Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1015/20.8T9STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
Nº do Documento: RP202301251015/20.8T9STS.P1
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Ainda que haja notícia nos autos de que o arguido está emigrado no estrangeiro, se a notificação da acusação e da ocasião do julgamento foi efetuada ao arguido por via postal simples expedida para a morada indicada - sem ressalva ou alteração posterior – pelo mesmo no termo de identidade e residência oportuna e validamente prestado, essa notificação é válida e eficaz processualmente, não estando verificada qualquer irregularidade ou nulidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1015/20.8T9STS.P1

Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Santo Tirso, Juiz 1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 1015/20.8T9STS que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Santo Tirso – Juiz 1, em 13/06/2022 foi proferida sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor:
«V. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se provada e procedente a acusação deduzida, em função do que se decide:
a) Condenar o arguido AA pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de difamação, com publicidade, p. e p. pelo art. 180.º, 182.º e 183.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
b) Condenar o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00.
c) Por conseguinte, em cúmulo jurídico das penas fixadas em a) e b), condenar o arguido AA na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).
d) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.C.’s (cfr. artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa).
E,
e) Quanto ao pedido de indemnização civil, julga-se parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante BB e, em consequência, decide-se:
- Condenar o demandado AA a pagar à demandante, a título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).
Sem custas quanto ao pedido de indemnização civil, atenta a isenção legal prevista no art. 4.º, al. n), do R.C.P..
*
Notifique, sendo o arguido mediante contacto pessoal via OPC.
Após trânsito, remetam-se boletins ao Registo Criminal.»

Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 19/09/2022, o arguido AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
1. Com o presente Recurso, pretende o arguido ver revertida a condenação por um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º do CP e ainda um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180.º do CP, à sua revelia e sem qualquer oportunidade de defesa.
2. Pois como bem foi dado como provado pelo Tribunal a quo, o arguido está emigrado na Alemanha há mais de 20 anos, tendo como residência habitual: ... - ..., ..., Alemanha, sendo inclusivamente a morada indicada pela irmã, aqui assistente na sua participação criminal, como sendo a residência do ora recorrente.
3. Quer o Tribunal, como a Assistente e os próprios OPC são conhecedores de que o arguido reside na Alemanha e não em Portugal, na morada que erroneamente consta do Termo de Identidade e Residência.
4. A morada indicada, que é um local onde o arguido, apenas por ocasião de férias que passa em Portugal, utiliza para pernoitar nesses curtos períodos de tempos foi colocada neste processo como sendo a do arguido por manifesto incumprimento dos deveres dos OPC (que tinham no processo indicado pela própria queixosa a verdadeira morada do arguido) ao explicar o sentido e alcance da medida de coação que estava a ser tomada, nomeadamente que não se poderia ausentar daquela residência por mais de cinco dias sem informar aos autos.
5. Em consequência de tal omissão dos deveres de explicação, o processo prosseguiu os seus termos sem que o arguido tivesse qualquer oportunidade de defesa, pois que apenas teve conhecimento do presente processo quando foi inquirido pela GNR e, atualmente, com o conhecimento da Sentença, que ocorreu por coincidência do seu período de férias.
6. Não foi o arguido conhecedor, nem pode reagir, contra a Acusação, bem como não teve conhecimento do Julgamento que decorreu neste processo, ficando assim desprovido de qualquer oportunidade de se defender dos factos que lhe foram imputados.
7. Tendo o processo prosseguido com o arguido a ser julgado na sua ausência, nos termos que o Código Processo Penal prevê no seu artigo 333.º n.º 2, sem que os pressupostos do preceito estivessem preenchidos, pois a revelia do arguido não se deveu a uma opção deste, mas, pelo contrário, ao desconhecimento por completo de que tinha sido acusado e que ia ser realizado o julgamento.
8. A ausência do arguido bem como o seu desconhecimento em relação à acusação geram uma nulidade insanável, designadamente nos termos da alínea c) do art. 119º. do Código de Processo Penal, havendo que suprir as omissões verificadas, tendo por consequência a invalidação do julgamento e da Sentença proferida em primeira instância, o que se pede a V. Excias., com todas as consequências legais.
(…)

A este recurso respondeu o Ministério Público, em 04/11/2022, referenciando em resumo o seguinte:
– A sentença agora em recurso, não padece de qualquer das insuficiências ou erros apontados pelo recorrente, desde logo no que diz respeito ao procedimento de notificação do arguido bem como à valoração e suficiência da prova produzida, não suscitando quaisquer dúvidas sérias e razoáveis que determinem a aplicação do princípio de in dúbio pro reo.
– Da notificação ao arguido:
O arguido foi devidamente notificado da acusação na morada que indicou para esse efeito e foi devidamente notificado da realização do julgamento, igualmente na morada que o próprio indicou para esse efeito.
Não tem, pois, razão quando afirma desconhecer quer o teor da Acusação, quer a data de realização do julgamento. A partir do momento que indicou uma morada no TIR e que as posteriores notificações seriam feitas nessa morada, impunha-se-lhe o ónus de confirmar se alguma notificação lhe tinha sido feita naquela morada.
– (…)
*
II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Sentenças do S.T.J. de 29/01/2015 (in Proc. nº 91/14.7YFLSB. S1 – 5ª Secção)[1], e de 30/06/2016 (in Proc. nº 370/13.0PEVFX.L1.S1 – 5.ª Secção)[2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre:

1. se se mostra verificada a nulidade insanável prevista no art. 119º/c) do Cód. de Processo Penal por falta de notificação do arguido da acusação e para os termos do julgamento;
(…)
Comecemos por fazer aqui presente o teor da decisão recorrida, no que tange à matéria de facto considerada na mesma e à respectiva motivação, e bem assim à determinação das consequências penais e indemnizatórias no caso.

a. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância:
«A) Factos Provados:
Da prova produzida, resultou provada a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
1. No dia 25 de novembro de 2020, pelas 17 horas, a assistente foi contactada pela administradora do grupo de Facebook intitulado “Eu sou de ...”, dando-lhe conta que o arguido, seu irmão, havia solicitado a publicação do seguinte comentário no grupo: “Bom dia .... Não sou muito de falar da minha vida privada na internet, mas agora tem de ser. Esta pessoa que tem por nome BB se diz ser minha Irmã mas que eu já não considero a muito tempo, anda me a roubar á 20 anos. O terreno ao lado da casa dela está no nome dela mas é MEU ela não o passa para meu nome por isso que anda por ai de nariz empinado como se fosse dona do mundo. Não passa de uma ladra. Quem me conhece sabe bem do que falo. Um bem haja a todos e com saúde”.
2. O grupo em causa é constituído, na sua esmagadora maioria, por pessoas residentes ou com contactos direitos na Freguesia ...- Santo Tirso, que é o local onde nasceu a ofendida e onde ainda hoje reside com a sua família.
3. Pese embora a administradora do grupo tenha rejeitado publicar a mensagem do arguido, o arguido fez igual publicação na sua página pessoal de Facebook, tendo a mesma chegado ao conhecimento de um número indeterminado de pessoas.
4. Ao remeter para a administradora do grupo de Facebook “Eu sou de ...” a referida publicação, e ao efetuar igual publicação na sua página pessoal, o arguido agiu com o propósito conseguido de disseminar a suspeição sobre a honra, o carácter e a idoneidade moral da assistente.
5. Em consequência da conduta do arguido a assistente sentiu-se revoltada, humilhada e ansiosa, tendo tido problemas de sono.
6. O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção conseguida de humilhar publicamente a assistente, denegrindo a imagem que ela tinha junto dos seus conterrâneos.
7. Em acréscimo, a 05-02-2021 a assistente por mensagem escrita através da aplicação Messenger, pediu ao Arguido que deixasse de contactar a mãe de ambos para discutir a situação do terreno por que é um assunto que a incomoda, devendo ser tratado posteriormente com a assistente.
8. Deu conhecimento estar representada legalmente por mandatária e pediu-lhe que tratasse do assunto com urbanidade, evitando, desta forma que a situação se agudizasse ainda mais.
9. O Arguido respondeu à assistente, no mesmo dia, através de um clip de voz
10. na mesma aplicação, apelidando-a de “monte de merda…” e acrescentando: “Mostras-te grande e és uma merda, tu e quem estás contigo…”.
11. De seguida, o arguido enviou à assistente imagens de veados, passando a fazer insinuações como as seguintes: “Podes rir mas há quem se ria nas tuas costas”, insinuando que a assistente estará a ser traída.
12. Ao enviar à assistente tais mensagens o arguido agiu com o propósito conseguido de lesar a honra e consideração da assistente, a qual se sentiu igualmente magoada e envergonhada.
13. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que os seus atos eram idóneos a humilhar a assistente.
14. O arguido é casado e tem duas filhas, uma das quais menor de idade.
15. Encontra-se emigrado na Alemanha, onde trabalha e aufere de rendimentos em montante não concretamente apurado
16. O arguido não possui antecedentes criminais.

B) Factos Não Provados:
Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa.»

(…)

1. De saber se se mostra verificada a nulidade insanável prevista no art. 119º/c) do Cód. de Processo Penal por falta de notificação do arguido da acusação e para os termos do julgamento.

A primeira questão suscitada em sede de recurso prende–se com a alegada verificação da nulidade processual insanável prevista no art. 119º/c) do Cód. de Processo Penal, em virtude de, alega–se, o arguido/recorrente não ter sido notificado da acusação contra si deduzida e depois para os termos do julgamento.
Alega o arguido/recorrente que reside, não em Portugal, na morada «que erroneamente consta do Termo de Identidade e Residência», mas antes está emigrado na Alemanha há mais de 20 anos, tendo como residência habitual uma morada naquele país, circunstância da qual quer o Tribunal, quer a Assistente «e os próprios OPC» são conhecedores.
Adita que a morada indicada no termo de identidade e residência é um local onde o arguido utiliza em curtos períodos de tempo por ocasião de férias que passa em Portugal, tendo havido «manifesto incumprimento dos deveres dos OPC (que tinham no processo indicado pela própria queixosa a verdadeira morada do arguido) ao explicar o sentido e alcance da medida de coação que estava a ser tomada», em consequência do que o processo prosseguiu os seus termos sem que o arguido tivesse qualquer oportunidade de defesa, apenas vindo a ter conhecimento «do presente processo» quando foi inquirido pela GNR e, actualmente, com o conhecimento da sentença.
Não foi assim conhecedor da acusação, nem do julgamento que decorreu na sua ausência, nos termos que o Código Processo Penal prevê no seu artigo 333º/2, sem que os pressupostos do preceito estivessem preenchidos.
Donde, alega–se, o desconhecimento em relação à acusação e a ausência do arguido em audiência geram uma nulidade insanável, designadamente nos termos da alínea c) do art. 119º do Cód. de Processo Penal.

Apreciando, adianta–se ser manifesta a falta de razão do recorrente neste segmento do seu recurso.

A primeira nota que deve clarificar–se é a de que, com relação ao segmento da presente questão que se reporta à alegada falta de notificação ao arguido da acusação contra si deduzida, tal (putativa, no caso) omissão de notificação da acusação tem sido entendida maioritariamente pela jurisprudência, não como uma nulidade (como vem propugnado pelo recorrente), mas como uma irregularidade.
Caracterização com a qual se concorda.
Na verdade, como é consabido, em matéria de nulidades vigora, entre nós, o princípio da legalidade, segundo o qual a violação ou inobservância das disposições da lei do processo só determina a nulidade do acto quando for expressamente cominada na lei, nos termos do art. 118º do Cód. de Processo Penal. Ora, da leitura dos arts. 119º e 120º do Cód. de Processo Penal, logo se extrai que a falta de notificação da acusação a um arguido – nomeadamente por a mesma ser enviada para uma morada diversa daquela indicada no termo de identidade e residência – não integra qualquer uma das nulidades ali expressamente previstas, mormente aquela da alínea c) do art. 119º/1 do Cód. de Processo Penal – que vem suscitada nos autos –, onde se comina de nulidade insanável “a ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência”.
Ora, diversamente do que ocorre, por exemplo, nos casos em que é obrigatória a comparência do arguido – como sucede maxime com a audiência de julgamento cfr. 332º/1 e 64º/3/a), ambos do Cód. de Processo Penal –, já no que respeita ao acto de notificação da acusação o mesmo, para ser válido, não exige a presença ou comparência do arguido, ou seja, a validade do acto de notificação da acusação não depende, nem pressupõe a presença do arguido.
E percorrendo todo o Código de Processo Penal, não descortinamos um qualquer normativo que comine com o vício da nulidade (insanável ou dependente de arguição) uma tal omissão.
Por isso, ainda que a notificação da acusação houvesse sido efectuada para uma morada do arguido diversa daquela que deveria ser processualmente considerada nos autos, jamais se estaria perante qualquer nulidade insanável – em tal caso apenas estaríamos perante o vício da irregularidade processual, a seguir o regime imposto pelo art. 123º do Cód. de Processo Penal.
Neste sentido, como se disse, tem vindo a pronunciar–se de modo praticamente uniforme a jurisprudência – anotando–se a única divergência neste thema no que se reporta a entender–se tal irregularidade como de conhecimento oficioso ou não, isto é, como integrando o regime do nº1 ou do nº2 do art. 123º do Cód. de Processo Penal –, podendo mencionar–se, sem preocupações de exaustão, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 05/07/2005 (proc. 1034/05-1)[3], de 06/11/2012 (proc. 2592/08.7PAPTM.E1)[4], do Tribunal da Relação do Porto de 11/04/2018 (proc. 96/17.6SGPRT.P1)[5], do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/07/2018 (proc. 123/16.4PGOER.L1-3)[6], de 27/06/2019 (proc. 1625/17.0T9PDL-A.L1-9)[7], e de 08/09/2020 (proc. 3276/18.3T9SXL.L1-5)[8].

