travar tal incessante ímpeto, já numa fase final, i.é., aquando da leitura de sentença, ao não admitir qualquer tipo de requerimento, apresentado nos autos, pelo Arguido, que, claramente, extravasasse o objeto do processo, de modo a evitar a reiterada atuação dilatória do Arguido, em pleno prejuízo e desrespeito pelo principal desiderato deste processo que se consubstancia, obviamente, na realização da Justiça.
12. Saliente-se que, até muito paciente foi o Tribunal a quo ao não travar previamente tal «saga» que nos custou a todos muitas horas de trabalho e custos desnecessários, em prol, única e exclusivamente, dos interesses dilatórios censuráveis do Arguido.
13. Foi efetivamente necessária uma tomada de posição pelo Tribunal a quo, firme e sancionatória, ao travar tal ímpeto processual do Arguido, de acordo com o superior interesse da Justiça, de modo a cessar de imediato com tais condutas do Arguido, que se vinham a revelar verdadeiros obstáculos à Administração da Justiça, enquanto abusivas e censuráveis manobras dilatórias.
14. A este respeito, não podemos deixar de acompanhar, na íntegra, as aliás Doutas Alegações de Resposta apresentadas pela Digníssima Magistrada do M.P.,
(…)

Tendo em consideração que o arguido veio, em sede de requerimento deste recurso, requerer a realização de audiência nos termos do art. 411º/5 do Cód. de Processo Penal, procedeu–se à mesma.


C. Do recurso subordinado.

Em sede de resposta ao recurso interposto pelo arguido da Sentença, veio ainda a assistente/demandante “União Ciclista de ...”, ao abrigo do disposto no art. 404º/1 do Cód. de Processo Penal, interpor recurso subordinado da mesma Sentença, extraindo da motivação conclusões resumidas nos seguintes termos introdutórios:
(…)
*
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência no que tange aos recursos interlocutório e subordinado, tendo tido lugar, em 21/06/2023, a requerida audiência quanto ao recurso da Sentença interposto pelo arguido.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
*

II. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. nº 91/14.7YFLSB. S1)[1], e de 30/06/2016 (proc. nº 370/13.0PEVFX.L1.S1)[2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre:

II.A. Quanto ao recurso interlocutório:
i. saber se o despacho recorrido violou o disposto no art. 340º do Cód. de Processo Penal por não admissão de meios de prova essenciais à descoberta da verdade;
ii. saber se é devida a condenação do recorrente em custas no âmbito do despacho recorrido.

II.B. Quanto ao recurso da decisão final:
1. saber se a sentença recorrida é nula nos termos do art. 379º/1/b) do Cód. de Processo Penal, por via da violação do disposto no art. 359º do Cód. de Processo Penal ;
(…)

II.C. Quanto ao recurso subordinado:
(…)

Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, por forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.
*

II.A. APRECIAÇÃO DO RECURSO INTERLOCUTÓRIO

O presente recurso interlocutório é, pois, interposto pelo arguido AA do despacho proferido pelo tribunal a quo e datado de 01/06/2022.
Alega (e em conformidade conclui) o recorrente que o despacho recorrido, na parte em que (alega–se) indeferiu diligências probatórias por si requeridas, cerceia as suas garantias de defesa, violando o art. 340º do Cód. de Processo Penal ; e na parte em que o condenou ao pagamento de custas viola do disposto nos arts. 97º/5 do Cód. de Processo Penal e 205º/1, da Constituição da República Portuguesa, pois que não se encontra fundamentado (nem de facto nem de direito), ademais não se encontrando prevista para o processo penal qualquer tributação para incidentes por arguição de nulidades, e não devendo o incidente suscitado ser considerado como anómalo.

São as seguintes as incidências processuais relevantes a considerar para apreciação e decisão deste recurso:
1º, No dia 16/02/2015 a ora assistente/demandante “União Ciclista de ...” (“UC...”) apresentou contra o ora arguido a denúncia criminal que deu origem aos presentes autos, tendo com a mesma junto procuração forense outorgada por BB na qualidade de presidente da dita associação,
2º, No dia 05/11/2021 (refª citius 40373346, a fl. 3682), o arguido/recorrente, requereu que fosse ordenada a junção aos autos das actas da “UC...” desde o ano de 2013 até à presente data, enunciando como fundamentos da sua pretensão, nomeadamente, aferir da identidade do aludido BB como legal representante da assistente/demandante e bem assim o cabal esclarecimento da relação entre a assistente e a associação “A... – Clube de Ciclismo”, ali alegadamente referida em sede de audiência de julgamento bem como nos documentos juntos aos autos,
3º, Tal requerimento veio a ter acolhimento, tendo o Tribunal a quo, por despacho de 11/11/2021 (refª citius 430181146, a fl. 3731) ordenado que a assistente/demandante “UC...” juntasse tais documentos aos autos e prestasse os referidos esclarecimentos.
4º, Considerando que a assistente não procedeu ao cumprimento do despacho do Douto Tribunal a quo, o arguido, por requerimento de 20/12/2021 (refª citius 40803982, a fl. 3795), requereu que o Tribunal ordenasse, uma vez mais, que a assistente procedesse à junção aos autos de tais documentos,
5º, Por despacho de 06/01/2022 (refª citius 431877041, a fl. 3804), o Tribunal ordenou se notificasse a «assistente para a apresentação dos documentos melhor elencados na al. c. do segmento final do ora requerido, no prazo supletivo legal de 10 (dez) dias, sob pena de condenação em multa por omissão do dever de colaboração para com o Tribunal (arts. 35.º a 45.º)»,
6º, Por requerimento datado de 20/01/2022 (refª citius 41065526, a fl. 3811), veio a assistente/demandante “UC...” referir a propósito que «no que concerne às atas da União Ciclista de ... desde o ano de 2013 até à presente data, a assistente não dispõe das atas mencionadas, sendo que, a existirem, encontram–se na posse do arguido», e que «no que concerne à relação entre a assistente e a A..., cumpre esclarecer que nunca existiu qualquer relação, tendo a assistente cessado a sua actividade antes da constituição da A...»,
7º, Tendo decorrido o aludido prazo sem que a assistente/demandante “UC...” promovesse pela junção dos documentos, o arguido insistiu, novamente, por requerimento de 10/03/2022 (refª citius 41587226, a fl. 3827), voltando a fazê–lo por requerimento de 26/04/2022 (refª citius 42046627, a fl. 3872), onde consignou que «nunca teve na sua posse qualquer acta da assistente, nem as poderia ter muito menos de 2013 até à presente data, visto que como decorre abundantemente dos autos não tem qualquer relação com a assistente há anos»,
8º, Por despacho datado de 28/04/2022 (refª citius 435965371 – não imprimido), o Tribunal a quo decidiu que «Uma vez que, decorrido o prazo que para o efeito lhe foi concedido, a assistente não procedeu à junção dos documentos conforme determinada, condena-se a mesma, por omissão do dever de colaboração para com o Tribunal na descoberta da verdade, em multa processual, que se fixa em 2 (duas) UC. Renovo o despacho enumerado na al. f) do despacho proferido a fls. 3804 verso e datado de 06/01/22, mantendo a mesma cominação.»,
9º, Mediante requerimento datado de 12/05/2022 (refª citius 42233022, a fl. 3800), a assistente/demandante “UC...” veio reiterar que «no que concerne às actas da União Ciclista de ... desde o ano de 2013 até à presente data, a assistente não dispõe das mesmas, sendo que, reitera, a existirem, encontram–se na posse do arguido»,
10º, Em tal sequência, o Tribunal a quo veio a proferir, em 24/05/2022, despacho (refª citius 436938697), decidindo nos seguintes termos:
«Pretende o arguido que a assistente junte aos autos as actas respeitantes ao seu exercício de actividade desde 2013 em diante e o esclarecimento do seu relacionamento com a associação "A...", subsidiariamente requerendo a notificação das testemunhas BB, DD e EE para um tal efeito; que se oficie a associação "A..." para que junte aos autos as actas respeitantes ao seu exercício de actividade desde 2014 em diante e o esclarecimento do seu relacionamento com a assistente, subsidiariamente requerendo a notificação das testemunhas BB e FF para um tal efeito; a junção aos autos de dois documentos idóneos a demonstrar a falsidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas que se arrogaram credoras da assistente. A assistente alinha alegações, impugna o teor daqueles dois documentos e junta outros.
No que respeita às actas da assistente em causa, aduz a mesma encontrarem-se em poder do arguido, ao passo que este convoca estarem na posse da assistente. Ora, salvo melhor opinião e atenta a data da prática dos factos em análise, a única acta susceptível de relevar para a descoberta da verdade material é a acta n.º 3 (atinente, entre o mais, à eleição dos órgãos sociais triénio de 2012 a 2015), parte da qual foi junta pela assistente com a denúncia criminal, tendo o arguido vindo a colmatar essa lacuna, juntando-a na sua integralidade, enquanto parte da tramitação processual integrante da acção cível com o n.º 17337/15.3T8PRT (cfr. o requerimento do arguido de fls. 3296 e seguintes, datado de 23/09/21). As demais actas, independentemente de quem as tenha consigo, por repercutirem realidades anteriores e posteriores à que nestes autos se discute, em medida alguma se descortinam como pertinentes à boa decisão da causa, razão pela qual se não insiste na sua junção, acrescentando-se encontrar-se a assistente já devidamente identificada nos autos.
Idêntico raciocínio se tece relativamente às relações da assistente com a associação “A...”, ..." e a junção de actas desta, que sequer intervém nestes autos, não se alcançando o raciocínio da lavra do arguido e de acordo com o qual as testemunhas BB e FF poderão vir a beneficiar da procedência do pedido de indemnização civil, pois que formulado pela assistente, enquanto demandante cível, contra o arguido, enquanto demandado cível. Por fim, e pese embora apraza a arguido e assistente tecer considerandos acerca da credibilidade dos meios de prova, repetiremos o quanto já notámos à saciedade, o mesmo é dizer, que incumbe a este Tribunal, finda a prova produzida, proceder a um tal juízo, para o que, carecendo de acrescidos meios de prova nessa operação, diligenciará no sentido de os obter, na certeza de que, diferentemente do preconizado, ser credor e reclamar esse crédito constituem realidades distintas e perfeitamente compatíveis entre si.
Termo em que indefiro o requerido pelo arguido.
Custas pelo mínimo legal.»,
11º, No dia 26/05/2022, em sessão da audiência de julgamento então realizada (refª citius 437122828, a fl. 3953), o arguido veio a formular o seguinte requerimento, transcrito na acta respectiva :
«Com a devida vénia, o arguido, notificado no dia de hoje que aparentemente este douto Tribunal, no dia de ontem 26.05.2022, proferiu despacho acerca da junção de requerimentos e o qual, desde já, se informa V. Exa. que o arguido não prescinde para arguir qualquer irregularidade e/ou nulidade que tal despacho, como devido respeito, padeça.
Sem prejuízo, verifica-se que não foram juntas aos autos as actas requeridas pelo arguido e que já havia sido ordenado pelo tribunal a sua junção em janeiro do presente ano, pelo que se irá promover pelo requerimento que se segue.
O Arguido requereu que a Assistente juntasse aos autos actas da União Ciclista de ..., desde o ano de 2013 até à presente data, o que fez há quase 6 meses, e resulta do requerimento de 20 de dezembro de 2021. O que teve o acolhimento deste Douto Tribunal, que por despacho datado de 06 de janeiro de 2022 ordenou, entre o demais, que a assistente juntasse aos autos as referidas actas. Atento o incumprimento da assistente, não tendo juntado tais documentos, o arguido por requerimento, de 10 de Março de 2022, insistiu uma vez mais requerendo a junção dos documentos, porém, do conhecimento do arguido, este Tribunal não pronunciou.
Nesta senda, a 27 de abril de 2022, o arguido voltou a requerer, uma vez mais, a junção de tais documentos em estrito cumprimento do despacho de 6 de janeiro deste Tribunal. Sucede que tais documentos não foram juntos, inexistido nos autos qualquer documento que demonstre a legitimidade da União Ciclista de ... para intervir nestes autos, quer na qualidade de assistente quer na qualidade de demandante. Isto, porquanto, segundo resultou inequívoco das declarações da testemunha BB, este não é presidente da assistente desde 2015, declarações que o arguido transcreveu e identificou minuciosamente no seu requerimento de 27 de abril de 2022.
A queixa apresentada nos presentes autos data de 16 de fevereiro de 2015, sendo que o pedido de indemnização civil é posterior, desconhecendo-se quem é (ou era) o representante legal da referida associação.
Acresce que, face ao depoimento da testemunha BB que, sob juramento, declarou não ser o presidente da União Ciclista de ... desde 2015, resulta inequívoco que a Demandante não foi ouvida em sede de audiência de julgamento.
De salientar que a acta n.o 3 junta a estes autos, à data da apresentação da queixa crime, já não poderia estar em vigor nem reflectir os órgãos sociais da União Ciclista de ... visto que inúmeros dos seus elementos, e para o que aqui importa, o secretário AA, aqui arguido não integrava a referida associação.
Assim, é inelutável que têm que existir actas posteriores que reflitam com exactidão quem são (ou eram) os órgãos sociais em fevereiro de 2015, momento em que foi apresentada a queixa crime.
Igual raciocínio logico terá que se percorrer em relação ao pedido de indemnização civil, por forma a aferir da legitimidade para a dedução do mesmo. Naturalmente que, com o devido respeito, incumbe a este Tribunal determinar quem é o legal representante da União Ciclista de ..., ou pelo menos quem são os seus órgãos sociais, antes de proferir qualquer decisão nomeadamente quanto ao PIC. Isto, porquanto, ainda que por mero dever de raciocínio se conjecture, a admissão e procedência do pedido de indemnização civil o Demandado tem o direito a ter uma decisão devidamente fundamentada, nomeadamente, quando à legitimidade da Demandante, conhecer e ter a segurança jurídica de quem tem poderes para peticionar e receber o hipotético valor. A verdade é que nestes autos não existiu uma testemunha que tenha afirmado sequer manter qualquer relação ou vinculo com a assistente, e muito menos que integre, ou integrasse em 2015 a estrutura orgânica. Em bom rigor, a assistente em outubro de 2014 foi substituída por outra entidade, mas lá chegaremos. Estamos, assim, perante uma entidade, com o devido respeito, praticamente fantasma em que são desconhecidas quer do arguido quer do tribunal quer do ministério publico quem efectivamente a representa. Em bom rigor, nem a própria assistente conseguiu elucidar, alegando não ter na sua posse pelo menos 1 documento que demonstre a sua composição na presente data, nem tampouco em 2015, momento em que foi apresentada a queixa crime. Torna-se, assim imperioso a junção das actas requeridas, o que foi acolhido por despacho deste tribunal.
E por ultimo, importa ainda esclarecer que a relação entre a associação A... e a União Ciclista de ... também se torna relevante para os autos. Com efeito, resultou quer da prova testemunhal quer da prova documental que a associação A... sucedeu à União Ciclista de ..., tendo assumido dividas e obrigações desta, e tendo integrado, em 2015, grande parte da estrutura daquela. Inclusivamente, o sr. BB, em 2014 fundou a A..., conforme resulta da prova documental, pelo que certamente que em fevereiro de 2015, data em que a queixa foi apresentada não era ainda o presidente da União Ciclista de ... visto que tal consubstanciaria um evidente conflito de interesses entre tais associações. Tanto, assim, que em 2015 a A... inscreveu- se nas competições e a União Ciclista de ... não mais competiu.
Ora, a existir um acordo entre tais entidades, como já carreamos para os autos tal determina que em última instância os associados da A... poderão ser os beneficiários do produto da dissolução, o que consta dos estatutos desta associação. É evidente que a existir um acordo entre a A... e a assistente, em que a A... assume obrigações também poderá ser de alguma forma ressarcida pelos custos que assumiu, porém, sem a junção dos documentos nunca saberemos. Encontrando-se, assim, por esclarecer se a Assistente foi extinta/dissolvida, bem como se encontra por clarificar qual a relação entre a Assistente e a mencionada A..., que segundo resulta dos autos, assumiu as obrigações da Assistente e sabemos agora foi constituída pelo sr. BB.
Tudo o quanto se expôs, levou a que o arguido tenha vindo a insistir há pelo menos 6 meses na clarificação desta situação, porém, penso que todos poderemos concordar, a mesma permanece por esclarecer. O Arguido requereu ainda, em tempo, que fossem oficiados todos os membros dos órgãos sociais da União Ciclista de ... bem como as instituições que entenda por convenientes, tendo em vista o esclarecimento dos autos.
Porém, até à data tal não ocorreu.
Note-se, também, com o devido respeito que existindo acta posterior a n.º 3, que existirá certamente nomeadamente para excluir o aqui arguido da mesma, nomeando um novo secretário, de tal nova acta pode inclusivamente resultar a falta de poderes do sr. BB, ou do efectivo presidente para, sozinho, obrigar a associação e como tal carecer de poderes para apresentar a queixa.
Assim, por tudo o supra exposto, de forma exaustiva, requer-se que V. Exa. se digne ordenar o cumprimento do despacho de 06 de janeiro do presente ano, notificando e oficiando todos os membros dos órgãos sociais tendo em vista o esclarecimento desta situação antes de ser proferida sentença.
Pede deferimento.»
12º, O Ministério Público na dita ocasião pronunciou-se no sentido de que «caso não se encontrem juntos aos autos as atas, cuja junção já tinha sido ordenada, pugno pela junção das mesmas»,
Por sua vez a assistente, além do mais, pronunciou–se referindo o seguinte:
«No que concerne à alegada não junção de atas, aos presentes autos, conforme havia sido requerido pelo arguido em janeiro do corrente ano, reitera a assistente aquilo que está cansada de reiterar em requerimentos a este respeito, ou seja, no que concerne às atas da UC..., designadamente, as atas de 2013 até à presente data, a assistente não responde por não ter qualquer outra ata, sendo que, a existirem, reitera que se encontrariam na posse do arguido.
Saliente-se que isto já foi efetivamente alegado por diversas vezes, nos presentes autos, sendo que, e no que respeita à circunstância de ter sido acolhido por despacho deste Tribunal o requerimento apresentado pelo arguido, nada terá a dizer a esse acolhimento que efetivamente existiu, foi proferido despacho, no entanto, não pode o arguido ter a pretensão de fazer aparecer aquilo que não existe, nem obrigar alguém à junção de algo que não possui. Na verdade, saliente-se que a ata n.º 3, que é precisamente a última ata que a assistente tem em sua posse, respeita ao triénio de 2012 a 2015 e reflete efetivamente a eleição dos órgãos sociais para o triénio de 2012 a 2015. Ora, sendo a queixa crime apresentada pelos crimes em apreço nos autos datada de fevereiro de 2015, carece de fundamento o invocado pelo arguido da ilegitimidade do presidente da Assistente para na realidade representar a mesma. Saliente-se que alega o arguido que inexiste nos autos qualquer documento que demonstrem a legitimidade da UC... para intervir nos autos, quer na qualidade de assistente, quer na qualidade de demandante. Quanto a esta alegação do arguido, a assistente alega que, por um lado, a UC... foi constituída assistente por despacho proferido neste processo há bastante tempo, transitado em julgado e despacho proferido por Juiz competente e em relação ao qual nada foi apontado. Mais, quanto à qualidade de demandante da assistente neste processo, o arguido pretende ora alegar a ilegitimidade de tal pretensão, quando em sede de contestação do PIC apresentado, em 15.12.2020, o arguido em momento algum alegou ou invocou a ilegitimidade da assistente para assumir a qualidade de demandante neste processo.
Saliente-se que o processo cível obedece a regras processuais e, na verdade, no que respeita ao PIC, e tendo em conta que estamos perante um processo cível enxertado num processo crime, caberia ao arguido, se o pretendesse, invocar a ilegitimidade da demandante nesse momento, o que não o fez. Não o fez, nem o poderia fazer, porque efetivamente a demandante tinha legitimidade para tal, não só para fazer o PIC, como o fez, mas igualmente para apresentar a queixa crime nestes autos, porque efetivamente tem poderes para tal, conforme ata nº 3 para o triénio 2012 - 2015.
Saliente-se ainda que o Sr. BB, testemunha e representante legal da assistente, em sede de audiência de julgamento, quando profere que não seria, ou não era, presidente da assistente desde 2015, obviamente o que pretende o mesmo alegar é que desde 2015 não se encontrava a exercer essas funções em efetividade, atenta a inatividade da UC..., conforme já demonstrado neste processo desde 2015 e até à data, mais precisamente desde finais de 2014 até à presente data. Essa inatividade surge na sequência de inúmeras dívidas deixadas à UC..., aqui assistente, por força das condutas ilícitas adoptadas pelo arguido, o que forçosamente conduziu a assistente à necessidade de proceder como o fez. Colocar-se numa situação de inatividade desde 2014 de modo a poder em 2015 inscrever- se na Federação Portuguesa de Ciclismo com uma outra entidade, entretanto criada, precisamente a A..., caso contrário, atento o acumular de dívidas, não poderia e não cumpria um dos principais requisitos para poder se inscrever na Federação Portuguesa de Ciclismo para o ano de 2015. Em face disso, foi necessário constituir uma associação, essa mesma a A... para esse propósito sério de se poder inscrever todos os ciclistas da União Ciclista de ... na Federação Portuguesa de Ciclismo de modo a não comprometer a atividade desses mesmos ciclistas, a inscrição dos mesmos nas provas para o ano 2015.
Tudo isto já foi por diversas vezes reiterado pela assistente neste processo em resposta aos inúmeros requerimentos apresentados pelo arguido a este propósito. Propósito este que sabe bem o arguido que na realidade não existe, o que é demonstrar nesta fase uma alegada ilegitimidade da assistente como demandante cível e mesmo como assistente, esquecendo-se, porém, que na realidade o despacho de admissão de assistente já há muito transitou em julgado, o despacho de admissão do pedido cível já há muito transitou em julgado e o arguido nada fez e daí a extemporaneidade, clara e manifesta, das alegações ora apresentadas pelo arguido.»,
13º, Foi então, na mesma ocasião (26/05/2022), e sempre conforme da acta em causa consta, proferido o seguinte despacho pelo tribunal a quo, imediatamente notificado aos sujeitos processuais:
«Quanto à suscitada irregularidade ou nulidade do despacho do incidente, concede-se ao arguido o prazo de 10 dias, após se notificando a assistente e a Digna Magistrada do Ministério Público.
No que diz respeito às atas, concedendo que este Tribunal, de facto, notificou a assistente, por mais de uma vez, no sentido de juntar aos autos a totalidade das referentes à respectiva atividade, por aquela tem vindo a ser sistematicamente invocado o facto de não as ter consigo, estando as mesmas na posse do arguido. Este, por seu turno, sustenta a versão oposta. Ora, não existe forma de este Tribunal poder apurar quem dispõe de tais atas em seu poder, nem se vislumbra que mecanismo legal pudesse ser utilizado para o descortinar, mais resultando desse desconhecimento a impossibilidade de acionar um qualquer normativo legal suscetível de promover a respectiva junção coerciva.
Deste modo, no despacho antecedente, em cujo âmbito este Tribunal constatou uma tal realidade, exprimiu afigurar-se pertinente à descoberta da verdade material a ata nº 3, já carreada para os autos, pois por respeitante ao triénio 2012-2015, na certeza de incumbir à assistente, nas suas vestes de demandante cível, o ónus de comprovar a sua legitimidade para efeitos de formulação de pedido de indemnização civil.
Quanto à sua legitimidade para efeitos de início do procedimento criminal, uma tal questão revela-se-nos inócua, dada a natureza pública do crime em discussão.
Acresce que o arguido apenas baseia a sua argumentação por referência às declarações prestadas pela testemunha BB, descurando a demais prova produzida.
Por fim, no que concerne ao mais objeto do ora requerido, limita-se o arguido, salvo melhor opinião, a repetir o oportunamente deduzido e já apreciado por parte deste Tribunal e objeto de indeferimento.
Termos em que se indefere o requerido.»
14º, Por requerimento datado de 30/05/2022 (refª citius 42424898, a fl. 3959) – e reiterando pugnar que se afigura como essencial, necessário e indispensável que a assistente/demandante demonstre a sua legitimidade para intervir nos presentes autos, o que deverá fazer mediante a junção aos autos dos meios de prova requeridos pelo arguido e ordenados por despacho judicial datado de 06/01/2022, transitado em julgado –, veio o arguido arguir a irregularidade, bem como a nulidade do referido despacho de 26/05/2022, alegando que o mesmo omite as razões de facto e de direito que sustentam tal decisão sendo contrário a despacho judicial transitado em julgado e previamente proferido, nos termos do n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal ; e mais alegando, ainda, que o mesmo coarcta, abusivamente, o direito de defesa do arguido, constitucionalmente garantido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa,
15º, Foi então proferido, em 01/06/2022, o despacho ora recorrido (refª citius 437317447 – não imprimido), e que é do seguinte teor integral:
«Requerimento do arguido de fls. 3957 e seguintes (datado de 30/05/22):
Vem o arguido requerer que este Tribunal reconheça a irregularidade do despacho proferido a fls. 3949 e seguinte, em 25/05/22 (certamente se pretendendo referir a 24/05/22, lapso de escrita que se releva) e, nessa sequência, determinar as diligências que melhor identifica no seu segmento final: a junção das actas da assistente desde 2013 até à presente data, ainda que para esse efeito notificando as testemunhas BB, DD e EE; a rectificação desse despacho no que respeita aos documentos cujo desentranhamento se determinou, concedendo-se-lhe prazo para se pronunciar ou julgando verificada a respectiva nulidade; a notificação da assistente para identificar e comprovar nos autos quem seja o seu legal representante; a notificação do representante legal da assistente para que lhe seja colhido depoimento na próxima data agendada para a continuação da audiência de julgamento; a concessão de prazo para que se pronuncie acerca dos requerimentos apresentados pela assistente em 12/05/22; a disponibilização da acta da última sessão da audiência de julgamento.
*
Vejamos.
*
1. Da irregularidade / ineficácia do despacho:
Entende o arguido padecer um tal despacho de vício, devendo o mesmo ser substituído por outro em cujo âmbito se determinem as diligências que elencou no seu requerimento de fls. 3881 e seguintes, datado de 02/05/21, e cujo teor, no essencial, reproduziu no seu requerimento em acta de fls. 3953 e seguintes, datada de 26/05/22. Alicerça semelhante pretensão na sua discordância com relação à posição tomada por este Tribunal naquele despacho, e reiterada em novo despacho, desta feita proferido em acta, e no que considera ser uma violação do caso julgado, na medida em que fora anteriormente determinado, entre o mais, que a assistente juntasse aos autos as actas respeitantes à sua actividade desde 2013 até à presente data. Ora, salvo melhor opinião, e se dúvidas houvesse relativamente à dispensa da assistente na referida junção, o que não concedemos ante a clareza do despacho questionado, sempre as mesmas resultariam dissipadas no âmbito despacho subsequentemente prolatado, permitindo-nos repristinar o oportunamente já explicado em ambos: intuindo-se a relevância para a descoberta da verdade material unicamente da acta n.º 3, já carreada para o processo, perante a posição sistematicamente assumida pela assistente, no sentido de as não ter em seu poder, inexiste mecanismo legal que nos permita a execução coerciva do anterior despacho que determinou a sua junção. Sendo certo que o próprio arguido reconhece impender sobre a assistente o ónus de demonstrar a sua legitimidade – facto que, ademais, notámos no despacho proferido em acta –, não alcançamos por que motivo o arguido persiste num tal requerimento, jamais cuidando de concretizar por que forma poderia este Tribunal impor à assistente a predita junção, ao que acresce não se referir a factos concretos, antes a alegações genéricas, acerca da respectiva pertinência. Por outro lado, são diversas as premissas em que se fundamentam ambos os despachos; com efeito, à prolação do primeiro presidiu a convicção genérica de que, tratando-se de actas da assistente, as mesmas estariam na sua posse, ao passo que este outro se impôs mediante a negação, por aquela, dessa posse, na certeza de que – voltamos a enfatizar – de ónus da assistente se cuida. E, salvo o devido respeito, contrariamente ao sustentado pelo arguido, aqueloutro despacho, na medida em que se limitou a deferir, de forma meramente tabelar ou genérica, a junção de um meio de prova talqualmente requerido pelo arguido, não se encontra a coberto da força do caso julgado, reservada para o conhecimento de questões concretas (cfr. o Ac. do TRG de 14/05/20, in www.dgsi.pt, no qual se ensina que “o despacho que apenas tabelarmente incidiu sobre o requerimento de notificação à parte detentora do documento para a sua apresentação nos termos e para os efeitos do disposto no art. 429.º do Código de Processo Civil, sem fundamentar concretamente tal decisão, não é susceptível de vedar uma outra, subsequente, apreciação da pertinência daquele documento, desde que justificada e fundamentada”). Deste modo se conclui pela regularidade do despacho em crise.
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2. Da rectificação desse despacho
Compulsado o teor do mesmo, naturalmente que se concede enfermar de lapso de escrita por referência ao desentranhamento determinado, cuja rectificação, ao abrigo do princípio geral plasmado no art. 249.º do Código Civil, se determina, naquele se devendo passar a ler “documentos juntos a fls. 3896 e seguintes e a fls. 3917 e seguintes”. Considerando, uma vez mais salvo melhor opinião, que, perscrutado o despacho em crise, resulta clarividentemente estarem em causa documentos juntos pela assistente, deste modo se não vislumbrando por que motivo aduz o arguido ignorar quem os houvesse apresentado, sempre se dirá contenderem com a tramitação do PER da assistente, cujos termos em medida alguma relevam no âmbito dos presentes autos. Similarmente, não alcançamos a nulidade ou a inconstitucionalidade neste conspecto advogadas pelo arguido; não apenas as mesmas não são concretizadas, em medida alguma, pelo próprio, limitando-se a aduzir que o preconizado desentranhamento “viola clara e flagrantemente a lei penal e as garantias de defesa do arguido com assento na Lei Fundamental” (sic), como, talqualmente acima salientado, se cuidam de documentos juntos pela assistente, cuja prejudicialidade no respectivo desentranhamento colidiria com os seus interesses, que não com os do arguido. Por fim, e no que concerne ao prazo para este se pronuncie, o mesmo decorre automaticamente da lei, não estando, pois, na disponibilidade deste Tribunal, concedê-lo ou não.
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3. Das diligências probatórias ora requeridas
Mais requer o arguido a notificação da assistente para identificar e comprovar nos autos quem seja o seu legal representante, do mesmo passo que pretende a notificação do mesmo para que lhe seja colhido depoimento na próxima data agendada para a continuação da audiência de julgamento. Novamente salvo melhor opinião, não detectamos em que medida tais diligências sirvam o interesse da descoberta material. Com efeito, são abundantes as exposições da assistente juntas aos autos no sentido de o seu legal representante ser a testemunha BB, razão pela qual se evidencia inócua uma sua notificação para repetir o quanto reiteradamente trouxe já ao processo; por outro lado, aquele foi já inquirido em Juízo, nessa exacta medida tendo sido questionado pelo Tribunal, pela Digna Magistrada do Ministério Público e pelos Ilustres Mandatários de assistente e de arguido, não se antevendo a pertinência de uma sua outra inquirição, tão pouco esboçando o arguido a razão de ser do requerido nesta parte. Indeferem-se, portanto, semelhantes diligências.
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4. Da concessão de prazo para que o arguido se pronuncie acerca dos requerimentos apresentados pela assistente em 12/05/22
Quanto a estes requerimentos em particular, não assiste ao arguido o direito de beneficiar de prazo para quanto aos mesmos se pronunciar, pois que constituem manifestações do exercício do contraditório por parte da assistente na sequência de requerimentos apresentados por aquele. A entender-se diferentemente, e permitir-se-ia a arguido e assistente enredarem-se em peças processuais de resposta ad nauseam, o que certamente conflituaria com o próprio direito do arguido a um julgamento tão célere quanto possível. Por assim ser, desde já adiantamos que, a serem apresentadas pelo arguido, será ordenado o seu desentranhamento do processo físico e aquele tributado em multa processual.
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5. Da disponibilização da acta da última sessão da audiência de julgamento
Apenas nos apraz esclarecer que a acta em causa não foi elaborada e assinada na própria tarde em que teve lugar a última sessão da audiência de julgamento mercê da sua complexidade, o que, certamente, o arguido não ignora, dada a extensão do requerimento que ditou para a referida acta, apenas o mesmo dispondo de uma versão escrita do mesmo, que, ademais, facultou ao Sr. Escrivão Auxiliar em ordem a simplificar a sua actividade, mas relativamente ao qual a Digna Magistrada do Ministério Público, a Ilustre Mandatária da assistente e o Tribunal careceram de se pronunciar no imediato.
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6. Da condenação em custas
Custas pelo arguido, que se fixam em 3 (três) UC, expressamente se advertindo o mesmo que, caso persista em requerimentos do jaez do ora apreciado, repetitivos em termos de diligências requeridas ou de diligências que protelem a descoberta da verdade material, ponderar-se-á o uso de taxa sancionatória excepcional.»

Apreciemos então as questões suscitadas pelo recorrente no âmbito do recurso interlocutório em análise neste segmento.

II.A.i. De saber se o despacho recorrido violou o disposto no art. 340º do Cód. de Processo Penal por não admissão de meios de prova essenciais à descoberta da verdade.

Começa o arguido/recorrente AA por alegar (e concluir) ser objecto do seu recurso ora em análise o supra transcrito despacho proferido pelo tribunal a quo no dia 01/06/2022, desde logo na parte do mesmo que refere haver o mesmo indeferido diligências probatórias por si requeridas, a saber (e sempre de acordo com a alegação recursória):
– aquela que fora previamente ordenada pelo mesmo tribunal reportada à junção aos autos de documentos pela assistente/demandante “União Ciclista de ...”, consubstanciadas nas actas de tal associação desde 2013 até à presente data;
– ademais também a requerida notificação da mesma assistente/demandante para identificar quem é o seu legal representante, nomeadamente, o seu presidente e demais órgãos sociais, com junção de documento que titule tal legitimidade;
– e ainda a notificação do legal representante da assistente/demandante para que sejam tomadas as suas declarações na audiência de discussão e julgamento.
Entende o recorrente que, nesta parte, o despacho recorrido coarcta as suas garantias de defesa, violando o regime do art. 340º do Cód. de Processo Penal.
Vejamos.

A primeira nota que importa clarificar é que, pese embora o recorrente procure abranger no objecto do presente recurso o suposto indeferimento daqueles três diligências probatórias segmentadas nos termos acabados de enunciar, a verdade é que o concreto despacho que é objecto do presente recurso (recorde–se, o despacho judicial proferido no dia 01/06/2022, supra transcrito no ponto 15º das incidências processuais tidas por relevantes) apenas profere decisão material de indeferimento das diligências referenciadas em segundo e terceiro lugar – isto é, a notificação da assistente/demandante para identificar quem é o seu legal representante e a notificação do legal representante da assistente/demandante para que sejam tomadas as suas declarações na audiência de discussão e julgamento.
Na verdade, e no que respeita à primeira diligência – referida como a que fora previamente ordenada pelo tribunal e relativa à junção aos autos de actas da associação “União Ciclista de ...” –, essa (diligência) fora objecto de oportuno indeferimento pelo despacho proferido pelo tribunal a quo no dia 24/05/2022 (este transcrito supra no ponto 10º das incidências processuais tidas por relevantes).
O despacho recorrido é, aliás, bem claro na distinção entre as duas situações, pois que ali se discrimina e separa muito explicitamente:
– a apreciação, no seu ponto 2., «Da irregularidade / ineficácia do despacho» proferido no dia 26/05/2022 (despacho este que por sua vez apreciara da irregularidade e nulidade do despacho de 24/05/2022),
– da apreciação e decisão (de indeferimento), no seu ponto 3., «Das diligências probatórias ora requeridas» – ou seja (como ali se especifica) «a notificação da assistente para identificar e comprovar nos autos quem seja o seu legal representante, do mesmo passo que pretende a notificação do mesmo para que lhe seja colhido depoimento na próxima data agendada para a continuação da audiência de julgamento», precisamente aquelas aludidas notificações.
É este – esta necessária delimitação do objecto do concreto despacho ora recorrido – um aspecto que se revela de primordial relevância na análise que se segue.
Porque diverso é o caminho da análise em causa em função precisamente de tal distinção entre as decisões que indeferiram a produção dos meios probatórios oportunamente requeridos pelo arguido/recorrente.

Na verdade, e assim devidamente demarcado processualmente o objecto da impugnação do recorrente que está em causa neste segmento, cumpre salientar a questão do adequado modo de reagir ao despacho judicial que indefere uma diligência de prova requerida ao abrigo do art. 340º do Cód. de Processo Penal – questão que não tem sido sempre perspectivada da mesma forma nomeadamente pela jurisprudência, havendo quem entenda excluída a via do recurso, enquanto outros há que o consideram o meio adequado de reacção.
A propósito de tal debate, pode ler–se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12/02/2014 (proc. 93/08.2GASJP.P1)[3] o seguinte que, pela sua pertinência e clareza, se transcreve, com sublinhados agora apostos:
«Discutia-se (na doutrina e na jurisprudência) se o poder conferido pelo artigo 340.º do Cód. Proc. Penal é um poder discricionário ou, pelo contrário, é sindicável.
Concretamente, questionava-se se era recorrível a decisão de indeferimento de um requerimento de prova apresentado, na fase de julgamento, ao abrigo do preceituado no artigo 340.º do Código de Processo Penal.
O citado preceito tem um conteúdo normativo que tutela o princípio da investigação para que a decisão final se conforme, no possível das provas, com a verdade material. Trata-se de um poder vinculado do tribunal, de exercício obrigatório, verificado o condicionalismo nele previsto: que a produção dos meios de prova se afigure necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
O correto exercício desse poder/dever é sindicável, ou seja, a eventual violação dos pressupostos legais do exercício desse poder é impugnável, mediante recurso.
Impõe-se, no entanto, distinguir duas situações:
Pode acontecer que, no decurso da audiência de discussão, se venha a revelar essencial para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa a realização de diligências de prova não requeridas, nem na acusação, nem na contestação do arguido: por exemplo, a realização de um exame à letra e assinatura de um documento, de uma perícia psiquiátrica ou até a audição de uma testemunha cujo depoimento se venha a revelar decisivo. A omissão dessa diligência de prova reputada de essencial para a descoberta da verdade constitui uma nulidade sanável (portanto, dependente de arguição pelo interessado), nos termos do artigo 120.º, n.º 2, al. d), do Cód. Proc. Penal. (…)
Mas também pode acontecer que qualquer dos sujeitos processuais, tendo-se apercebido da essencialidade de uma diligência de prova, apresente um requerimento para a sua realização.
Exatamente como aconteceu no caso sub judice (…)
Se o tribunal indefere o requerimento de realização da diligência, o sujeito processual interessado pode reagir recorrendo do despacho de indeferimento, pois, como já se referiu, o poder conferido pelo artigo 340.º do Cód. Proc. Penal não é discricionário.
Se o não fizer, ou não o fizer tempestivamente, o despacho transita em julgado e o tribunal superior não pode sindicar o indeferimento».
No mesmo sentido – ou seja, da recorribilidade do despacho que no decurso da audiência indefere requerimento tendente à produção de prova, então formulado por qualquer dos sujeitos processuais interessados –, pronunciaram–se também os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 02/07/2008 (proc. 0842650)[4], do Tribunal da Relação do Porto de 08/05/2013 (proc. 1534/11.7JAPRT.P1)[5], do Tribunal da Relação de Coimbra 07/10/2015 (proc. 174/13.0GAVZL.C1)[6], do Tribunal da Relação do Porto de 26/10/2016 (proc. 68/08.1TAOAZ.P1)[7], do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/02/2019 (proc. 906/17.8PTLSB.L1-5)[8], do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/11/2019 (proc. 253/17.5JALRA.C1)[9], e do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/05/2022 (proc. 739/20.4JAFUN.L1-9)]10].
Já o Tribunal Constitucional no acórdão nº 171/2005, decidiu que “a outorga ao juiz de um poder de direção do processo, na fase de produção de prova, lhe permite rejeitar liminarmente as diligências probatórias notoriamente irrelevantes, supérfluas, inadequadas ou meramente dilatórias” – naturalmente de acordo, com a apreciação do juiz, susceptível de reexame (…) em via de recurso – não viola qualquer preceito ou princípio constitucional, maxime o das garantias de defesa » - sublinhado nosso.
Em consonância, perfilha-se o entendimento de que o meio adequado para reagir contra decisão judicial que, no decurso da audiência de julgamento, indefere – como sucedeu no presente caso – diligência de prova requerida por um sujeito processual, directa ou mediatamente, ao abrigo do art. 340º do Cód. de Processo Penal, é o recurso, até porque – como se adita no supra mencionado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/10/2015 (proc. 174/13.0GAVZL.C1), «não configurando a dita norma o exercício discricionário de um poder – reflectindo, ao invés, um poder vinculado – em momento algum decorre, designadamente do artigo 400º do Cód. de Processo Penal, a respectiva irrecorribilidade, colhendo, assim, aplicação o princípio geral enunciado no artigo 399.º do mesmo diploma legal».

O que significa, retornando directamente à situação dos presentes autos, que ao não ter recorrido do despacho proferido no dia 24/05/2022, que indeferiu a realização daquela primeira diligência probatória requerida – a junção aos autos de actas da associação “União Ciclista de ...” –, o mesmo transitou em julgado, impedindo a respectiva sindicância por parte deste tribunal.
Sendo que – sempre se dirá para que dúvidas não permaneçam – contra tal consideração não colhe invocar por sua vez (como alega o recorrente) que a diligência em causa já fora objecto de oportuno deferimento, tendo–se assim formado caso julgado formal quanto a tal decisão.
O Código de Processo Penal não disciplina o caso julgado penal, salvo o seu reflexo no pedido cível (cfr, art. 84º).
Face ao disposto no art. 4º do Cód. de Processo Penal, perante a insuficiência dos dispositivos e a impossibilidade de aplicação analógica das normas deste diploma, observar-se-ão as normas do processo civil, desde que se harmonizem com o processo penal e, não as havendo ou não se harmonizando com o processo penal aplicar-se-ão os princípios gerais do processo penal – neste sentido Maia Gonçalves, in “Código do Processo Penal anotado”, 1999, 10ª ed., pág. 97, e Prof. Germano Marques da silva, in “Curso de Processo Penal”, III, págs. 30-35.
Assim, como é sabido, quanto à extensão dos efeitos da decisão jurisdicional, distingue-se o caso julgado formal e o caso julgado material. O caso julgado formal traduz a força obrigatória da decisão no próprio processo em que é proferida (cfr. art. 620º do Cód. de Processo Civil) ; o caso julgado material consiste na força obrigatória dentro do processo e fora dele (cfr. art. 619º do Cód. de Processo Civil).
Ocorre caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução. O caso julgado respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito – cfr., por todos, p Acórdão do S.T.J. de 02/12/2010 (proc. 3564/10.7TXLSB-F.S1)[11].
É, pois, verdade que quer o caso julgado formal, quer o caso julgado material, visam evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão, traduzindo o caso julgado formal a força obrigatória dentro do processo.
Porém, um despacho que apenas se limita a deferir a requerida junção aos autos de determinados documentos requerida por determinado sujeito processual, só fará caso julgado formal dentro do processo mantendo-se os seus pressupostos, isto é, faz caso julgado contingente de alteração das circunstâncias (rebus sic stantibus) em que assentou –– não o fazendo, paradigmaticamente, quando o tribunal, apreciando as circunstâncias processuais supervenientes entretanto ocorridas, verificar que as mesmas se alteraram, determinando agora decisão, por isso também, diversa.
Ora, como bem realça aliás o tribunal recorrido, «são diversas as premissas em que se fundamentam ambos os despachos; com efeito, à prolação do primeiro [despacho que deferiu a diligência em causa] presidiu a convicção genérica de que, tratando-se de actas da assistente, as mesmas estariam na sua posse, ao passo que este outro [aquele que a veio posteriormente a indeferir] se impôs mediante a negação, por aquela, dessa posse», isto é, «perante a posição sistematicamente assumida pela assistente, no sentido de as não ter em seu poder, inexiste mecanismo legal que nos permita a execução coerciva do anterior despacho que determinou a sua junção».
Nos termos do disposto no 621º/1 do Cód. de Processo Civil, aplicável nos termos do nº3 do art. 613º do mesmo diploma ao despacho judicial, prevê–se que este «constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga», o que significa que a decisão que o mesmo configure não está isenta de alteração se se alterarem os pressupostos processuais e materiais em que assentou.
Foi quanto aqui sucedeu, como bem vemos elucidado pelo tribunal a quo em termos que encontram evidente sustento na sucessão de incidências processuais acima elencadas.
No presente caso, o despacho que inicialmente deferiu a requerida junção de documentos pela assistente/demandante assentou no pressuposto da sua disponibilidade dos mesmos e, assim, na possibilidade de por essa via serem juntos ao processo. Donde, esse despacho não pode conduzir à formação de caso julgado formal no caso de supervenientemente decorrer dos autos a comunicada impossibilidade material de obter os documentos em causa por tal via.
O Tribunal a quo não estava, pois, impedido de reapreciar, como reapreciou, à luz de elementos entretanto adquiridos no âmbito deste novo processo, o contexto em que determinara a notificação da assistente para juntar os documentos em causa.
Em suma, e no que tange à junção aos autos de actas da associação “União Ciclista de ...” desde 2013 até à presente data, mostra–se definitiva e insindicável a decisão do respectivo indeferimento, não tendo a mesma violado caso julgado formal no processo.

Vejamos então quanto respeita ao indeferimento das diligências de:
notificação da assistente/demandante para identificar quem é o seu legal representante, nomeadamente, o seu presidente e demais órgãos sociais, com junção de documento que titule tal legitimidade,
– e notificação do legal representante da assistente/demandante para que sejam tomadas as suas declarações na audiência de discussão e julgamento.
O artigo 340º do Cód. de Processo Penal, o qual no seu nº1 estipula que “O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa” ; também o nº4 do mesmo artigo 340º estipula que haverá indeferimento “se for notório que: a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou c) O requerimento tem finalidade dilatória”.
Este normativo é, pois, um afloramento do princípio da verdade material ou da investigação, que deve presidir à actividade do julgador, impondo que o mesmo persiga a verdade material dos factos sujeitos à sua apreciação.
No entanto essa indagação está desde logo condicionada ao princípio da vinculação temática do tribunal aos factos juridicamente relevantes, tanto para a determinação da culpabilidade, como, quando for caso disso, da determinação da pena e da responsabilidade civil (124º do Cód. de Processo Penal).
Ou seja, e em resumo, o juízo sobre a essencialidade ou indispensabilidade de produção de determinada diligência de prova que cabe ao tribunal, está vinculado aos princípios da objectividade, necessidade, adequação e viabilidade da obtenção prova – além de, não se olvide, antes de tudo isso ao princípio da legalidade decorrente dos arts. 125º e 340º/4 do Cód. de Processo Penal, do qual decorre que só é ponderável a produção de meios de prova legalmente admissíveis.
Resulta, portanto, deste regime de produção de prova superveniente em sede de julgamento que, verificados os demais pressupostos processualmente previstos, existe a possibilidade extraordinária de – nomeadamente – o tribunal de julgamento determinar a produção de um meio de prova (nomeadamente uma inquirição como testemunha) não indicada em sede de acusação ou de contestação, desde que tal se «afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa» – porém, a inversão da rejeição dessa diligência (quando requerida), exige a consideração mais restritiva de que tal acto seria essencial à descoberta da verdade.
No caso em apreço o tribunal a quo indeferiu as diligências aqui em causa, ao abrigo do artigo 340º/1 do Cód. de Processo Penal, por não as considerar essenciais, pois que entendeu, em síntese, haver sido produzida nos autos prova suficiente e adequada à determinação da representação da assistente/demandante, e por isso não se justificando a notificação desta para reiterar o que já havia declarado nos autos. Nestes termos, e em bom rigor, prejudicada também se mostra a pretendida tomada de declarações de suposto(s) outro(s) representante(s) da “UC...”.
Ora, como já acima vimos, a indagação sobre a essencialidade da produção de determinada diligência probatória deve estribar-se em critérios objectivos, não podendo, por isso, avaliar-se em função de convicções pessoais dos intervenientes processuais – neste sentido também os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 24/10/2012 (proc. 202/12.7TBPRG.P1)[12], de 14/11/2012 (proc. 15722/10.0TDPRT.P1)[13] e de 08/01/2014 (proc. 1170/09.8JAPRT.P2) [já citado].
No caso, o recorrente propugna que as diligências probatórias em causa seriam relevantes para colocar em crise a existência jurídica da assistente e a identidade do seu representante legal nos autos. Mas fá–lo, precisamente, mediante a formulação de juízos e não de factos.
Ora, o que o tribunal a quo entendeu é que tais dúvidas do arguido não têm justificação face à prova produzida nos autos.
E, percorrido o processo e a objectiva prova produzida em audiência, julga–se que assim na verdade sucede.
Cite–se a este propósito a Acta nº3 da “UC...” (documento junto a fls. 77 e segs. e a fls. 3337vº e segs.) que reflecte a eleição dos órgãos sociais para o triénio de 2012 a 2015, sendo que a denúncia criminal foi apresentada em Fevereiro de 2015 ; ademais, a “UC...” encontra-se inscrita no ficheiro central de pessoas colectivas (cfr. informação de fl. 2972 e de fl. 3760), daí decorrendo ser o aludido BB o seu legal representante, o que também foi reconhecido pelas testemunhas inquiridas em julgamento.
A tal propósito adianta–se que do teor das declarações prestadas em julgamento por BB, e a que o recorrente apela, o que se retira é que a assistente “UC...” se encontrava inactiva desde 2015, o que, naturalmente, não equivale à sua extinção jurídica.
Salienta-se que a “UC...” foi constituída assistente nos autos sem oposição ou impugnação, e que em sede de contestação do pedido de indemnização civil pela mesma formulado, o arguido não invocou qualquer indício de ilegitimidade da assistente para assumir também a qualidade de demandante nos autos.
Sempre se dirá que, em derradeira análise, quer na vertente do procedimento criminal, quer da demanda cível, o pretendido pelo arguido nesta parte seria inócuo nos seus efeitos. Na verdade, a imputação criminal dos autos respeita a um crime de natureza pública, e quanto à demanda cível, a demandante sempre seria a “UC...”, independentemente de quem actualmente fosse o seu legal representante, e não qualquer outra entidade.
Em suma, no necessário exercício de ponderação da essencialidade do meio de prova requerido em causa, o tribunal a quo não deixou de, como se lhe impunha, efectuar um inevitável juízo de prognose quanto à respectiva relevância, exercício para o qual não deixou também de contribuir a ponderação de quanto resultava dos demais elementos probatórios produzidos nos autos e em sede de audiência.
E em resultado desse exercício – que já é, note–se, efectuado no âmbito do princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do Cód. de Processo Penal – o tribunal de primeira instância extraiu a convicção de que tal relevância essencial não se verificava.
E julga–se que assim bem decidiu, pois que os meios de prova em causa não se mostram necessários para permitir a demonstração de factos com determinante relevo para a decisão sobre o objecto sobre o qual estava incumbido o tribunal incumbido de apreciar.

Não se mostra, assim, configurada a violação do regime do art. 340º do Cód. de Processo Penal, confirmando–se por isso a decisão recorrida também nesta parte.


A.II.ii. De saber se é devida a condenação do recorrente em custas no âmbito do despacho recorrido.

A segunda questão suscitada pelo recorrente reporta–se à decisão, pelo despacho recorrido, da sua condenação em 3 unidades de conta, como tributação da apreciação do que fora requerido pelo arguido.
Assenta o recorrente a sua discordância em dois aspectos : por um lado na ausência de fundamentação do despacho recorrido neste concreto segmento, e, por outro, a ausência de fundamento legal para tal condenação em custas.

Apreciando.

No que tange à invocada falta de fundamentação do despacho recorrido na parte que respeita a esta condenação em custas, é inquestionável que o artigo 205º/1 da Constituição da República Portuguesa consagra que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, inserindo–se tal exigência nas garantias de defesa em processo criminal a que alude o art. 32º/1 do mesmo diploma fundamental – vindo neste âmbito o dever de fundamentação plasmado, em conformidade, desde logo no art. 97º/5 do Cód. de Processo Penal, onde se estipula que «Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
Sucede que o art. 118º/1 do Cód. de Processo Penal estabelece que «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei»; quando assim não suceder, o acto ilegal é meramente irregular, nos termos do nº2 do mesmo preceito.
Ora, a falta de fundamentação do despacho ora recorrido não é cominada no art. 97º do Cód. de Processo Penal, nem em outro qualquer preceito, com nulidade (absoluta ou relativa), pelo que a mesma constitui uma irregularidade, por força do nº 2 do art. 118º do mesmo Código.
Nos termos do art. 123º/1 do Cód. de Processo Penal «Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes, a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.».
Donde, e só por esta liminar razão, não tendo in casu a irregularidade processual sido tempestivamente arguida, nos termos deste art. 123º/1 do Código de Processo Penal, a mesma mostra–se sanada.

Vejamos então quanto respeita à falta de fundamento legal para a condenação em custas aqui em causa.
Embora o despacho recorrido seja omisso quanto à norma de suporte para a condenação em custas aplicada, julga–se que do mesmo resulta claro que se considerou o requerimento apresentado pelo ora recorrente no dia 30/05/2022 – elencado supra no ponto 14º das incidências processuais tidas por relevantes para a presente apreciação – como um incidente tributável e, por isso, enquadrável na previsão do nº 4 e nº8 do art. 7º do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
De acordo com estas normas, «A taxa de justiça devida pelos incidentes e procedimentos cautelares, pelos procedimentos de injunção, incluindo os procedimentos europeus de injunção de pagamento, pelos procedimentos anómalos e pelas execuções é determinada de acordo com a tabela ii, que faz parte integrante do presente Regulamento» (nº4), e «Consideram-se procedimentos ou incidentes anómalos as ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide que devam ser tributados segundo os princípios que regem a condenação em custas» (nº8).
De acordo com Salvador da Costa, em “As custas processuais – análise e comentário”, 9ª ed., pág. 110, «é pressuposto da anomalia dos incidentes e dos procedimentos o seu radical alheamento face ao desenvolvimento normal da lide, ou seja, deve tratar–se de questões processualmente descabidas face à sua dinâmica normal, o que em regra só pode ser apurado no seu termo».
No mesmo sentido escreve Joel Timóteo Pereira, em “Regulamento das Custas Processuais e Legislação Complementar”, 2ª ed., págs. 49-50, que «Para concretizar este conceito, deve considerar-se estranha ao «desenvolvimento da lide» o requerimento ou a arguição que se afaste da normalidade de uma tramitação (uma tramitação normal é aquela que radica no exercício e salvaguarda de direitos). Enquanto tal, essa “ocorrência” constituirá uma violação dos princípios gerais da boa fé e da lealdade processual que impendem sobre todos os sujeitos processuais. O propósito do legislador ao estabelecer uma sanção, funda-se na circunstância de tais actividades ou condutas processuais serem entorpecedoras da ação da justiça e, como tais, causadoras de um dispêndio inútil de meios humanos e materiais», aditando dever tratar–se de uma questão que surja «no quadro da dinâmica normal do processo como de todo descabida, e que tivesse um mínimo de autonomia processual em relação ao processado da causa».
A anomalia do acto ou requerimento tem de ser aferida, pois, em função da relação em que esteja com a estrutura ou tramitação do processo e não por referência ao fundamento em que se baseia. Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/12/2022 (proc. 10551/18.5T8LRS-A.L1-7)[14], «Para essa aferição há que indagar se o acto integra o andamento regular do processo, se se integra na tramitação legal. Se assim for, há-de ter-se por acto normal, independentemente da questão de saber se foi praticado com fim construtivo ou com propósito meramente dilatório ou se é fundado ou não. Pelo contrário, se o acto não figura entre os termos e formalidades organizados pela lei ao estabelecer o andamento do processo, então será um acto anómalo (ainda que a parte tenha razão). Em suma, os critérios a utilizar devem guiar-se pelo princípio de causalidade em matéria de custas, sem qualquer cariz de punição, devendo ter-se por afastada a tributação incidental assente apenas no carácter inconsequente da pretensão deduzida».
No mesmo sentido interpretativo, referência para o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/03/2019 (proc. 171/16.4GASEI-A.C1)[15], onde se consigna que «será o não cabimento na tramitação normal do processo a ditar a natureza anómala do incidente. Dito de outro modo, estranho ao desenvolvimento da lide será o requerimento/arguição que se distancie da normalidade da tramitação, dando corpo a uma atividade ou conduta processual entorpecedora da ação da justiça. Ao invés, as questões que surjam no seio da dinâmica normal do processo e que não revistam um “caráter descabido” devem ser consideradas abrangidas na tributação específica da causa e não já objeto de tributação autónoma.».
In casu, a decisão recorrida considerou que o requerimento formulado pelo arguido em 30/05/2022, revestia a característica de incidência processual anómala, pelo que a tributou, fixando a taxa de justiça em 3 UC.
É de notar que é apenas a apreciação desse requerimento que aqui se mostra tributada, o que decorre não apenas da falta de indicação em contrário na decisão recorrida, como inclusive dos próprios termos desta última, quando ali adita advertir o arguido/requerente que «caso persista em requerimentos do jaez do ora apreciado, repetitivos em termos de diligências requeridas ou de diligências que protelem a descoberta da verdade material» – sublinhado nosso.
Prosseguindo, diga–se que exactamente este último trecho da decisão recorrida permite também percepcionar o entendimento do tribunal a quo que esteve na base da sua consideração do requerimento em causa como consubstanciando incidente processual anómalo: entendeu o tribunal que o mesmo era «repetitivo[s] em termos de diligências requeridas ou de diligências que protelem a descoberta da verdade material».
Ora, percorrida a tramitação processual acima elencada e que veio a dar origem a tal requerimento apresentado pelo arguido e à decisão (ora recorrida) que o apreciou, constata–se que o mesmo se deve ter por enquadrado no âmbito da pretensão de produção de elementos probatórios que o recorrente iniciou a montante de tal requerimento, e mais concretamente na arguição da invalidade processual do despacho que indeferira parte daquelas.
Como da mesma tramitação resulta, a pretensão do requerente fora objecto de inicial deferimento, só vindo a soçobrar perante a inviabilidade de produção de parte da prova requerida (a junção das actas da “UC...”), e quando o tribunal a quo veio a entender que o demais (as notificações do legal representante da “UC...”) não tinha interesse para o objecto do processo – sendo que é precisamente por via da decisão ora recorrida que o tribunal se pronuncia e indefere esta demais prova requerida pelo arguido.
E independentemente da adequação processual do meio em causa, a verdade também é que o requerimento de 30/05/2022 surge na sequência de, na sessão da audiência de julgamento do dia 26/05/2022, o tribunal haver concedido o prazo de 10 dias para o arguido arguir a «irregularidade ou nulidade» do despacho judicial que fora proferido em 24/05/2022 (e que indeferira a junção das actas da “UC...”).
Assim, o requerimento de 30/05/2022 não determinou só por si qualquer sequência de actos processuais ou incidente que fosse estranho àquele que vinha sendo o normal desenrolar do processo até ali.
Ainda que se sufrague o entendimento final do tribunal recorrido de que as diligências probatórias em causa se revelaram, além de em parte de inviável concretização, todas de inócua utilidade para aquele que é o objecto do processo, a verdade é que o requerimento em causa não deixa de estar incluído na sequência processual iniciada com a requerida junção de elementos probatórios.
Ou seja, quer a arguição dos vícios de que, no entender do arguido, padecia o despacho do dia 24/05/2022, quer a pretendida produção de demais prova (as notificações de um outro putativo representante da “UC...”), não originou, ele próprio, uma actividade ou conduta processual completamente alheada da tramitação que vinha sendo seguida, nem entorpecedora da acção da justiça.
É irrelevante saber se a pretensão do recorrente era ou não pertinente, se tinha fundamento processual e material, ou se havia um fim útil na dedução de tal requerimento. Ponto é que se trata de questão que foi submetida no momento processual apropriado, que surgiu no seio da dinâmica normal do presente processo – isto é, não se apresenta como totalmente descabida ou abusiva em face da actividade processual já originada anteriormente e que vinha sendo também seguida pelo tribunal a quo –, tendo apenas determinado o indeferimento dos vícios suscitados sobre anterior despacho e rejeição da demais prova requerida, não dando causa a um acréscimo anormal da actividade processual, nem tão pouco a uma excessiva demora na tramitação do processo.
Pelo que se considera que por via de tal requerimento de 30/05/2022 não existiu actividade processual com autonomia bastante para justificar a sua tributação, donde, o mesmo não deve ser qualificado como incidente anómalo para efeitos de tributação, não havendo lugar à fixação de qualquer taxa de justiça que lhe deva ser aplicada.

Assim, procede, nesta parte, o presente recurso interlocutório, pelo que se impõe a revogação da decisão aqui recorrida, no segmento em que condenou o arguido/recorrente em custas e fixou a taxa de justiça em 3 UC.
*

II.B. APRECIAÇÃO DO RECURSO DA DECISÃO FINAL

Comecemos por fazer aqui presente o teor da decisão recorrida, no segmento relevante para a apreciação do presente recurso – isto é, no que tange à matéria de facto considerada na mesma.

Assim, é a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância :
(…)


1. De saber se a sentença recorrida é nula nos termos do art. 379º/1/b) do Cód. de Processo Penal, por via da violação do disposto no art. 359º do Cód. de Processo Penal.

O arguido/recorrente AA ocupa a primeira parte da sua impugnação recursória da sentença proferida nos autos, com a invocação de que a mesma se mostra afectada da nulidade processual prevista no art. 379º/1/b) do Cód. de Processo Penal.
Assenta o recorrente a sua alegação, em síntese, em que a sua condenação terá assentado em factos diversos dos descritos na acusação, factos esses, é certo, oportunamente comunicados pelo tribunal a quo enquanto alterações não substanciais daqueles acusados – e, por isso, ao abrigo do disposto no art. 358º do Cód. de Processo Penal –, mas que, entende o recorrente, consubstanciam verdadeiras alterações substanciais dos factos imputados na acusação, não tendo assim sido devidamente observados os pressupostos e condições previstos para a respectiva consideração e previstos no art. 359º do Cód. de Processo Penal.

Vejamos.

Uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste na designada vinculação temática do tribunal, significando que o objecto do processo penal é aquele da acusação (ou da pronúncia), sendo esta que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado. Constitui ainda (a vinculação temática), a «pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido» assegurando os direitos de contraditoriedade e audiência - Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, edição 2004, pág. 145.
Já Gomes Canotilho e Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 1ª edição, vol. I, fls. 522, nota XI, a propósito do princípio do acusatório, referem: «O princípio acusatório é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório). A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador”.
Ora, o pleno exercício pelo arguido, em sede de julgamento, das garantias de defesa que lhe assistem, tem como pressuposto a estabilização do objecto processual logo que este tenha sido fixado pela acusação ou pela pronúncia, quando esta exista, objecto esse que, de acordo com o disposto nos arts. 283º ou 308º do Cód. de Processo Penal, se compõe obrigatoriamente de uma narrativa factual e de um certo enquadramento jurídico-penal dos factos narrados.
Nesta ordem de ideias, qualquer alteração do objecto processual tem de ser necessariamente excepcional e tem de ocorrer de modo a deixar ao arguido a oportunidade de reorganizar a sua defesa, na medida necessária, o que equivale a dizer, em concreto, dentro dos condicionalismos definidos pelos arts. 358º e 359º do Cód. de Processo Penal.
É, pois, precisamente neste fundamental enquadramento que surge o instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o qual visa, precisamente, que em sede de julgamento sejam asseguradas as garantias de defesa ao arguido, pretendendo a lei processual penal que este não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, ou por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente – isto é, que venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.
Como se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13/05/2014 (proc. 359/11.4PATVR.E1)[16], «O instituto procedimental da alteração de factos [cfr. artigo 1.º n.º 1 alínea f) do CPP] tem por escopo assegurar as garantias de defesa do arguido, prevenindo um julgamento e uma condenação com base em materialidade de facto diversa daquela que, oportunamente, maxime, na acusação, lhe tenha sido comunicada – artigo 32.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP)».
Os mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do Cód. de Processo Penal viabilizam, pois, a prossecução das finalidades do processo penal, garantindo os direitos de defesa do arguido e o processo justo.
Dispõe o art. 358º do Cód. de Processo Penal, sob a epígrafe «Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia» o seguinte:
«1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.».
Por seu turno, prevê o art. 359º do Cód. de Processo Penal, sob a epígrafe «Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia»:
«1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3 – Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.»
E é a consideração da absoluta essencialidade do respeito pelos princípios em causa nesta matéria que se traduz em quanto vem a prevenir–se, entretanto, no nº1, alínea b) do art. 379º do Cód. de Processo Penal, que liminarmente comina de nula a sentença «que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».

Efectuadas estas genéricas considerações, revertamos à questão em concreto suscitada pelo arguido/recorrente nesta parte do seu recurso.

Antes, porém, de prosseguir com tal análise, cumpre elencar, de forma sintética, as incidências processuais relevantes para apreciação da questão em causa (procedendo–se à transcrição integral dos despachos e requerimentos pertinentes, até pela relevância de tal conteúdo na apreciação que, a jusante da presente concreta análise, será efectivada).
Assim, e como da análise dos autos decorre:
1º, em sede de audiência de discussão e julgamento, e após a produção de toda a prova elencada em sede da acusação/pronúncia e da contestação dos autos, veio, na sessão do dia 05/07/2022 – para a qual se encontrava agendada a leitura da sentença – o tribunal recorrido a proferir (em acta) o seguinte despacho:
«Compulsada a prova produzida, entendeu este Tribunal terem logrado a adesão da prova, por referência à acusação pública deduzida nos autos e ilícito nessa sede assacado ao arguido, os seguintes factos que naquela se não encontram expressamente discriminados pelo que, consubstanciando uma alteração não substancial dos mesmos, se comunicam, nos termos e para os efeitos previstos no art. 358.º, n.º 1 do Código do Processo Penal:
a. O arguido logrou efectuar as discriminadas transferências bancárias por virtude da consideração de que a UC... e o próprio beneficiavam junto dos responsáveis do Banco 1...”, no que contava com o auxílio de EE, gerente da conta bancária titulada pela primeira.
b. Anteriormente ao ano de 2013, a assistente não dispunha de uma equipa profissional continental de ciclismo.
c. O arguido fazia as vezes de director desportivo da equipa de ciclismo da assistente, nessa medida lhe cabendo a sua gestão no quotidiano.
d. Tendo sido contratado pela assistente para a prestação desses serviços e o seu salário fixado em € 500,00 (quinhentos euros) mensais.
e. Não obstante o que o próprio ou alguém a seu mando, no seu interesse e com o seu conhecimento, celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a “B... – Companhia de Seguros, SA”, em que a assistente figurava como tomadora e, de entre as pessoas seguras, constava o arguido, como ciclista profissional e cujo salário ascendia a € 1.071,43 (mil, setenta e um euros e quarenta e três cêntimos).
f. Para o pagamento das despesas relacionadas com a mencionada gestão da equipa de ciclismo da assistente, o arguido dispunha do cartão de débito associado à conta bancária da assistente e de cheques assinados por BB.
g. Nas vésperas da Volta a Portugal de 2014, agendada para o período compreendido entre 30/07/14 e 10/08/14, houve lugar a uma reunião entre os ciclistas e o staff da equipa de ciclismo da assistente, os primeiros se tendo insurgido contra o arguido por falta de pagamento dos seus salários e exigindo que o mesmo abandonasse a respectiva direcção desportiva, sob pena de se não apresentarem para competir naquela prova.
h. Ao que o arguido acedeu, tendo os referidos ciclistas recebido quantias que lhes eram devidas no âmbito de um contrato de patrocínio nessa ocasião celebrado com a “C...” e competido na Volta a Portugal de 2014, da qual saíram vitoriosos.
i. Posteriormente ao abandono de funções por parte do arguido, a assistente, na pessoa de BB, contratou os serviços de um contabilista, o mesmo se tendo deparado com a inexistência de contabilidade organizada e de diversas dívidas.
j. O reconhecimento da assinatura aposta na declaração datada de 22/01/14 como sendo do arguido apenas conheceu formalização em 22/10/14, dada a circunstância de, naquela primeira data, a assistente ignorar a exacta medida das suas dívidas. » ;
2º, Estando presente o arguido, e sendo–lhe assim efectuada presencialmente esta comunicação, pelo mesmo foi solicitado prazo para preparação da sua defesa nos seguintes termos : «na sequência do despacho ora preferido, com a devida vénia, o arguido requer, ao abrigo do disposto no art.º 358.º, n.º 1, do CPP, o prazo de 10 dias para preparar a sua defesa, só assim se assegurando todas as garantias previstas no art.º 32.º, da CRP, pelo que se pede deferimento.» ;
3º, De imediato pelo tribunal a quo foi proferido o seguinte despacho:
«Atenta a posição ora assumida pelo arguido, concede-se prazo de vista até 13/07/2022 por forma a possibilitar a leitura da sentença anteriormente ao início do período de férias judiciais, interrompendo-se a presente audiência e para a sua continuação, com a leitura de sentença, designando-se o próximo dia 14.07.2022, às 16.00 horas. » ;
4º, Nesta sequência, veio o arguido, em 13/07/2022, apresentar nos autos requerimento em que, além de suscitar estar–se perante verdadeiras alterações substanciais de factos relativamente àqueles da acusação/pronúncia (em termos similares aos alegados no presente recurso), subsidiariamente requer a produção de determinados meios de prova relativamente aos factos objecto de comunicação pelo tribunal, terminando o dito requerimento nos seguintes termos:
«Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, requer-se que V. Exa. se digne a:
i. julgar procedente a nulidade supra invocada, por verificação de uma alteração substancial dos factos, nos termos supra requeridos, com as inerentes consequências legais;
Sem prescindir,
ii. ordenar a inquirição das testemunhas acima mencionadas e a tomada de declarações do legal representante da Assistente, nos termos supra requeridos conforme acima exposto;
iii. ordenar a junção aos autos dos documentos supra requeridos.»
5º, Apreciando o requerido, pelo tribunal a quo, novamente em sessão da audiência de julgamento, agora no dia 14/07/2022, veio a proferir (em acta) o seguinte despacho:
«Principiando pela análise da nulidade suscitada pelo arguido - na certeza de que o mesmo sequer a caracteriza por referência a qualquer uma das previsões normativas que lhe respeitam -, assenta a mesma, afinal, numa diferente leitura que faz da prova produzida - não obstante, por não haver ainda sido proferida sentença, desconheça os moldes em que este Tribunal formou a sua convicção - a saber, a recondução da conduta do arguido a uma co-autoria, que não a uma autoria. Ora, conforme se poderá constatar uma vez lida a fundamentação da matéria de facto da sentença a proferir, o Tribunal não procedeu a uma tal alteração; acresce que ambas são formas de autoria e, que saibamos, a testemunha mencionada não assume o papel de arguido no âmbito dos presentes autos. Assim, não se altera a participação do arguido nos factos, apenas se esclarece a participação do arguido nos factos. /
Revertendo ao mais aduzido, constatamos estar uma vez mais em causa o entendimento do arguido acerca da prova produzida, visando-se substituir ao deste Tribunal, pelo que, salvo melhor opinião, o quanto argumenta deverá, se assim o entender, integrar uma peça de recurso da sentença a proferir, razão pela qual nos dispensamos de dissecar qualquer uma das razões de discórdia; estranho seria se, posteriormente ao proferimento de um despacho de alteração não substancial dos factos ao qual subjaz a percepção da prova por parte deste Tribunal, uma mera discordância do arguido tivesse o condão de a alterar ou tornar necessários acrescidos meios de prova. Na verdade, e salvo melhor opinião, inculca o comportamento processual do arguido o seu desinteresse no desfecho da audiência de julgamento ainda em curso e consequentemente proferimento de decisão final.
Termos em que:
- Julgo improcedente a nulidade invocada;
- Indefiro, ao abrigo do disposto no art.º 340.º, n.º 4, do CPP, a inquirição de testemunhas e a junção de documentos pretendidos.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça no máximo legal.
Notifique. » ;
6º, Nesta sequência, e sempre na mesma diligência, pelo arguido foi suscitada a irregularidade do despacho em causa, tendo sido a mesma indeferida e o arguido condenado em custas ; subsequentemente invocou ainda o arguido a nulidade do mesmo despacho, o que foi também indeferido, com nova condenação em custas ;
7º, Na mesma data, e de imediato, foi proferida a Sentença ora recorrida ;
8º, Resulta do cotejo entre os factos vertidos/comunicados no predito despacho (referido no ponto 1º supra) e o teor da fundamentação de facto em sede de sentença, que aqueles vieram ser integrados no âmbito dos factos considerados provados pelo tribunal a quo – sendo vertidos, respectivamente, nos pontos 14. e 23. a 31. da matéria de facto provada.

Apreciemos, pois, a questão suscitada.

Sustenta o recorrente, como vimos, que os factos – ou, pelo menos, parte deles – objecto daquela comunicação operada pelo tribunal a quo por despacho de 05/07/2022, consubstanciam uma verdadeira alteração substancial (e não meramente não substancial) da factualidade descrita na acusação oportunamente deduzida pelo Ministério Público, e que foi acolhida, tale quale, pela decisão instrutória de pronúncia.
Considera o arguido/recorrente que, por essa via, foi violada a estrutura acusatória do processo penal, e violado ainda o princípio da presunção da inocência.
Vejamos.

Muito sucintamente se dirá, em complemento das considerações já acima efectuadas, que, e como se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/03/2012 (proc. 76/10.2TAVLC.G1)[17], temos, pois, que «Os mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do CPP têm a ver com a identidade do processo penal fixada na acusação, visando que ninguém seja condenado por factos ou incriminações com que não podia razoavelmente contar».
Os factos hão-se ser entendidos como acontecimentos históricos, como eventos naturalísticos, como sendo aquele pedaço de vida que em concreto se vai analisar.
Como escreve Frederico Isaasca, em “Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal Português”, pág. 89 e segs., «O facto é um “certo caso concreto” que suscita um problema concreto, é um quid ontologicamente determinado mas juridicamente referenciado e nessa medida, problemático-metodológico. (…) O acontecimento histórico não é o facto naturalístico isoladamente considerado, ou exclusivamente apreciado de um ponto de vista jurídico, ou um «dado» de uma questão de direito que coloca um problema jurídico. O acontecimento histórico é «um pedaço de vida» que se destaca da realidade e como tal, isto é, como pedaço da vida social, cultural e jurídica de um sujeito, se submete à apreciação judicial. A forma como ele é visto e compreendido, do ponto de vista social, torna-se num referente indispensável para a determinação e delimitação do conceito. (...) O facto processual, como acontecimento ou pedaço de vida, não corresponde, do ponto de vista ontológico, a um único facto, mas a uma pluralidade de factos singulares que se aglutinam em torno de certos elementos polarizadores que permitem a sua compreensão, de um ponto de vista social, como um comportamento que encerre em si um conjunto tal de elementos que tornam possível identificá-lo e individualizá-lo como um autónomo pedaço de vida, i. e., uma fracção destacável do contínuo comportamento de um sujeito, capaz de ser analisado em si e por si e, nessa medida, susceptível de um juízo de subsunção jurídico-penal».
Assim, ainda que a lei admita que na sentença penal – seja por razões de economia processual, seja por razões de segurança e de estabilização jurídica –, possam ser considerados factos novos, resultantes da discussão da causa, ainda que constituam alteração dos constantes da acusação ou da pronúncia, exige–se para tal que sejam observadas determinadas formalidades e verificados determinados pressupostos, matéria que o Cód. de Processo Penal, como já vimos, regula nos arts. 1º, 358º e 359º.
Da conjugação de tais disposições processuais resulta muito claro que apenas as modificações da base factual do objecto do processo que não traduzam situação prevista na al. f) do art. 1º do Cód. de Processo Penal podem ser levadas em conta pelo tribunal desde que se cumpram as formalidades do art. 358º ; já aquelas modificações que consubstanciem o exceder da linha limite do mesmo art. 1º/f), por regra estão excluídas de tal superveniente consideração, só podendo ser conhecidas no mesmo processo com o acordo desde logo do próprio arguido (pois que tal acordo pressupõe estar salvaguardado o seu direito de defesa).
Como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21/10/2014 (proc. 14/09.5GBRMZ.E1)[18], «Nesta ordem de ideias, qualquer alteração do objecto processual tem de ser necessariamente excepcional e tem de ocorrer de modo a deixar ao arguido a oportunidade de reorganizar a sua defesa, na medida necessária, o que equivale a dizer, em concreto, dentro dos condicionalismos definidos pelos arts. 358.º e 359.º do CPP».

In casu, deixemos por ora pendente quanto tange à aferição do respeito pela oportunidade de reorganizar a sua defesa por parte do arguido face às alterações comunicadas – adiante lá iremos.

Centremo-nos, para já, no critério da substancialidade, que é aquele que há–de definir, pois, em que margem da linha delimitadora do art. 1º/f) do Cód. de Processo Penal situar a emergência de factos que mudem, modifiquem ou acresçam aqueles que constituíam o objecto factual submetido a julgamento.
A alteração não substancial constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para determinar a moldura penal.
Já a alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Cumpre realçar que a noção de «crime diverso» plasmada no art. 1º/f) do Cód. de Processo Penal não corresponde exactamente à singela consideração do mesmo tipo legal de crime – tal abriria a porta a uma modificação de tal forma ampla do objecto de facto do processo que, no final das contas, a única circunstância similar entre aquilo que fora submetido a julgamento e aquele que fosse o resultado do mesmo, estivesse na mera correspondência típica do crime pelo qual o arguido fosse condenado.
Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/10/2010 (proc. 403/04.1GAMCN-A.P1)[19], «ao tipo diverso … pode não corresponder crime diverso. E ao crime diverso pode não corresponder tipo diverso», distinção que surge densificada designadamente no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/05/2017 (proc. 2642/11.0TACBR.C1)[20] onde se consigna que «I – A noção de crime diverso, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 1.º, n.º 1, al. f), e 359.º, ambos do CPP, não é atinente apenas à imputação de crime previsto em diferente normativo legal, cabendo também naquele conceito o ilícito penal previsto na mesma norma, mas cometido noutras circunstâncias quanto a algum dos elementos essenciais do tipo. II – Tanto ocorre alteração substancial quando diverso é o contexto objectivo do cometimento do crime, como quando diferente se revelam os parâmetros subjectivos da sua perpetração, mormente a intenção, quando ela integra o respectivo tipo legal.»
Tendo sempre presente a noção de factos imputados para julgamento como acontecimento histórico complexo, o “pedaço de vida” a que atrás se aludiu, pode sintetizar–se o critério aqui relevante em consonância com Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do Código de Processo Penal – à luz da CRP e da CEDH”, ed.2007, pág. 39, quando refere que «Não há crime diverso quando os factos pertencem ao mesmo “facto histórico unitário”, composto por todas as acções do agente que tenham “um conteúdo ilícito semelhante e uma estreita continuidade espácio–temporal”». No mesmo sentido cite–se ainda Pedro Soares Albergaria, em “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal – Tomo IV”, ed.2022, pág. 636, quando escreve que «"Crime diverso" não equivale a "tipo de crime diverso" - bem podendo suceder que haja "crime diverso" onde os novos factos, juntamente com os que já constituíam objecto do processo, não se subsumam a outro "tipo legal de crime" e, inversamente, pode ocorrer que a subsunção desse acervo fáctico a outro "tipo legal de crime" não implique estarmos perante "crime diverso": o "crime" para aqui relevante é o crime concreto, quer dizer o conjunto de factos segregados pela vida e em relação entre si de acordo com certos elementos polarizadores e suscetíveis de, reduzidos à unidade mediante a valoração das suas incidências naturalísticas e normativas, legitimarem a aplicação de uma sanção.».
No que se reporta ao critério de substancialidade da alteração derivado da «agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», do mesmo passo que não oferece a mesma complexidade analítica, também se revela, e por isso, acentuadamente liminar na determinação do efeito da sua verificação : na verdade, «muito embora os critérios – “crime diverso" / "agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis" - surjam como alternativos ("ou"), certo é que se a verificação da mesmidade do crime não dispensa a verificação do agravamento do limite máximo da sanção, o contrário não é verdadeiro: sempre que ocorre agravamento do limite máximo da sanção ocorre alteração substancial de factos, ainda que o crime não seja diverso» – Pedro Soares Albergaria, ob. citada. pág. 634.

Tendo todas estas considerações presentes, revertamos ao concreto caso dos autos.
De acordo com a decisão instrutória de pronúncia (que definiu o objecto de facto e de Direito submetido a julgamento em termos idênticos aos da acusação do Ministério Público), ao arguido mostra–se imputada a prática de uma actuação global, delimitada em termos espácio temporais, que se terá consubstanciado na apropriação indevida e ilícita de determinadas quantias monetárias pertencentes à assistente “UC...”, quantias das quais, e por diversas vias, tinha a disponibilidade, sempre por motivos ligados à sua actividade profissional enquanto representante e gestor dos interesses da mesma assistente – actuação tipificada em termos técnico–jurídicos enquanto crime de abuso de confiança.
Esse ‘pedaço de vida’ do arguido, assim delimitado e submetido a escrutínio do julgamento, ter–se–ia traduzido, na sua execução concreta (e sempre de acordo com a acusação/pronúncia), em três vertentes ou actuações concomitantes e objectivamente destacadas:
– por via da efectivação de várias transferências bancárias para uma sua conta pessoal a partir de conta da assistente no Banco 1..., com utilização de uma procuração emitida pela segunda em seu benefício,
– através do uso de três cheques preenchidos e assinados pelo representante da mesma assistente, que também lhos entregara,
– e fazendo divergir o destino de quantias recebidas de determinada sociedade comercial a título de um contracto de patrocínio publicitário celebrado por esta com a assistente.
Pois bem, perante este núcleo identificativo que caracteriza a actuação criminalmente relevante imputada ao arguido e que era o objecto do julgamento, não se julga que os factos que o alteraram por via da adição determinada pelo tribunal a quo no despacho proferido em 05/07/2022, e entretanto considerados na matéria de facto provada na sentença, consubstanciem uma alteração de natureza substancial relativamente àquele.

Desde logo liminarmente se diga que de tal alteração não decorre qualquer agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis nos autos ao arguido, sendo seguro que a referência a tal critério de substancialidade da alteração de factos previsto no art. 1º/f do Cód. de Processo Penal, se reporta à moldura penal abstracta aplicável, e não ao exercício de definição da pena concreta dentro dessa moldura abstracta em causa.

Depois, e mais relevantemente no caso – até porque é aqui que o arguido/recorrente faz incidir a sua censura neste segmento –, também se considera que nenhuma das alterações introduzidas desfigura aquele mesmo objecto do julgamento em tais termos que o tornem num evento criminalmente relevante que deva considerar–se diverso, distinto e autonomizável relativamente àquele.
Ou seja, não estamos perante uma adição de factos que transfigure o objecto jurídico–penal dos autos num ilícito tipicamente diverso, nem num crime de abuso de confiança diverso em termos de configuração e estrutura no que tange aos elementos típicos essenciais que o caracterizam.
No essencial, os factos aditados, e agora também tidos por assentes na sentença, destinaram–se a especificar e enquadrar circunstancialmente outros factos, que já constavam da acusação, e que, note–se, na sua essencialidade foram também entretanto considerados como provados. Analisando a factualidade que consta na acusação/pronúncia por comparação com aquela dada como provada na sentença – com a adição dos factos entretanto comunicados –, é manifesto que existe alguma diferenciação factual, sendo esta última mais densa no que à narrativa factual que está em causa diz respeito.
Julga–se, porém, claro que estamos ainda e sempre no contexto da apreciação e decisão sobre o mesmo evento histórico, sobre a mesma conduta do arguido que justificou a sujeição do mesmo ao crivo da tutela criminal pela entidade titular do poder acusatório.

Assim sucede relativamente à concretização da forma de actuação do arguido e que lhe permitiu lograr levar a cabo as transferências bancárias imputadas na acusação/pronúncia, especificando–se ter isso sucedido nomeadamente por via da conivência de um funcionário da instituição bancária que sediava a conta da assistente.
É verdade que tal é susceptível de transfigurar o título subjectivo de actuação do arguido numa situação, neste concreto aspecto, de co–autoria.
Porém, certo é que estamos em qualquer caso perante formas de autoria, isto é, o novo facto aditado neste segmento situa–se ainda e sempre dentro do conceito de autoria definido no art. 26º do Código Penal, onde, como é sabido, a mesma se contempla nas seguintes formas:
– a de quem executa o facto por si mesmo (autoria imediata),
– a de quem executa o facto por intermédio de outrem (autoria mediata),
– a de quem toma parte directa na execução do facto por acordo ou conjuntamente com outros (co-autoria),
– e a de quem dolosamente determina outra pessoa à prática do facto desde que haja execução ou começo de execução (instigação).
Assim, a circunstância de o arguido haver eventualmente actuado neste concreto aspecto em conluio e conjuntamente com um terceiro, e não singularmente por si mesmo, em nada deturpa a substância material da sua actuação, por reporte à censura típica criminal em si própria, que lhe vem imputada, e que é a mesma.
Neste exacto sentido se cite o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01/06/2011 (proc. 224/02.6TAVNO.C1)[21], em que se decidiu precisamente que «A alteração na sentença da participação do agente constante da acusação, de co–autor, para cúmplice, traduz alteração não substancial dos factos, havendo que cumprir o preceituado no nº 1 do artº 358º CPP».

Também no que se refere aos aditados factos relativos à utilização de um cartão de débito associado à conta bancária da assistente e de cheques apenas assinados pelo legal representante dos mesmos, configuram efectivamente um aditamento de actos de execução do crime que são objectivamente diferentes na sua configuração específica daqueles de que vinha pronunciado – e acima recordados.
Mas trata–se de actos de execução do mesmo crime, e não de outro.
É ainda e sempre da mesma actuação enquanto objecto de facto criminalmente relevante que se trata, não implicando as formas de execução aqui aditadas qualquer distinta e autonomizável decisão e conduta do arguido na consecução do concreto objectivo ilícito fundamental que lhe vinha imputado na pronúncia.

Quanto aos demais factos aditados, como se disse, traduzem–se numa mais concreta contextualização das circunstâncias em que actuou o arguido – mas das circunstâncias tal como configuradas e emolduradas. nos seus traços típicos fundamentais, na acusação/pronúncia, não servindo, em nenhum caso, para colmatar qualquer falta ou falha desta última que determinasse a respectiva inviabilidade. Ou seja, o que o tribunal não poderia em qualquer caso fazer seria, a coberto de uma suposta alteração não substancial de factos, ajudar aquele que acusa, sanando uma acusação deficiente por insuficiência de descrição dos elementos típicos do crime aí imputado, sendo, pois, absolutamente seguro que, como se consigna (por exemplo) no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/05/2019 (proc. 4072/12.7TDPRT.L1-9)[22], «A alteração não substancial dos factos descritos na acusação, ou na pronúncia, não pode ser de tal molde que altere o destino a dar pelo julgador aos factos inicialmente articulados, de forma a que a acusação ou a pronúncia, sem a introdução dessa alteração, fosse o da improcedência».
Não é, porém, esse o caso que nos ocupa.
Os factos aditados revestem uma natureza acessória ou complementar dos que foram apresentados inicialmente a julgamento, destinando–se, claramente, a contextualizar a actuação do arguido de modo mais completo e próximo daquela que será a realidade tida por relevante pelo tribunal a quo – daí a sua comunicação pelo mesmo, que assim deve considerar–se tutelada pela exigência do princípio da procura da verdade material, ademais imposto ao tribunal de julgamento.

Assim, na presente situação, todos os factos novos pertencem, como na expressiva síntese do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06/11/2010 (proc. 233/03.8PDFUN.L1-5)[23] se refere, «ao mesmo facto histórico considerado unitariamente, dentro da definição espacial e temporal em causa, sem descontinuidade com o facto histórico enunciado na acusação e não envolvem alteração dentro do quadro típico ilícito aplicável nem no domínio das sanções aplicáveis».
Nesta perspectiva, os factos objecto de adição por parte do tribunal a quo não determinaram a alteração da configuração jurídico–penal do juízo de tipicidade e ilicitude efectuado em sede de acusação/pronúncia, não se erigindo em alterações substanciais da factualidade imputada naquela, mas sim em alterações não substanciais, tendo assim sido adequadamente comunicados nos termos da primeira parte do nº1 do art. 358º do Cód. de Processo Penal – não se mostrando desrespeitado o regime do art. 359º do Cód. de Processo Penal porque não é aplicável no caso.

Entende–se, assim, que não assiste razão ao arguido nesta parte da sua alegação, improcedendo esta primeira vertente do seu recurso.
*

Porém, quanto até aqui se analisou não esgota a sindicância, imposta a esta instância, da validade da sentença nos termos e para os efeitos do art. 379º/1/b) do Cód. de Processo Penal.

Da nulidade da sentença por violação do regime do art. 358º/1 in fine do Cód. de Processo Penal, na parte que se reporta à garantida dos direitos de defesa do arguido.

Como já se referenciou, o nº1, alínea b) do art. 379º do Cód. de Processo Penal, comina de nula a sentença «que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».
Faz–se notar que a nulidade em causa, quando se reporta ao desrespeito «dos casos e das condições» previstas nos citados artigos, tem em vista assegurar o respeito pela integralidade do regime processual previsto naquele que for o aplicável, consoante os casos.
Assim, e reportando–nos agora já, apenas e só, ao regime processual do art. 358º do Cód. de Processo Penal – que acabamos de verificar ser aquele aqui aplicável às alterações (por adição) de factos comunicadas pelo tribunal a quo, através do despacho de 05/07/2022, que a jusante foram integralmente considerados em sede de matéria de facto provada na sentença recorrida –, isso significa, na esteira, aliás, de quanto já acima se referenciou, que quer a omissão da comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos no libelo acusatório, quer da concessão ao mesmo da oportunidade de reorganizar a sua defesa, é geradora da nulidade da sentença prevista na al. b) do art. 379º do Cód. de Processo Penal.

In casu, constata–se não estar em causa aquela primeira face deste regime, pois que houve lugar à devida comunicação das alterações em causa.
Porém, já acima se advertiu ter–se deixado pendente a apreciação sobre se houve efectivo respeito pela oportunidade de reorganizar a defesa por parte do arguido face às alterações comunicadas.
É o momento de isso fazer, cumprindo deixar claro, como nota prévia, que o vício de nulidade aqui em causa é susceptível de conhecimento e apreciação oficiosa por esta instância de recurso.
Como escreve o Cons. Oliveira Mendes em “Código de Processo Penal Comentado”, ed. 2014, pág. 183, «Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento [ao artigo 379º do Cód. de Processo Penal] do nº 2, estabelece que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso”, o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser... conhecidas em recurso». Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 2010, proferido no Processo nº 70/07.0JBLSB.L1.S1, as nulidades da sentença, conquanto não sejam insanáveis, uma vez que não incluídas nas nulidades previstas no artigo 119º, do CPP, são cognoscíveis em recurso, mesmo que não arguidas, visto que as nulidades da sentença enumeradas no artigo 379º, nº 1, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais. Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença susceptíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior.».

Vejamos, então.

Temos, pois, que nos autos existiu a comunicação pelo tribunal a quo ao arguido, da adição ao objecto de facto do processo de factos distintos daqueles que já lhe eram imputados em sede da acusação/pronúncia, estando assente que tal configurou uma alteração não substancial de factos, sendo por isso aplicável o regime do art. 358º do Cód. de Processo Penal, onde, recorda–se, no respectivo nº1, se estipula que «Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa».

Uma primeira nota que deve ficar bem explícita.
A comunicação de uma alteração de factos efectivada nos termos do art. 358º do Cód. de Processo Penal, como aquela aqui ocorrida, tem como pressuposto que, no entender do tribunal, os factos aditados (in casu) têm «relevo para a decisão da causa».
O que significa, muito liminarmente, que a presente sindicância da regularidade da actuação do tribunal a quo, não tem por objecto cuidar da relevância ou não, para a decisão da causa, dos factos aditados.
Essa questão seria sindicável, sim, caso não tivesse existido a comunicação dos factos em equação, e estes viessem a surgir considerados em sede de sentença sem a dita prévia comunicação.
Tal patamar de análise mostra–se, porém, ultrapassado.
Isto também para dizer que sem grande dificuldade se constata que os factos que foram aditados ao objecto dos autos por via da aludida comunicação revelam diversos graus de relevância. Assim, afigura–se assumirem aqueles relativos à nóvel situação de co–autoria, à adição de modos de execução do crime imputado ou à concretização das circunstâncias de tempo em que cessou a ligação profissional do arguido à assistente, uma relevância em certa medida mais acentuada do que alguns dos demais – como, aliás, vem entretanto a revelar a sentença recorrida nos segmentos em que delimita a dinâmica criminosa que tem por demonstrado haver sido empreendida pelo arguido, e inclusive na concreta graduação da ilicitude do seu comportamento e da censura penal incidente sobre o mesmo.
A verdade, porém, é que tal ponderação é, neste momento, irrelevante, pois a partir do momento em que existe uma comunicação de alteração de factos, pressupõe–se a sua relevância para a decisão no entendimento do tribunal (se assim não fosse, não teria tido necessidade de a comunicar), e apenas restará verificar se foi seguido o regime processual imposto para a eficácia da sua (desses novos factos) consideração na decisão final – no caso, o do art. 358º do Cód. de Processo Penal.

Isto dito, prossigamos.
Terminou–se a análise do ponto anterior aludindo, portanto, à possibilidade que é reconhecida ao juiz de julgamento de aditar (nomeadamente) factos que, no seu entender, decorrem da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, sendo que, desde que por essa visa não seja alterada a configuração jurídico–penal do juízo de tipicidade e ilicitude efectuado em sede de acusação, tal procedimento estará tutelado pela exigência do princípio da procura da verdade material, aliás imposto ao tribunal.
Citando Cruz Bucho, em “Alteração substancial dos factos em processo penal”, pub. na revista Julgar, nº 9, pág. 45, «se a alteração dos factos for simples ou não substancial, isto é, tal que não determine uma alteração do objecto do processo, então o tribunal pode investigar e integrar no processo factos que não constem da acusação e que tenham relevo para a decisão do processo».
Mas logo adverte o mesmo autor: «A lei exige apenas, como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada, oficiosamente ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa».
Ou seja, é sempre condição indispensável da consideração na sentença de factualidade alterada relativamente à acusação, que o arguido saiba com precisão aquilo por que está a ser julgado a cada momento, e possa apresentar, querendo, os seus argumentos e os seus meios de contra prova – ainda que seja certo, como o ora relator escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/05/2023 (proc. 11/22.5PAGDM.P1)[24], que «o requerimento para produção de prova suplementar, na sequência da comunicação de alteração não substancial de factos ao abrigo do artigo 358.º do Código de Processo Penal, tem de ser apreciado à luz do artigo 340.º do mesmo Código, e, além disso, essa apreciação e decisão estão também condicionadas a uma vinculação temática específica, pois que a actividade probatória que seja requerida em tal sequência deve reportar–se apenas aos factos que são objecto daquela comunicação».
Donde o trâmite imposto na parte final do nº1 do art. 358º do Cód. de Processo Penal (no caso), condição sine qua non para que a excepção àquela estabilidade acusatória da matéria de facto não contenda com os direitos de defesa do arguido nem com a sua presunção de inocência : «…o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa».

Isto significa – e impõe – que a comunicação da alteração de factos em causa não encerre um juízo definitivo sobre a prova positiva dos mesmos, de tal forma que, no entender do tribunal, in limine esteja condenada à inutilidade qualquer actividade probatória subsequente relativamente aos mesmos. Em consequência, determina também que a concessão de oportunidade de defesa relativamente aos novos factos, seja real e efectiva, isto é, deve traduzir–se pelo menos numa substantiva ponderação sobre a utilidade e essencialidade material da produção dos meios de prova suplementar que venha a ser requerida pelo arguido.
Como lapidarmente exprime o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 216/19, de 02/04/2019 (proc. 558/18)[25], «a comunicação a que alude o n.º 1 do artigo 358.º do CPP não incorpora um juízo, positivo ou negativo, sobre a comprovação dos factos a que se refere. Apenas exterioriza que, no estado da prova produzida em julgamento, o princípio da descoberta da verdade obriga a que o tribunal se debruce sobre uma realidade não comportada na acusação ou na pronúncia, podendo tais factos vir a ser dados como provados ou não, em função da prova que for ulteriormente produzida ou examinada. Tratam-se, pois, de factos meramente sinalizados aos sujeitos processuais, de índole precária e indiciária, porque ainda sujeitos a eventual contraprova e ao crivo da discussão contraditória em audiência».
A comunicação a que alude o art. 358° do Cód. de Processo Penal reporta–se, pois, a factos com relevo para a decisão da causa, mas que podem, ou não, resultar provados de acordo com a prova produzida e aquela que vier a ser indicada na sequência da comunicação, não representando um pré-juízo sobre matéria provada ou não provada, mas antes e tão só uma possibilidade de alargamento da esfera de cognição do tribunal para dar eficaz cumprimento ao princípio da demanda da verdade material.
A jurisprudência é, neste ponto, absolutamente pacífica, podendo citar–se desde logo – e sem qualquer preocupação de exaustão – o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/01/2010 (proc. 93/07.0GAMTR.P1)[26] («O artigo 358º/1 CPP, ao prever que o tribunal comunique ao arguido a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, está a admitir que o tribunal possa fazer um juízo quanto aos factos antes de proferida a decisão final. (…) tal juízo é sempre provisório e dependente do exercício do contraditório»), Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/12/2014 (proc. 222/09.9TAAVR.C1)[27] («Trata-se de uma advertência, mas não a expressão da convicção última do Tribunal») ou o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28/02/2023 (proc. 8/22.5GECUB.E1)[28] («A lei, através do plasmado no artigo 358.º, n.º 1 do CPPenal, ainda que de modo indireto/ínvio/subtil, não impõe, aquando da comunicação da alteração de factos, a indicação de meios de prova, aspeto que se mostra natural, pois, o que aqui está em causa são meramente factos indiciados e não factos provados»).

Pois bem, julga–se que no caso presente nenhuma das condições assim prefiguradas foi respeitada pelo tribunal a quo.
De forma muito clara e evidente, o que decorre do elenco – acima efectuado, e que aqui se dá por integralmente reproduzido – das incidências processuais reportadas a esta comunicação de alteração de factos e subsequente requerimento do arguido e decisão sobre o mesmo, é, por um lado, que aquilo que tribunal a quo comunicou no despacho de 05/07/2022, foram, afinal, factos cuja demonstração já considerava perfeitamente assente e indiscutível no momento daquela comunicação ; e, por outro lado, também que o prazo que concedeu ao arguido, na sequência da mesma comunicação, não foi «para preparar a sua defesa» em termos materiais (nomeadamente requerendo a produção de meios de prova que tivesse por adequados e pertinentes para esse efeito, modo absolutamente paradigmático de um arguido organizar uma «defesa» em processo criminal), mas tão só (quanto se depreende) para tomar melhor conhecimento da factualidade alterada e, querendo, simplesmente se pronunciar quanto à mesma.
Ou seja, o procedimento seguido pelo tribunal a quo, na parte relativa à efectiva concessão de oportunidade de organizar a sua defesa relativamente à nova factualidade, não se mostra, salvo o devido respeito, adequada e muito menos rigorosa à luz daqueles que são os pressupostos do regime aqui em causa e dos princípios que o regem.
Na situação configurada nos autos tem plena aplicação quanto se resume, de forma modelar, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/06/2013 (proc. 14722/10.4TDPRT.P2)[29], e nos seguintes termos que, com a devida vénia, aqui fazemos também inteiramente nossos : «A comunicação a que se reporta o artigo 358º do Código de Processo Penal não pode, porém, representar uma tomada de posição do tribunal a respeito da prova. Se assim fosse, de nada serviria dar oportunidade de defesa ao arguido. Se o tribunal já tomou a sua posição definitiva quanto à prova dos factos, de nada serve dar ao arguido a oportunidade de se defender perante a alteração em causa; de nada serve que este apresente novos meios de prova ou alegações quando a convicção do tribunal quanto à prova já está firmada. Assim, o que deve ser comunicado não é alguma decisão do tribunal quanto à prova, mas a simples eventualidade de esta poder vir a integrar a alteração em causa (e, portanto, com a abertura a que a prova eventualmente apresentada pelo arguido ou as alegações deste possam convencer o tribunal de que isso não suceda). Trata-se de uma advertência e um alerta, não da comunicação de uma decisão. Só assim tem sentido dar oportunidade de defesa ao arguido e só assim se respeitam cabalmente os direitos de defesa deste.» – sublinhados agora apostos.

As aludidas incidências processuais in casu não deixam, julga–se, qualquer dúvida a este respeito.
Assim, temos que liminarmente a comunicação dos novos factos logo anuncia que a mesma assenta em que o tribunal, «Compulsada a prova produzida, entendeu este Tribunal terem logrado a adesão da prova» os factos em causa. Ou seja, a utilização desta expressão na contextualização processual da comunicação claramente indica que o tribunal considera os factos que irá comunicar como demonstrados por via da prova já produzida.
E se poderia suscitar–se a dúvida sobre se estaríamos perante uma expressão apenas equívoca, e não utilizada em sentido técnico-jurídico rigoroso, tal dúvida apenas encontraria sustento, dissipando qualquer invalidade processual, se, a jusante, e da materialidade do processo, se constatasse que teria sido afinal respeitado o carácter provisório, e dependente do exercício do contraditório, do juízo de demonstração dos factos em causa.
O certo, contudo, é que a subsequente tramitação processual levada a cabo pelo tribunal não permite que tal dúvida subsista.
Assim, tendo o arguido, na imediata sequência da comunicação da alteração, requerido a concessão do prazo de 10 dias para preparar a sua defesa, não deixa de ser significativo sobre o entendimento do tribunal nesta matéria, que o despacho que ali aprecia tal pretensão não aluda à necessidade de preparação da defesa do arguido, mas sim determine a concessão ao mesmo de «prazo de vista», mais aditando, aliás, que tal prazo é «até 13/07/2022 por forma a possibilitar a leitura da sentença anteriormente ao início do período de férias judiciais».
Ou seja, muito nitidamente o tribunal a quo não antecipa a viabilidade de vir a ser produzido qualquer meio de prova suplementar a requerimento da defesa, nem sequer de em tal vir a ponderar, pois que o termo final do «prazo de vista» concedido se situa oito dias depois e coincide precisamente desde logo com a data da leitura da sentença – como, aliás, veio a suceder.
Mais.
O arguido vem, como vimos, a apresentar (em 13/07/2022) requerimento através do qual, além de sumariamente suscitar a questão da substancialidade da alteração comunicada, e sem prejuízo disso, vem pronunciar–se sobre toda a factualidade aditada e requerer a produção de meios de prova (testemunhal e documental) que concretiza por reporte aos vários factos aditados.
Pois bem, o tribunal a quo, vem a apreciar e decidir quanto ao requerido no dia imediato (14/07/2022), por despacho proferido em acta.
Ora, desde logo tal apreciação é efectuada sem sequer dar previamente a palavra aos restantes sujeitos processuais (Ministério Público e assistente) para, querendo, se pronunciarem quanto ao requerido pelo arguido – o que da acta consta é que singelamente do mesmo foram aqueles notificados.
E depois, quanto ao teor da “decisão” em si mesma, simplesmente se constata que o tribunal nem sequer aprecia materialmente a utilidade ou essencialidade da produção dos meios de prova requeridos pelo arguido, antes considerando que nem sequer coloca a possibilidade de os mesmos serem produzidos em virtude de os factos comunicados já se mostrarem, para o tribunal, provados e assentes.
E o tribunal é inequívoco nesse entendimento, expressando–o textualmente quando refere que «Revertendo ao mais aduzido [isto é, à produção suplementar de prova entretanto requerida pelo arguido], constatamos estar uma vez mais em causa o entendimento do arguido acerca da prova produzida, visando-se substituir ao deste Tribunal, pelo que, salvo melhor opinião, o quanto argumenta deverá, se assim o entender, integrar uma peça de recurso da sentença a proferir, razão pela qual nos dispensamos de dissecar qualquer uma das razões de discórdia; estranho seria se, posteriormente ao proferimento de um despacho de alteração não substancial dos factos ao qual subjaz a percepção da prova por parte deste Tribunal, uma mera discordância do arguido tivesse o condão de a alterar ou tornar necessários acrescidos meios de prova» – sublinhados e realces agora apostos.
Constata–se, pois, que aquilo é para o tribunal seria «estranho», é tão só aquilo que a lei impõe numa situação como aquela ali configurada – que sendo requerida produção de prova suplementar ao abrigo do disposto no art. 358º/1 do Cód. de Processo Penal, o tribunal desde logo aprecie materialmente da vinculação temática dessa prova aos factos objecto da alteração comunicada e da essencialidade (em conformidade com o critério do art. 340º do Cód. de Processo Penal) da mesma para a boa decisão quanto aos mesmos ; e que em sequência leve a cabo a produção dos meios de prova requeridos relativamente aos quais tais pressupostos se mostrem reunidos.
A “decisão” assim proferida pelo tribunal recorrido fica muito aquém sequer do primeiro daqueles momentos, e somente pode ser processualmente interpretada como assentando, ainda e sempre, na circunstância de o tribunal já considerar esgotada a prova relativa aos factos cuja adição comunicou, e que considera definitivamente assentes.
Aliás, disso é também sintomática a circunstância de o tribunal contextualizar o requerimento formulado pelo arguido no comportamento processual do mesmo, que tem por censurável, quando ainda adita naquele despacho que «Na verdade, e salvo melhor opinião, inculca o comportamento processual do arguido o seu desinteresse no desfecho da audiência de julgamento ainda em curso e consequentemente proferimento de decisão final.».
Em suma, e em bom rigor, aquilo que o tribunal a quo comunicou em 05/07/2022 não foi verdadeiramente uma adição de factos ao objecto do julgamento – foi sim o anúncio de uma adição de factos à sentença a proferir.
Acentuadamente reveladora disso mesmo é ainda, diga–se, a circunstância de, em apreciação da invalidade do despacho proferido suscitada pelo arguido no mesmo acto, o tribunal a indeferir sustentando a sem razão de tal arguição no facto de que o arguido «sequer conhece os factos dados como provados e não provados, tão pouco o percurso seguido por este Tribunal em sede de motivação». Ou seja, na óptica do tribunal a quo, não há lugar sequer à apreciação material da utilidade substantiva para o julgamento de qualquer prova suplementar requerida pelo arguido no presente caso, porque não é conhecida a matéria de facto considerada em sede de sentença.
Concedendo na hipótese de uma possível falta de clareza derivada da circunstância de ser proferida verbalmente a dita decisão em acto imediato ao requerido, estamos perante uma argumentação que, em tais termos, não pode de todo compreender–se.

Em face do exposto, considera–se efectivamente que in casu o exercício dos direitos de defesa quanto aos factos novos oportunamente comunicados se mostrou claramente afectado, pois que não foi, a jusante da dita comunicação, cumprido quanto decorre do regime regulador da comunicação da alteração em causa – designadamente com devida apreciação e eventual correspondente produção em audiência dos meios de prova entretanto apresentados pelo arguido, e, sendo caso disso, subsequente e respectiva valoração em sede de sentença.

Deve, assim, concluir-se que a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 379º/1/b) do Cód. de Processo Penal, por não ter sido correctamente observado o disposto no artigo 358º/1 do Cód. de Processo Penal.

Nos termos do art. 122º/1 do Cód. de Processo Penal, «As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar», especificando o nº2 da mesma disposição que «A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição».
Assim, e como consequência da nulidade ora declarada, além da sentença, mais se terá de considerar invalidada toda a tramitação processual subsequente à apresentação do requerimento do arguido em 13/07/2022 (refª citius 42863151) e na parte do mesmo que se reporta à produção suplementar de meios de prova – considerando–se já assente, até por via da presente decisão, estarmos perante a comunicação de uma alteração não substancial de factos –, e terá de ser reaberta a audiência e repetido o acto de apreciação desse mesmo requerimento nessa mesma parte, com (eventual) subsequente produção da prova suplementar que se tenha por pertinente (sempre cingida aos factos aditados), seguindo–se a demais pertinente tramitação processual do julgamento – sendo, a final, proferida nova sentença.

Em conformidade, e por via da invalidade dos actos processuais ora determinada, consideram–se também inoperantes todas as condenações do arguido em custas tal como determinadas nos vários despachos prolatados (e ora invalidados) na acta do dia 13/07/2022.

Por via da verificação desta dimensão da invalidade processual assim decretada, resulta prejudicado – porque tornado imediatamente inútil – o conhecimento de todas as restantes questões suscitadas pelo recurso principal interposto pelo arguido, e pelo recurso subordinado interposto pela assistente, na medida em que poderá vir a ocorrer uma alteração da decisão final por via do agora decidido.
*

III. DECISÃO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em:

1. julgar parcialmente procedente o recurso interlocutório interposto pelo arguido AA do despacho proferido em 01/06/2022 (refª citius 437317447), revogando–se a condenação em custas determinada na decisão recorrida, mas confirmando–se no mais a mesma decisão,
Sem custas (cfr. art. 513º/1, parte final, do Cód. de Processo Penal).

2. apreciar parcialmente o recurso interposto (em 04/10/2022) da sentença pelo arguido AA, julgando não procedente a invocada nulidade da sentença por via das disposições conjugadas dos arts. 379º/1/b) e 359º do Cód. de Processo Penal,

3. declarar outrossim a nulidade da sentença nos termos das disposições conjugadas dos arts. 379º/1/b) e 358º/1 do Cód. de Processo Penal, e, bem assim, considerar invalidada toda a tramitação processual subsequente à apresentação do requerimento do arguido em 13/07/2022 (refª citius 42863151), e determinando–se que os autos retornem à primeira instância, onde, reabrindo a audiência, deverá o Tribunal a quo apreciar o dito requerimento na parte do mesmo que se reporta à requerida produção suplementar de meios de prova (considerando–se assente, até por via da presente decisão, estarmos perante a comunicação de uma alteração não substancial de factos), com (eventual) subsequente produção da prova suplementar que se tenha por pertinente (sempre cingida aos factos aditados), seguindo–se a demais pertinente tramitação processual do julgamento – sendo, a final, proferida nova sentença.

Sem custas (cfr. art. 513º/1, parte final, do Cód. de Processo Penal).
*

Porto, 12 de Julho de 2023
Pedro Afonso Lucas
Maria do Rosário Martins
Pedro M. Menezes

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)
______________
[1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[3] Relatado por Joaquim Moura, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[4] Relatado por Ernesto Nascimento, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[5] Relatado por Maria do Carmo Silva Dias, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[6] Relatado por Maria José Nogueira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[7] Relatado por Manuel Soares, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[8] Relatado por Jorge Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [9] Relatado por Alcina da Costa Ribeiro, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[10] Relatado por Maria do Rosário Martins, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[11] Relatado por Santos Cabral, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[12] Relatado por Maria dos Prazeres Silva, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[13] Relatado por Joaquim Gomes, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[14] Relatado por Micaela Silva Sousa, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[15] Relatado por Maria José Nogueira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[16] Relatado por António Clemente Lima, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[17] Relatado por Ana Teixeira, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf [18] Relatado por Sérgio Corvacho, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[19] Relatado por Luis Teixeira, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [20] Relatado por Maria Pilar de Oliveira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[21] Relatado por Mouraz Lopes, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[22] Relatado por Margarida Vieira de Almeida, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[23] Relatado por Filomena Lima, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[24] Relatado pelo ora também relator, e acessível em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[25] Relatado por Catarina Sarmento e Castro Conselheira, e disponível em
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20190216.html
[26] Relatado por Jorge Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[27] Relatado por Alice Santos, disponível em Col. Jur., ano XXXIX, tomo V, 46
[28] Relatado por Carlos de Campos Lobo, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[29] Relatado por Pedro Vaz Pato, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf