Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3160/20.0T8FNC-E.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: VOCAÇÃO UNIVERSAL DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
INUTILIDADE DA LIDE
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO DE CONTRATO-PROMESSA
RECUSA DE CUMPRIMENTO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I–A vocação universalista e concursal do processo de insolvência, o princípio da plenitude ou autossuficiência da respetiva instância, e o princípio par conditio creditorum orientador do regime falimentar, justificam os efeitos externos produzidos pelo processo de insolvência sobre os processos pendentes contra o devedor para exercício de direitos patrimoniais, no sentido de determinar a sua extinção por inutilidade da lide, impondo aos credores o exercício daqueles direitos no âmbito do processo de insolvência e pelas vias processuais previstas no CIRE.

II–É posição largamente maioritária na doutrina e na jurisprudência que o direito de crédito em benefício do contraente não faltoso só tem lugar com o incumprimento definitivo do contrato promessa e o exercício do direito potestativo de resolução do contrato em que aquele fica investido.

III–O incumprimento definitivo verifica-se nas seguintes situações: impossibilidade de cumprimento, recusa de cumprimento, prazo absoluto ou essencial (prazo ‘fatal’), cláusula contratual resolutiva expressa, interpelação admonitória da parte faltosa, e perda do interesse da parte não faltosa.

IV–A impossibilidade de cumprimento por facto imputável a uma das partes é equiparada a falta de cumprimento culposo, sendo que a impossibilidade pode ser material ou jurídica.

V–A recusa de cumprimento abrange a declaração expressa ou tácita de uma das partes de que não cumprirá ou não quer cumprir, situação que a jurisprudência equipara a incumprimento definitivo independentemente da perda de interesse da outra parte e por tornar inútil a interpelação do faltoso para cumprir.

VI–Só a interpelação admonitória (para cumprimento em prazo razoável suplementar) e a perda do interesse do credor (objetivamente apreciada) pressupõem uma situação de mora no cumprimento, que por aquelas situações é convertida em incumprimento definitivo.

VII–A declaração da insolvência inibe o devedor de cumprir contratos bilaterais em curso e, tal como o despacho de deferimento inicial do incidente de exoneração do passivo restante, proíbem-no de realizar pagamentos aos seus credores à margem do processo de insolvência.

VIII–Por isso, a promitente compradora que celebra contrato promessa de compra e venda de imóvel e logo se apresenta à insolvência, coloca-se em situação jurídica que a impossibilita de dar cumprimento às obrigações principal (celebrar compra e venda), acessória (marcar escritura para o efeito), e secundária (reforços do sinal) que por ele assumiu.

IX–Conduta que é apta a exprimir a vontade de não querer cumprir o contrato ou que, no mínimo, legitima que assim seja assumido pelos promitentes vendedores, de recusa de cumprimento tacitamente manifestada, determinante, por si só, do imediato incumprimento definitivo do contrato por facto àquela imputável.

X–A previsão, no contrato promessa, da celebração de contrato de arrendamento do imóvel prometido vender para vigorar entre as partes até à data da celebração do contrato prometido, e a previsão, no contrato de arrendamento que na mesma data celebram, da variação do valor da renda mensal acordada em função da variação do spread contratualizado pelo promitente vendedor junto da instituição bancária beneficiária de hipotecas constituídas sobre o imóvel e na qual aquele é titular da conta indicada para o pagamento da renda por transferência bancária, manifesta a inequívoca coligação, correlação ou relação funcional que as partes conscientemente estabeleceram entre um e outro contrato e, destes, com as dívidas garantidas pelas hipotecas sobre o imóvel e prestações bancárias que no âmbito das mesmas o promitente vendedor estava obrigado a cumprir.

XI–O conjunto dos referidos contratos revela que a entrega do imóvel à promitente compradora tinha como contrapartida renda mensal que por aquela cláusula os senhorios promitentes compradores tacitamente declararam destinar ao pagamento, total ou parcial, da prestação mensal por eles devida cumprir no âmbito das dívidas que oneravam o imóvel prometido comprar e vender.

XII–No âmbito da estratégia e expectativas legítimas formadas pelos contratos, o incumprimento dos reforços do sinal e das rendas que a promitente compradora se obrigou a pagar aos promitentes vendedores até à celebração da escritura pública, é objetivamente apto a contribuir para a ausência de amortização e não pagamento das prestações bancárias por estes devidas, com prejuízo para o interesse que tinham na celebração do contrato prometido, de evitar a resolução dos mútuos e a execução do imóvel para seu cumprimento.

XIII–Com o que se conclui pelo incumprimento definitivo do contrato promessa imputável à promitente compradora, que confere aos promitentes vendedores a faculdade de fazerem seu o montante de €10.000,00 que daquela receberam para sinalização de um contrato de compra e venda que não foi celebrado, antes de mais, por impossibilidade daquela, decorrente da sua apresentação e declaração em situação de insolvência e, ainda que assim não fosse, pela perda de interesse dos promitentes vendedores imputável a conduta contratual leviana da promitente compradora.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–Relatório


1.Em 06.02.2019 Maria instaurou ação declarativa em processo comum contra Rodrigues e Patrícia, que foi autuada com o nº 706/19.0T8FNV, formulando os seguintes pedidos:
A.)-Condenar os Réus a reconhecerem a A. com o legítimo direito na compra do imóvel em causa e supra identificado em 1º, nos termos da referida Clausula 5ª, tendo já pago a título de sinal 100.000,00€.
B.)-Condenar os Réus a reconhecerem o legítimo e tempestivo exercício do referido direito de compra do imóvel em causa e supra identificado em 1º.
C.)-Condenar os Réus na celebração da respetiva escritura de compra e venda a favor da Autora, pelo valor remanescente, ou seja, 350.000,00€
D.)-Condenar os Réus a celebrar a predita escritura pública de compra e venda no prazo de trinta dias após a data da douta Sentença condenatória.
E.)-Condenar os Réus na obrigação de avisarem a Autora com a antecipação mínima de oito dias em relação à data agendada, do dia, hora e local, bem como de disponibilizarem toda a documentação necessária ao pagamento, do respetivo IMT.
F.)-Condenar os Réus no pagamento em multa diária de € 50,00, por cada dia de atraso na realização da escritura após os preditos 30 dias seguintes à data da douta Sentença condenatória.
Ou:
G.)-Na impossibilidade de se realizar a venda do imóvel à Autora nos termos previstos na acima referida e invocada, condenar os Réus no pagamento do dobro do valor entregue a título de sinal, acrescido de juros, à taxa legal desde a citação.
H.)-Atribuindo à A. o direito de retenção do imóvel até ao cumprimento das cláusulas C.) a H.) deste pedido.

Alegou, em síntese, que em 02.11.2010 celebrou com os réus contrato promessa de compra e venda de imóvel destinado a habitação pelo preço de €450.000,00, do qual pagou €100.000,00 a título de sinal, obrigando-se as partes a celebrar a escritura até ao dia 01.11.2012, a autora de proceder à sua marcação avisando os réus com 8 dias de antecedência, e os réus a entregar a documentação necessária até ao momento da celebração da escritura, que sem explicação os réus sempre solicitaram à autora para adiar, vindo a tomar conhecimento que à data da realização da escritura publica os réus tinham dívida à CGD no valor total de €833.168,03. Alegou que mais convencionaram celebrar contrato de arrendamento enquanto a escritura de compra e venda não fosse realizada, que passou a residir no imóvel com a sua família desde a data do contrato, que os réus não cumpriram com o que se obrigaram, que o contrato promessa não foi denunciado nem resolvido, e que mantém interesse na celebração do contrato definitivo.

2.–Cumprida a citação, em 19.03.2020 os réus contestaram alegando, em síntese, que: os contratos de arrendamento e de promessa de compra e venda integram e caracterizam em conjunto a relação contratual estabelecida entre autora e os réus, no sentido de que este último não teria sido celebrado se aquele não fosse, e que do pontual cumprimento da renda dependia a subsistência e cumprimento do contrato promessa por necessária ao pagamento da prestação bancária devida pelos réus à Caixa Geral de Depósitos pelo facto de os réus não terem meio de continuar a suportar a prestação então vigente, que os determinou a celebrar os contratos e a aceitar a sua venda pelo valor de €450.000,00 proposto pela autora, suportando os réus o pagamento do remanescente devido à CGD por acordo a celebrar com esta ou alienando outro património seu para o efeito; a autora só pagou o valor inicial de €10.000,00 no ato da assinatura e, com exceção da afetação desse valor ao pagamento das rendas, nada mais pagou a esse título; após a celebração dos contratos a autora foi declarada insolvente por sentença de 16.11.2010 e reconheceu não ter condições para adquirir o imóvel mas pretender ali continuar de arrendamento, pelo que autora e ré acordaram em celebrar e manter apenas o contrato de arrendamento, agora pela renda mensal de €1.000,00 e pelo prazo de 5 anos; a autora continuou a não pagar a renda aos réus, apesar dos diversos pedidos e interpelações destes; nunca terá sido intenção da autora pagar tais rendas ou celebrar a compra e venda prometida, mas apenas aceder ao imóvel para nele se instalar e dele fruir pelo maior tempo possível, ardil que é revelado pela sua apresentação à insolvência no mesmo dia da assinatura dos primeiros contratos com os réus, em 02.11.2010, datando a procuração e o pedido de apoio judiciário para o efeito já de 29.10.2010; por falta de pagamento das rendas devidas pela autora os réus apenas lograram pagar as prestações bancárias por eles devidas até setembro de 2011, tendo vindo a ser executados em 11.02.2013 pela CGD pelo valor de €629.290,12, processo no âmbito da qual a autora apenas veio invocar o seu direito de arrendamento habitacional por referência ao segundo contrato celebrado e à proposta de adjudicação do imóvel à CGD em 10.04.2014, tendo a autora informado os réus que pagaria à CGD, mas nada tendo pago conforme apuraram depois de terem obtido ganho de causa em sede de oposição à execução, vindo a autora a usar o imóvel inclusive para alojamento local quando o arrendamento se destina apenas à sua habitação, impedindo os réus de retirar proveito do imóvel ou de o negociar e ir pagando os valores devidos à CGD, pondo em causa a solvência dos réus; a única renovação contratualmente prevista para aquele contrato de arrendamento tem o seu termo no próximo dia 01.11.2020, pelo que manifestam a sua expressa oposição a qualquer renovação no termo do período em causa.
Arguiram a ilegitimidade da autora para a presente ação alegando que a posição contratual fundamento da pretensão da autora é anterior à declaração da sua insolvência, pelo que respeita à massa insolvente e à respetiva administração pelo administrador da insolvência, e impõe o chamamento deste aos autos em substituição da autora ou como seu associado.
Mais invocaram o incumprimento da autora e o abuso de direito na invocação dos valores em dívida à CGD na medida em que foi quem incumpriu definitivamente o acordado com os réus e deu causa à execução da CGD e ao avolumar dos valores na mesma peticionados, incumprimento definitivo que invocam para todos os efeitos.
Deduziram pedido reconvencional pedindo seja ordenada a entrega do imóvel aos réus e, subsidiariamente, a não renovação do contrato de arrendamento em 01.11.2020 e ordenada a entrega a partir dessa data.

Concluíram com os seguintes pedidos:
A–Deve ser julgada procedente, por provada, a invocada excepção de ilegitimidade, e determinada a substituição da Autora pelo respectivo Administrador de insolvência, acima identificado, ope legis (art. 81, nº. 1 e 4, do CIRE), ou,  quando assim por hipótese se não entenda, admitido e determinado o seu chamamento à demanda, como seu associado;
B–Deve a acção ora contestada ser julgada improcedente, por não provada, e ainda por provada a acima invocada matéria de excepção peremptória de direito material;
C–Deve a reconvenção ser admitida e julgada procedente, por provada, e, em consequência:
C.1-Serem os Réus declarados os únicos donos e legítimos possuidores do imóvel acima identificado no art. 1º;
C.2-Ser declarado como resolvido, por incumprimento definitivo da Autora, o contrato promessa relativo ao imóvel acima identificado no art. 1º, celebrado com os Réus;
C.3-Ser declarado como resolvido, por incumprimento definitivo da Autora, o arrendamento relativo ao imóvel acima identificado no art. 1º, celebrado com os Réus;
C.4-Ser ordenada a imediata entrega aos Réus do referido imóvel;
C.5-Subsidiariamente em relação aos dois pedidos anteriores, ser ordenada a sua entrega aos Réus, a partir de 1 de Novembro de 2020;
C.6-Ser, em qualquer caso, a Autora condenada no pagamento aos Réus da quantia de € 1.000,00 por mês, a partir do mês de Setembro de 2011 até a efectiva entrega aos mesmos do referido imóvel, acrescendo os respectivos juros até integral pagamento, a liquidar em sede de execução de sentença.
3.–Em sede de resposta a autora pugnou pela improcedência das exceções invocadas e da reconvenção deduzida.
4.–Na sequência da declaração da insolvência da ré por sentença proferida em 25.08.2020 foi declarada a caducidade do mandato por ela conferido ao respetivo ilustre mandatário e ordenada a notificação do Sr. administrador da insolvência (AI) para constituir novo mandatário, notificação à qual este respondeu apenas com a junção da referida sentença de declaração da insolvência.
5.–Posteriormente o AI requereu a apensação da presente ação ao processo de insolvência, que foi deferida e ordenada por despacho de 04.05.2021 proferido nos autos principais e, nesses termos, cumprida.
6.–Após vicissitudes atinentes com os termos e/ou dispensa da prática de atos processuais para evitar a propagação do vírus Sars-Covid19, em 07.11.2021 foi proferido despacho de convite da autora ao aperfeiçoamento da petição inicial para concretização dos factos atinentes com o invocado incumprimento contratual dos réus, ao que aquela correspondeu alegando que à data da celebração do contrato promessa o valor da venda prometida não chegava para o distrate da hipoteca sobre o imóvel, o que impossibilitou a realização da escritura publica que, por isso, a autora não agendou, nem os réus a notificaram para os efeitos previstos nos arts. 798º, 801º e 808º do CC.
7.–Notificado para esclarecer se tomou posição quanto ao cumprimento ou recusa de cumprimento do contrato promessa em apreço nos autos, em o AI declarou não o cumprir, nos termos do art. 102º, nº 1 do CIRE, devendo a promitente compradora proceder à entrega voluntária das chaves, num prazo não superior a 10 dias após o douto despacho, sem prejuízo do arrobamento de porta.”, posição que reiterou depois de novamente notificado para se pronunciar, ao que a autora respondeu que os requerimentos apresentados nos autos pelo AI não cumpriram o formalismo exigido no art. 102º do CIRE, além de nada alegar sobre o sinal entregue e recebido pela insolvente e do qual esta deu quitação, e de o imóvel apreendido à ordem da massa insolvente ainda não pertencer à insolvente por ter sido lavrado registo provisório da doação do imóvel pela filha à insolvente, instando o AI a cumprir o formalismo previsto no art. 102º do CIRE e requerendo, à cautela, o reconhecimento do crédito de pelo menos €10.000,00 do qual a devedora deu quitação no contrato promessa de compra e venda.
8.–Foi proferido despacho a consignar o prosseguimento dos autos para instrução e a admitir a reconvenção deduzida pelos réus e, em sede de saneamento, foi julgada improcedente a exceção da ilegitimidade da autora e indeferido o pedido de chamamento à demanda do AI nomeado no processo de insolvência desta. Ato contínuo foi fixado o objeto do processo e os temas da prova e apreciados os requerimentos probatórios das partes.
9.–Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
- Declarar a inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de condenação da Ré Insolvente na devolução do valor do sinal, absolvendo-se nesta parte a Ré Patrícia da instância.
- Condenar o Réu Rodrigues a pagar à Autora a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), a título de devolução do sinal em singelo, acrescido dos juros legais desde a citação até integral pagamento.
- Julgar improcedente o demais peticionado, absolvendo os Réus dos demais pedidos.
Pedido Reconvencional
- Declarar que se encontra registado a favor dos Réus o prédio urbano a que corresponde a actual morada .. Funchal, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo …e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o nº ----/-----, da referida freguesia, onde se mostra inscrito a seu favor pela Ap. 7 de 22/03/2000.
- Declarar resolvido o contrato de arrendamento relativo ao imóvel identificado nos autos.
- Julgar improcedente o demais peticionado em sede de reconvenção, absolvendo a Autora dos demais pedidos.
- Julgar ainda improcedente o pedido de condenação em litigância de má fé.
*
Custas da acção pela Autora e pelo Réu Rodrigues, na proporção de 70% para a Autora e 30% para o Réu.
Custas da reconvenção pelos Réu Rodrigues e Massa Insolvente e pela Autora, na proporção de 60% para os Réus (réu e massa insolvente) e 40% para a Autora.