Diversa será, na verdade, a situação reportada à não notificação validade e eficaz do arguido para a audiência de julgamento, que determine a sua ausência nesse acto no qual a sua presença pessoal é regra.
Como se enunciou, é consabidamente verdade que, nos termos da alínea c) do art. 119º do Cód. de Processo Penal, constitui nulidade insanável – que por isso deve ser oficiosamente (independentemente da respectiva arguição pelos sujeitos processuais) declarada em qualquer fase do procedimento – a ausência do arguido nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.

A invalidade processual em causa visa assegurar na sua génese o direito de defesa e o direito ao contraditório de quem nos autos ocupa a posição processual de arguido, direitos assim traduzidos na possibilidade do arguido intervir no processo, invocar as suas razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar e contraditar todas as provas e argumentos jurídicos trazidos ao processo – o que, tudo, desde logo encontra expressa consagração legal nos termos do disposto nas várias alíneas do nº1 do art. 61º do Cód. de Processo Penal.
Assim, as regras gerais da necessidade de notificação da acusação e do despacho que a recebe e designa o julgamento dos autos, com vista a reagir contra aquela e a preparar a sua defesa (cfr. arts. 287º/1/a), 312º e 313º do Cód. de Processo Penal [9]), da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência (art. 332º/1 do Cód. de Processo Penal), da submissão de todos os meios de prova apresentados ou produzidos no decurso da audiência ao princípio do contraditório (artigo 327º/2 do Cód. de Processo Penal), e o direito do arguido prestar declarações em qualquer momento da audiência, em especial, no início e no final da audiência de julgamento (artigos 341º/a) e 361º do Cód. de Processo Penal), são normas destinadas precisamente a consagrar a garantia constitucional de um processo penal equitativo (art. 20º/4 da Constituição da República Portuguesa), que obrigatoriamente deve assegurar todas as garantias de defesa ao arguido (art. 32º/1/5 da Constituição da República Portuguesa).
Porém, a celeridade processual em matéria penal também beneficia de dignidade constitucional – já que todo o arguido deve ser julgado no mais curto prazo e até pode ser julgado na ausência –, estando o legislador ordinário apenas obrigado a que as soluções adoptadas nesse sentido não comprometam as garantias de defesa do arguido (cfr. art. 32º/2/6 da Constituição da República Portuguesa).

No que em particular diz respeito à audiência de julgamento, com a revisão do Código do Processo Penal, operada com o Decreto-Lei nº 320-C/2000, de 15 de Dezembro, o legislador evidenciou precisamente a preocupação de ultrapassar o bloqueio provocado pela regra da obrigatoriedade absoluta da presença do arguido na audiência, procurando conciliar o interesse público da administração célere e eficiente da justiça, com a necessária salvaguarda dos interesses da defesa no caso de o arguido estar ausente do julgamento
Neste âmbito, o artigo 332º/1 do Cód. de Processo Penal, referindo-se ao princípio geral da obrigatoriedade da presença do arguido, depois acrescenta: “sem prejuízo do disposto nos artigos 333º, nºs 1 e 2, 334º, nºs 1 e 2”.
Examinando o artigo 333º que se refere à falta do arguido notificado para a audiência, do seu nº 1 consta: “Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde início da audiência”.
Com efeito, se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é indispensável para a descoberta da verdade material, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos nºs 2 a 4 do artigo 117º do Cód. de Processo Penal, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no nº6 do artigo 117º do Cód. de Processo Penal.
Nestes casos, o arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência e se esta ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor pode requerer que seja ouvido na segunda data designada pelo juiz nos termos do nº2 do artigo 312º do Cód. de Processo Penal.
Assim, nada impede que a audiência se inicie sem a presença do arguido.
Recorde-se que o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão nº 9/2012 (publicado no D.R. Iª, nº 238 de 10 de Dezembro de 2012) fixou jurisprudência obrigatória, que subscrevemos, segundo a qual “Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do n.º 1 do artigo 333.º do Código do Processo Penal, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo”.

Ainda neste contexto introdutório dos termos em que se estruturam os contornos da decisão sobre esta parte do recurso, cumprirá realçar que, em qualquer dos casos agora aludidos, e mormente por reporte àquilo que em concreto questiona o ora recorrente, decorre do regime que aqui rege em sede de notificação do tribunal aos sujeitos processuais penais para os termos do processo, que as notificações ao arguido quer da acusação contra si deduzida, quer do despacho que designa a audiência de julgamento, são levadas a cabo por via postal simples remetida para a morada constante do termo de identidade e residência oportunamente prestado, nos termos das disposições conjugadas do artigos 113º/1/c)/3/10 e 196º/2/3 do Cód. de Processo Penal.
Na verdade, sob a epígrafe “Regras gerais sobre notificações” dispõe o art. 113º/10 do Cód. de Processo Penal, e na parte aqui relevante, que «as notificações do arguido … podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, … as quais porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado».
O regime em causa não excepciona à partida a regra geral, prevista no art. 113º/1/c)/3 do Cód. de Processo Penal, de que as notificações em causa devem ser efectuadas por via postal simples – sendo que estando em causa a notificação do arguido, a lei determina, nos termos do art. 196º/2 do Cód. de Processo Penal, que «Para o efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha», constituindo obrigação do arguido, nos termos da alínea b) do art. 196º/3 do Cód. de Processo Penal, a comunicação de qualquer diversa residência.
A única excepção de entre aquelas notificações ali previstas quando efectuadas ao arguido, mas que aqui não releva, reporta–se à notificação da sentença, que deve ser feita pessoalmente por subsequente imposição do art. 335º/5/6 do Cód. de Processo Penal.

Tendo presentes estas considerações, e revertendo agora ao caso dos autos, impõe–se assinalar que, com interesse para a decisão sobre a questão agora suscitada, decorre dos termos dos autos que em 21/07/2021 o arguido prestou termo de identidade e residência perante órgão de polícia criminal (a GNR de Santo Tirso, no caso), declarando como sua morada a Estrada ..., ..., ... ..., Santo Tirso (cfr. fl. 76).
Segundo decorre do acto em causa – no âmbito do qual ocorreu também a constituição do recorrente como arguido –, nessa ocasião ao arguido foi dado conhecimento da obrigação de comparecer perante a autoridade competente sempre que para tal for notificado, da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar o lugar onde possa ser encontrado, de que as posteriores notificações lhe seriam feitas por via postal simples para a morada então indicada ou para outra que posteriormente viesse a indicar e, por ultimo, que se não cumprisse essas obrigações poderia ser representado por defensor em todos os actos processuais e nos quais tenha o direito de estar presente e permitiria a realização da audiência nos termos do artigo 333.º do Código do Processo Penal.
O arguido nunca indicou ao processo qualquer alteração de residência ou outra morada onde devesse ser notificado para os termos do processo.
Assim sendo, a notificação do arguido da acusação contra si deduzida – e bem assim do pedido de indemnização civil formulado pela assistente – concretizou-se com o depósito no receptáculo de correio da morada constante do T.I.R. das cartas expedidas para o efeito pelo tribunal (cfr. fls. 120 e 123 dos autos).
E de igual modo também a notificação para comparecimento em audiência de julgamento se concretizou com similar depósito (cfr. fls. 131 dos autos).
No dia designado para a audiência de julgamento (31/05/2022) verificou-se que o arguido não compareceu no Tribunal, nem justificou a sua falta.
Nessa ocasião, o Mmo. Juiz a quo, após promoção do Ministério Público e sem qualquer oposição do Ilustre Defensor do arguido, que estava presente e a quem foi dada a palavra para se pronunciar quanto à questão, proferiu despacho determinando o prosseguimento da audiência de julgamento sem a presença do arguido, fundamentando tal decisão nos seguintes termos: «Relativamente à não comparência do arguido AA, apesar de resultar do processo que o mesmo se encontra regularmente notificado, não compareceu nem justificou a sua falta, pelo que vai o mesmo condenado em multa, que se fixa em 2 UC, nos termos do art. 116º do Cód. de Processo Penal. Dado se considerar que a presença do mesmo desde início da audiência não é indispensável para a descoberta da verdade, e não sendo igualmente viável obter a comparência do mesmo de imediato, dar–se–á início à produção de prova na sua ausência nos termos do art. 333º, nº 1 e 2 do Cód. de Processo Penal»o que ficou a constar da respectiva acta (cfr. fls. 133vº).
E no final da produção de prova, tendo sido expressamente concedida a palavra ao Ilustre Defensor do arguido nos termos e para os efeitos previstos no art. 333º, nº3 do Cód. de Processo Penal – onde se prevê que, no caso de a audiência de julgamento se iniciar sem a presença do arguido (como ali sucedera), este último «mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada» –, pelo mesmo (Defensor) foi dito não pretender que seja designada nova data para audição do arguido, tudo como expressamente se consigna em acta a fl. 134vº.
No dia 13/06/2022 verificou-se novamente que o arguido não se encontrava presente e o tribunal procedeu à leitura da sentença e ao encerramento da audiência de julgamento.

Vemos assim que no caso em apreço foram respeitadas as exigências legais.
Foi o arguido quem indicou, nos termos do nº2 do art. 196º do Cód. de Processo Penal, aquela aludida morada em Portugal como destino de recepção válido das notificações a efectuar–lhe pelo tribunal – e que não exijam a forma de contacto pessoal.
Se o arguido tinha outra morada mais estável e permanente, ou se alterou a morada que indicou e não comunicou essa alteração de residência aos autos como estava obrigado, bem sabendo que as posteriores notificações seriam feitas por via postal simples para aquela mesma morada, fica salvaguardada a validade e eficácia processual das notificações efectuadas para a mesma, e legitimada a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e a realização da audiência na sua ausência.
Se acima se falou já nos seus direitos, a verdade é que, enquanto sujeito processual, o arguido tem também deveres, sendo que no âmbito destes, além do mais, incumbe-lhe actualizar permanentemente junto do Tribunal a sua morada constante do termo de identidade e residência, sob pena de serem válidas e eficazes as notificações efectuadas por referência àquela que indicou no processo.
Em situações como a presente, se o arguido não tomou efectivo conhecimento da acusação deduzida e da realização da audiência de discussão e julgamento, só a si pode imputar tal desconhecimento, não se vislumbrando na matéria qualquer violação das suas garantias de defesa – sendo de notar, a propósito, que o arguido esteve sempre devidamente representado por Defensor, e que o mesmo teve ampla oportunidade de se pronunciar sobre a acusação e o pedido de indemnização civil oportunamente deduzidos contra o arguido, e bem assim sobre a realização da audiência na ausência deste último, assim como inclusive de requerer a realização de diligências viáveis para obter a comparência na sua data e de apresentar os meios de defesa que considerasse úteis.

Não colhe, em obstáculo da consideração da adequada aplicação deste regime nos presentes autos, a argumentação do recorrente que mostra exarada em sede de recurso nesta parte.
Como vimos decorrer expressamente das obrigações que para o arguido derivam da prestação de termo de identidade e residência, é seu ónus informar qualquer outro paradeiro – designadamente residencial – para onde devam ser dirigidas as comunicações do tribunal que não exijam contacto pessoal, sendo pois absolutamente irrelevante que no processo seja conhecido que o arguido tem qualquer outra residência, noutro local que não o indicado para efeitos de ser notificado no termo de identidade e residência.
É sobre o arguido que recai a obrigação de comunicar ao tribunal qualquer alteração da morada de recepção das comunicações postais do tribunal, pelo que o incumprimento dessa obrigação torna válida a sua notificação por via postal simples na morada que indicou (sem ressalva nem alteração) no termo de identidade e residência.
Como inclusive se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/06/2012 (proc. 4073/08.0TDPRT-A.P1)[10], «Deste regime não resulta que a notificação do arguido por via postal simples na morada por ele indicada aquando da prestação de termo de identidade e residência exige que ele aí resida efetivamente, ou que estamos perante uma simples presunção (elidível) de que ela aí reside efetivamente. Resulta, antes, que sobre o arguido recai a obrigação de comunicar qualquer alteração dessa morada e que o incumprimento dessa obrigação torna válida a sua notificação por via postal simples nessa morada, mesmo que ele deixe de aí residir.
Só assim se compreende e justifica a necessidade de advertência decorrente do citado nº 3 do artigo 196º do Código de Processo Penal. Se assim não fosse, isto é, se a alteração não comunicada da morada do arguido não acarretasse essa consequência, não se compreenderia, nem se justificaria, essa advertência.
Só assim se cumpre o desiderato legislativo de «estabelecer medidas de simplificação e combate à morosidade processual» (expressão constante da própria designação do diploma), que está na base do Decreto – Lei nº 320-C/2000, de 15 de dezembro, que introduziu no Código de Processo Penal o regime em apreço. Só assim se evita que um arguido possa fazer atrasar o andamento do processo furtando-se às notificações ou ausentando-se para parte incerta, como tantas vezes sucedia no regime anterior, situação que o legislador pretendeu combater.
Não se trata de negar direitos de defesa do arguido (com assento no artigo 32º, nº 1, da Constituição). Se o arguido, por efeito deste regime, deixar ter efetivo conhecimento da data designada para julgamento, tal facto só a ele (ao facto de ele ter deixado de cumprir uma obrigação decorrente da prestação de termo de identidade e residência) será imputável. E ele foi devidamente alertado para a possibilidade de tal vir a ocorrer.».
Alega ademais o arguido/recorrente que aquando da prestação do termo de identidade e residência nos autos terá existido «uma explicação inexata e pouco rigorosa das implicações daquela medida de coação e das suas obrigações específicas da sua aplicação» devido a um alegado «um erro grosseiro cometido pelo órgão de polícia criminal perante o qual o arguido prestou o seu termo de identidade e residência (…) no momento da comunicação oral do termo de identidade e residência» pois que «não logrou sucesso no seu dever de explicar ao arguido do que se trata esta medida de coação, e quais as suas implicações».
Porém, não é, seguramente, uma tal alusão, pelo seu carácter absolutamente vago e sem qualquer tipo de concretização, além de em total destempo processual – o que, tudo, a torna inclusive algo gratuita –, que permite indiciar sequer que o arguido não estivesse adequadamente esclarecido dos seus direitos e deveres processuais.

Em suma, o arguido em processo penal pode e deve considerar–se notificado da acusação deduzida nos autos, assim como dos termos do julgamento, podendo assim ser julgado à revelia, quando haja prestado Termo de Identidade e Residência nos termos legalmente prescritos, for notificado daqueles passos processuais por via postal simples com declaração de depósito na morada por ele indicada em tal Termo, e o Tribunal considerar que a sua presença em julgamento não é «absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material» (nos termos do art. 333º/1 do Cód. de Processo Penal.
Tal foi o que sucedeu in casu.
A circunstância de a acusação ser recebida e determinar o prosseguimento dos autos para julgamento, e de a subsequente audiência se efectivar sem a presença do arguido, não significou qualquer compressão ou limitação do núcleo essencial dos direitos de audição, de defesa e de contraditório, garantidos nos termos das disposições constitucionais e processuais supra elencadas.
Neste sentido, aliás, já se pronunciou inclusive o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 17/2010, de 12/01/2010 (proc. 498/09)[11], onde decidiu «não julgar inconstitucional as normas constantes dos art. 113.º, n.º 9, e 313.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual o arguido não tem de ser notificado por contacto pessoal do despacho que designa data para a audiência de julgamento, podendo essa notificação ser efectuada por via postal simples para a morada indicada pelo arguido no termo de identidade e residência», no mesmo exarando as seguintes considerações «a solução normativa da notificação por via postal simples (…) oferece garantias suficientes de que o respectivo despacho é colocado na área de cognoscibilidade do arguido em termos de ele poder exercer os seus direitos de defesa.
Na verdade, não se pode dizer a respeito desta forma de notificação que a mesma não é idónea a transmitir o acto notificando ao conhecimento do destinatário.
E muito menos se pode dizer que a notificação em questão seja realizada relativamente a arguidos que nem sequer conhecem formalmente a pendência de um procedimento criminal contra si (…).
Pelo contrário, tenha-se presente que a solução legal da notificação por via postal simples pressupõe sempre o prévio contacto pessoal do arguido com o pro­cesso, consubstanciado, pelo menos, na respectiva constituição como arguido e na respectiva sujeição a termo de identidade e residência.
Por outro lado, o receptáculo postal para o qual é remetida a notificação pelo funcionário judicial e no qual é realizado o depósito pelo distribuidor postal é exclusivamente escolhido e indicado pelo próprio arguido.
É certo que não ficam cobertas as situações em que o arguido, por qualquer motivo (v.g. por ter mudado de residência, por se ter ausentado temporariamente, por desleixo) deixa de aceder ao referido receptáculo postal, sem que previamente comunique essa situação ao tribunal.
Mas o não conhecimento pelo arguido do acto notificado nestas situações é imputável ao próprio arguido, uma vez que, a partir da prestação do termo de identidade e residência, passou a recair sobre ele o dever de verificar assiduamente a correspondência colocada no receptáculo por si indicado e de comunicar ao tribunal qualquer situação de impossibilidade de acesso a esse local.
Se o Estado está obrigado a diligenciar pela notificação dos arguidos, nesta modalidade, estes também têm de tomar as providências adequadas a que se torne efectivo esse conhecimento.
Este é um dever compatível com o seu estatuto de sujeito processual, não podendo esta solução ser acusada de estabelecer um ónus excessivo ou desproporcionado que seja imposto aos cidadãos suspeitos da prática de crimes, atenta a facilidade do seu cumprimento, perante a importância dos fins que visa atingir.
Além disso, faz-se notar que o depósito da carta pelo distribuidor postal não gera nenhuma presunção inilidível de notificação em caso de erro do distribuidor postal e é rodeada de algumas cautelas processuais.
(…) Finalmente, e ainda que as garantias previstas para uma dada fase proces­sual não possam ser completamente postergadas com base na invocação de garantias previstas para a fase processual subsequente, não se pode deixar de relembrar que a defesa do arguido ausente é sempre assumida pelo defensor e, que nesse caso, a lei exige a notificação da sentença ao arguido por contacto pessoal, estando assim minimamente acauteladas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso (artigos 333.º, n.ºs 5 e 6, e 334.º, n.º 4, do CPP).
Ponderados todos estes dados (…) não se vislumbra que a interpretação normativa aqui» sufragada «viole qualquer parâmetro constitucional, maxime as garantias de defesa do arguido em processo criminal e o direito fundamental a um processo equitativo».
No sentido aqui propugnado, escreveu–se também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/12/2008 (proc. 08P2816)[12] que «Se o arguido mudou da morada que indicara, nos termos do n.º 2 do art. 196.º e não comunicou essa mudança aos autos, como estava obrigado, bem sabendo que as posteriores notificações seriam feitas por via postal simples para a morada que indicara fica legitimada a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e a realização da audiência na sua ausência, nos termos do art. 333.º», tendo–se ali inclusive advertido, em contexto que revela alguma similitude material ao caso dos presentes autos no que se reporta ao alegado conhecimento nos autos de outra morada do arguido, que «A circunstância da mãe do arguido ter informado que o arguido estaria numa outra morada, o que foi consignado pela GNR não dispensou o recorrente de vir comunicar, na forma prevista na lei, a mudança de residência aos autos que visa garantir a disponibilidade e contactibilidade dos arguidos, responsabilizando-os por isso, em termos de notificações futuras».
Ainda no sentido aqui propugnado, vejam–se, além do já citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/06/2012 (proc. 4073/08.0TDPRT-A.P1), também os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/12/2013 (proc. 503/10.9EAPRT-A.G1)[13], de 25/05/2015 (proc. 490/10.3GAFAF.G1)[14], e do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/02/2017 (proc. 2272/15.7T9LRA.C1)[15], no qual se resume que «Sendo o arguido constituído nessa qualidade e estando sujeito à medida de coacção de TIR, as notificações posteriores são feitas por via postal simples, nos termos dos art. 196.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 113.º, n.ºs 1, al. c), e 2, do CPP, sendo manifesto que inexiste a nulidade por falta de notificação do arguido, tanto para a acusação, como para o julgamento, em cuja audiência não foi ouvido, por o tribunal considerar não se mostrar imprescindível a sua presença, nos termos do art. 333.º, n.º 1, do CPP.».
Nesse contexto, atento o apontado regime legal, é inevitável entender como válidos e eficazes todos os actos processuais levados a cabo nos autos, mormente a notificação da acusação e a audiência de discussão e julgamento, validamente realizada sem a presença do arguido, não se mostrando verificada a nulidade processual prevista no art. 119º/c) do Cód. de Processo Penal.
Improcede, assim, esta primeira parte do recurso interposto.
(…)
*
III. DECISÃO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto:

1, em não conceder provimento ao recurso interposto, na parte criminal, por AA e, em consequência, confirmar a decisão recorrida;
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se em 3 (três) UC´s a taxa de justiça.

2, em rejeitar o recurso interposto na parte relativa à indemnização civil em que o arguido foi condenado.
Custas pelo demandado/recorrente, fixando-se em 3 (três) UC´s a taxa de justiça (cfr. art. 420º/3 do Cód. de Processo Penal).
*
Porto, 25 de Janeiro de 2023
Pedro Afonso Lucas
Maria do Rosário Martins
Lígia Trovão

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente – sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)
_____________
[1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[3] Relatado por Pires da Graça, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[4] Relatado por Sérgio Corvacho, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[5] Relatado por Luís Coimbra, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[6] Relatado por Conceição Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[7] Relatado por Antero Luís, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[8] Relatado por Ricardo Cardoso, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[9] Reportamo–nos à versão dos arts 312º e 313º do Cód. de Processo Penal que se encontrava em vigor à data da prolação do despacho em causa nos presentes autos, sendo que o regime de saneamento do processo para julgamento e de designação da audiência foi entretanto objecto de alteração pela Lei 94/2021, de 31 de Dezembro, que introduziu a nova redacção dos actuais arts. 311º–A a 315º do Cód. de Processo Penal – tendo estas alterações entrado em vigor em 31/03/2022.
[10] Relatado por Pedro Vaz Pato, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[11] Relatado por Cura Mariano, acedido em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100017.html
[12] Relatado por Simas Santos, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[13] Relatado por Paulo Fernandes Silva, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf
[14] Relatado por João Lee Ferreira, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf
[15] Relatado por Inácio Monteiro, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf