Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
211/21.5T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO
CLÁUSULA RESOLUTIVA
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
PRAZO
MORA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
SINAL
RESTITUIÇÃO DO SINAL
PROMITENTE-VENDEDOR
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGAR A REVISTA
Sumário :
I - Na jurisprudência deste Supremo Tribunal (Acórdãos de 02-11-2006, proc. n.º 06B3822, de 17-11-2015, proc. n.º 2545/10.5TVLSB.L1.S1 e de 10-12-2019, proc. n.º 386/13.7T2AND.P2.S1), tem-se entendido que o conteúdo da declaração intimativa do credor deve conter os seguintes elementos: 1) A intimação para o cumprimento; 2) A fixação de um termo perentório para o cumprimento; 3) A admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente incumprida, se não se verificar o cumprimento dentro do prazo fixado.

II - A cominação de que a obrigação se terá por definitivamente incumprida, se não se verificar o cumprimento dentro do prazo fixado, tem ser aplicada à obrigação principal de realização do contrato prometido e não a obrigações acessórias.

III - Não estamos perante uma interpelação admonitória que converta a mora em incumprimento, se a cominação se reporta meramente à prestação de informações sobre os documentos necessários para a celebração da escritura.

IV - O art. 432.º, n.º 1, do CC prevê a resolução fundada na lei (resolução legal) e a resolução fundada em convenção (resolução convencional). A convenção/estipulação contratual através da qual as partes, de acordo com o princípio da autonomia privada, concedem a si próprias a faculdade de resolver o contrato quando ocorra certo e determinado facto (v. g., o não cumprimento duma concreta obrigação) dá-se o nome de cláusula resolutiva expressa.

V - Nos termos do art. 236.º, n.º 1, do CC, que fixa como critério da interpretação da declaração negocial o princípio da impressão do declaratário, concluímos que as cláusulas 6.ª e 7.ª do contrato-promessa constituem cláusulas resolutivas expressas, na medida em que afirmam, respetivamente, que se o alvará de loteamento não for emitido até 31-12-2018 e o distrate da hipoteca voluntária a favor da câmara municipal não for entregue também até 31-12-2018, os promitentes compradores poderão resolver o contrato de promessa, incorrendo o réu no dever de indemnizar os autores pelo sinal singelo ao abrigo da cláusula 6.ª ou no dobro do sinal ao abrigo da cláusula 7.ª.

VI - Assim, tendo os promitentes-compradores, a seu favor, duas cláusulas resolutivas expressas, podiam resolver o contrato, a partir de 31-12-2018, através da declaração escrita dirigida à outra parte (art. 436.º, n.º 1, do CC), sem ter de percorrer, para obter tal desiderato, o caminho do art. 808.º, n.º 1, do CC.

VII - A circunstância de os autores não acionarem de imediato o seu direito de rescisão convencional, revelando antes manter interesse na concretização do negócio e tendo inclusivamente intimado formalmente a contraparte a fornecer-lhe os elementos/informações necessários à instrução da outorga do contrato prometidos não torna a invocação do direito de resolução um comportamento censurável à luz da boa fé, nem um venire contra factum proprium, suscetível de integrar o instituto do abuso do direito (art. 334.º do CC).

VIII - O facto de existir uma cláusula resolutiva no contrato não retira ao credor a faculdade de exigir o cumprimento, nem o exercício desta faz caducar o direito de vir depois a declarar a resolução.

IX - A restituição do sinal em singelo apenas vigora quando está expressamente prevista no contrato como consequência do incumprimento do contrato promessa ou quando se verifica concorrência de culpas no incumprimento.

X - Estando prevista na cláusula 7.ª do contrato o dever de o promitente-vendedor, que deu causa ao exercício do direito potestativo extintivo de resolução do contrato pelos promitentes-compradores, restituir o sinal em dobro, não pode ser decidida a restituição do sinal singelo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório


1. AA e BB intentaram contra CC, no Juízo Local Cível ... - Juiz ... - do Tribunal Judicial da Comarca ..., a presente ação declarativa, sob a forma comum de processo, peticionando a declaração de resolução do contrato-promessa celebrado entre demandantes e demandado, com consequente condenação do Réu no pagamento da quantia de €40.000, correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescida de juros moratórios contados desde 12.01.2018 até efetivo e integral pagamento (que quantificam, à data da entrada da petição inicial em juízo, em € 4.804); subsidiariamente, peticionam seja declarada verificada a condição resolutiva prevista na cláusula 6.ª desse mesmo contrato-promessa, declarando-se tal contrato resolvido e, em consequência, a condenação do Réu a restituir-lhes €20.000, acrescidos de juros moratórios contados desde 12.01.2018 até efetivo e integral pagamento (que quantificam, à data da entrada da petição inicial em juízo, em €2.402).


Para qualquer dos casos, reclamam ainda a fixação de uma sanção pecuniária compulsória no montante de €50, por cada dia de atraso do Réu no cumprimento da obrigação de pagamento.


Para tanto, e em resumo, alegam que, por documento escrito outorgado em 12.01.2018, eles, Autores, prometeram comprar ao Réu, que lhes prometeu vender, um determinado prédio, que identificam, tendo-lhe eles, demandantes, entregado a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de €20.000.

Era sua intenção construir uma vivenda no prédio prometido comprar para lá passarem a habitar impreterivelmente no ano de 2020, facto de que deram conhecimento ao Réu.

Ficou contratualmente prevista a possibilidade de os demandantes resolverem o contrato celebrado quer caso até 31.12.2018 não fosse emitido o alvará de loteamento onde se integrava o prédio prometido comprar, neste caso com a restituição, pelo Réu, dos €20.000 pagos, quer caso até 31.12.2018 não fosse distratada uma hipoteca que incidia sobre o referido imóvel, neste caso assumindo o demandado a obrigação de restituir o sinal em dobro.

Na data de 31.12.2018 nem o alvará de loteamento estava emitido nem a hipoteca distratada, e que nunca o Réu lhes foi dando conhecimento das diligências encetadas com vista ao cumprimento das referidas condições, não obstante as suas insistências nesse sentido, em 23.09.2020 notificaram o demandado solicitando informação sobre a emissão do referido alvará bem como sobre os elementos necessários ao agendamento do contrato definitivo, sem que do Réu tivessem obtido qualquer resposta, pelo que em 24.10.2020 procederam à resolução do referido contrato-promessa através de carta registada com aviso de receção.

Apenas em 06.11.2020, e após a receção da carta resolutiva informou o Réu que o alvará de loteamento fora emitido em .../.../2020.

Quanto ao distrate da hipoteca, afirmam que o mesmo só foi efetuado em 06.10.2020.


2. Citado, contestou o Réu, pugnando pela total improcedência da ação.

Em abono da sua defesa, reconhecendo a celebração do contrato-promessa bem como a consagração das duas cláusulas resolutivas invocadas na petição inicial, mas negando que nunca tenha dado informações aos Autores sobre o estado das diligências que levava a cabo com vista ao cumprimento das obrigações assumidas, acrescentando que nunca foi interpelado pelos Autores para cumprir o contrato-promessa em causa, bem como que estes é que foram sempre atrasando a celebração do contrato prometido.


3. Realizada a audiência prévia foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância; foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, bem como foram admitidos os meios de prova.


4. Realizou-se a audiência de julgamento.


5. Posteriormente, o tribunal de 1.ª instância  proferiu sentença, nos termos da qual decidiu julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:

- Reconheceu a resolução do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 12.01.2018 entre Autores e Réu;

- Condenou o Réu no pagamento aos Autores da quantia de € 40.000, acrescida de juros moratórios contados desde 30.10.2020 até efetivo e integral pagamento, absolvendo-o do mais peticionado.


6. Inconformado, o Réu DD interpôs recurso da sentença, tendo o Tribunal da Relação decidido o seguinte:

«Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando, embora com fundamentação distinta, a sentença recorrida».


7. Novamente inconformado, veio o recorrente interpor recurso de revista do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que confirmou, com fundamento distinto, a sentença do tribunal de 1.ª instância, ao abrigo do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, formulando na sua alegação de recurso as seguintes conclusões:


«Face ao exposto impõe-se que a sentença recorrida seja revogada e substituída, pois:

A. Vem o presente recurso de revista interposto do douto acórdão que confirmou a sentença de primeira instância, embora com fundamentação distinta, e que julgou procedente a acção.

B. Os Autores intentaram contra o Réu, ora Recorrente, a presente acção declarativa, sob a forma comum de processo, peticionando, pela sua procedência, a declaração de resolução do contrato-promessa celebrado entre demandantes e demandado, com a consequente condenação do R. no pagamento da quantia de €40.000, correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescida de juros moratórios contados desde 12.01.2018 até efectivo e integral pagamento (que quantificam, à data da entrada da p.i. em juízo, em € 4.804); subsidiariamente, peticionam seja declarada verificada a condição resolutiva prevista na cláusula 6.ª desse mesmo contrato-promessa, declarando-se tal contrato resolvido e, em consequência, a condenação do R. a restituir-lhes €20.000, acrescidos de juros moratórios contados desde 12.01.2018 até efectivo e integral pagamento (que quantificam, à data da entrada da p.i. em juízo, em €2.402).

C. Foi, entretanto, proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, consequentemente: - Reconheceu a resolução do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 12.01.2018 entre AA. e R.; e Condenou o R. no pagamento aos AA. da quantia de €40.000 (quarenta mil euros), acrescida de juros moratórios contados desde 30.10.2020 até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do mais peticionado.

D. Entretanto, o Recorrente interpôs recurso de apelação, alegando que não houve qualquer incumprimento definitivo contratual da sua parte.

E. O Tribunal da Relação, entretanto, proferiu Acórdão que julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão de primeira instância, embora com fundamentação diversa: “(…) tendo os AA/apelados, a seu favor, duas cláusulas resolutivas expressas, podiam resolver o contrato, imediatamente, através da declaração dirigida à outra parte formalizada na carta datada de 24.10.2020 (art. 436.º, n.º 1 do CC), sem ter de recorrer e percorrer, para obter tal desiderato, o caminho do art. 808.º, n.º 1, do CC. Mostram-se, por conseguinte, verificados os pressupostos da resolução convencional. Nesta conformidade, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente com a sentença recorrida, é de julgar improcedente a apelação.”.

F. A discordância do Recorrente, na interposição do recurso de revista, prende-se essencialmente com matéria de direito.


DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO

G. O contrato promessa assume-se como um contrato preliminar ou preparatório do negócio definitivo, um contrato de segurança ou de garantia do negócio prometido.

H. O contrato deve ser pontualmente cumprido e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei (art. 406.º, n.º 1 do CC), designadamente, mediante a sua resolução fundada na lei ou em convenção (art. 432.°, n.º 1, do CC).

I. A simples mora não confere ao contraente fiel o direito (potestativo) de pedir a resolução do contrato, mas tão só o direito de pedir a reparação dos prejuízos que o retardamento causou ao credor – cfr. art. 804.º, n.º 1 do CC.

J. Assim, o direito de resolução está sempre condicionado a uma situação de inadimplência (no caso de impossibilidade culposa – art. 801º) e, à semelhança do que sucede com a generalidade dos contratos, também a resolução legal do contrato-promessa pressupõe uma situação de incumprimento definitivo que resultará normalmente da conversão de uma situação de mora através de uma das vias previstas no art.º 808° do CC (seja pela interpelação admonitória, seja pela perda, objetivamente considerada, do interesse do credor).

K. O regime geral dos contratos – designadamente as regras atinentes à falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor, entre elas as dos arts. 798º, 801º, 804º e 808º do CC – é aplicável ao contrato-promessa de compra e venda, tal como resulta do disposto genericamente no art. 410º, n.º 1, do CC, tendo este, no entanto, um regime específico (constante dos arts. 442º e 830º do CC) ao nível das sanções aplicáveis ao não cumprimento do contrato, quando tenha havido lugar à constituição de sinal (convencionado ou presumido – arts. 440º e 441º do CC).

L. De acordo com o entendimento generalizado, na doutrina (cfr., neste sentido, entre outros, Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, (…), p. 98/103 e Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, p. 297; Antunes Varela, Sobre o Contrato-Promessa, p. 70, nota 1; Antunes Varela, RLJ, ano 119, p. 216, Almeida Costa, Contrato-Promessa, Uma síntese do Regime Actual, separata da ROA, ano 50, I, p. 54) e na jurisprudência (cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 22/06/2010 (relator Fonseca Ramos), de 11/02/2015 (relator Gabriel Catarino), de 19/05/2016 (relator Lopes do Rego), de 16/06/2016 (relator Pires da Rosa), de 13/10/2016 (relatora Maria da Graça Trigo), 2/02/2017 (relatora Maria da Graça Trigo) e de 30/11/2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira), todos disponíveis in www.dgsi.pt.), salvo se da interpretação da vontade negocial resultar diversamente, o regime legal do sinal é inaplicável em caso de simples atraso no cumprimento. De facto, só o incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa (e o consequente pedido resolutivo) dá lugar às cominações previstas no art. 442°, n. ° 2, do CC, não bastando, para o efeito, a simples mora [que é necessário transformar em incumprimento definitivo, nos termos gerais do art. 808° do CC], porquanto nada justifica que se excecione o contrato-promessa do regime geral aplicável à generalidade dos contratos.

M. Adianta-se, desde já, e salvo melhor opinião, que é o que sucede nos presentes autos.

N. A simples mora apenas constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (n.º 1 do art. 804º do CC) e não lhe confere, em princípio, o direito à resolução do contrato.

O. No caso de incumprimento do contrato promessa de compra e venda, a nossa lei abre dois caminhos ao contraente não faltoso: a) -a execução específica regulada no art. 830.º do C.C., havendo simples mora; b) - a resolução do contrato, havendo incumprimento definitivo, sendo que apenas este dá origem ao direito previsto no art. 442º, n.º 2 do C.Civil.

P. O incumprimento definitivo, na previsão do art. 808º do C.Civil, verifica-se quando o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considerando-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.

Q. A mora apenas legitima a resolução quando convertida em incumprimento definitivo (arts. 801º, n.º 2 e 802º, n.º 2 “ex vi” do art. 808º, todos do CC), quer pela perda objetiva de interesse do credor ou, então, pelo recurso à interpelação admonitória, com a fixação de prazo razoável, apenas dispensável se houver uma recusa antecipada do devedor em cumprir.

R. Como decorrência do regime da transformação da mora em incumprimento definitivo (art. 808º do CC), no direito civil português o princípio geral é o de que o prazo de cumprimento de uma obrigação não constitui termo essencial. A falta de respeito pelo prazo de cumprimento da obrigação, que se presume estabelecido a favor do devedor (art. 779º do CC), origina uma situação de mora (art. 805º, nº 1, al. a), do CC) que apenas se transforma em incumprimento definitivo por uma das duas supra enunciadas vias previstas no art. 808º.

S. Voltando ao caso concreto, constata-se que o douto Acórdão recorrido entendeu que, ao contrário do decidido na sentença de primeira instância, não houve, face à materialidade fáctica apurada, conversão da mora em incumprimento definitivo, por parte do Réu, uma vez que não se encontravam preenchidos os requisitos da mencionada interpelação admonitória.

T. Ainda assim, o Tribunal da Relação manteve a decisão de primeira instância, uma vez que “tendo os AA/apelados, a seu favor, duas cláusulas resolutivas expressas, podiam resolver o contrato, imediatamente, através da declaração dirigida à outra parte formalizada na carta datada de 24.10.2020 (art. 436.º, n.º 1 do CC), sem ter de recorrer e percorrer, para obter tal desiderato, o caminho do art. 808.º, n.º 1, do CC”.

U. O Recorrente, contudo, discorda desse entendimento. Vejamos,

V. Divergindo da sentença recorrida, consideramos que a facticidade apurada supra enunciada não é suficiente para dar como preenchido o referido fundamento legal.

W. Na esteira dos doutos Acórdãos do STJ de 10.12.2019 (Raimundo Queirós), do STJ de 10.07.2008 (Alberto Sobrinho), do STJ de 02.02.2017 (Graça Trigo), de 19.12.2018 (Olindo Geraldes), do TRG de 15.10.2020 (Alcides Rodrigues) e do TRG de 04.06.2009 (ROSA TCHING), in www.dgsi.pt., entre muitos outros, a interpelação admonitória deve obedecer a três requisitos cumulativos, quais sejam: i) a intimação para o cumprimento; ii) a fixação de um termo perentório para o cumprimento (que, no caso, foi proposto pela própria ré na sequência do prazo mais curto indicado pelo autor, acabando aquele por ser ratificado pelo contraente não faltoso); e iii) a declaração admonitória ou cominatória de que a mora seria convertida em incumprimento definitivo e o promitente comprador deixava, definitivamente, de ter interesse no negócio, com a consequente devolução do sinal recebido, em dobro, se não se verificasse o cumprimento dentro daquele fixado.

X. Desde logo, entendemos que, perante a factualidade dada como provada, nenhum dos três aludidos requisitos se encontra preenchido, como aliás confirmou o Acórdão recorrido.

Y. Consequentemente, nenhum relevo assume, para efeitos de interpelação admonitória e consequente transformação da mora em incumprimento definitivo, a referida carta de 23.09.2020, enviada pelos Autores ao Réu, na medida em que não se encontra preenchido nenhum dos três requisitos cumulativos para converter a mora do Réu em incumprimento definitivo.

Z. Sem prescindir, Recorrente também não concorda com o teor do Acórdão recorrido que considerou que “tendo os AA/apelados, a seu favor, duas cláusulas resolutivas expressas, podiam resolver o contrato, imediatamente, através da declaração dirigida à outra parte formalizada na carta datada de 24.10.2020 (art. 436.º, n.º 1 do CC), sem ter de recorrer e percorrer, para obter tal desiderato, o caminho do art. 808.º, n.º 1, do CC”.

AA. Com efeito, a questão que, desde logo, se coloca consiste em saber se as aludidas cláusulas de resolução e toda a demais matéria factual assente, fizeram incorrer o Recorrente em incumprimento definitivo, justificativo da resolução do contrato promessa efectuada pelos Autores, com a consequente devolução do sinal em dobro.

BB. Tem sido posição consolidada da doutrina e da jurisprudência que só o incumprimento definitivo e culposo comina o regime previsto no art. 442.º, n.º 2, do CC, não se bastando a lei com uma situação de retardamento ou incumprimento para além do tempo de cumprimento da obrigação, ou seja, da ocorrência de mora de qualquer dos contraentes (vide, entre muitos outros, o recente Acórdão do STJ de 08-03-2016,relatado pelo Cons. Gabriel Catarino, no proc. nº 1100/13.2TBSLV.E1.S1).

CC. Cabe, ainda, saber se, decorridos os prazos indicados no contrato-promessa, era ainda possível o cumprimento futuro da prestação.

DD. A regra é a de que havendo dúvidas sobre como deve ser entendido o prazo fixado pelas partes, seja o mesmo considerado como um termo subjectivo relativo (Calvão da Silva, “Sinal e Contrato Promessa”, Almedina, 12.ª Edição, pág. 144).

EE. No caso, as partes relativamente à convenção de prazo fixaram no próprio texto do contrato promessa datas certas, cabendo saber se as mesmas, na economia do contrato e face à factualidade provada, devem ser consideradas como um termo fixo absoluto ou relativo nos termos a que acima nos referimos.

FF. O critério que tem seguido a jurisprudência é o de aquilatar da essencialidade do prazo em face das circunstâncias do caso, descortinando na vontade das partes se o decurso desse prazo implica uma clara intenção de considerar o contrato como não cumprido e, desse modo, fundar um juízo de incumprimento, ou ainda possibilita o seu cumprimento tardio.

GG. É essa, nomeadamente, a posição sustentada no Acórdão do STJ de 02-06-2009 (relatado pelo Cons. Fonseca Ramos, no proc. nº136/09.2YFLSB), segundo o qual “no contrato-promessa, a questão de saber qual a natureza do prazo (fixo ou não) é de natureza interpretativa tendo de ser indagada a vontade das partes, tendo em conta, mormente, o contrato em si e o objectivo económico que visa, a par do equilíbrio contratual postulado pelas regras da boa-fé.”

HH. Ora, aqui e agora, não resulta que a estipulação das aludidas datas certas fixadas no contrato promessa tenham como característica uma essencialidade absoluta impeditiva da existência do interesse na realização do negócio em momento ulterior.

II. Na verdade, a própria rapidez de todo o processo, as vicissitudes que sempre podem surgir na formalização de um negócio prometido que tem por objecto um imóvel e a circunstância de os Autores terem esperado quase dois anos após as aludidas datas, inculcam a ideia de que o mero decurso do prazo não implicaria, só por si, uma inderrogabilidade absoluta do prazo.

JJ. Indemonstrada a essencialidade dos prazos de cumprimento constantes das cláusulas 6.ª e 7.ª do contrato-promessa, o direito de resolução do contrato, seja ele fundado no incumprimento ou no esgotamento do prazo acordado, deve ter-se por excluído.

KK. Ademais, aquando da resolução do contrato levada a cabo pelos Autores, já se encontravam reunidos e cumpridos todos os requisitos legais e burocráticos necessários à celebração da escritura prometida, designadamente as exigências previstas nas cláusulas 6.ª e 7.ª do contrato promessa: obtenção de licença e distrate da hipoteca.

LL. Acresce ainda que – facto importante -, os Autores, por força do contrato (cfr. alínea d) dos factos provados), tinham a incumbência de marcar o dia e hora da escritura pública de compra e venda, obrigação que nunca cumpriram até hoje.

MM. Ainda sem prescindir, subsidiariamente, caso V. Exas. Entendam que não assiste razão ao Recorrente e que os Recorridos poderiam resolver o contrato promessa, ainda assim os Recorrentes não aceitam que sejam condenados a devolver o sinal em dobro(40.000,00€),mas apenas o sinalagma singelo (20.000,00€).

NN. Vejamos, o incumprimento do estipulado na cláusula 6.ª – emissão do alvará de loteamento – dá o direito de os Autores reclamarem o sinal em singelo. Ao passo que o incumprimento do estipulado na cláusula 7.ª – distrate da hipoteca – dá o direito de os Autores reclamarem o sinal em dobro.

OO. Ora, os Autores enviaram uma primeira carta ao recorrente solicitando informações, apenas e só, sobre a emissão do alvará de loteamento, nada sendo dito ou questionado relativamente ao distrate da hipoteca.

PP. Sendo que, posteriormente, e quando já estavam reunidos todos os requisitos legais e burocráticos para a celebração da escritura, os Autores resolvem o contrato promessa alegando que não fora emitido o alvará de loteamento, mas também que não teria havido distrate da hipoteca, para assim poderem reclamar a devolução do sinal em dobro em que o Recorrente foi condenado.

QQ. Salvo melhor opinião, atento o exposto, sobretudo atendendo a que na primeira missiva os Autores nada referem relativamente ao distrate da hipoteca, por um lado, e porque aquando da resolução já estavam reunidos todos os requisitos legais para a celebração da escritura, por outro,

RR. entende o Recorrente que nunca poderia ser condenado na devolução do sinal em dobro, ou seja, 40.000,00 €, direito que assistia aos Autores apenas e só pela cláusula 7.ª do contrato promessa e caso não tivesse sido distratada a hipoteca,

SS. mas apenas e só, quando muito, na devolução do sinal em singelo, previsto na cláusula 6.ª do contrato, referente à emissão do alvará de loteamento.

TT. Daí que a presente acção, salvo melhor opinião, deva ser julgada totalmente improcedente, ou, subsidiariamente, o Recorrido ser apenas condenado a devolver o sinal em singelo (20.000,00 €).

UU. A sentença recorrida violou, assim, os artigos 410.º, 437.º, 442.º, 790.º e ss. E 801.º, 804.º, 808.º e 830.º do Código Civil.


Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser revogado o douto acórdão recorrido e substituído por acórdão que julgue a acção totalmente improcedente, só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!»


8. Os recorridos notificados da alegação de recurso do recorrente vieram pronunciar-se em contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.

 9. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, doravante CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho).

Assim, as questões a conhecer são as seguintes:

I – Saber se a carta datada de 23-09-2020 constitui uma interpelação admonitória para o efeito de converter a mora em incumprimento definitivo, nos termos do artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil, com o efeito previsto no n.º 2 do artigo 442.º, também do Código Civil.

II – Saber se as cláusulas 6.ª e 7.ª do contrato-promessa constituem cláusulas resolutivas expressas, suscetíveis de gerar a resolução convencional do contrato, acompanhada do dever de restituição do sinal em dobro ou apenas do sinal singelo. 


Cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação

A – Os factos

- As instâncias deram como provados os seguintes factos:

a) Por escrito particular datado de 12.01.2018 o R. prometeu vender aos AA., que prometeram comprar àquele, livre de quaisquer ónus ou encargos, e pelo preço de €54.000, uma parcela de terreno do prédio rústico situado no Lugar ..., da União das Freguesias ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...00 de ... (...) e inscrito na matriz sob o art. 403.º, com a área de 35.333 m2, correspondente ao Lote 7 do Proc. de loteamento n.º .../18, com o Reg. n.º .../...8, de 10.01.2018, apresentado na Câmara Municipal ..., com a área de 836 m2, a confrontar do Norte com o Lote 8 do mesmo processo de loteamento, do Sul e Nascente com arruamento do loteamento do proc. n.º .../18 e do Poente com o R.;

b) O preço referido em a) seria pago:

- €20.000 através de transferência bancária, no prazo máximo de 4 dias úteis a contar da assinatura do contrato, a título de sinal e princípio de pagamento;

- €34.000 no acto da escritura de compra e venda;

 c) A escritura da compra e venda seria celebrada no prazo máximo de oito dias após a emissão do Alvará de loteamento do Proc. de Loteamento n.º 21/18, com o Reg. n.º 230/18, de 10.01.2018, apresentado na Câmara Municipal ...;

d) A escritura de compra e venda seria marcada pelos AA. em dia e hora a designar, avisando o promitente vendedor, ora R., por via postal registada, expedida com a antecedência mínima de oito dias, ou por qualquer outro meio mais expedito, devendo para tal o R. avisar os AA. da emissão pela Câmara Municipal do alvará de Loteamento referido em c) bem como fornecer todos os elementos necessários para o efeito;

e) Lê-se na cláusula 6.ª do documento referido em a) que “se o Alvará de loteamento a emitir pela Câmara Municipal ... do proc. de loteamento n.º 21/18, referido na cláusula 5.ª, não for emitido até 31 de Dezembro de 2018, os representados da 3.ª Outorgante [aqui AA.]. poderão rescindir o presente contrato promessa de compra e venda e no caso de rescisão receberão a quantia entregue como sinal e princípio de pagamento, ou seja, € 20.000,00 (vinte mil euros), acrescida dos respectivos juros”;

f) Lê-se na cláusula 7.ª do documento referido em a) que “Uma vez que incide sobre o prédio rústico identificado na cláusula 1ª uma hipoteca voluntária a favor da Câmara Municipal ..., com o fundamento de “Garantia das obras de infra-estruturas impostas pelo loteamento n.º 5/17, de 7 de março, emitido pela Câmara Municipal ...”, se até 31 de Dezembro de 2018, não houver distrate de hipoteca voluntária referente ao lote 7, referido na cláusula 2.ª, os AA. poderão rescindir o presente contrato promessa de compra e venda e no caso de rescisão receberão em dobro a quantia entregue como sinal e princípio de pagamento, ou seja, € 40.000,00 (quarenta mil euros), acrescida dos respectivos juros.”;

g) Os AA. no dia 16.01.2018, efectuaram a transferência da quantia de € 20.000;

h) O R. nunca informou os AA., nem por si, nem por intermédia pessoa, nomeadamente, através do Sr. EE, indicado pelo R. como seu representante, das diligências que iam sendo encetadas para a emissão pela Câmara Municipal do Alvará de Loteamento mencionado em c), nem sobre qualquer outro assunto relacionado com o dito contrato promessa de compra e venda, apesar das inúmeras insistências dos AA., limitando-se o referido representante do R., o Sr. EE, sempre que interpelado pelos AA., a dizer-lhes para não se preocuparem, que o processo de loteamento referente ao contrato promessa referido em a) estava a atrasar na Câmara Municipal ... porque o Engenheiro da referida Câmara Municipal responsável pelo assunto não gostava dele;

 i) Ante o referido em h), por carta registada datada de 23.09.2020 e nesse dia remetida e recepcionada pelo R. os AA. notificaram-no para no prazo máximo de 15 dias, a contar da recepção da carta e para evitar o recurso às vias judiciais, os informar quando fora emitido pela Câmara Municipal ... o alvará de loteamento mencionado em c), bem como lhes fornecer todos os elementos necessários para marcarem a escritura de compra e venda;

j) Por carta registada datada de 24.10.2020 e recepcionada pelo R. em 30.10.2020 os AA. comunicaram-lhe, entre o mais, que “No dia 20 de Setembro, por carta registada, solicitamos que, no prazo máximo de 15 dias, nos informasse quando foi emitido pela Câmara Municipal ... o alvará de Loteamento bem como nos fornecesse todos os elementos necessários para a marcação da escritura definitiva, sendo que até à presente data não obtivemos resposta.

Assim, uma vez que até 31 de Dezembro de 2018 não foi emitido o alvará de loteamento do Processo de loteamento n.º 21/18 com o Reg. n.º 230/18, de 10.01.2018, pela Câmara Municipal ... ao abrigo do estipulado na cláusula 6.ª do contrato promessa de compra e venda, e assim como também até 31 de Dezembro não houve distrate da hipoteca voluntária a favor da Câmara Municipal ... sobre o prédio rústico identificado na cláusula 1.ª do mencionado contrato promessa de compra e venda , nomeadamente referente ao lote 7, ao abrigo do estipulado na cláusula 7.ª do mesmo contrato, vimos por este meio rescindir o referido contrato promessa de compra e venda entre nós celebrado e solicitar o pagamento em dobro da quantia entregue como sinal e princípio de pagamento, ou seja, €40.000, acrescida dos respectivos juros , no prazo máximo de 8 dias para o seguinte IBAN (...)”.;

k) O R. respondeu à carta referida em i) por cartas remetidas aos AA. em 06.11.2020, comunicando-lhes que “Acuso a recepção da V/ carta, datada de 23.09.2020, cujo teor mereceu a minha melhor atenção.

Em resposta à mesma, informo que já foi emitido o alvará de loteamento com o n.º ...0. Este alvará foi emitido no passado dia 23.09.2020.

Assim sendo, e estando agora reunidas as condições para a marcação da escritura de compra e venda, vou comunicar à empresa para que proceda à marcação da mesma, conforme o estipulado na cláusula 8.ª do contrato promessa celebrado.”;

l) O alvará de loteamento mencionado em c) foi emitido em .../.../2020;

m) O distrate da hipoteca mencionado em f) foi efetuado em 06.10.2020.


- As instâncias deram como não provados os seguintes factos:

a) Que fosse imprescindível, para os AA. estarem a residir em 2020 em moradia construída no lote identificado em 1.1.a);

b) Que o R. conhecesse essa imprescindibilidade;

c) Que os AA., em finais de Setembro de 2020, tenham verificado que até àquela data ainda não tinha havido distrate da hipoteca voluntária mencionada em 1.1.f);

d) Que a remessa da carta mencionada em 1.1.j) tenha sido motivada pela constatação referida em 1.2.c);

e) Que em finais de Setembro de 2020 o R., ou alguém a seu mando, tenha comunicado verbalmente aos AA. que o alvará de loteamento havia sido emitido e a hipoteca distratada.


B – O Direito

1. Os Autores intentaram contra o Réu, ora Recorrente, ação declarativa, peticionando a declaração de resolução do contrato-promessa celebrado entre os Autores, na posição de promitentes compradores, e o Réu, enquanto promitente vendedor, com a consequente condenação deste no pagamento da quantia de €40.000, correspondente ao dobro do sinal prestado, acrescida de juros moratórios contados desde 12.01.2018 até efetivo e integral pagamento, por verificação da condição resolutiva aposta na cláusula 7.ª do contrato-promessa traduzida na emissão do distrate de hipoteca voluntária pela Câmara Municipal ...;

Pediram subsidiariamente, que fosse declarada a verificação da condição resolutiva prevista na cláusula 6.ª do contrato-promessa – a emissão de alvará de loteamento – reconhecendo-se tal contrato resolvido e, em consequência, a condenação do Réu a restituir-lhes €20.000, acrescidos de juros moratórios contados desde 12.01.2018 até efetivo e integral pagamento.


2. O tribunal de 1.ª instância declarou a resolução do contrato-promessa por incumprimento definitivo do réu (promitente vendedor), na sequência do envio de uma carta dirigida pelos promitentes compradores ao promitente vendedor (carta de 23-09-2020, referida na al. i) dos factos provados) e por este rececionada, que foi interpretada pelo tribunal como contendo uma declaração admonitória ou cominatória de que a obrigação se teria por definitivamente não cumprida, se não se verificasse o cumprimento dentro do prazo suplementar fixado.

Já o Tribunal da Relação entendeu que a carta de 23-09-2020 (facto provado i)) não podia ser interpretada como significando a fixação de um prazo cominatório para a realização da respetiva escritura pública de compra e venda.

O tribunal recorrido declarou, todavia, a resolução do contrato promessa, também com o efeito da devolução do sinal em dobro, por aplicação das cláusulas 6.ª e 7.ª do contrato promessa, qualificadas como cláusulas resolutivas expressas, conjugadas com a carta dirigida pelos autores ao réu, em 24-10-2020, e rececionada por este, em 30-10-202, conforme facto provado j).


Vejamos:

3. Os autores e o réu celebraram entre si, validamente, um contrato-promessa bilateral de compra e venda de um imóvel, com eficácia obrigacional (artigos 410º e 413º do CC).

Nos termos da alínea a) dos factos provados, ficou assente que, por escrito particular datado de 12.01.2018, o Réu prometeu vender aos Autores, que prometeram comprar àquele, livre de quaisquer ónus ou encargos, e pelo preço de €54.000, uma parcela de terreno do prédio rústico situado no Lugar ..., da União das Freguesias ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...00 de ... (...) e inscrito na matriz sob o artigo ...03.º, com a área de 35.333 m2, correspondente ao Lote 7 do Proc. de loteamento n.º .../18, com o Reg. n.º .../...8, de 10.01.2018, apresentado na Câmara Municipal ..., com a área de 836 m2, a confrontar do Norte com o Lote ... do mesmo processo de loteamento, do Sul e Nascente com arruamento do loteamento do proc. n.º .../18 e do Poente com o Réu.

Nos termos do artigo 410º, n.º 1 do Código Civil,  o contrato promessa consiste na “convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”, sendo-lhe aplicáveis as disposições legais que regulam o contrato prometido, excetuadas as que, pela sua própria razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato promessa.

A doutrina tem entendido que o contrato promessa tem como objeto um negócio jurídico (unilateral ou bilateral e de eficácia obrigacional ou real) e gera, necessariamente, uma ou duas obrigações de contratar, ou, por outras palavras, uma ou duas obrigações de emitir a declaração de vontade correspondente ao negócio prometido (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 309, Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, Almedina, 2001, 1993, p. 573 e Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 14ª ed., Almedina, Coimbra, p. 13.).

O objeto destas obrigações é uma prestação de facto jurídico positivo (uma prestação de facere jurídico), que consiste na emissão de uma declaração negocial destinada a celebrar o contrato prometido, a que corresponde o direito de crédito da contraparte de exigir o seu cumprimento.

Assim, na promessa bilateral de compra e venda, a obrigação a que os contraentes se obrigam é a de outorgarem, respetivamente, como comprador e como vendedor, num futuro contrato de compra e venda (contrato prometido ou definitivo).

O contrato-promessa surge assim como uma convenção completa, que se distingue do contrato subsequente e assume-se, pois, como um “contrato preliminar ou preparatório do negócio definitivo, um contrato de segurança ou de garantia do negócio prometido” (cfr. Calvão da Silva, ob. cit., p. 15.).


4. Os princípios vigentes na ordem jurídica civil quanto ao cumprimento dos contratos são fundamentalmente dois: o princípio pacta sunt servanda e o princípio da boa fé.  

Nos termos do primeiro, o contrato deve ser pontualmente cumprido e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei (artigo 406º, n.º 1, do Código Civil), designadamente, mediante a sua resolução fundada na lei ou em convenção (artigo 432°, n.º 1, do Código Civil).

Trata-se, no fundo, da consagração do velho princípio “pacta sunt servanda”, o qual deve ser entendido como significando que o contrato deve ser cumprido não apenas no aspeto temporal, mas em toda a linha, em todos os sentidos, “ponto por ponto” (cfr. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed. Coimbra Editora, p. 373).

O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (artigo 762º, n.º 1, do Código Civil), de acordo com a boa fé, enquanto regra de conduta, que vigora, não só no momento da celebração do contrato, mas também no da sua execução e até após a sua extinção. Nos termos do n.º 2 da citada disposição legal, “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé” (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil).

Salvo convenção, disposição legal ou uso em contrário, a prestação deverá ser efetuada integralmente e não por partes (artigo 763º do Código Civil).

Assim sendo, sempre que o devedor não cumpra a prestação a que está vinculado ou a tenha realizado em desrespeito de qualquer dos princípios referidos, estar-se-á perante uma situação de não cumprimento do dever obrigacional.

O devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que cause ao credor (artigo 798º do Código Civil).

Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua (artigo 799º, n.º 1, do Código Civil).

A culpa do devedor é apreciada em termos abstratos, pela diligência de uma pessoa média, em virtude da remissão para o artigo 487º, n.º 2, do Código Civil feita pelo artigo 799º, n.º 2, do mesmo diploma legal.


5. O conceito de não cumprimento abrange várias modalidades de não realização da prestação enquanto devida.

O incumprimento é uma figura heterogénea e vasta onde cabem (cfr. Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Estudos em Homenagem ao Prof. J.J. Teixeira Ribeiro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pp. 348/349):

a) O incumprimento definitivo, propriamente dito (artigos 798º e 799º do CC);

b) A impossibilidade de cumprimento (artigos 790º a 795º e 801º a 803º do CC);

c) A conversão da mora em incumprimento definitivo (artigo 808º, n.º 1, do CC);

d) A declaração antecipada de não cumprimento e a recusa categórica de cumprimento, antecipada ou não;

e) E, ainda, o cumprimento defeituoso.


 Como de forma muito clara e precisa se tem entendido nesta 1.ª Secção (acórdãos de 28-6-2011, processo n.º 7580/05. 2TBVNG.P1.S1) e de 28-01-2014 (processo n.º 954/05.OTCSNT.L1), o incumprimento definitivo (cuja eventual verificação haverá de relevar para efeitos da decisão a proferir) restringe-se a quatro situações: - Recusa de cumprimento (repudiation of a contract ou riffuto di adimpieri); Termo essencial (prazo fatal); Cláusula resolutiva expressa (impositiva de irretratibilidade); Interpelação admonitória, Perda de interesse do credor apreciada objetivamente.


A violação do dever de prestar, por causa imputável ao devedor, pode revestir uma dupla forma (consoante a prestação se torna definitivamente impossível ou se atrasa): o não cumprimento definitivo ou falta de cumprimento e a mora.

Esta segunda hipótese – mora do devedor (que é um simples incumprimento temporário) – verifica-se quando, por causa que lhe seja imputável (i.e., que provenha de culpa sua), a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido (artigo 804º, n.º 2, do Código Civil). O devedor não executou a obrigação quando ela se vence, mas poderá vir a executá-la mais tarde, dado que a prestação na sua forma originária continua a ser materialmente possível e o credor continua a ter interesse nela. Dá-se, então, um simples retardamento, demora ou dilação no cumprimento da obrigação, e não uma falta definitiva de realização da prestação debitória.

A simples mora apenas constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (n.º 1 do artigo 804º do Código Civil) e não lhe confere, em princípio, o direito à resolução do contrato.

No caso de incumprimento do contrato promessa de compra e venda, a nossa lei abre dois caminhos ao contraente não faltoso:

a) - a execução específica regulada no artigo 830.º do Código Civil, havendo simples mora;

b) - a resolução do contrato, havendo incumprimento definitivo, sendo que apenas este dá origem ao direito previsto no artigo 442º, n.º 2 do Código Civil.


6. Feito este enquadramento jurídico, importa agora indagar se as pretensões do réu/recorrente procedem, isto é, em síntese, se a resolução do contrato-promessa operada pelos autores e reconhecida pelas instâncias, embora com fundamentos diferentes, é infundada, ou em alternativa, caso proceda a resolução, se a consequência tem de ser a devolução do sinal em dobro ou do sinal singelo.

1.ª questão: saber se a carta datada de 23-09-2020 constitui uma interpelação admonitória para o efeito de converter a mora em incumprimento definitivo, nos termos do n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil, ou seja, saber se estamos perante uma causa de resolução legal do contrato-promessa.

Segundo a al. i) dos factos provados, esta carta foi registada com data de 23.09.2020 e nesse dia remetida e rececionada pelo Réu, que através deste meio o notificaram para, no prazo máximo de 15 dias, a contar da receção da carta, os informasse quando fora emitido pela Câmara Municipal ... o alvará de loteamento, bem como lhes fornecer todos os elementos necessários para marcarem a escritura de compra e venda, sob pena de recurso às vias judiciais (itálico nosso).

A interpelação admonitória consiste na fixação, pelo credor, de um prazo razoável e perentório, para que o devedor cumpra a obrigação, acompanhada da declaração intimativa de resolução automática do contrato.   

Tem-se entendido, na jurisprudência deste Supremo Tribunal (Acórdão de 02-11-2006, processo n.º 06B3822 e Acórdão de 17-11-2015, proc. n.º 2545/10.5TVLSB.L1.S1), que o conteúdo de tal declaração intimativa do credor deve conter os seguintes elementos:

1) A intimação para o cumprimento; 

2) A fixação de um termo perentório para o cumprimento;

3) A admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente incumprida, se não se verificar o cumprimento dentro do prazo fixado.


No mesmo sentido, veja-se o Acórdão deste Supremo Tribunal datado de 10-12-2019 (proc. n.º 386/13.7T2AND.P2.S1), em que, conforme respetivo sumário, se entendeu o seguinte:

«II - O credor, para converter a mora em incumprimento definitivo, tem de interpelar o devedor, intimando-o a cumprir a prestação, dentro de prazo razoável, fixado de acordo com as circunstâncias concretas do contrato a celebrar, com a advertência, muito clara, de que a falta da prestação, no prazo estabelecido, o fará incorrer em incumprimento definitivo da obrigação

III- A interpelação admonitória exige o preenchimento de três pressupostos: a existência de uma intimação para cumprimento, a consagração de um prazo peremptório, suplementar, razoável e exacto para cumprir, e a declaração cominatória de que findo o prazo fixado, sem que ocorra a execução do contrato, se considera este definitivamente incumprido».


A interpelação admonitória do devedor não constitui apenas um poder (ou faculdade) conferido ao credor, porque representa ao mesmo tempo um verdadeiro ónus que a lei lhe impõe para converter a mora do devedor em não cumprimento definitivo da obrigação, concedendo ao devedor nova chance de cumprir.  

Como afirma Nuno Pinto de Oliveira (in Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, p. 810), a interpelação admonitória deve ser qualificada, na esteira da jurisprudência alemã, como “princípio das duas oportunidades ou da segunda oportunidade”: «O devedor que não cumpre à primeira (a tempo) deve ter a oportunidade de cumprir à segunda – dentro de um prazo razoável depois do tempo (devido). Ou bem que a aproveita, cumprindo – e indemnizando o credor pelos danos ou prejuízos causados pelo seu atraso –, ou bem que não a aproveita, não cumprindo».

Assim, o direito potestativo previsto nos artigos 801º, n.º 2, e 802.º, n.º 1, do CC, só pode, em princípio, ser exercido desde que o devedor desaproveite duas oportunidades para cumprir e desde que se passe o segundo degrau (Ibidem, p. 811).

7. Regressemos ao caso concreto.

Analisando o teor objetivo da carta datada de 23-09-2020 decorre que estamos apenas perante um pedido de informações sobre a obtenção dos documentos necessários à marcação da escritura pública, surgindo a expressão “recurso às vias judiciais”, só por si e neste contexto, como insuficiente para que se considerem preenchidos os requisitos da interpelação admonitória.

A citada missiva versa sobre o cumprimento duma obrigação acessória a cargo do promitente vendedor, tida como pressuposto para habilitar os promitentes compradores a providenciarem pela marcação da escritura relativa ao negócio prometido. Mas a cominação de que a obrigação se terá por definitivamente incumprida, se não se verificar o cumprimento dentro do prazo fixado, tem ser aplicada à obrigação principal de realização do contrato prometido, não meramente à prestação de informações sobre os documentos necessários para a celebração da escritura.

Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31-03-2004 (proc. n.º 03B4465) que entendeu não ser de qualificar como interpelação admonitória uma intimação para cumprir uma obrigação acessória.


Em conclusão, a expressão “recurso às vias judiciais” não é suficiente para converter a mora em incumprimento definitivo no contexto em que os autores apenas reclamam a prestação de informações documentais e a não a celebração do contrato prometido. É que esta interpelação admonitória, dadas as consequências gravosas que produz, tem de estar redigida de forma expressa, clara e completa, não apenas implícita, e deve dirigir-se ao cumprimento da obrigação principal.

A dita interpelação não contém, portanto, de forma clara e inequívoca, a determinação de celebrar contrato prometido com a cominação de incumprimento definitivo.


Também não se provou que houvesse da parte do devedor qualquer recusa em cumprir que dispensasse a interpelação admonitória. O que ficou provado denota que houve atraso na obtenção dos documentos necessários à escritura, mas que o devedor ainda tinha o propósito de cumprir, tanto que na carta de 06-11-2020 informou finalmente os autores que a documentação para a escritura – o alvará e o distrate da hipoteca – estavam prontos [(factos provados k), l) e m)].

Assim, concluímos que neste ponto tem o recorrente razão e bem andou o acórdão recorrido em entender não verificados os requisitos da interpelação admonitória, divergindo do entendimento do tribunal de 1.ª instância.


7. 2.ª questão: Resta, pois, indagar se as cláusulas 6.ª e 7.ª do contrato promessa constituem ou não cláusulas resolutivas expressas e se estão preenchidos os requisitos da resolução convencional do contrato nelas previsto.


As cláusulas têm o seguinte teor, conforme resulta das alíneas e) e f) da matéria de facto provada:

e) Lê-se na cláusula 6.ª do documento referido em a) que “se o Alvará de loteamento a emitir pela Câmara Municipal ... do proc. de loteamento n.º 21/18, referido na cláusula 5.ª, não for emitido até 31 de Dezembro de 2018, os representados da 3.ª Outorgante [aqui AA.]. poderão rescindir o presente contrato promessa de compra e venda e no caso de rescisão receberão a quantia entregue como sinal e princípio de pagamento, ou seja, € 20.000,00 (vinte mil euros), acrescida dos respectivos juros”;

f) Lê-se na cláusula 7.ª do documento referido em a) que “Uma vez que incide sobre o prédio rústico identificado na cláusula 1ª uma hipoteca voluntária a favor da Câmara Municipal ..., com o fundamento de “Garantia das obras de infra-estruturas impostas pelo loteamento n.º 5/17, de 7 de março, emitido pela Câmara Municipal ...”, se até 31 de Dezembro de 2018, não houver distrate de hipoteca voluntária referente ao lote 7, referido na cláusula 2.ª, os AA. poderão rescindir o presente contrato promessa de compra e venda e no caso de rescisão receberão em dobro a quantia entregue como sinal e princípio de pagamento, ou seja, € 40.000,00 (quarenta mil euros), acrescida dos respectivos juros.”;


Segundo o facto provado constante da alínea j), os autores enviaram carta registada datada de 24.10.2020 e rececionada pelo Réu, em 30.10.2020, em que lhe comunicam o seguinte:

“No dia 20 de Setembro, por carta registada, solicitamos que, no prazo máximo de 15 dias, nos informasse quando foi emitido pela Câmara Municipal ... o alvará de Loteamento bem como nos fornecesse todos os elementos necessários para a marcação da escritura definitiva, sendo que até à presente data não obtivemos resposta.

Assim, uma vez que até 31 de Dezembro de 2018 não foi emitido o alvará de loteamento do Processo de loteamento n.º 21/18 com o Reg. n.º 230/18, de 10.01.2018, pela Câmara Municipal ... ao abrigo do estipulado na cláusula 6.ª do contrato promessa de compra e venda, e assim como também até 31 de Dezembro não houve distrate da hipoteca voluntária a favor da Câmara Municipal ... sobre o prédio rústico identificado na cláusula 1.ª do mencionado contrato promessa de compra e venda , nomeadamente referente ao lote 7, ao abrigo do estipulado na cláusula 7.ª do mesmo contrato, vimos por este meio rescindir o referido contrato promessa de compra e venda entre nós celebrado e solicitar o pagamento em dobro da quantia entregue como sinal e princípio de pagamento, ou seja, €40.000, acrescida dos respectivos juros , no prazo máximo de 8 dias para o seguinte IBAN (...)”.


8. A resolução é uma forma de extinção unilateral do contrato, operada por um dos contraentes, que tende a colocar as partes na situação em que estariam se o contrato não tivesse sido celebrado. Este poder de dissolução tanto pode resultar da lei (resolução legal), como de uma convenção entre as partes (resolução convencional), conforme estabelecido no artigo 432.º, n.º 1, do Código Civil. Em qualquer dos casos estamos perante um direito potestativo extintivo.

A lei admite que as partes, por convenção, de acordo com o princípio da autonomia privada, concedam a si próprias a faculdade de resolver o contrato quando ocorra certo e determinado facto (v. g., o não cumprimento duma concreta obrigação). A tal convenção/estipulação contratual dá-se o nome de cláusula resolutiva expressa. A previsão de uma cláusula resolutiva no contrato permite afastar a aplicação das normas dispositivas e supletivas do regime legal de resolução.

O fundamento legal da resolução convencional assenta também no artigo 406.º, n.º1, do Código Civil, que estipula o princípio pacta sunt servanda

Em regra, da cláusula de resolução deriva que uma das partes pode resolver o contrato sem discutir a gravidade do incumprimento, nem a culpa do faltoso, constituindo uma ameaça para o potencial infrator, que assim será compelido a cumprir pontualmente a prestação a que se encontra adstrito (cfr. Pedro Romano Martinez, Da cessação do contrato, Almedina, Coimbra, 2017, p. 163). A doutrina associa a estas cláusulas uma função compulsória e de coerção privada sobre o devedor, que é assim compelido a cumprir para evitar consequências desvantajosas e pela possibilidade de tais consequências lhe serem impostas mediante simples declarações da contraparte, ficando ele remetido para um estado de sujeição (cfr. Daniela Baptista, “Comentário ao artigo 432.º”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 138). Independentemente desta utilização, a sua finalidade principal é a de organizar com maior precisão e segurança o regime do incumprimento (ibidem, p. 139).

Estas cláusulas estão sujeitas, contudo, a um duplo controlo de legalidade, em que é averiguada a conformidade a normas imperativas, e de identidade, em que se analisa a sua clareza ou ambiguidade, a tipificação do fundamento resolutivo, o qual deve estar explicitado na cláusula, assim como a especificação de cada uma das obrigações de cujo incumprimento nascerá o direito de resolução convencional, do tipo de incumprimento e da imputabilidade ou não imputabilidade relevante para esse efeito). Brandão Proença (“A cláusula resolutiva expressa…”, ob. cit., p. 302) defende ainda a aplicação do princípio da proporcionalidade ou de uma ideia corretora, que permitiria fundamentar a não aplicação da cláusula resolutiva baseada em motivos, subjetiva e objetivamente, pouco graves. Nesta linha, tem-se entendido, na doutrina, que a cláusula resolutiva está sujeita a uma apreciação valorativa, baseada no respeito pelo princípio da boa fé, ou seja, deve entender-se que, tratando-se de um incumprimento levíssimo ou insignificante não deve aplicar-se a cláusula de resolução, e não deve ser também permitido o chamado direito resolutivo arbitrário (cfr., por todos, Daniela Batista, ob.cit., p. 139).


9. Nos termos do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, que fixa como critério da interpretação da declaração negocial o princípio da impressão do declaratário, concluímos que, em face das circunstâncias do negócio em causa que só podia ser celebrado após a emissão do alvará e do distrate da hipoteca, as cláusulas 6.ª e 7.ª do contrato-promessa constituem cláusulas resolutivas expressas, na medida em que afirmam, respetivamente, que se o alvará de loteamento não for emitido até 31 de dezembro de 2018 e o distrate da hipoteca voluntária a favor da Câmara Municipal não for entregue também até 31 de dezembro de 2018, os promitentes compradores poderão resolver o contrato de promessa, incorrendo o réu no dever de indemnizar os autores pelo sinal singelo ao abrigo da cláusula 6.ª ou no dobro do sinal ao abrigo da cláusula 7.ª.

Estes factos – emissão do alvará de loteamento e distrate da hipoteca – são eventos futuros e incertos cuja não verificação dentro do prazo acordado dá lugar ao exercício do direito potestativo extintivo previsto no contrato, podendo o credor, mediante declaração unilateral, operar a resolução do contrato.

As cláusulas apresentam-se redigidas de forma clara e precisa, explicitando qual o fundamento resolutivo e as obrigações cujo incumprimento faz nascer o direito de resolução.

Segundo Baptista Machado (“Pressupostos…”, ob.cit., p. 186), “(…) a cláusula resolutiva pode ter e tem frequentemente em vista apenas estabelecer que um determinado incumprimento será considerado grave e constituirá fundamento de resolução, eliminando assim de antemão qualquer dúvida ou incerteza quanto à importância de tal inadimplemento e subtraindo esse ponto a uma eventual apreciação do juiz. A função normal da cláusula resolutiva é justamente a de organizar ou regular o regime do incumprimento mediante a definição da importância de qualquer modalidade deste para fins de resolução».

O estabelecimento das cláusulas do contrato-promessa dos autos reporta-se a documentos essenciais para que o contrato-promessa pudesse celebrar-se, daí que não se possa afirmar estarmos perante um incumprimento pouco grave ou insignificante do devedor. Por outro lado, existindo uma cláusula resolutiva, salvo casos extremos de culpa levíssima ou de incumprimento de obrigações insignificantes, o tribunal não pode ser chamado a pronunciar-se sobre o que pode ou não ser considerado um incumprimento gravoso para esse efeito, devendo prevalecer a valoração feita pelas partes. Deve, contudo, aceitar-se, como defende Brandão Proença [(“A cláusula resolutiva expressa como síntese da autonomia e da heteronomia (considerações a partir da análise de uma decisão judicial)], in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Henrich Ewald Hörster, Almedina, Coimbra, 2012, p. 302), uma maior intervenção do tribunal no controlo destas cláusulas quando inseridas em contratos de adesão através da técnica das cláusulas contratuais gerais ou em contratos que envolvem sensibilidade social (p.ex. os contratos de arrendamento urbano).

A formulação das cláusulas resolutivas não inculca que a resolução do contrato seja automática (como acontece com as condições resolutivas), pois a expressão “poderão rescindir o (…) contrato promessa de compra e venda” confere um cunho facultativo ao direito de resolução do contrato por parte dos promitentes compradores, cujo exercício efetivo é indispensável para que se verifiquem as respetivas consequências, que não decorrem automaticamente do contrato.


Assim, tendo os promitentes compradores, a seu favor, duas cláusulas resolutivas expressas, podiam resolver o contrato, a partir de 31 de dezembro de 2018, através da declaração escrita dirigida à outra parte (artigo 436.º, n.º 1 do Código Civil), sem ter de percorrer, para obter tal desiderato, o caminho do artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil.

No presente contexto, os Autores pagaram um sinal de 20.000 euros e ficaram a aguardar que o promitente vendedor (aqui réu) reunisse os elementos para ser possível marcar a escritura pública, tendo solicitado, a este, inúmeras vezes, sem sucesso, informações sobre a emissão do loteamento e o distrate da hipoteca (facto provado constante da alínea h) da matéria de facto provada)

Apesar de os pressupostos da cláusula resolutiva estarem verificados em dezembro de 2018, os promitentes compradores deram ao promitente-vendedor uma segunda oportunidade para que este lograsse reunir as condições necessárias para a outorga do contrato definitivo, através da carta de 23-09-2020, em que interpelam formalmente o réu para prestar os elementos/informações necessários à marcação da escritura, carta à qual o réu só respondeu em 06-11-2020, já depois de os autores terem exercido o direito potestativo extintivo previsto no contrato (24-10-2020).

O réu tinha assim o ónus de responder atempadamente a esta missiva, tanto mais que nessa data (23-09-2020) foi emitido o alvará como decorre da matéria de facto provada [(facto provado l)], estando ainda ao seu alcance ter evitado a resolução do contrato.

  Foi só na decorrência da omissão de qualquer resposta à carta de 23-09-2020, que os autores enveredaram pela medida mais drástica da resolução do contrato, através da carta de 24-10-2020.

Apesar de o exercício deste direito resolutivo convencional ter sido exercido muito depois de dezembro de 2018, como afirma o réu em sua defesa, entendemos que o direito de resolução convencional não pode ser postergado em função do tempo entretanto decorrido, pois jamais os autores manifestaram, expressa ou tacitamente, que abdicaram ou renunciaram à invocação daquele direito, nem a sua atuação é contrária ao exercício daquele direito extintivo, tanto que mais que não se provou a tese do réu de que os autores tiveram conhecimento em finais de setembro de 2020, através do réu ou de alguém a seu mando, da emissão do alvará e do distrate da hipoteca. Por outro lado, o facto de existir uma cláusula resolutiva no contrato não retira ao credor a faculdade de exigir o cumprimento, nem o exercício desta faz caducar o direito de vir depois a declarar a resolução (cfr. João Batista Machado, in “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, ob. cit., p. 193).


8. Concluiu-se, pois, tal como entendeu o acórdão recorrido, que a circunstância de os autores não acionarem de imediato o seu direito de rescisão convencional, revelando antes manter interesse na concretização do negócio e tendo inclusivamente intimado formalmente a contraparte a fornecer-lhe os elementos/informações necessários à instrução da outorga do contrato prometido, não torna a invocação posterior da cláusula resolutiva um comportamento censurável à luz da boa fé, nem um venire contra factum proprium, ou uma violação dos bons costumes ou do fim económico do direito, suscetível de integrar o instituto do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil). 


9. Assim sendo, considera-se resolvido o contrato-promessa de compra e venda dos autos, por aplicação das cláusulas 6.º e 7.ª do citado contrato.

No quadro factual acima descrito é de presumir a culpa do réu pela não disponibilização atempada dos documentos necessários para a elaboração da escritura (artigo 799º do Código Civil), já que o mesmo não logrou provar que a falta de cumprimento da obrigação não procede de culpa sua. 


10. Importa agora responder à última questão colocada pelo réu: a de saber se, resolvido o contrato, o dever do promitente comprador reside somente na devolução do sinal em singelo.  

No regime do contrato-promessa, o incumprimento definitivo é sancionado nos termos do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, ou seja, se quem constituir o sinal deixar de cumprir a obrigação, por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o incumprimento for assacável a quem recebeu o sinal, tem a contraparte a faculdade de exigir o dobro do que lhe prestou.  

O promitente vendedor faltoso deve restituir o dobro do sinal, sendo esta a sanção tipificada pela lei para os casos de incumprimento definitivo do contrato-promessa. A jurisprudência só tem admitido que exceções a este gravoso dever de indemnização na hipótese de ter sido convencionado no contrato apenas a restituição do sinal singelo ou no caso de concorrência de culpas (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-12-2008, proc. n.º 08A2653 e de 13-01-2009, Revista n.º 3649/08, ambos da 1.ª Secção).


No caso vertente está em causa a restituição do sinal pelo promitente-vendedor, como consequência do exercício do direito potestativo extinto de resolução convencionado no contrato.

Ora, nesta sede, temos de nos ater ao que foi estipulado nas cláusulas resolutivas. Se no presente caso se tratasse apenas da falta de emissão do alvará, a consequência seria a devolução do sinal singelo, nos termos da cláusula 6.ª do contrato promessa. Todavia, também não se deu a realização do distrate da hipoteca dentro do tempo devido, até 31 de dezembro. O distrate só veio a efetuar-se já depois da carta de setembro de 2009 [(em 06-10-2020, segundo o facto provado m)], mas o réu só disso informou os autores, nos termos da factualidade provada, em carta datada de 06-11-2020 (alínea k) dos factos provados), momento posterior ao exercício legítimo do direito potestativo (24-10-2020) – dilação que, nos termos da factualidade provada que este Supremo não tem poderes para alterar, apenas é imputável ao próprio réu.

Uma vez que o réu não ilidiu a presunção de culpa que sobre ele recai (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil), nem estamos perante um caso de concorrência de culpas no incumprimento a aferir pelos critérios do artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil, tem de se onerar o réu com o pagamento de uma indemnização equivalente ao dobro do sinal, nos termos decididos pelo acórdão recorrido, por ser essa a sanção estipulada na cláusula 7.ª do contrato promessa para o caso de o distrate da hipoteca não ser atempadamente realizado, isto é, até 31 de dezembro de 2018.


11. Em virtude dos fundamentos expostos, decide-se negar a revista do recorrente e confirmar o acórdão recorrido.



12. Anexa-se sumário elaborado nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I – Na jurisprudência deste Supremo Tribunal (Acórdãos de 02-11-2006, proc. n.º 06B3822,  de 17-11-2015, proc. n.º 2545/10.5TVLSB.L1.S1 e de 10-12-2019, proc. n.º 386/13.7T2AND.P2.S1), tem-se entendido que o conteúdo da declaração intimativa do credor deve conter os seguintes elementos: 1) A intimação para o cumprimento;  2) A fixação de um termo perentório para o cumprimento; 3) A admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente incumprida, se não se verificar o cumprimento dentro do prazo fixado.

II - A cominação de que a obrigação se terá por definitivamente incumprida, se não se verificar o cumprimento dentro do prazo fixado, tem ser aplicada à obrigação principal de realização do contrato prometido e não a obrigações acessórias.

III - Não estamos perante uma interpelação admonitória que converta a mora em incumprimento, se a cominação se reporta meramente à prestação de informações sobre os documentos necessários para a celebração da escritura.

IV – O artigo 432.º, n.º 1, do Código Civil prevê a resolução fundada na lei (resolução legal) e a resolução fundada em convenção (resolução convencional). À convenção/estipulação contratual através da qual as partes, de acordo com o princípio da autonomia privada, concedem a si próprias a faculdade de resolver o contrato quando ocorra certo e determinado facto (v. g., o não cumprimento duma concreta obrigação) dá-se o nome de cláusula resolutiva expressa.

V - Nos termos do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, que fixa como critério da interpretação da declaração negocial o princípio da impressão do declaratário, concluímos que as cláusulas 6.ª e 7.ª do contrato-promessa constituem cláusulas resolutivas expressas, na medida em que afirmam, respetivamente, que se o alvará de loteamento não for emitido até 31 de dezembro de 2018 e o distrate da hipoteca voluntária a favor da Câmara Municipal não for entregue também até 31 de dezembro de 2018, os promitentes compradores poderão resolver o contrato de promessa, incorrendo o réu no dever de indemnizar os autores pelo sinal singelo ao abrigo da cláusula 6.ª ou no dobro do sinal ao abrigo da cláusula 7.ª.

VI - Assim, tendo os promitentes-compradores, a seu favor, duas cláusulas resolutivas expressas, podiam resolver o contrato, a partir de 31 de dezembro de 2018, através da declaração escrita dirigida à outra parte (artigo 436.º, n.º 1 do Código Civil), sem ter de percorrer, para obter tal desiderato, o caminho do artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil.

VII - A circunstância de os autores não acionarem de imediato o seu direito de rescisão convencional, revelando antes manter interesse na concretização do negócio e tendo inclusivamente intimado formalmente a contraparte a fornecer-lhe os elementos/informações necessários à instrução da outorga do contrato prometido, não torna a invocação do direito de resolução um comportamento censurável à luz da boa fé, nem um venire contra factum proprium, suscetível de integrar o instituto do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil). 

VIII - O facto de existir uma cláusula resolutiva no contrato não retira ao credor a faculdade de exigir o cumprimento, nem o exercício desta faz caducar o direito de vir depois a declarar a resolução.

IX – A restituição do sinal em singelo apenas vigora quando está expressamente prevista no contrato como consequência do incumprimento do contrato promessa ou quando se verifica concorrência de culpas no incumprimento.

X – Estando prevista na cláusula 7.ª do contrato o dever de o promitente-vendedor, que deu causa ao exercício do direito potestativo extintivo de resolução do contrato pelos promitentes-compradores, restituir o sinal em dobro, não pode ser decidida a restituição do sinal singelo.


III - Decisão

Pelo exposto, decide-se no Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 28 de março de 2023


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)