10.–Inconformada, a autora apresentou o presente recurso pelo qual requereu a condenação dos réus no pagamento solidário do dobro do sinal recebido e dado como provado sob o ponto 3 da sentença, com direito de retenção sobre o imóvel até efetivo pagamento. Mais requereu que ao recurso seja atribuído efeito suspensivo nos termos da al. b) do nº 3 do art. 647º do CPC por tratar-se de morada de família da autora.
Formulou conclusões que, apesar de não cumprirem o dever de sintetização legalmente imposto pelo art. 639º, nº 1 do CPC, permitem a identificação e compreensão das questões objeto da ação submetidas à ponderação do tribunal de recurso, razão pela qual não se proferiu convite ao seu aperfeiçoamento e se transcrevem:  
1-Dando-se como provado os factos, nomeadamente 1, 3, 7, 8, 10, 11 e 13 não se concebe a decisão do douto Tribunal a quo, em concluir pelo não incumprimento definitivo do contrato de compra e venda, melhor identificado, por parte dos RR.;
2-Não se concebe que o douto Tribunal alicerce os factos provados em 7 e 8, considerando que os RR. não tivessem sido interpelados para a realização da escritura pública;
3-São os próprios RR, em cartas dirigidas à Caixa Geral de Depósitos (C.G.D.), informando que a promitente compradora, aqui A., não estaria disposta a esperar mais tempo, para a realização da escritura pública - cf. comunicações realizadas entre os RR. e o credor hipotecário no âmbito do processo executivo nº 144/13.9TCFUN 2ª Secção, mais concretamente os documentos juntos por requerimento dos RR. em 24/03/2020 com Ref. 35235528, datados de 17/2/2012, 2/4/2012 e 4/10/2012;
4-Constam elementos nos autos que deveriam levar à decisão que o incumprimento do contrato promessa de compra e venda, melhor identificado nos autos, ocorreu por culpa dos RR. e assim sendo ter ocorrido incumprimento definitivo por parte destes, do referido contrato;
5-No prazo do contrato de promessa de compra e venda os RR., não expurgaram a hipoteca no valor de - cf. facto 10;
6-Também não pagaram a penhora no valor de ao credor hipotecário - cf. facto 11;
7-Resulta também como provado (facto 5) de que a escritura de compra e venda, deveria ser realizada no prazo de 2 anos a contar da data do contrato promessa (02/11/2010) ou seja até, 02/11/2012;
8-A A. ficou incumbida da marcação da escritura e avisar os RR. com antecedência de 8 dias, nos termos contratados, importa analisar esta questão concreta;
9-Os RR., obrigaram-se, até ao momento da outorga da escritura, entregar à A. a documentação necessária para a mesma, nomeadamente a escritura da propriedade horizontal, certidão de registo e licença de habitabilidade;
10-Os RR. não entregaram os documentos necessários à A., nem o podiam ter feito, perante a recusa da C.G.D.;
11-Recusa do conhecimento dos autos;
12-A A. estava impossibilitada de marcar a escritura, por falta de documentos;
13-Nenhum notário que marcaria a escritura, sem os documentos essenciais para o ato da venda;
14-Dando-se como provado que sobre o prédio referido em 9, dos factos provados, em 17/8/2010, incidiam duas hipotecas no valor global de (facto provado 10) e que no âmbito do processo executivo n.º 144/13.9TCFUN 2ª Secção, incidia no mesmo prédio uma penhora para garantir o valor de - facto 11;
15-Pelos documentos juntos aos autos, estes ónus mantinham-se no prédio na data designada pelas partes para a realização da escritura pública de compra e venda, ou seja, 02/11/2012;
16-O douto Tribunal tinha nos autos informações objetivas, para considerar que os RR. não só não cumpriram definitivamente o contrato promessa, isto porque resultam dos autos, cartas dos RR. Enviadas à credora C.G.D., a última comunicação 2 meses da data-limite, para a realização da escritura, visto a credora hipotecária não aceitar distratar a hipoteca e cancelar a penhora no prédio registado, a seu favor;
17-São os próprios RR. que expressamente informam a C.G.D. da intolerância da A. em manter a situação de incumprimento por parte destes, - cf. fls.;
18-Não há dúvidas de que os RR. prometeram vender à A., o prédio melhor identificado, bem sabendo, que o não podiam fazer, considerando a certeza que já tinham da C.G.D., na não realização deste negócio, por falta de distrate da hipoteca e cancelamento da penhora registada no mesmo;
19-Os RR. não poderiam entregar à A., os documentos necessários à realização da escritura, porque a credora hipotecária não aceitou tal negócio;
20-Não se tratou de uma simples mora, conforme decidiu o douto Tribunal recorrido, pois, o prazo estava fixado em dois anos, por vontade das partes, e o prazo terminou em 2/11/2012;
21-Com o devido respeito, não era necessário, nem exigível, a interpelação dos RR., para que o incumprimento se tornasse definitivo, já que o prazo de 2 anos já estava fixado entre as partes e havia informação objetiva da impossibilidade da realização do negócio por parte dos RR.;
22-Existiu e permaneceu a recusa categórica dos RR. ou melhor, havendo a impossibilidade de cumprirem o dito contrato, porque o credor hipotecário não aceitou a referida venda, e este facto deve-se à atitude temerária dos RR., que prometeram vender o imóvel, sem terem garantias que o credor hipotecário aceitaria esse negócio;
23-Assim, só podemos concluir que o incumprimento passou a ser definitivo, logo que os RR., tomaram conhecimento da recusa da C.G.D., na dita venda;
24-São os RR. que demonstram claramente de que a A. aguardava impacientemente para a realização da dita escritura, receando o seu desinteresse na concretização do negócio, na data-limite, ou seja, em 2/11/2012;
25-Os efeitos a considerar nestes autos revertem à data da propositura destes;
26-O Sr. Agente de Execução (A.I.), só em 28/1/2021, é que se pronunciou sobre o contrato promessa de compra e venda, não reconhecendo algum crédito à A./Recorrente, nos termos e para os efeitos previstos na al. c) do n.º 2 do art.º 102º do CIRE;
27-Os fundamentos invocados pelo Sr. A.I., para recusar o cumprimento do contrato promessa referido no facto 19, são contraditórios com os factos dados como provados na douta sentença, que agora se recorre, bem como pelo facto de nesta data (28/01/2021) o imóvel objeto dos presentes autos, já não pertencia aos RR.;
28-O R. marido e a insolvente, não obstante as hipotecas e a penhora registadas no dito prédio, transferiram a propriedade do mesmo à sua filha Patrícia, por doação e esta no mesmo dia e hora transferiu a propriedade do mesmo para a insolvente, de forma a não cumprirem definitivamente o contrato com a A. e ser o imóvel apreendido pela massa insolvente da Ré mulher, facto que levou a A. a interpor ação do apenso dos presentes autos;
29-Os fundamentos adiantados pelo Sr. A.I. no relatório (facto provado 19) e estes serem contraditórios com os factos provados na douta sentença, estamos perante uma recusa ilegítima, despropositada e superveniente, pelos motivos atrás expostos;
30-Pela decisão do STJ 3/21, publicado em 16/8/2021 DR 1ª série, o previsto no artigo 106º do CIRE, apenas tem aplicação quando não houver tradição do imóvel, conforme foi decidido no ponto V do douto Acórdão: No caso dum contrato promessa, sem eficácia real, mas havendo tradição da coisa, em que o comprador é um consumidor, a recusa do A.I. em cumprir esse contrato, confere ao promitente comprador o direito ao sinal em dobro;
31-Este assunto foi objeto uniformizador de jurisprudência no sentido de que a promitente compradora não goza apenas do direito do sinal em dobro, nos termos do art.º 442º nº 2 do CC, bem como o direito de retenção do imóvel, no entendimento de alguma jurisprudência;
32-A recusa do cumprimento de parte do Réu marido e do A.I. (este 9 anos depois do contrato), será de aplicar o previsto no n.º 2 do art.º 106º do CIRE, ou seja, deverá sofrer as consequências previstas no n.º 3 do art.º 102º do CIRE;
33-A douta sentença ignorou os motivos da recusa do cumprimento do contrato pelo A.I., bem como a data em que o fez, ou seja, em data em que o imóvel já não pertencia aos RR.;
34-Esta recusa do Sr. A.I. seria mais um elemento a considerar, como incumprimento definitivo, objetivamente constatável pelo Tribunal a quo, pois, na data em que o fez o prédio nem sequer pertencia aos RR., conforme resulta do registo do mesmo junto aos autos, pelo que seria do conhecimento oficioso que na data da recusa feita pelo Sr. A.I. do cumprimento do contrato já o prédio tinha sido transferido dos RR. para a filha destes e desta para a Ré insolvente;
35-Pela douta sentença, o Tribunal a quo atribuiu um crédito de 10.000 à A., valor pago a título de sinal, por incumprimento por parte do R. marido e por outro lado, absolve a R. massa insolvente, considerando a decisão do Sr. A.I., em não cumprir o contrato promessa, em data que o prédio já não pertencia aos RR.;
36-A decisão do Sr. A.I., embora potestativo, assume as consequências legais dessa decisão, considerando que a Ré requereu a insolvência em 25/08/2020, cerca de 8 anos depois da data-limite para fazer a escritura pública e depois de ter doado e adquirido no mesmo dia, o referido imóvel à e da sua filha Patrícia, conforme melhor se alcança dos autos do apenso D;
37-Acresce que, o Sr. A.I., não reconheceu crédito algum à aqui A./Recorrente;
38-Decisão que foi acompanhada, lamentavelmente pelo Tribunal recorrido no apenso C, aguardando Acórdão deste Tribunal Superior;
39-Estamos, perante uma dupla injustiça em relação à A.;
40-Não lhe foi reconhecido algum crédito no âmbito do Apenso;
41-Nos presente autos, através da sentença, que agora se recorre, foi-lhe atribuído de crédito em relação ao R. marido, mas não condenando, a Massa insolvente no mesmo valor, omitindo que a Ré transferiu antes de requerer a insolvência, o imóvel para a sua filha Sofia, comportamento objetivamente considerado como incumprimento definitivo do contrato, o que não deixa de ser contraditório e anómalo e que a Recorrente não se conforma;
42-Pela douta sentença, imputa o incumprimento ao R. marido, por mora (e não incumprimento definitivo), mas absolve a massa insolvente da R. mulher, com os fundamentos de que a decisão da recusa do Sr. A.I.;
43-Isto depois do prédio ter sido dissipado da esfera patrimonial dos RR. através da sua filha Patrícia, conferi apenso;
44-Com o que a Recorrente não poderá concordar;
45-A A. e aqui Recorrente, reclama que lhe seja atribuído o dobro do sinal a pagar solidariamente pelo Réu marido e massa insolvente, com direito de retenção do imóvel apreendido, até efetivo pagamento, nos termos do art.º 442º, n.º 2 do Código Civil (CC);
46-Não seria necessária qualquer interpelação pela A., para a realização da escritura, quando, na pendência dos presentes autos os RR. transferiram a propriedade do imóvel para a sua filha cf. apenso;
47-O comportamento dos RR. até à data da insolvência da Ré (25/8/2020), bem como os ónus e encargos constantes dos autos, devia ter sido considerado incumprimento definitivo dos RR., mesmo antes da apresentação da insolvência da R. mulher, é bastante para que se conclua pela sua impossibilidade de fazer o negócio;
48-A decisão do Sr. A.I., pelo facto do imóvel não pertencer aos RR. à data da sua decisão é absolutamente anómala e infundada, pelos motivos expostos;
49-A douta sentença deveria decidir ser imputável aos RR. a decisão do incumprimento definitivo do contrato, nos termos do art.º 801º, n.º 1 do CC, pela conduta destes, em data anterior à apresentação da insolvência da Ré mulher, até pelo facto de transferirem a propriedade do imóvel para a filha destes, sem conhecimento do credor hipotecário e da A./Recorrente.

11.–Igualmente inconformado, o réu também apresentou recurso da sentença, requerendo a sua revogação.
Formulou as seguintes conclusões:
1º-Para decidir como decidiu, especificamente no que respeita à condenação do Réu no pagamento à Autora da quantia de € 10.000,00, mais juros, o Tribunal a quo decidiu com base em causa de pedir (o suposto enriquecimento sem causa) que é diversa da que foi formulada pela dita Autora (assente em responsabilidade contratual).
2º-Apesar da liberdade de qualificação jurídica consagrada no nº. 3 do art. 5º do CPC, não é permitido ao Tribunal extravasar o âmbito da causa de pedir tal como a definiu a Autora, cfr. resulta do princípio do dispositivo.
3º-Assim também resulta do direito a um processo equitativo, sujeito ao contraditório e com igualdades das partes, ínsito ao princípio do Estado de direito - sendo que o Réu, ora Recorrente, não teve qualquer oportunidade de se pronunciar sobre o dito enriquecimento sem causa, justamente porque o mesmo não integra a causa de pedir formulada pela Autora.
4º-A omissão, à margem da Lei, dessa oportunidade de defesa, tem a máxima relevância porquanto o suposto enriquecimento sem causa sempre se encontraria até, em qualquer caso, prescrito (cfr. art. 482º do Cód. Civil) - o que, à cautela, expressamente se invoca para todos os efeitos.
5º-Em suma, o Tribunal a quo tomou conhecimento de questão de que não podia tomar conhecimento, e a respectiva Sentença, na parte ora recorrida, enferma da nulidade por excesso de pronúncia (cfr. 615º, n9.1, al. d), do C.P.C.) - o que expressamente se invoca para todos os efeitos.
6º-Acresce que não há em rigor sequer qualquer enriquecimento sem causa em desfavor da Autora, bem pelo contrário.
7º-Não sendo de esquecer o carácter subsidiário desse instituto, não deixa de ser muito relevante o facto de o contrato promessa sub judice, no qual foi paga a quantia inicial de € 10.000,00 em causa, estar nos seus próprios e expressos termos ligado à celebração de um contrato de arrendamento.
8º-Ora, não obstante ter vindo a ocupar o imóvel em causa em função dessa estipulação contratual do arrendamento, o facto é que a Autora nem uma só renda pagou.
9º-Considerando o valor da renda estipulada, primeiro no valor mensal de €1.500,0, depois no valor mensal de €1.000,00, e bem assim considerando a data do contrato em causa (de 2010), facilmente se compreende que, no rigor e na substância das coisas, só a Autora enriqueceu injustificadamente.
10º-As rendas cujo pagamento foi ilícita e integralmente omitido alcançam, só em dez anos (e são mais de dez os anos decorridos) e só pelo valor menor acordado (de € 1.000,00), o valor de capital de € 120.000,00.
11º-Nessas circunstâncias, entendimento e pretensão no sentido de o Réu ora Recorrente dever pagar (como sucede ter sido condenado pelo Tribunal a quo) a dita quantia de € 10.000,00, consubstancia verdadeiro abuso de direito - cfr. art. 334º do Cód. Civil, o que expressamente se invoca para todos os efeitos.
12º-Deve essa condenação ser, como tal, integralmente revogada.

12.–Nenhuma das partes respondeu ao recurso da contra-parte.

13.–Cumprindo o disposto no art. 617º, nº 1 do CPC, o tribunal a quo concluiu pela não verificação da nulidade invocada.

II–Objeto do Recurso

Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo, tal qual como o mesmo surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar, a modificar ou a anular decisões proferidas, não estando o tribunal de recurso adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto.
Em conformidade, de acordo com as alegações dos recorrentes, de entre os vários pedidos deduzidos na petição inicial e em sede de reconvenção, o objeto do presente recurso circunscreve-se às questões atinentes com os pedidos de reconhecimento de direito de crédito da autora sobre os réus e de retenção sobre imóvel para garantia de pagamento do mesmo, objeto que, sem prejuízo do segmento da decisão recorrida de absolvição da ré da instância por ter sido declarada insolvente, os recorrentes submeteram à apreciação da Relação segmentado nas seguintes questões:

Dos recursos da autora e do réu:
1.–verificação dos pressupostos do direito da recorrente à restituição, em dobro ou em singelo, do sinal de €10.000,00 com fundamento em incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda que celebrou com os réus e, na positiva, abuso de direito da autora em reclamar a restituição do valor por ela pago no âmbito dos contratos que celebrou com os réus.

Do recurso da autora:
2.–Verificação dos pressupostos do direito de retenção para garantia de pagamento daquele crédito sobre imóvel apreendido para a massa insolvente da ré, sem prejuízo da prévia apreciação da admissibilidade de apreciação desse pedido no âmbito desta ação (por não corresponder a nenhuma das ações especialmente previstas no CIRE para reconhecimento de direitos de crédito para serem pagos pelo produto de bens apreendidos para a massa insolvente).

Do recurso do réu:
3.–Nulidade da sentença por excesso de pronúncia correspondente à condenação do réu no pagamento da quantia de €10.000,00 com fundamento em causa de pedir – enriquecimento sem causa - não invocada pela autora e não submetida ao contraditório do réu.

III–Fundamentação

A)-De Facto

1.O tribunal recorrido proferiu a seguinte decisão de facto:
1.–Entre a Autora e Réus foi celebrado em 02.11.2010 um contrato a que deram a designação de “contrato promessa de compra e venda (doc. 1 junto com a petição inicial, epigrafado de “contrato promessa de compra e venda”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2.–Através do contrato referido em 1., a Autora prometeu comprar aos Réus e estes prometeram vender o prédio urbano destinado a habitação com a área total de 401,90m2, sendo 265,90m2 de área descoberta e 136m2 de área coberta, situado na Urbanização…concelho do Funchal, inscrito na respectiva matriz predial urbano sob o art. …, a que corresponde a descrição predial n.°…, da C. R.P. do Funchal e com o alvará de licença de utilização n.°… emitido pela C.M. do Funchal no dia 8.08.2008, tendo sido estipulado o preço de €450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil euros).
3.–A Autora entregou aos Réus, na data referida em 1., a título de sinal e principio de pagamento, a quantia de €10.000,00 (dez mil euros).
4.–Foi acordado entre as partes que a Autora entregaria aos Réus a restante parte do preço, nas seguintes datas:
- €15.000,00 (quinze mil euros) até 15.12.2010, a que foi atribuído o valor de sinal;
- €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) até 31.03.2011, a que foi atribuído o valor de sinal;
- €50.000,00 (cinquenta mil euros) até ao dia 30.04.2012, a que foi atribuído o valor de sinal;
- O valor remanescente de €350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros), na data da outorga da escritura de compra e venda do imóvel.
5.–Foi convencionado que a escritura deveria realizar-se no prazo de dois anos a contar da data de assinatura do contrato referido em 1. com o direito da execução específica, sendo que entre a tomada de posse do imóvel e a outorga da escritura e compra e venda do imóvel, a Autora tomaria de arrendamento o imóvel prometido.
6.–A Autora ficou incumbida de proceder à marcação da escritura e avisar os Réus, com antecedência mínima de 8 dias da data, hora e local designado para o efeito, através de carta registada com aviso de recepção enviada para a morada dos Réus.
7.–Os Réus obrigaram-se a, até ao momento da outorga da escritura, entregar à Autora a documentação necessária para a mesma, nomeadamente a escritura de propriedade horizontal, certidão do registo da mesma e licença de habitabilidade."
8.–Os Réus não entregaram os documentos referidos em 7.
9.–Encontra-se registado a favor dos Réus um prédio urbano a que corresponde a actual morada Urbanização…, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo …° e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o n°…, da referida freguesia, onde se mostra inscrito a seu favor pela Ap. 7 de 22/03/2000.
10.–Sobre o prédio referido em 9. constam registadas, com data de 17.08.2010, duas hipotecas a favor da Caixa Geral de Depósitos, para garantia de capital no valor de €306.183,92 e de € 285.865,42, respectivamente, num total de € 592.049,34.
11.–No âmbito do processo n.°144/13.9TCFUN – 2ª secção, figuram como Executados os Réus e como Exequente a Caixa Geral de Depósitos, S.A., pela quantia exequenda de €629.290,12.
12.–Os Réus entregaram o imóvel à Autora, nos termos do contrato promessa de compra e venda e do contrato de arrendamento no mesmo previsto, celebrados em Novembro de 2010, tendo a Autora passado a residir no imóvel, recebendo amigos.
13.–Da cláusula segunda, n°s. 2 e 3, do contrato promessa referido em 1., consta que:
2.-A Segunda Contraente tomará posse do imóvel prometido, melhor identificado na cláusula primeira, no prazo de 30 dias a contar da data da assinatura do presente contrato.
3.-Não obstante o disposto no número anterior, as partes expressamente convencionam que, entre a tomada de posse do imóvel e a outorga da escritura de compra e venda do imóvel objecto do presente contrato, a Segunda Contraente toma de arrendamento o imóvel prometido, nos termos e condições estabelecidas em contrato de arrendamento outorgado para o efeito na presente data”.
14.–No dia 02.11.2010 a Autora, na qualidade de arrendatária e os Réus, na qualidade de senhorios, outorgaram contrato que epigrafaram de “Contrato de Arrendamento Habitacional”, nos termos do qual os Réus declararam dar de arrendamento à Autora o imóvel identificado em 9, pelo prazo de 2 (dois) anos, com renovação automática por períodos de 1 (um) ano, contra o pagamento de uma renda mensal de €1.500,00 (mil e quinhentos euros). (Contrato epigrafado de “Contrato de Arrendamento Habitacional”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

15.–Consta do contrato referido em 14., designadamente (cláusula segunda, n° 2):
O IMÓVEL é arrendado no estado em que se encontra, que a ARRENDATÁRIA declara conhecer.
CLÁUSULA TERCEIRA
1.-O arrendamento tem a duração de 2 (dois) anos, renovando-se automaticamente por períodos iguais e sucessivos de um (1) ano, a menos que seja denunciado pelo SENHORIO ou pela ARRENDATARIA, de acordo com o estabelecido no presente contrato e nos termos prescritos na lei.
2.-O arrendamento terá o seu início no prazo de 30 dias a contar da data da assinatura do presente contrato.
3.-Caso o SENHORIO venda o IMÓVEL à ARRENDATÁRIA, durante o período do arrendamento, o presente contrato cessará imediatamente todos os seus efeitos, por acordo das partes.
CLÁUSULA QUARTA
A renda mensal é de € 1.500,00 podendo sofrer variação para mais ou para menos, de acordo com as alterações do spread contratualizado pelos Senhorios junto da Caixa Geral de Depósitos, vencendo-se no primeiro dia útil de cada mês a que respeita o pagamento, e deverá ser paga até ao 8° dia útil do mês a que respeitar, por transferência bancária para a conta cujo NIB 00……. da Agência do Funchal da CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, conta titulada pelo Senhorio.
CLÁUSULA SEXTA
1.-A ARRENDATÁRIA não poderá realizar quaisquer obras ou benfeitorias no IMÓVEL sem a prévia autorização escrita do SENHORIO, excepto as que se mostrem necessárias à conservação ordinária do IMÓVEL.
2.- Todas e quaisquer obras realizadas no IMÓVEL, incluindo obras de conservação ordinária ou extraordinária e obras de beneficiação, serão suportadas integralmente pela ARRENDATÁRIA, ficando a fazer parte integrante do IMÓVEL, excepto as que, pela sua natureza, possam ser retiradas sem dano.
3.-A ARRENDATÁRIA não terá direito a ser indemnizada ou compensada por quaisquer obras ou benfeitorias realizadas no IMÓVEL.
CLÁUSULA OITAVA
Findo o presente contrato, a ARRENDATÁRIA obriga-se a devolver imediatamente o IMÓVEL ao SENHORIO no estado em que o recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato, bem como à entrega de todas as chaves em seu poder.[1]
CLÁUSULA NONA
1.- O IMÓVEL destina-se exclusivamente à habitação própria e permanente da ARRENDATÁRIA e respectivo agregado familiar.
2.-A ARRENDATÁRIA não pode, sem a prévia autorização escrita do SENHORIO, subarrendar ou ceder, temporária ou definitivamente, no todo ou em parte, o IMÓVEL, ou dar-lhe outro destino que não o referido no número anterior.”
(contrato de arrendamento habitacional, junto com a contestação como documento 5., cujo teor se dá por integralmente reproduzido)

16.–Autora e Ré acordaram celebrar e manter um novo contrato de arrendamento com uma renda mensal €1.000,00 e pelo prazo de 5 anos. (contrato de arrendamento habitacional, junto com a contestação como documento 7., cujo teor se dá por integralmente reproduzido)
17.–A Autora apresentou-se à insolvência, dando origem ao processo 5330/10.0TBFUN, a qual veio a ser declarada por sentença de 16.11.2010 do extinto 2° Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca do Funchal.
18.–Patrícia foi declarada insolvente por sentença proferida em 25.08.2020.
19.–Em sede de relatório apresentado ao abrigo do art.° 156.° do CIRE, no âmbito do processo referido em 16, o Sr. Administrador da Insolvência declarou o seguinte:
Contrato-promessa: A insolvente celebrou um contrato promessa de compra e venda, cujo objecto é a moradia apreendida em benefício da massa insolvente.
O A.J. não tem interesse em optar pelo cumprimento do mesmo, pelo que opta pela recusa do cumprimento, dando, desde já, conhecimento aos credores.
Contrato de arrendamento da fração apreendida a favor da massa insolvente.
O A.J., nos termos do n.° 1 do artigo 109.° do C.I.R.E., irá denunciar, com efeitos para o seu termo, o referido contrato de arrendamento.

20.–A Autora não pagou a renda aos Réus em face do contrato de arrendamento celebrado.

Factos Não Provados
A.–Os valores referidos em 4. foram pagos pela Autora aos Réus nas datas acordadas.
B.–Os Réus solicitaram à Autora para adiar a escritura, não dando explicações para o efeito.
C.–Na data referida para a escritura, a fração prometida vender ainda se encontrava em obras.
D.–A Autora prometeu comprar e os Réus prometeram vender o imóvel referido em 2., desde que estivessem realizados os acabamentos das obras.
E.–A Autora procurou, por diversas vezes, junto dos Réus, a obtenção dos documentos referidos em 7., tendo os Réus se recusado a entregá-los.
F.–A aquisição e a construção do imóvel foram efectuadas pelos Réus com recurso a crédito, concedido pela Banif.
G.–Após a conclusão da construção, os Réus passaram a viver na habitação, juntamente com as duas filhas do casal, então menores.
H.–Os Réus, a partir da respectiva aquisição, pagaram durante anos as respectivas prestações bancárias, até que, na sequência da crise financeira iniciada nos mercados financeiros em 2008, começaram a ter algumas dificuldades.
I.–Os Réus foram abordados pela Autora que afirmou precisar de algum tempo para reunir a totalidade do preço, tendo os Réus aceitado suportar o pagamento da diferença a favor da Caixa Geral de Depósitos, na convicção de que, ao invés da manutenção de um crédito cuja prestação se tornava crescentemente difícil suportar, e na dificuldade de obtenção de comprador para o imóvel por valor significativamente superior, tal solução seria viável e como tal preferível.
J.–A cláusula 2ª [2] do contrato era essencial à celebração do contrato promessa, ou seja, sem a mesma o contrato não teria sido celebrado, pois do cumprimento do arrendamento em causa dependia a subsistência e cumprimento do contrato promessa.
L.–O contrato de arrendamento serviu apenas para contratar água e electricidade.
*
A restante matéria alegada configura matéria de direito, de pendor conclusivo ou inócua à decisão a proferir nos presentes autos, motivo pela qual não foi selecionada para sustentar a presente decisão.

2.–Ampliação oficiosa da decisão de facto

2.1.-Da conjugação dos arts. 662º nº 1 e 2, al. c) e 663º, nº 2 do CPC resulta que os poderes cognitivos da Relação em matéria de julgamento de facto abrangem o poder-dever de ex offício proceder a ampliação da matéria de facto necessária ou pertinente à boa decisão do mérito da causa. Nesse desiderato, para além dos elementos referentes ao imóvel descritos na decisão recorrida, selecionam-se outros que resultam do apenso A e da certidão predial permanente nele junta[3], em consonância com o teor de escrituras juntas aos autos pelas partes, e que a sentença deveria ter considerado por imposto pelo art. 611º, nº 1 do CPC, omissão que se supre aditando-os e reformulando o teor dos pontos 9, 10 e 11 nos seguintes termos:
9.Por apresentação de 22.03.2000 o prédio urbano descrito em 2. foi inscrito no registo em benefício do réu Rodrigues, casado no regime de comunhão de adquiridos com a ré Patrícia, por compra.
10.Sobre o referido prédio mais constam os seguintes registos:
i)- por apresentações sucessivas de 17.08.2010, inscrição de duas hipotecas a favor da Caixa Geral de Depósitos, SA constituídas, uma para garantia do capital de €306.133,92 e montante máximo de €430.846,76, e outra para garantia do capital de €285.865,42 e montante máximo de €402.321,27;
ii)-por apresentação de 19.07.2013, inscrição de penhora realizada no processo executivo nº 144/13.9TFCFUN a favor do credor hipotecário para garantia da quantia exequenda de €629.290,12;
iii)- por apresentação de 09.02.2019, registo da presente ação, provisório por natureza com fundamento no art. 92º, nº 1, al. a) do Código de Registo Predial, com descrição dos seguintes pedidos: A) Condenar os Réus a reconhecerem a Autora com o legítimo direito na compra deste imóvel; B) Condenar os Réus a reconhecerem o legítimo e tempestivo exercício do referido direito de compra deste imóvel; C) Condenar os Réus na celebração da respetiva escritura de compra e venda a favor da Autora; D) Condenar os Réus a celebrar a predita escritura pública de compra e venda no prazo de 30 dias após a data da sentença condenatória
iv)-por apresentações sucessivas de 14.09.2020, inscrição de aquisição em benefício de Sofia por doação dos réus Patrícia, com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo em benefício destes, e subsequente inscrição de aquisição em benefício da insolvente, casada em comunhão de adquiridos com o réu Rodrigues no regime de comunhão de adquiridos, por doação, e renuncia deste ao usufruto, todas provisórias por natureza nos termos do art. 92º, nº 2, al. b) do CRP.
v)- por apresentação de 17.11.2020, registo de ação instaurada pela autora-recorrente Olga contra o réu-recorrente Rodrigues, massa insolvente de Patrícia, e Sofia, lavrado provisório por natureza nos termos do art. 92º, nº 1, al. a) e nº 2 al. b) do Código Registo Predial, e com descrição dos seguintes pedidos: a) reconhecer-se a ineficácia das doações tituladas;//b) Caso assim não se entenda, devem as doações ser nulas e sem efeito;//c) Caso não se entenda assegurar o direito de retenção até efetiva decisão transitada em julgado, devem as doações ser anuladas.
vi)- por apresentação de 31.05.2022, registo da sentença de declaração de insolvência de Patrícia, divorciada, proferida em 25.08.2020 e com data de trânsito em 16.09.2020, com a menção “incide sobre a totalidade do bem não partilhado”, e lavrado provisório por natureza com fundamento legal no art. 92º, nº 2, al. b) do Código de Registo Predial.
11.Por requerimento de 28.08.2020 autuado como apenso de apreensão de bens (A), o AI juntou auto de apreensão pelo qual declarou que nessa data procedeu à apreensão do imóvel descrito em 2., sobre este constam as duas hipotecas e a penhora inscritas em benefício da Caixa Geral de Depósitos e o registo da presente ação, e “finalizou a apreensão do bem no mesmo dia, ficando a promitente compradora como fiel depositária.” 
 
2.2.–Nos termos dos arts. 611º e 662º, nº 1 do CPC mais se aditam à decisão de facto os pontos 21 a 35 para inclusão de factos alegados e documentados pelos réus na contestação que deduziram nestes autos, atinentes com os títulos constitutivos dos créditos garantidos pelas hipotecas que incidem sobre o imóvel, vicissitudes da execução hipotecária instaurada pela CGD contra os réus, apresentação da autora-recorrente à insolvência e incidente de exoneração do passivo restante que aí requereu, bem como para descrição das escrituras fundamento dos registos de aquisição do imóvel em benefício da filha dos réus, Sofia, e imediatamente a seguir, da insolvente, juntas aos autos pela autora por requerimento de 12.10.2020, e de incidências processuais do apenso de reclamação de créditos e da ação declarativa pendente nos autos em apenso D, à qual respeita o registo provisório supra descrito em 10, v).
Assim:
21.- As hipotecas aludidas em 10, i) foram constituídas por escrituras de mutuo e hipoteca celebradas em 17.08.2010 entre a CGD e os réus, estes na qualidade de mutuários, sendo o primeiro (no montante de € 306.13,92) para liquidação de financiamento por estes celebrado com o Banif e simultâneo cancelamento das quatro hipotecas constituídas em favor deste.
22.- Em 04.10.2012 o réu dirigiu à CGD a seguinte comunicação: “Na ausência de resposta às minhas anteriores missivas de 17.02.2012 e de 02.04.2012 relativas à proposta de regularização dos valores por mim devidos no âmbito dos empréstimos nºs … e … cumpre-me  comunicar que, (…) se gorou por completo a possibilidade, contratada em termos de promessa, de venda do nosso referido imóvel, não estando já o promitente comprador disposto a aguardar por mais tempo;//(…) na ausência de outra solução, (…) manifestar novamente a vontade de dação a essa instituição do imóvel em causa para regularização dos referidos empréstimos.
23.- A execução aludida em 10. ii) foi instaurada em 11.03.2013 com fundamento no não pagamento das prestações emergentes dos mútuos supra aludidos desde 17.09.2011, correspondendo a quantia exequenda ao montante de capital de €591.999,34, a juro moratórios calculados desde 17.09.2011 até 28.02.2013 à taxa de 10,246%, e a comissões.
24.-No âmbito da referida execução a autora, omitindo qualquer referência ao contrato promessa de compra e venda acima descrito,  invocou direito sobre o imóvel penhorado com fundamento no contrato de arrendamento que celebrou com os réus[4], pretensão que mereceu a oposição do exequente deduzida no âmbito da diligência de abertura de propostas para venda judicial do imóvel realizada em 10.04.2014, sobre a qual nesse mesmo ato recaiu despacho a declarar a ineficácia do arrendamento em relação à exequente e a determinar a realização da venda designada.
25.-No âmbito da referida diligência a única proposta para aquisição do imóvel foi apresentada pela exequente CGD, no valor de €467.500,00, que foi aceite por despacho, ficando a adjudicação do imóvel pendente da decisão a proferir no âmbito da oposição à execução deduzida em 25.06.2013 pelos executados, oposição que veio a ser julgada procedente por sentença, confirmada por acórdão da Relação de Lisboa de 07.06.2018, com fundamento na não integração dos executados no PERSI.
26.-Com vista à sua apresentação à insolvência, a autora outorgou procuração forense e requereu beneficio de apoio judiciário em 29.10.2010 e, no requerimento inicial, alegou ter dívidas de €1.259.546,00 e, como rendimentos, apenas os da atividade de agente imobiliária.
27.-No âmbito do incidente de exoneração do passivo restante tramitado no processo de insolvência da autora foi proferido despacho inicial em 21.03.2014 a autorizar o período de cessão do rendimento disponível e a excluir da cessão o correspondente a um salário mínimo regional, despacho que foi objeto de publicação por anuncio de 24.03.2014 do qual constava, além do mais, que durante o período de cessão a autora, a ali exoneranda, não podia fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
28.-O processo de insolvência da autora foi declarado encerrado por despacho de 29.03.2016 com fundamento no art. 230º, nº 1, al. d) do CIRE, em virtude da realização do rateio final.        
29.- Por escritura de doação e reserva de usufruto celebrada em 19.08.2020 entre os réus Rodrigues (com 55 anos) e Patrícia (com 48 anos), casados entre si no regime da comunhão de bens adquiridos, e Sofia, solteira, maior, os primeiros declararam que ao património comum do casal pertence o prédio urbano destinado a habitação correspondente ao acima descrito em 2, que sobre o mesmo incidem registos de hipotecas, de penhora, e da ação instaurada Maria que expressamente declaram conhecer, bem como todas as suas consequências legais”, e ao qual atribuem o valor igual ao patrimonial (€249.324,60), e que, com reserva do usufruto para eles, doam a nua propriedade daquele imóvel à segunda outorgante, sua filha, com cláusula de incomunicabilidade a qualquer futuro cônjuge da donatária, doação que esta declarou aceitar. Da escritura mais consta que foram exibidos os seguintes documentos: certidão permanente, caderneta predial urbana, e licença de utilização emitida em 21.07.2000.
30.- Por escritura de doação e reserva de usufruto celebrada em 19.08.2020 entre Sofia e Rodrigues e Patrícia, por todos foi feita referência à escritura referida em 21. e pela primeira foi declarado fazer doação da nua propriedade sobre aquele imóvel à sua mãe, Patrícia, que a declarou aceitar, e pelo segundo, Rodrigues, foi declarado renunciar expressamente ao usufruto de que é titular sobre o mesmo.
31.- Em 23.10.2020 o AI fez instaurar apenso de verificação e graduação de créditos com a apresentação de lista de créditos reconhecidos no montante total de €838.894,15, do qual crédito de Lx Investment Partners II, SARL no montante de €591.999,34 a título de capital e €211.951,98 a título de juros, garantidos pelas duas hipotecas acima descritas; e lista de créditos não reconhecidos, incluindo crédito não reclamado da aqui recorrente Maria no montante de capital de €100.000,00.
32.- Justificou o conhecimento e não reconhecimento do referido crédito nos seguintes termos: é do conhecimento do A.J. através do Processo n.º 706/19.0T8FNC (ação declarativa), intentado pela mesma contra a ora insolvente e contra o Sr. Rodrigues, tendo por fundamento o "contrato de promessa de compra e venda", celebrado em 2/11/2010 com aquela e a ora insolvente, tendo alegado ter pago a título de sinal, a quantia total de 100.000,00 €. O A.J. não reconhece o respetivo crédito porque não ter provas de tal pagamento efetuado por Maria a quantia referida a título de sinal, não tendo ainda sido proferido qualquer sentença no referido processo. Além do mais, a mesma naquela data se encontrava em situação de insolvência, não tendo qualquer capacidade de pagamento da referida quantia.
33.-A autora-recorrente deduziu impugnação à lista e, invocando a pendência da presente ação e o conhecimento que o AI dela tem, requereu a procedência da impugnação e a correção da lista de credores não reconhecidos nos termos que ali invoca, no sentido de o reconhecimento ou não do crédito da impugnante ser relegado para decisão judicial transitada em julgado.
34.-Após vicissitudes/atos processuais vários atinentes com a impugnação (incluindo realização de tentativa de conciliação), com o registo das hipotecas em beneficio do credor hipotecário reconhecido, e com a decisão a proferir em apenso de habilitação, por despacho de 09.03.2023 foi equacionada a ineptidão do requerimento de impugnação da lista de credores apresentado por Maria e, cumprido o contraditório, foi julgado inepto e consignado o não reconhecimento de qualquer crédito desta sobre a insolvente, decisão que foi revogada por acórdão de 14.12.2023 desta Relação e secção que, julgando procedente o recurso interposto pela impugnante, determinou que a 1ª instância conheça do pedido formulado em sede de impugnação, de correção da lista de créditos, nos termos sobreditos.”
35.-Em 13.11.2020 a autora-recorrente instaurou a ação declarativa comum (autónoma) que foi objeto do registo provisório acima descrito em 10, v), contestada pelo aqui réu-recorrente Rodrigues e, em 27.04.2021, remetida para apensação ao processo de insolvência da ali ré Patrícia, no âmbito do qual, a requerimento do réu e com a oposição da autora, em 20.05.2022 foi proferido despacho, não impugnado pelas ali partes, a determinar a suspensão da instância até que seja proferida sentença, transitada em julgado, na acção que corre termos sob o Apenso E.

IV–Fundamentos dos Recursos

1.–Relativamente ao pedido de reconhecimento de crédito sobre a insolvente, Patrícia

Depois de discorrer sobre os pressupostos legais do incumprimento definitivo, a sentença recorrida negou à recorrente o direito à restituição do sinal em dobro, no essencial, por concluir que à data em que foi declarada a insolvência da ré/promitente vendedora não se verificava qualquer um dos pressupostos do incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda fundamento do crédito a que a recorrente se arroga, mas tão só situação de mora no cumprimento, suportada nos seguintes fundamentos: do contrato não resulta que o decurso do prazo nele previsto para o seu cumprimento implicava o automático desinteresse do credor no posterior cumprimento do contrato; até à declaração da insolvência a autora não procedeu à interpelação admonitória prevista pelo art. 808º, nº 1 do Código Civil (CC) para fixação de prazo razoável aos promitentes vendedores para cumprirem o contrato sob pena de perda de interesse da promitente compradora; não existe perda de interesse da autora na prestação em consequência da mora do devedor, nem impossibilidade, nem recusa categórica do seu cumprimento pelos réus.
Neste enquadramento, e considerando a posterior declaração da insolvência da ré Patrícia, a sentença recorrida concluiu pela aplicação do regime legal dos negócios em curso previsto pelos arts. 102º e ss. do CIRE, com fundamento no qual concluiu que é lícita a recusa do cumprimento do contrato promessa manifestada pelo AI, que a aplicação das regras do CIRE afastam, em qualquer hipótese, um eventual incumprimento por parte do Réu Rodrigues, que in casu não poderá actuar sozinho e, relativamente ao direito de crédito, que a autora não tem direito a ser ressarcida pelo dobro do sinal entregue nos termos do art. 442º do CC porque este tem como pressuposto o incumprimento definitivo do contrato, que não se verifica, e porque, nos termos do art. 102º, nº 1 do CIRE e de acordo com o AUJ 3/2021 de 27.04.2021, apenas tem direito ao valor correspondente à prestação efetuada, invocando em abono acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2022.
Feito este percurso, e depois de concluir pela inexistência do direito à execução específica, a sentença recorrida veio a concluir pela inutilidade superveniente da lide relativamente ao pedido de reconhecimento do direito de crédito deduzido contra a ré Patrícia, com fundamento na inadequação processual da presente ação para dele conhecer por efeito da declaração da insolvência daquela, a partir da qual o reconhecimento de direitos de crédito sobre a insolvência (para serem pagos no âmbito da mesma) é necessariamente feito pelas vias processuais previstas pelo CIRE (a reclamação de créditos ou a ação para verificação ulterior de créditos) a apresentar e a instaurar nos prazos legais por aquele diploma previstos. Invoca em abono o AUJ nº 1/2014 de 25.02.2014. Com este fundamento absolveu a ré da instância relativamente ao pedido de reconhecimento de direito de crédito que aqui nos ocupa.
Prosseguindo a apreciação do pedido relativamente ao réu, a sentença considerou que sob pena de enriquecimento sem causa a autora tem direito à devolução da quantia de €10k por ela entregue aos réus a título de sinal, que os réus são solidariamente responsáveis por essa devolução e, com esses fundamentos, concluiu que a autora tem direito a haver do réu marido a devolução do sinal em singelo.
Aos fundamentos da decisão recorrida a recorrente opõe que para verificação do incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda não era necessária a interpelação dos réus considerada pela sentença recorrida, alegando em fundamento que: são os réus que nas cartas que dirigiram à Caixa Geral de Depósitos referem a intolerância da recorrente em manter a situação de incumprimento; que o incumprimento definitivo ocorreu e por culpa dos réus porque a escritura deveria ter sido realizada no prazo de dois anos definido no contrato, até 02.11.2012, e, nesse prazo, os réus não expurgaram as hipotecas e a penhora que incidiam sobre o imóvel prometido vender; a autora não podia marcar a escritura porque os réus não entregaram a documentação necessária à sua celebração – escritura da propriedade horizontal, certidão de registo e licença de habitabilidade – nem a podiam entregar face à recusa da Caixa Geral de Depósitos em distratar as hipotecas, cancelar a penhora sobre o imóvel e em aceitar a venda, recusa que tornou impossível o cumprimento do contrato; impossibilidade que relativamente ao réu resulta da perda do direito de propriedade sobre o imóvel por ter sido transferido pelo casal para a filha de ambos. Mais alegou que o imóvel deixou de ser propriedade dos réus porque o doaram à filha de ambos e esta transferiu-o para a ré insolvente, que a recusa de cumprimento do contrato por parte do AI é ilegítima e, de acordo com o AUJ 3/2021, confere ao promitente comprador o direito ao sinal em dobro e ao direito de retenção sobre o imóvel, e mais acrescenta que a própria recusa corresponde a incumprimento definitivo do contrato pelo AI, que assume as consequências legais dessa decisão”. Mais qualifica de contraditório o facto de a sentença ter reconhecido direito de crédito de €10k sobre o réu e não ter condenado a massa insolvente no mesmo valor.
Com imediata repercussão sobre a (im)pertinência das alegações e pedido recursivo que a recorrente opõe à sentença recorrida, urge atentar que com fundamento na declaração da insolvência da ré Patrícia – mais precisamente, dos efeitos processuais que dela decorrem para o exercício dos direitos de crédito sobre o devedor declarado insolvente, que a lei designa de créditos sobre a insolvência (art. 47º do CIRE) -, a sentença recorrida absolveu a ré da instância com fundamento na inutilidade da lide relativamente ao pedido de reconhecimento do direito de crédito contra ela deduzido, pelo que se absteve de conhecer do mérito do mesmo. Daqui resulta manifesto o equívoco em que assentam as alegações de recurso da recorrente relativamente à decisão que incidiu sobre o pedido de reconhecimento de direito de crédito sobre a insolvente que, contrariamente ao que parece pressupor, não foi de absolvição da ré do pedido, nem a absolvição da instância foi decretada com fundamento na não verificação do incumprimento definitivo, nem na opção de recusa de cumprimento do contrato pelo AI.
Assim, em rigor pela recorrente nada vem oposto ou censurado à decisão de absolvição da ré da instância e aos respetivos fundamentos, que a esta instância não cabe reponderar porque não foram postos em causa e, não integrando o objeto do recurso, este não detém a virtualidade, sequer em abstrato, de conduzir à alteração daquela decisão de absolvição da ré da instância.
Sem prejuízo sempre se consigna o acerto da decisão recorrida, conforme ao AUJ nº 1/2014 de 25.02.2014 por ela invocado, que fixou jurisprudência no sentido de Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.
A vocação universalista e concursal do processo de insolvência, o princípio da plenitude ou autossuficiência da respetiva instância, e o princípio par conditio creditorum orientador do regime falimentar, justificam os efeitos externos produzidos pelo processo de insolvência sobre outros processos pendentes contra o devedor (cfr. arts. 85º a 88º do CIRE), mas o efeito inverso já não sucede, como claramente resulta do disposto nos arts. 47º, nº 1, 90º, 128º, nº 5, 129º, nº 1 e 146º do CIRE, que impõem que os direitos dos credores sejam exercidos no âmbito do processo de insolvência e nos termos por ele previstos - incluindo os que tenham o seu crédito reconhecido por decisão anterior, - imposição/limitação que, precisamente, visa garantir ao conjunto dos credores o poder de interferir na verificação do passivo através do apenso de reclamação, verificação e graduação de créditos e das ações de verificação ulterior de créditos.
Com efeito, a sentença que aqui fosse proferida, de reconhecimento do direito de crédito da autora sobre a ré Patrícia, não deteria a virtualidade de produzir qualquer efeito no âmbito do processo de insolvência, designadamente, em sede de pagamento a credores pelo produto da massa insolvente, na medida em que não foi submetido ao contraditório nem discutido com os demais credores que concorrem ao produto da liquidação da massa insolvente para satisfação dos respetivos créditos e, por isso, não lhes seria oponível, nem à massa insolvente. Razão pela qual se afirma e confirma a inutilidade da ação instaurada para o seu conhecimento. Inutilidade que decorre e é prevenida pelo art. 90º do CIRE que, sob a epígrafe Exercício dos créditos sobre a insolvência”, imperativamente estabelece que Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência. As vias processuais para o efeito previstas pelo CIRE correspondem às enunciadas pela sentença recorrida: reclamação de créditos a apresentar nos termos previstos pelo art. 128º do CIRE e a considerar na tramitação do apenso de reclamação e verificação de créditos previsto pelos arts. 129º e ss. do CIRE, e ação de verificação ulterior de créditos prevista pelos arts. 146º e ss. Procedimentos que, precisamente, cumprem a natureza concursal do processo de insolvência; desde logo, e porque todos concorrem ao produto da liquidação e a medida do pagamento de cada um depende da medida do pagamento dos demais, pela submissão da pretensão creditória de cada credor à sindicância e contraditório dos demais, que a presente ação não cumpre.
Com o que se conclui pela manutenção da decisão recorrida neste segmento, de absolvição da ré da instância relativamente ao pedido de reconhecimento dos direitos de crédito e de retenção.

2.Da verificação dos pressupostos constitutivos de direito de crédito sobre o réu

A sentença recorrida negou à recorrente o direito à restituição do sinal em dobro, no essencial, por considerar que este tem como pressuposto o incumprimento definitivo do contrato promessa ao abrigo do qual foi prestado e que, à data em que foi declarada a insolvência da ré/promitente vendedora (em 25.08.2020), não se verificava qualquer um dos respetivos pressupostos legais, mas tão só situação de mora no cumprimento. Conclusão que suportou nos seguintes fundamentos: do contrato não resulta que o decurso do prazo nele previsto para o seu cumprimento implicava o automático desinteresse do credor no posterior cumprimento do contrato; até à declaração da insolvência a autora não procedeu à interpelação admonitória prevista pelo art. 808º, nº 1 do Código Civil (CC) para fixação de prazo razoável aos promitentes vendedores para cumprirem o contrato sob pena de perda de interesse da promitente compradora; não existe perda de interesse da autora na prestação em consequência da mora do devedor, nem impossibilidade, nem recusa categórica do seu cumprimento pelos réus.
Neste enquadramento, e considerando a posterior declaração da insolvência da ré Patrícia Patrício, a sentença recorrida invocou o regime legal dos negócios em curso previsto pelos arts. 102º e ss. do CIRE, com fundamento no qual concluiu que é lícita a recusa do cumprimento do contrato promessa manifestada pelo AI, que a aplicação das regras do CIRE afastam, em qualquer hipótese, um eventual incumprimento por parte do Réu Rodrigues, que in casu não poderá actuar sozinho e, relativamente ao direito de crédito, que a autora não tem direito a ser ressarcida pelo dobro do sinal entregue nos termos do art. 442º do CC porque este tem como pressuposto o incumprimento definitivo do contrato, que não se verifica. Mais à frente, no seguimento do conhecimento da inutilidade superveniente da lide relativamente à ré declarada insolvente, considerou que tendo a autora procedido ao pagamento aos réus do valor de €10.000,00, tem direito à sua devolução, sob pena de enriquecimento sem causa”, invocou o art. 1691º, nº 1, al. a) do Código Civil, considerou a devolução do valor do sinal uma dívida comum e solidária do casal constituído pelos réus e que a autora tem direito a haver a devolução do sinal em singelo e, com estes fundamentos, condenou o réu a pagar à autora a quantia de €10.000,00 a título de devolução do sinal em singelo, acrescido dos juros legais desde a citação até integral pagamento.
A recorrente não põe em causa que o crédito a que se arroga tem como pressuposto o incumprimento definitivo do contrato nos termos considerados pela sentença recorrida, posição que corresponde à maioritária[5] e à qual se adere, dispensando aqui a discussão da posição que se basta com a simples mora, por desnecessária.
À apreciação do tribunal a recorrente opõe que o incumprimento definitivo se verificou no pressuposto da desnecessidade da interpelação dos réus para o efeito, alegando em fundamento que: i)-são os réus que nas cartas que dirigiram à Caixa Geral de Depósitos referem a intolerância da recorrente em manter a situação de incumprimento; ii)-o incumprimento definitivo ocorreu e por culpa dos réus porque a escritura deveria ter sido realizada no prazo de dois anos definido no contrato, até 02.11.2012, e, nesse prazo, os réus não expurgaram as hipotecas e a penhora que incidiam sobre o imóvel prometido vender; iii)-a autora não podia marcar a escritura porque os réus não entregaram a documentação necessária à sua celebração – escritura da propriedade horizontal, certidão de registo e licença de habitabilidade, iv)-nem a podiam entregar face à recusa da Caixa Geral de Depósitos em distratar as hipotecas, cancelar a penhora sobre o imóvel, e em aceitar a venda, que tornou impossível o cumprimento do contrato, v)-impossibilidade que relativamente ao réu resulta da perda do direito de propriedade sobre o imóvel por ter sido transferido pelo casal para a filha de ambos.
Sendo dado adquirido que as partes celebraram contrato promessa de compra e venda que não foi cumprido, cumpre aferir a qual das partes se imputa o não cumprimento, e a que título, se simples mora ou incumprimento definitivo, o que se faz antes de mais por recurso ao regime geral do cumprimento dos contratos e do contrato promessa. Sem prejuízo dos efeitos que os efeitos da declaração da insolvência da promitente vendedora sobre o contrato promessa são suscetíveis de produzir na relação jurídica por este constituída entre autora e réu, excluída a apreciação de mérito do pedido relativamente à insolvente, por princípio fica também excluída a aplicação das normas especiais previstas nos arts. 102º e ss. do CIRE que regulam os efeitos da declaração da insolvência sobre os negócios em curso anteriormente celebrados pelo insolvente, precisamente porque o réu não detém essa qualidade[6]. Por outro lado - e sem curar da questão da (indevida) apensação destes autos à insolvência e da sua posterior manutenção face à cognoscível inutilidade da lide relativamente à insolvente e, por isso, relativamente à massa insolvente (pressuposto determinante da competência do comércio por conexão previsto pelo art. 85º, nº 1 do CIRE), bem como relativamente ao pedido de reconhecimento de direito de garantia (vg. retenção) sobre bem apreendido para a massa insolvente (que, como se referiu, apenas pode ser exercido pelas vias processuais concursais especialmente previstas no CIRE, arts. 128º e ss., 141º e 146º e ss.) -, considerando que a declaração da situação de insolvência de um dos obrigados solidários não impede que o credor exerça judicialmente os seus direitos contra os demais, pela totalidade da divida[7], impõe-se a esta Relação o prosseguimento da apreciação do mérito do recurso relativamente ao réu por vinculada pelo caso julgado formal formado e pela impossibilidade de, nesta fase, conhecer da incompetência material do juízo e secção de comércio para conhecimento do mesmo (art. 97º, nº 2 do CPC).
O contrato promessa corresponde a contrato legalmente tipificado e definido no art. 410º do Código Civil como convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”, e é especificamente regulado pelos arts. 410º a 413º e 441º, 442º, 755º, nº 1, al. f) e 830º do Código Civil. A obrigação típica que dele emerge é de prestação de facto jurídico positivo, de execução instantânea, traduzida na emissão da declaração de vontade correspondente ou necessária à formação ou celebração do negócio prometido celebrar.
Dispõe o nº 1 do art. 762º do Código Civil (CC) O devedor cumpre a obrigação, quando realiza a prestação a que está vinculado. Em coerência e no seguimento do art. 227º, nº 1 do CC, que estabelece o dever de as partes atuarem de boa fé na negociação e formação dos contratos que se dispõem a celebrar entre si, acrescenta o nº 2 do art. 762º que No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé. A regra mais importante a observar no cumprimento da obrigação é a da pontualidade (pacta sunt servanda), que a lei enuncia a propósito dos contratos no nº1 do art. 406º do C.C. Diz tal normativo, que o contrato deve ser pontualmente cumprido, não só no sentido restrito de cumprido a tempo e horas, mas no sentido amplo de que todas as cláusulas contratuais devem ser observadas[8], o cumprimento deve coincidir, ponto por ponto,em toda a linha, com a prestação a que o devedor se encontra adstrito. Verifica-se então o incumprimento de uma obrigação (em sentido lato, abrangendo as situações de mora e de incumprimento definitivo) sempre que a respetiva prestação debitória deixa de ser efetuada nos termos adequados[9], sendo que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento da obrigação não procede de culpa sua, cfr. art. 799º, nº 1 do C.C., norma que estabelece uma presunção de culpa que o contraente incumpridor tem o ónus de ilidir.
Nos termos do art. 804º, nº 2 do C.C. o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação ainda possível não foi efetuada no tempo devido.[10]
No âmbito do contrato promessa a situação de mora no cumprimento gera para o promitente não faltoso a possibilidade de optar por uma de duas vias: ou pelo cumprimento coercivo do contrato, através da ação declarativa comum (constitutiva) para execução específica do contrato promessa a que alude o art. 830º do CC, através da qual obtém judicialmente a declaração negocial em falta e, assim, a formação do negócio prometido celebrar, o que logicamente pressupõe a manutenção do interesse do promitente não faltoso na celebração do contrato definitivo (interesse contratual positivo) e, assim, uma situação de mora; ou pelo exercício do direito de resolução nos termos dos arts. 432º e ss. do CC e reclamação do direito de crédito dele emergente. A resolução dos contratos em situação de incumprimento constitui instrumento jurídico de proteção dos interesses do credor, traduzida na faculdade de fazer cessar a relação contratual e, assim, os efeitos positivos dela emergentes, por decisão unilateral de uma das partes suportada ou justificada em determinados factos concretos posteriores à celebração do contrato.  Constitui um direito potestativo cujo exercício e reconhecimento a lei faz depender do incumprimento definitivo do contrato nos termos do art. 808º, nº 1 e 2 do CC e que, quanto aos seus efeitos, equipara à nulidade ou anulabilidade do negócio (art. 433º e s. e 289º do C.C.), institutos estes com típica eficácia ex tunc que, retroagindo os seus efeitos à data da celebração do contrato, colocam as partes na situação em que estariam se o contrato não tivesse sido celebrado, o que implica a restituição do que se prestou na perspetiva do cumprimento do contrato.
Desta regra – de mera restituição do prestado - excetuam-se as situações em que existe sinal, estabelecendo o art. 441º que No contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.
Não sendo elemento essencial do contrato, e sem que com ele se confunda, a convenção de sinal corresponde a elemento contratual acessório usual no âmbito dos contratos promessa de compra e venda, máxime, dos que têm por objeto a celebração de contrato de compra e venda de imóvel, normalmente constituído em dinheiro, como é o caso. Constitui obrigação secundária do contrato promessa, sem autonomia existencial relativamente a este e à obrigação principal que dele decorre, e de natureza real quanto à sua constituição, traduzida na entrega de uma coisa por um dos contraentes ao outro, que é posteriormente imputada na prestação emergente do contrato prometido que venha a ser celebrado ou, não sendo possível a imputação, restituída à parte que a prestou (art. 442º, nº 1 do CC).
A constituição de sinal acarreta importantes consequências ao nível do incumprimento da promessa, como decorre do estatuído pelo nº 2 do art. 442º do Código Civil. Assim, nos termos deste preceito legal, se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ao que a recorrente se arroga por referência ao sinal que entregou aos réus, no valor demonstrado de €10.000,00 com o qual a recorrente se conformou e que, diga-se, contrasta com os €100.000,00 que na petição alegou ter entregue para se arrogar a crédito sobre os réus no montante de €200.000,00. Assim, o direito de crédito a que a recorrente se arroga e que nesta instância reduziu a €20.000,00, tem em primeira linha como fundamento jurídico a convenção de sinal e de antecipação de pagamento de preço prevista no âmbito da celebração do contrato promessa, que foi por ela parcialmente cumprida com a entrega de €10.000,00.
Como se referiu, é posição maioritária na doutrina e na jurisprudência, e aceite pela recorrente, que o direito de crédito em benefício do contraente não faltoso só tem lugar com o incumprimento definitivo do contrato promessa e o exercício do direito potestativo de resolução do contrato em que aquele fica investido. Nos termos dos arts. 432º, nº 1 433º, 434º, 289º, nº 1, 801º, nº 2 e 808º do CC, só ao credor não faltoso que opta pelo direito potestativo de resolver o negócio por facto imputável à contra parte é que assiste o direito à repetição do que prestou e à indemnização, assistindo-lhe o direito de se ver colocado na situação em que se encontraria se o contrato não houvesse sido celebrado[11], ou ressarcido dos danos que não teria sofrido se o contrato tivesse sido cumprido[12].
O incumprimento definitivo verifica-se nas seguintes situações: impossibilidade de cumprimento, recusa de cumprimento, prazo absoluto ou essencial (prazo ‘fatal’), cláusula resolutiva expressa, e interpelação admonitória e perda do interesse do credor.[13]
Relativamente às quatro primeiras o incumprimento definitivo consuma-se com a verificação do facto que diretamente o determina - o facto que dá causa à impossibilidade, a manifestação da recusa de cumprimento do contrato por uma das partes, o termo do prazo absoluto, e a verificação do facto ao qual as partes convencionaram atribuir efeito resolutivo do negócio.
Nos termos do art. 801º, nº 1 do CC, a impossibilidade de cumprimento por facto imputável a uma das partes é equiparada a falta de cumprimento culposo, sendo que a impossibilidade pode ser material (vg. pelo desaparecimento ou destruição da coisa objeto da prestação devida pelo contrato prometido) ou jurídica (vg. por ausência de poder de disposição do bem prometido vender na esfera jurídica do promitente vendedor).
A recusa de cumprimento abrange a declaração expressa ou tácita de uma das partes de que não cumprirá ou não quer cumprir, situação que a jurisprudência equipara a incumprimento definitivo independentemente da perda de interesse da outra parte e por tornar inútil a interpelação do faltoso para cumprir. Nesse sentido, acórdãos da Relação do Porto de 24.09.2020 e da Relação de Lisboa de 24.11.2022, assim respetivamente sumariados: “III- O conceito de recusa de cumprimento não se restringe à declaração expressa de não querer cumprir, antes se compreendendo, em geral, nesse conceito todo e qualquer comportamento concludente que indique de maneira certa e unívoca que o devedor não pode, ou não quer, cumprir, devendo, quando tal se constate, ser, sem mais, considerado inadimplente de forma definitiva.”; I - Assumindo o contraente faltoso perante a outra parte uma conduta expressa e inequívoca de repúdio do contrato-promessa de compra e venda, em termos tais que não subsistam quaisquer dúvidas sobre a sua vontade (e propósito) de não outorgar o contrato prometido, tal comportamento, equiparado à inexecução da prestação dentro de prazo razoável, tem efeito extintivo do vínculo contratual.//II-Perante um tal posicionamento do devedor, de inequívoco e definitivo repúdio do contrato-promessa, qualquer interpelação cominatória da iniciativa do credor seria um acto inútil e destituído de justificação.//(…)//IV - Sendo o incumprimento imputável em exclusivo à parte que o prestou, a indemnização é ela própria a perda do sinal (artigo 442.º, n.º 2, 1.ª parte e n.º 4, do Cód. Civil).
Somente as duas ultimas situações de incumprimento definitivo pressupõem a prévia constituição em mora de uma das partes que, nos termos do art. 808º, nº 1 do CC, pode ser convertida em incumprimento definitivo: ou pela perda de  interesse da outra parte na celebração do contrato, objetivamente apreciada; ou, independentemente da perda de interesse, através da interpelação da parte constituída em mora para cumprir o contrato no prazo (razoável) suplementar por aquela indicado, sob pena de se considerar definitivamente incumprido. Conforme é sugerido pela epígrafe do art. 808º - Perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento – a falta de cumprimento no prazo suplementar fixado ad hoc pela parte não faltosa é legalmente equiparada a incumprimento definitivo por recusa de cumprimento.
Em qualquer caso, A responsabilidade do devedor [faltoso] só é excluída se este provar que a violação não lhe é imputável, por ter sido devida a causa estranha à sua vontade, como se houve caso de força maior, ou culpa de terceiro ou do credor.[14]
Revertendo ao caso é ponto assente que em 02.11.2010 as partes celebraram contrato promessa pelo qual se obrigaram reciprocamente a celebrar contrato de compra e venda de imóvel livre de ónus e encargos até 01.11.2012 e pelo preço de €450.000,00, e que essa promessa não foi cumprida na medida em que cada uma das partes não chegou a emitir as declarações negociais prometidas que permitisse o encontro de vontades capaz de formalizar o contrato de compra e venda prometido. Em causa está a qualificação dessa falta como simples mora ou incumprimento definitivo, a sua imputação aos réus, e as consequências da mesma.
Alega a recorrente que à data da declaração da insolvência da ré promitente vendedora já se verificava incumprimento definitivo do contrato imputável aos réus:
i)-Por referência à interpelação admonitória que a decisão recorrida considerou não existir, alega que face aos factos descritos sob os pontos 7 e 8 (os quais descrevem os documentos que os réus se obrigaram a entregar até ao momento da outorga da escritura prometida e que não foram por eles entregues) o tribunal não podia considerar a não interpelação dos réus para a realização da escritura publica porque foram os próprios réus que em outubro de 2012 informaram a CGD que a promitente compradora não estava disposta a esperar mais tempo para a realização da escritura pública (cfr. facto 22). Tese que não colhe porque, para além de aquela corresponder a declaração emitida pelos réus na gestão dos seus próprios interesses, no âmbito das suas relações jurídicas com terceiro, e dirigida a esse terceiro, do seu teor apenas poderia interpretar-se que àquela data os réus pressupunham como adquirida a falta de interesse da recorrente na celebração do contrato de compra e venda, sendo que essa constitui causa de incumprimento definitivo autónoma da interpelação admonitória, com a qual não se confunde ou dilui, e daquela comunicação não consta referido que os réus foram interpelados nesses termos pela recorrente. Na definição e síntese sumariada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.06.2022, reiterada no acórdão de 28.03.2023, a interpelação admonitória prevista pelo o art. 808º, nº 1 do CC constitui uma intimação formal, dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo.” e “deve conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo. Acrescenta em sede de fundamentação que Assim, através da fixação de um prazo peremptório, obtém-se uma clarificação definitiva de posições.//(…)//(…) sendo que essa interpelação admonitória é, na feliz expressão de Antunes Varela[13], “uma ponte obrigatória de passagem para o não cumprimento (definitivo) da obrigação.”.
A autora não alegou nem documentou que decorrido o prazo convencionado para a celebração do contrato prometido (até 01.11.2012) formalizou e dirigiu interpelação aos réus para cumprirem o contrato promessa em determinado prazo nos termos legalmente exigidos pelo art. 808º, nº 1, 2ª parte, pelo que não ocorre incumprimento definitivo com esse fundamento. Ausência de interpelação, admonitória ou qualquer outra que, de resto, é coerente com a situação jurídica em que a recorrente se colocou imediatamente a seguir à outorga do contrato promessa através da sua apresentação e subsequente declaração em situação de insolvência, considerando os efeitos patrimoniais que desta decorrem para o devedor insolvente, e que manifestam a má fé processual da recorrente em atribuir ao teor daquela comunicação à Caixa Geral de Depósitos a aceitação, pelos réus, da imputação da frustração da vontade da recorrente em celebrar o contrato de compra e venda prometido, por bem saber que ela própria estava legalmente impossibilitada de o fazer e de pagar o preço acordado. Questão que infra se retomará.
ii)- Por referência ao prazo convencionado no contrato promessa alega a recorrente que até 02.11.2012 os réus não expurgaram as hipotecas e a penhora que incidiam sobre o imóvel. Como é referido na sentença, o contrato promessa limitou-se a prever a celebração da escritura até 01.11.2012 sem outra menção a respeito desse prazo e sem que o demais clausulado permita extrair e justificar que as partes não pretenderiam celebrar o contrato prometido após o seu termo, que permitisse qualificá-lo como prazo absoluto, no sentido de o seu decurso determinar automática e imediatamente o incumprimento definitivo do contrato. Ao invés, da expressa previsão do direito a execução específica, que pressupõe uma situação de mora no cumprimento do contrato, resulta que as partes projetaram a possibilidade de o mesmo ser cumprido após o decurso do prazo por ele fixado. Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.03.2015, IV- Não resultando dos autos que as partes – ao terem fixado o prazo de 60 dias, a contar do contrato-promessa, para a celebração da escritura pública do contrato prometido – o tenham feito sob os auspícios da inderrogabilidade absoluta, é de concluir pela presença de um prazo fixo relativo, conducente a uma situação de simples mora. Assim, em abstrato o facto apontado seria suscetível de, quando muito, conduzir à constituição dos réus em situação de mora, conforme prevê o art. 805º, nº 2, al. a)[15] do CC. Porém, sequer detém essa virtualidade posto que, sem prejuízo da promessa de venda do imóvel livre de ónus e encargos até 01.11.2012, nada foi especificamente previsto no contrato a respeito do prazo ou da antecedência com que os réus deveriam proceder à extinção ou cancelamento dos constituídos sobre o imóvel prometido vender, sendo que nesse âmbito a experiência comum revela que na venda de bens onerados com hipoteca é prática usual utilizar o preço recebido no ato da venda para proceder ou contribuir para o seu distrate. Acresce, como a própria recorrente alega nos autos, que nunca foi designada data para celebração do contrato prometido, obrigação secundária que sobre ela impendia mas que, como já se aflorou, não estava em condições de cumprir com seriedade.
iii)-Considerações que se estendem à entrega dos demais documentos (certidão de registo, licença de habitabilidade e escritura de propriedade horizontal que, com exceção desta ultima, são acessíveis a qualquer um) - não resulta do contrato que os réus estavam obrigados a proceder à sua entrega antes da marcação da escritura e/ou que só então a recorrente diligenciaria ou poderia diligenciar pela sua marcação, realçando que, ainda que assim fosse, conforme consta dos factos não provados, não resultou demostrado que a recorrente os solicitou aos réus e que estes recusaram a sua entrega.
iv)-Em conjugação com os argumentos enunciados em ii), a recorrente mais invocou a impossibilidade do cumprimento do contrato face à recusa da Caixa Geral de Depósitos em distratar as hipotecas. Independentemente da configuração em que se enquadre a alegada impossibilidade – como impossibilidade jurídica de cumprimento da venda do imóvel livre de ónus e encargos prometida pelos réus, ou como perda de interesse da recorrente na compra do imóvel onerado com garantias – a questão é que a mesma só subsistiria enquanto subsistissem as hipotecas que, como é curial, a respetiva beneficiária iria manter enquanto subsistissem as causas que justificaram a sua constituição, as obrigações que as mesmas se destinavam e destinam a garantir. O que vale por dizer que o que releva não é a recusa da CGD em distratar as hipotecas, mas a verificação ou não das condições que o permitissem; o que, ainda assim, não teria a virtualidade de prejudicar a necessidade de a recorrente converter a mora em incumprimento definitivo através da realização de interpelação admonitória, no caso, ao promitente vendedor, por esta corresponder a ponte obrigatória de passagem para incumprimento definitivo da obrigação (da prestação de emissão de declaração de venda de imóvel livre de ónus e encargos) para, precisamente, clarificação definitiva de posições”, obviando assim a dúvidas e indefinições quanto à vontade, condições, possibilidade ou disponibilidade de cada um dos promitentes para celebrar o contrato prometido.
Questão que a realização da justiça do caso concreto impõe seja apreciada numa visão alargada e conjugada dos termos do contrato promessa, e outro para que remete, das obrigações por eles previstas, e das condutas e posturas adotadas pelas partes com repercussão no cumprimento do primeiro. Como é referido no acórdão da Relação de Coimbra de 18.03.2014 Numa questão de cumprimento/incumprimento duma obrigação, seja ela emergente dum contrato-promessa ou de qualquer outro contrato, acabamos sempre por ser remetidos para a questão da determinação clara do conteúdo do comportamento debitório a que o promitente ficou vinculado, revestindo, muitas vezes, esta questão, no quadro do contrato-promessa, particular melindre e dificuldade. E porque, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2005, qualquer desvio do clausulado representa um incumprimento, não pode deixar de se ter em conta a respectiva repercussão no todo contratado.
Assim,
- Para além da obrigação principal de celebração do contrato prometido, importa considerar que as partes mais convencionaram que:
até abril de 2012 a recorrente entregaria aos réus o montante de €100.000,00 a título de preço e de sinal, sendo €10.000,00 naquela data (02.11.2010), que os réus receberam, €15.000,00 até 15.12.2010, €25.000,00 até 31.03.2011, e €50.000,00 até 30.04.2012;
a marcação da escritura de compra e venda cabia à recorrente;
até à data da escritura cabia aos réus entregar à autora a documentação para o efeito necessária;
no prazo de 30 dias a contar da assinatura do contrato a recorrente tomaria posse do imóvel prometido vender - o que os réus cumpriram com a entrega do imóvel à recorrente, que nele passou a residir – e, a partir desse facto e até à celebração do contrato definitivo, a recorrente tomaria de arrendamento o imóvel prometido vender nos termos e condições estabelecidas em contrato de arrendamento outorgado na mesma data do contrato promessa – que as partes efetivamente celebraram.
- Por contrato de arrendamento celebrado na mesma data as partes expressamente previram que o valor da renda devida pagar mensalmente pela recorrente aos réus (no valor de €1.500,00, que depois reduziram para €1.000,00) por transferência para conta bancária titulada pelo réu na Caixa Geral de Depósitos, poderia sofrer variação para mais ou para menos, de acordo com as alterações do spread contratualizado pelos Senhorios junto da Caixa Geral de Depósitos.
- Aquando da celebração dos referidos contratos a recorrente já tinha outorgado procuração forense e requerido apoio judiciário (em 29.10.2010) para apresentação à insolvência, que requereu, alegando exercer a atividade de agente imobiliária e ter dívidas de €1.259.546,00, insolvência que foi declarada por sentença de 15.11.2010, que prosseguiu para liquidação e, após rateio, foi encerrada por despacho de 29.03.2016.
- No âmbito desse processo a recorrente mais requereu incidente de exoneração do passivo restante, que foi inicialmente deferido por despacho de 21.03.2014, que fixou como rendimento excluído da obrigação de cessão de rendimentos o correspondente a um salário mínimo regional.
- A recorrente não entregou aos réus os reforços do sinal convencionados pelo contrato promessa, no montante total, até abril de 2012, de €90.000,00, nem pagou uma única renda devida pela fruição do imóvel prometido vender.
- Entretanto, em 11.03.2013 a CGD instaurou execução contra os réus para cobrança dos créditos hipotecários, que liquidou pelo montante de capital de cerca de €592.000,00 acrescido de juros vencidos desde 17.09.2011, na qual foi penhorado o imóvel objeto da compra e venda prometida celebrar que, no âmbito das diligências para venda, obteve apenas uma proposta de aquisição, apresentada pela exequente e no valor de €467.500,00.
- No âmbito da referida execução a recorrente arrogou-se a direito sobre o imóvel, não com fundamento no contrato promessa de compra e venda, que ali se absteve de invocar, mas apenas com fundamento no contrato de arrendamento que na mesma data celebrou com os réus.
- A referida execução foi extinta na sequência de acórdão da Relação de 07.06.2018, que julgou procedente a oposição à execução que à mesma foi deduzida pelos executados.
Arrepiando caminho, adianta-se que o descrito circunstancialismo é revelador do incumprimento definitivo do contrato promessa imputável à recorrente, seja porque adotou i) conduta incompatível com as obrigações que por ele assumiu, seja porque ii) tal conduta justifica a perda do interesse dos réus na celebração do contrato prometido.
i)-Muito sinteticamente, como é sabido a declaração da insolvência produz efeitos sobre o devedor, privando-imediatamente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência, que assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (art. 81º, nºs 1 e 4 do CIRE). E tem efeitos sobre o património do devedor, desde logo sobre os bens que o integram, que passam a constituir a massa insolvente, incluindo os adquiridos na pendência do processo (art. 46º, nº 1 do CIRE), e sobre as relações jurídicas constituídas por contratos bilaterais celebrados pelo devedor anteriormente à sentença de declaração da insolvência e em vigor à data em que é proferida, que o devedor fica inibido de executar, cabendo ao administrador da insolvência decidir pelo seu cumprimento ou recusá-lo (arts. 102º e ss.). Efeitos que inibem o devedor de cumprir contratos bilaterais em curso e proíbem-lhe a realização de pagamentos ou a satisfação, por qualquer outra via, de direitos patrimoniais dos seus credores à margem do processo de insolvência, sob pena de cometimento do ilícito de favorecimento a credor integrador, no mínimo, de causa qualificativa da insolvência como culposa e de fundamento para indeferimento, recusa, ou revogação, do benefício da exoneração do passivo restante (arts. 186º, nº 1, 238º, nº 1, al. e), 243º, º 1, al. b), 244º, nº 2 e 246º do CIRE). Efeitos que se estendem e permanecem na pendência do período de cessão do rendimento disponível autorizado no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, que proíbe o exonerando de fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário, e de criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
Daqui decorre que ao apresentar-se à insolvência, que foi declarada por sentença de 15.11.2010, em data manifestamente próxima da celebração do contrato promessa a recorrente colocou-se em situação jurídica que a impossibilitou de dar cumprimento às obrigações – principal (celebrar compra e venda), acessória (marcar escritura para o efeito), e secundária (reforços do sinal no valor total de €90.000,00 entre dezembro 2010 e abril de 2012) - que por aquele assumiu perante os réus. E mais do que isso, sabendo que as não iria cumprir logo na data em que as assumiu na medida em que pelo menos 4 ou 5 dias antes tinha já designado apresentar-se à insolvência, conforme veio a fazer, declarando passivo superior a €1M e requerendo o incidente de exoneração do passivo restante, que foi deferido por despacho de março de 2014 que lhe autorizou o período de cessão, então ainda com a duração de 5 anos e que, por isso e por princípio, se estenderia até março de 2019, sendo que durante esse período estava onerada com a obrigação de entregar à fidúcia todos os rendimentos que excedessem o valor do salário mínimo regional, impedindo-a de dispor de quantias mensais para além daquele valor.
Circunstancialismo que, com racional objetividade e em conformidade com os critérios de interpretação previstos pelo art. 236º, nº 1 do CC, impõe e impunha a qualquer um concluir, máxime aos réus promitentes vendedores, que quando a recorrente com eles celebrou aquele contrato não era sua intenção cumpri-lo porque, para além da referida situação de indisponibilidade em que ficou relativamente aos seus bens (incluindo quantias monetárias nos valores previstos no contrato promessa) e relações jurídicas patrimoniais em vigor à data da declaração da insolvência, àquela data já não tinha meios para cumprir com passivo anteriormente consolidado e pelo qual se declarou responsável, de valor superior a €1M. Conduta e circunstancialismo que, para além de objetivamente revelador da má fé da recorrente na formação do contrato, que celebrou com reserva mental (art. 244º do CC), exprime a vontade de não querer ou de não poder cumprir o contrato e, assim, a recusa de cumprimento tacitamente manifestada pela postura e comportamento que adotou imediatamente antes e/ou a seguir à celebração do contrato promessa, de predisposição de se apresentar à insolvência, que consumou, determinante, por si só e conforme supra exposto, do imediato incumprimento definitivo daquele contrato por facto imputável à recorrente escassos dias após a sua celebração[16].
Conclusão que é confirmada/reforçada pelo facto de no âmbito da execução que em fevereiro de 2013 a CGD instaurou contra os réus a recorrente se ter abstido de exercer qualquer direito sobre o imóvel que ali foi penhorado com fundamento no contrato promessa de compra e venda (designadamente, o direito de retenção que aqui invoca), tendo-se limitado a invocar o contrato de arrendamento no âmbito de diligência para venda realizada em abril de 2014 e, assim, a ‘mera’ qualidade de arrendatária, circunstância da qual se deduz que a essa altura a própria recorrente não o assumia em vigor ou, pelo menos, legitimaria que assim fosse pelos réus assumido. O que mais surge reforçado pelo facto de a recorrente se ter conformado com a projetada venda do imóvel à exequente, que só não foi consumada por ação processual dos réus e, assim, por facto ou circunstâncias estranhas e à margem da vontade e ação da recorrente que, dessa forma, manifestou ter desistido de adquirir o imóvel pela via acordada com os réus - através da celebração do contrato prometido.
ii) Ainda que não se entendesse pela equiparação da apresentação à insolvência a recusa de cumprimento do contrato promessa, sempre se imporia concluir que, considerando os pressupostos e os efeitos da declaração de insolvência, Um cidadão normal colocado na posição do[s réus] tinha toda a legitimidade para se desinteressar do negócio.[17].
Em conjugação com o descrito circunstancialismo, determinante de justificada perda de interesse dos réus na sua celebração, mais acrescem: o teor do ponto 3 da cláusula 2ª, a efetiva celebração do contrato de arrendamento, os termos em que as partes previram a determinação da renda mensal devida pagar pela recorrente aos réus até à celebração da escritura de compra e venda (e concomitante pagamento do remanescente do preço, no pressuposto do cumprimento dos reforços do sinal em dezembro 2010, março 2011, e abril de 2012, no montante total de €90.000,00), e a subsequente resolução pela CGD dos contratos de mútuo celebrados pelos réus com hipoteca sobre o imóvel, que a ré alegou desconhecer à data em que celebrou o contrato promessa mas que o teor da cláusula 4ª do contrato de arrendamento não confirma. Circunstâncias que, no seu conjunto, revelam que é abusivo esgrimir a manutenção das hipotecas, que os elementos dos autos sequer permitem afirmar que os réus sempre estariam impossibilitados de cancelar caso a recorrente cumprisse em toda a linha o que perante eles se comprometeu a cumprir.
Com efeito, o facto de o tribunal recorrido ter julgado não demonstrado que os réus não celebrariam o contrato promessa se não fosse celebrado o contrato de arrendamento para que remete a cláusula 2ª daquele contrato (facto não provado J), tanto não arreda a inequívoca coligação, correlação ou relação funcional que as partes conscientemente estabeleceram entre um e outro contrato quando os celebraram e nos termos em que os celebraram, e, destes, com as dívidas dos réus à CGD garantidas por hipotecas sobre o imóvel e prestações bancárias que no âmbito das mesmas os réus estavam adstritos a cumprir; sob pena, em ultima análise e como é por todos sabido – sendo que a recorrente exercia a atividade de agente imobiliária -, do vencimento da totalidade do capital mutuado em dívida com fundamento em incumprimento e execução das hipotecas para o seu pagamento. Os termos daquelas cláusulas permitem estabelecer uma conexão funcional e de dependência entre o cumprimento desse contrato, pela autora, e a prometida venda do imóvel livre de ónus e encargos, pelos réus. Relembrando-se o teor da prevista no contrato de arrendamento -  A renda mensal é de € 1.500,00 podendo sofrer variação para mais ou para menos, de acordo com as alterações do spread contratualizado pelos Senhorios junto da Caixa Geral de Depósitos, vencendo-se no primeiro dia útil de cada mês a que respeita o pagamento, e deverá ser paga até ao 8° dia útil do mês a que respeitar, por transferência bancária para a conta cujo NIB 00….. da Agência do Funchal da CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, conta titulada pelo Senhorio. –, é a própria autora que no art. 8º da petição inicial alega e assume que enquanto não fosse realizada a escritura publica (…) seria celebrado contrato de arrendamento.”, sendo que o teor daquela cláusula, e contrariamente ao que a recorrente terá pretendido convencer[18], deixa à evidência que a entrega do imóvel à recorrente, que os réus cumpriram, visava e tinha como contrapartida renda mensal que por aquela cláusula estes tacitamente declararam destinar ao pagamento, total ou parcial, da prestação mensal por eles devida cumprir no âmbito das dívidas que oneravam o imóvel prometido comprar e vender, afetação que é reforçada pelo meio de pagamento indicado, através de transferência para conta titulada pelo réu na CGD, instituição titular da hipoteca[19].
Ora, com a declaração da insolvência da recorrente ficou prejudicado o recebimento dos reforços do sinal – que os réus poderiam afetar à amortização das dívidas hipotecárias e, se assim fosse, permitiria por si só reduzir o capital em dívida de cerca de €592.000,00 para €500.000,00 -, como ficou prejudicada a interpelação da recorrente para os cumprir no tempo acordado, por inútil face aos efeitos substantivos e processuais da declaração da insolvência (o que mais reforça a valoração da apresentação da promitente compradora à insolvência como recusa de cumprimento). Por outro lado, se a recorrente tivesse cumprido as rendas a que se obrigou, até à data acordada para celebração da escritura publica teria proporcionado aos réus mais cerca de €23/24.000,00 para, de acordo com a vontade que manifestaram no contrato, afetar ao pagamento das prestações bancárias devidas à CGD, pagamento que os réus deixaram de cumprir em setembro de 2011 e que conduziu à resolução dos mútuos e penhora do imóvel pela CGD para satisfação do crédito total deles emergente.
De todo o exposto resulta como certo que a apresentação e declaração da insolvência da recorrente impossibilitou o cumprimento dos reforços do sinal, a interpelação da recorrente para o seu cumprimento e, inclusive, a interpelação admonitória para a celebração do contrato prometido, relembrando-se que a marcação (séria) da escritura a cargo da recorrente estava igualmente prejudicada por estar prejudicada a possibilidade de a celebrar e de pagar o preço prometido; situação gerada com a insolvência declarada 13 dias depois de celebrado o contrato promessa e, sucessivamente, com o deferimento da exoneração do passivo restante em março de 2014. Por sua vez, no âmbito da estratégia e expectativas legítimas formadas pelos contratos, o incumprimento dos reforços do sinal e das rendas que a recorrente se obrigou a pagar aos réus até à celebração da escritura pública, são objetivamente aptos a contribuir para o não pagamento das prestações bancárias devidas pelos réus, com prejuízo para o interesse destes na celebração do contrato prometido que - como é revelado pelos embargos que deduziram à execução com fundamento na não integração no PERSI -, seria evitar a resolução dos mútuos e a execução do imóvel para seu cumprimento. A apresentação da ré à insolvência depois de operada a transmissão do imóvel para a exclusiva propriedade desta revela também que os réus não teriam em mira dar ao imóvel um destino que prejudicasse os interesses dos seus credores, e que terá sido nesse intuito, de cumprimento do passivo que onerava o imóvel, que celebraram o contrato promessa e o contrato de arrendamento com a recorrente. Ao mesmo tempo não causa perplexidade a inação dos réus para reaverem a posse do imóvel, considerando que em 2013 foi objeto de penhora, que se manteve até 2018, sendo que a presente ação foi instaurada em 2019 e em 2020 a ré apresentou-se à insolvência com o claro intuito de nele se proceder à venda do imóvel para satisfação do crédito hipotecário pré-existente à data da celebração do contrato promessa e conhecido da recorrente.
Nestes termos, para além da assunção da conduta adotada pela recorrente como vontade de não querer cumprir o contrato promessa, e do facto de o não poder efetivamente cumprir na sequência da sua apresentação e declaração de insolvência, por si só determinante do incumprimento definitivo do contrato promessa por facto imputável à recorrente, mais se justifica a perda do interesse dos recorrentes na celebração do contrato prometido, mais não fosse, por terem fundados motivos para assumir que a recorrente nunca quis, ou logo desistiu, de o celebrar atendendo à má fé – falta de lealdade, correção e lisura - que revelou na formação e na execução dos acordos que com eles celebrou, com prejuízo para os réus e em benefício ilegítimo da recorrente, traduzido na fruição do imóvel que era propriedade dos réus ao longo de mais de 13 anos, desde novembro/dezembro de 2010 até ao presente, mediante o pagamento realizado em 2010 de apenas €10.000,00 - que entregou a título de sinal e conferiu aparente seriedade aos compromissos que declarou assumir, mas sem intenção de cumprir -, quando lhe era exigido que durante todo esse tempo tivesse pago mais de €150.000,00 a título de rendas (consideradas à razão mensal de €1.000,00). Conclusão que, aproveita-se, independentemente da imputação do incumprimento definitivo a uma ou a outra parte, só por si afastaria o enriquecimento sem causa dos réus fundado no recebimento do único montante que a recorrente lhes entregou, e que contrasta com o conjunto das obrigações que perante eles assumiu e com o benefício que retirou das relações que com aqueles estabeleceu – o valor da fruição de imóvel para habitação que se prolonga e acumula desde há 13 anos.
Com o que se conclui pelo incumprimento definitivo do contrato promessa imputável à recorrente, que confere aos réus a faculdade de fazerem seu o montante de €10.000,00 que daquela receberam para sinalização de um contrato de compra e venda que não foi celebrado, antes de mais, por impossibilidade da recorrente, decorrente da sua apresentação e declaração em situação de insolvência e, ainda que assim não fosse, pela perda de interesse dos réus imputável a conduta contratual leviana da recorrente.
Apesar do aparente caleidoscópio da jurisprudência produzida nesta matéria –imputação do incumprimento do contrato promessa a uma ou outra parte e a que título –, o que ela revela é a riqueza da singularidade de cada caso na multiplicidade de variáveis que a realidade da vida oferece. Com esse pressuposto, o resultado aqui alcançado encontra conforto em vários acórdãos publicados, a saber,

Do Supremo Tribunal de Justiça:
- de 23.06.2022 - II.- Há incumprimento definitivo (…) quando durante a mora o credor perde o interesse na prestação (art. 808º, n° 1, I parte), o que ocorre quando a mesma deixa objectivamente de ter utilidade para si (art. 808º, n° 2), apreciado objectivamente à luz dos princípios da boa fé, segundo critérios de razoabilidade; - quando o próprio devedor declara, em termos sérios e definitivos, que não irá cumprir (declaração de não cumprimento) e o credor, em consequência disso, considera a obrigação definitivamente incumprida.;//(…)//VI.- A interpelação admonitória é, porém, dispensada quando a parte contratante a quem a mesma seria endereçada teve uma conduta que, para além de atentatória da boa fé contratual, se mostra reveladora de clara intenção de não querer cumprir o contrato – ou seja, quando ocorre um incumprimento definitivo do contrato-promessa em resultado da antecipada percepção de que o contrato prometido não será concretizado, mediante a apreciação do comportamento activo ou omissivo da contraparte.// VII.- A boa fé – que está presente, quer na preparação como na formação do contrato (art. 227.º do C. Civil), quer, também, no cumprimento das obrigações e no exercício do direito correspondente (art. 762.º, do mesmo Código) – é um princípio que constitui uma trave mestra, certa e segura da nossa ordem jurídica, vivificando - a por forma a dar solução a toda a gama de problemas de cooperação social que ela visa resolver no campo obrigacional.
- de 11.04.2022 (excertos da fundamentação) - É relativamente comum referir-se que o incumprimento definitivo, imputável ao devedor, abarca as condutas diretamente impossibilitantes do cumprimento e as condutas omissivas em que o credor falta ao cumprimento com a consequente perda de interesse do credor ou sem aproveitar uma última oportunidade através do mecanismo da chamada interpelação admonitória (casos estes, a que se refere o art. 808.º do C. Civil, de conversão da mora em incumprimento definitivo,).
Efetivamente, diz-se que o incumprimento definitivo pode resultar da recusa antecipada, categórica e ilegítima de cumprimento; e que, nos casos de contratos que apresentam uma estrutura de formação progressiva (como é o caso do contrato-promessa), a lesão contratual do incumprimento pode traduzir-se numa declaração do devedor anunciadora da sua recusa em vir a cumprir o contrato.
Coloca-se a ênfase nas palavras do devedor – na declaração recetícia do devedor ao credor, manifestando-lhe, espontânea e voluntariamente, o propósito de fuga ao vínculo contratual – sem prejuízo da prática de atos materiais ou jurídicos poderem ser reveladores inequívocos do desejo de repudiar o compromisso assumido (v. g., a alienação a terceiro do bem prometido vender).
Como refere Brandão Proença[7], “(…) a vontade negativa do devedor pode também ser retirada de factos significantes ativos ou omissivos, de natureza material ou jurídica, como sucederá nos casos em que o empreiteiro abandone a obra, o trabalhador fuja do local de trabalho (…) ou o devedor negligencie os preparativos do cumprimento (atraso comprometedor no adimplemento de um contrato-promessa ou de outro contrato com termo essencial), não afaste dificuldades colocadas por terceiro, destrua o bem devido ou viole, mesmo, o contrato através da alienação do objeto prometido vender.”
Seja como for, tem que se tratar duma declaração recetícia (ou dum comportamento) que tenha como caraterísticas ser suficientemente clara, unívoca, precisa, séria, definitiva, concludente e categórica sobre o propósito/intenção do devedor não cumprir: tem que ser uma declaração ou comportamento que crie na outra parte a convicção que o devedor não realizará a prestação.
Corresponde ao entendimento desenvolvido por Calvão da Silva[8], para quem “o devedor não é livre de programar e declarar, por palavras e/ou atos, que não quer cumprir, não só pela traição que substanciaria da confiança depositada pelo credor no cumprimento (…). Não há, portanto, razão para manter o credor vinculado, até ao vencimento, a uma relação jurídica que, em virtude de declaração séria, certa e segura, ante diem, de não cumprir do devedor, perdeu a força originária e desapareceu com vínculo em cuja atuabilidade final o sujeito passivo possa confiar para satisfação plena e integral do seu interesse, razão existencial da obrigação. É exato, por isso, configurar a declaração antecipada de não cumprir (ou o comportamento inequívoco demonstrativo da vontade não cumprir…) como incumprimento, pressuposto suficiente de consequências jurídicas imediatas, como a exigibilidade do cumprimento e a execução específica do contrato-promessa, se o credor nisso ainda tiver interesse, ou a própria resolução do contrato e, em geral todos os remédios ou sanções previstas contra o incumprimento.
(…) (hipótese esta, de opção pela resolução, em que a referida declaração/comportamento do devedor dispensa o credor dos ónus, constantes do art. 808.º do CC, de provar a perda de interesse ou de fixar um prazo razoável mas perentório, ónus esses de observância normal para converter a mora em incumprimento definitivo).”
- de 21.01.2021 - III.- Importa ainda incumprimento definitivo a atitude do contraente da qual resulta, expressa ou tacitamente, a intenção de não cumprir o contrato-promessa.//IV.- O incumprimento definitivo por parte do promitente vendedor confere à parte contrária o direito a resolver o contrato, bem como a fazer sua a quantia entregue a título de sinal. […] Tem-se igualmente sustentado que essa interpelação admonitória se torna desnecessária quando a parte adoptou uma atitude da qual resulta, expressa ou tacitamente, a intenção de não cumprir o contrato-promessa ­ ­– cfr., por exemplo, o acórdão de 23 de Novembro de 2017, proc. n.º 212/12.4TVLSB.L1.S1.
- de 23.11.2017 (proc. nº 212/12.4TVLSB.L1.S1) - VI- Independentemente da estipulação, ou não, de um prazo pelas partes e da sua natureza, em face de um comportamento do devedor que exprima inequivocamente a vontade de não cumprir a obrigação principal, verifica-se, desde logo, um quadro de incumprimento definitivo.//VII- A recusa tanto pode ser expressa e categórica como pode ser valorada a partir de outras atitudes inequívocas e concludentes daquele comportamento, como seja a dedução em juízo de um pedido de restituição do imóvel objecto do contrato-promessa pelos herdeiros do promitente-vendedor, o que legitima o promitente-comprador a recorrer às sanções previstas para o incumprimento do contrato-promessa, designadamente, a restituição do sinal em dobro nos termos do art. 442.º do CC.
- de 15.02.2005 (excertos da fundamentação) - A perda do interesse do credor é apreciado objectivamente, o que significa que o valor da prestação deve ser aferido pelo tribunal em função das utilidades que a prestação teria para o credor, tendo em conta, a justificá-lo, «um critério de razoabilidade própria do comum das pessoas» e a sua correspondência à «realidade das coisas» (cfr. PESSOA JORGE, "Ensaio sobre os Pressupostos da Resp. Civil", pp. 20, nota 3; GALVÃO TELLES, "Obrigações", 4ª ed., pp. 235; Ac. STJ, 21/5/98, BMJ, 477 - 468)
É certo que pressuposto da resolução é, em regra, o incumprimento da obrigação principal, a realização do contrato prometido.
Quando não esteja em causa o incumprimento dessa obrigação, haverá que averiguar, em concreto, qual a relevância da prestação incumprida na economia do contrato, em termos de proporcionar ao credor os efeitos jurídicos e patrimoniais tidos em vista com a conclusão do contrato.
Sem perder de vista que qualquer desvio do clausulado representa um incumprimento, não pode deixar de se ter em conta a respectiva repercussão no todo contratado.
A par de obrigações acessórias ou secundárias que intervêm no evoluir do contrato e que, como tais, se apresentam como instrumentais do exacto cumprimento da obrigação principal e da satisfação do interesse do credor, nela se projectando, outras há que surgem como autónomas ou "desvinculadas" da obrigação da contraparte, como sucede com as prestações que se traduzem em efeitos antecipados do contrato prometido (cfr. ANA PRATA, "O Contrato-promessa e o seu Regime Civil", pp. 632 e 697).
Tais obrigações não se integram no sinalagma específico do contrato-promessa, razão por que só devem considerar-se fundamento de resolução quando se detecte um vínculo funcional entre o cumprimento dessas prestações e as demais obrigações emergentes do contrato em termos tais que o incumprimento de umas justifica o ulterior incumprimento das outras (acs. STJ de 16/12/93 e 12/7/01 in CJ I-III-185 e IX-III-30.
Numa palavra, só deverão admitir-se como causa legal de resolução os inadimplementos em que se verifique um nexo de instrumentalidade entre as prestações que afecte a evolução da execução contratual pondo em crise a viabilização do seu objectivo final.
Se uma das partes, por incumprimento seu, frustra a utilidade prevista e esperada pode fazer desaparecer a utilidade do negócio.
Quando tal suceda "deve, em termos gerais, ser considerada grave a inexecução (...) que torne inviável ou impossibilite o credor de aplicar o objecto da prestação ao uso especial que tinha em mira", seja a mora a fazer perder a utilidade esperada ou quando, durante a mora, ocorra o facto que torne inviável ou frustre o fim da prestação que faz parte do plano de validade negocial como motivo juridicamente relevante (vd. BAPTISTA MACHADO, "Obra Dispersa", I, 146).
Da Relação de Lisboa, de 24.11.2022 - De realçar, quanto a este ponto, que quando esteja em causa o incumprimento bilateral vigora a regra do «tu quoque», ou seja, “a parte infiel ao contrato não pode, em princípio, derivar direitos da violação praticada pela contraparte ao mesmo contrato”, designadamente quando o pedido de resolução se mostre abusivo (cf. Brandão Proença, “Do incumprimento Do Contrato-Promessa Bilateral”, 1987, pp. 95 e ss.).
(…) ao não realizar o reforço do sinal até 18 de Julho de 2019 e ao não marcar a escritura de compra e venda que deveria ter lugar até 31 de Julho de 2019, a Autora incumpriu o clausulado no CPCV;
Destarte, sendo o incumprimento do CPCV à parte que constitui o sinal, no caso a Autora e promitente compradora, têm os Réus o direito a fazerem suas as quantias que lhes foram entregues a esse título (art.º 442.º, n.º 2, 1.ª parte, do Cód. Civil).
Da Relação de Coimbra, de 13.06.2023 - 5.- O princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento – de correção, honestidade e lealdade – impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar sub-princípios, regras e ditames ou limites objetivos, postulando certos modos de atuação em relação, seja na fase pré-contratual, seja ao longo de toda a execução do programa contratual, seja mesmo, extinto o contrato, na liquidação do relacionamento entre as partes.
7.- Se o promitente comprador invoca, infundadamente, para efeitos resolutivos – tendo comunicado a resolução ao promitente vendedor –, a perda de interesse na prestação e o incumprimento contratual da contraparte, ocasionando, assim, a extinção do contrato, tem de concluir-se que incorreu ele, desse modo, em incumprimento definitivo, equivalente à recusa perentória e definitiva de cumprir, ocasionando a perda do sinal prestado.
8.- Num tal caso, é lícita, extinta a promessa, a ulterior venda do imóvel a terceiro.
Da Relação do Porto, de 24.09.2020 (citando acórdão do STJ de 03.03.2005) - O conceito de recusa de cumprimento não se restringe à declaração expressa de não querer cumprir, antes se compreendendo, em geral, nesse conceito todo e qualquer comportamento que indique de maneira certa e unívoca que o devedor não pode, ou não quer, cumprir, devendo, quando tal se constate, ser, sem mais, considerado inadimplente de forma definitiva.
Por outro lado, tendo em conta que no negócio jurídico bilateral emergem direitos e deveres para cada uma das partes, a avaliação do incumprimento contratual não se confina aos deveres principais adstritos às respetivas partes, estendendo-se, necessariamente, aos deveres acessórios ou complementares ínsitos nas estipulações contratuais e aos que decorrem do desígnio da própria vinculação contratual, isto é, aos deveres inerentes à dinâmica negocial assentes no princípio de boa-fé e num critério ético-normativo de razoabilidade.
Daí que, na avaliação das situações de não cumprimento há que proceder a uma análise circunstanciada do caso concreto levando em conta o tipo de negócio e os interesses em jogo, a qualidade das partes e os usos gerais do comércio jurídico.

De todo o exposto resulta o não reconhecimento do direito de crédito a que a recorrente se arroga sobre o réu por lhe ser imputável o incumprimento definitivo do contrato promessa, com consequente improcedência da apelação da primeira e procedência da apelação do segundo, que torna inútil, por prejudicado, o conhecimento da nulidade que o réu recorrente imputa à sentença recorrida, sendo certo que a sua eventual procedência não implicaria a anulação da sentença para prévio cumprimento do contraditório do réu posto que, conforme se aflorou, com base nos elementos de facto disponíveis nos autos, sempre se concluiria pela inexistência dos pressupostos do enriquecimento sem causa da banda do réu e, assim, pela revogação da sentença também com este fundamento.

V–Decisão

Em face de todo o exposto, as juízas desta secção acordam em julgar improcedente a apelação da autora e procedente a apelação do réu, com consequente revogação da decisão recorrida no segmento em que o condenou no pagamento da quantia de €10.000,00 à autora, que se substitui por outra, de absolvição do réu desse pedido.

Custas da ação e da apelação a cargo da recorrente (art. 527º, nº 2 do CPC).



Lisboa, 05.03.2024



Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Isabel Fonseca



[1]Suprimiu-se o demais texto que neste ponto ficou a constar na redação da sentença por corresponder a reprodução parcial do texto que já nele constava e de parte do texto da cláusula quarta e, por isso, a manifesto lapso de escrita.
[2]Da sentença recorrida consta cláusula 27, mas só por manifesto lapso de escrita, que aqui se corrigiu, posto que nenhum dos contratos (promessa e de arrendamento) contém cláusula 27 e porque aquele facto corresponde ao alegado sob o art. 13 da contestação que, precisamente, refere os nºs 2 e 3 da cláusula segunda.
[3]Requerimento do AI de 14.06.2022.
[4]É a própria autora que, referindo-se à sobredita execução, no art. 18º da petição inicial alega que “Nestes autos, a aqui Autora, invocou a sua situação como arrendatária, processo que se encontra pendente, no âmbito do previsto no n.º3 da cláusula 2ª do contrato.
[5]Gisela César, em Os efeitos da insolvência sobre os contratos promessa em curso, Almedina, 2017, p. 125 e s. e, por todos, Calvão da Silva, ob. cit., p. 82 e ss., e em especial a resenha do problema na doutrina e na jurisprudência a p. 87 e ss. Na jurisprudência mais recente, entre outros, acórdãos da RC de 13.06.2023, do STJ de 28.03.2023
[6]Não consta alegado nem documentado nos autos que o réu tenha sido declarado insolvente no âmbito de outro processo, sendo certo que, sendo-o, o destino da presente ação relativamente ao mesmo não poderia deixar de ser o determinado relativamente à ré – extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
[7]Acórdão da RP de 29.02.2016.
[8]Pires de Lima e Antunes Varela CC Anotado, I, Coimbra Editora, vol., 4º ed. revista e atuaizada, p. 373.
[9]Entre muitos outros, Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 6ª ed. p. 907.
[10]Nesse sentido, entre outros, Henrique Mesquita, Obrigações reais e ónus reais, ed. Almedina, 2000, p. 223, e Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, Almedina, 2010, p. 161-163.
[11]Vd. Antunes Varela, Obrigações, 2ª ed. p. 104 e ss. e Galvão Telles, Obrigações, 3ª ed. p. 420
[12]Vd. Paulo Mota Pinto, “Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo”, Coimbra Editora, 2008
[13]Cfr. acórdão do STJ de 28.03.2023, acima citado.
[14]Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 3ª ed. revista e atualizada, p. 63.
[15]Estabelece que há mora do devedor independentemente de interpelação se a obrigação tiver prazo certo.
[16]É certo que a possibilidade de celebrar o contrato foi transferida para o administrador da insolvência da autora, mas tenha-se presente que a finalidade da insolvência liquidatária é liquidar património, e não adquiri-lo, além de que, do preço de €450.000,00 convencionado para o imóvel, a autora só havia antecipado o pagamento de €10.000,00 e, em 2013, a única proposta que foi apresentada para aquisição do imóvel em sede de execução foi a da própria exequente hipotecária e por valor próximo daquele, €467.500,00, pelo que corresponderia a negócio que não só não permitiria perspetivar vantagem para a massa insolvente da autora, como esta ainda corria o risco de ficar prejudicada caso não conseguisse vender por preço que cobrisse o da aquisição e os encargos com a mesma.
[17]Acórdão do STJ de 20.05.2015, apud acórdão do STJ de 21.01.2021
[18]Do ponto L. da decisão de facto consta não provado que O contrato de arrendamento serviu apenas para contratar água e electricidade.
[19]Nas palavras do acórdão do STJ de 18.03.2014,O declaratário é obrigado a investigar, num plano de boa fé e tendo em consideração todas as circunstâncias por ele sabidas ou cognoscíveis, o que o declarante quis; este, por seu lado, é também obrigado pela boa fé a deixar valer a declaração no sentido que o declaratário, mediante cuidadosa verificação, tinha de atribuir-lhe. Todavia, na interpretação de um contrato deve buscar-se não apenas o sentido de declarações negociais separadas e alheadas do seu contexto negocial global, “mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo, como acção de autonomia privada e como globalidade da matéria negociada ou contratada para além dos deveres secundários, inerentes à própria obrigação principal, porque instrumentais do seu exacto cumprimento, podem os contraentes alargar o conteúdo obrigacional devido (e constante do texto do contrato promessa) à convenção de obrigações autónomas, como tipicamente acontece no contrato-promessa com efeitos antecipados (…).