Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
109/19.7T8MAI.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
MORA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
COMPORTAMENTO CONCLUDENTE
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
SINAL
IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
BOA FÉ
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 01/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. Se num contrato-promessa de compra e venda não foi convencionado prazo para o efeito, o cumprimento pode ser exigido a todo o tempo, pela forma convencionada; cumprida esse forma, torna-se exigível a outorga da compra e venda e o contraente faltoso fica constituído em mora.

II. A mora converte-se em incumprimento definitivo se o contraente faltoso não se presta a cumprir, não obstante ter-lhe sido fixado um prazo adicional para o efeito, resultando da interpelação que o desrespeito desse prazo o faz entrar em incumprimento, e ainda se o outro contraente perder objectivamente o interesse na celebração do contrato definitivo.

III. Importa ainda incumprimento definitivo a atitude do contraente da qual resulta, expressa ou tacitamente, a intenção de não cumprir o contrato-promessa.

IV. O incumprimento definitivo por parte do promitente vendedor confere à parte contrária o direito a resolver o contrato, bem como a fazer sua a quantia entregue a título de sinal.

V. A falta da interpelação admonitória ou da prova de factos que revelem a intenção de não cumprir impede que se dê como verificada a conversão da mora em incumprimento definitivo.

VI. A venda a terceiros torna objectivamente impossível o cumprimento do contrato-promessa; mas vindo definitivamente decidido que não pode ser considerada no presente processo, não pode constituir motivo de reconhecimento do direito de resolução.

Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Em 10 de Janeiro de 2019, AA. instaurou uma acção contra BB. (promitente vendedora), pedindo que, por “incumprimento definitivo e culposo da Ré”, fosse “decretada a resolução do contrato promessa” de compra e venda de um prédio urbano identificado nos autos, de propriedade da mesma ré, celebrado em 7 de Outubro de 1992 com o seu pai (promitente comprador), falecido em 1 de Fevereiro de 2009.

O preço da venda foi totalmente pago (4.500.000$00) com a celebração do contrato-promessa, no qual ficou ainda acordado que o imóvel seria vendido livre de ónus e encargos.

Por carta registada com aviso de recepção de 26 de Janeiro de 2010 a ré foi notificada para comparecer no notário para realizar a escritura, “advertindo-a das consequências gravosas se não cumprisse o contrato, que o obrigaria a executar o mesmo com os custos que isso lhe traria” (artigo 9.º da petição inicial) e não compareceu; vindo o autor a verificar que o imóvel se encontrava onerado com servidões de passagem e com uma hipoteca constituída em 1 de Fevereiro de 2009.

Da falta de comparência, sem apresentação de qualquer justificação, e da existência das servidões e da hipoteca retira o autor a conclusão de que a ré incumpriu definitivamente o contrato-promessa e pretende a sua condenação no pagamento em dobro do “sinal de 4.500.000$00 / € 22.445,90”.

A ré contestou, mostrando-se “disponível para acordar que aquele contrato-promessa seja resolvido por acordo das partes, mediante a restituição do valor que lhe foi entregue pelo pai do autor”, que “à data da sua morte vivia como cônjuge de facto com a ré”, tal como sucedeu “nos últimos 20 anos antes da sua morte”; disse ainda que o referido pai do autor conhecia a existência das servidões, que constitui abuso de direito, contraria os bons costumes e é “censurável má fé” querer invocá-las para resolver o contrato, “até porque ambos os outorgantes sabiam, como o autor sabe, que não existe forma de obter e/ou conseguir a extinção daquelas servidões, contra a vontade dos proprietários dos prédios dominantes”, e que é igualmente abusivo vir invocar uma hipoteca de que o autor tem conhecimento “desde pelo menos 2010”.

Notificado para responder, o autor acrescentou que a ré tinha vendido o prédio a terceiros em 2 de Fevereiro de 2010, o que, conjugado com as onerações referidas e a falta de comparência à escritura, revela incumprimento definitivo do contrato-promessa.

Por despacho de fls. 30, o tribunal  considerou que a alegação desta venda significava “ampliação da causa de pedir”, que só seria possível com o acordo da ré; e que, se a ré nada dissesse (como veio a suceder), se entendia não ter dado o seu acordo.

A acção foi julgada improcedente no saneador sentença, por não haver “incumprimento definitivo” do contrato-promessa, mas apenas mora da ré: porque não era admissível  a consideração da venda a terceiros, porque o autor não fez “uma interpelação admonitória fixando um prazo razoável para a ré cumprir”, podendo ter feito, porque, nem está objectivamente adquirido que o autor tenha perdido interesse no cumprimento do contrato-promessa, nem são inamovíveis as onerações do prédio.

O autor recorreu para o Tribunal da Relação …, que negou provimento ao recurso e manteve a sentença, pelos mesmos motivos: não estar a assente o incumprimento definitivo nem a perda objectiva de interesse do autor no contrato. Considerou haver “caso julgado formal sobre a impossibilidade de apreciação nestes autos da alegada venda do imóvel”, não ter sido realizada a interpelação admonitória da ré, não ser suficiente a falta de comparência à escritura ou a existência de ónus sobre o prédio para concluir em sentido diverso.


2. O autor interpôs recurso de revista excepcional (al. c) do n.º 2 do artigo 672.º do Código de Processo Civil), invocando contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 2015, www.dgsi.pt, proc. n.º 1311/11.5TVLSB.L1.S1, que foi admitido pelo acórdão de fls. 56.

Nas alegações que apresentou, o recorrente formulou as conclusões seguintes:

“I -    Constata-se um recusa definitiva em cumprir um contrato promessa de compra e venda, quando a promitente vendedora, se obriga a outorgar a escritura de venda do imóvel livre e alodial, sem ónus ou encargos e mantém uma servidão de passagem sobre o mesmo e, nas vésperas de ser marcada a escritura de compra e venda, hipoteca o imóvel a um Banco como garantia de elevado valor.

II -     Não dá justificação para a falta à escritura fixada pelo promitente comprador, nunca retira os ónus, nunca avisa o promitente comprador de que pretende cumprir.

III -    Nunca teve a intenção de cumprir, porquanto na acção em que se pede o sinal em dobro pela perda do interesse do promitente comprador pela manutenção da servidão e hipoteca, acaba por revelar que a sua intenção era resolver o contrato por acordo e devolver o sinal em singelo.

IV -    Os próprios Venerandos Desembargadores reconhecem que a retirada dos ónus, mesmo após interpelação será POUCO PROVÁVEL.

V -     Logo a interpelação admonitória era um puro adiamento da resolução do problema.

VI -    Manter a servidão de passagem, onerar o imóvel com hipoteca de elevado valor nas vésperas de ser notificada para outorgar a escritura definitiva, tipifica um incumprimento definitivo.

VII -   De todo o modo é uma situação de tal modo violadora do princípio da boa fé contratual, que por si só justifica a resolução por parte do promitente comprador.

VIII - É óbvio que, apreciado objectivamente, tendo pago todo o valor estipulado para a venda do imóvel, não interessa ao promitente comprador a existência duma servidão de passagem e muito menos uma hipoteca de elevado valor.

IX -    Ónus esses que, também apreciados objectivamente, são pouco prováveis de serem retirados com nova interpelação, sendo certo que a promitente vendedora não o fez no decurso de muito anos, pelo contrário, ainda onera o imóvel com hipoteca,

X -      Este comportamento é particularmente grave pondo em causa a realização da escritura de venda do imóvel sem ónus e, por isso, está mais que justificada a perda do interesse do promitente comprador.

XI -   Além do mais, o comportamento da promitente vendedora, encerra uma violação grosseira do dever de lealdade.

XII -  E contra isso, não se diga que a qualquer momento o devedor pode resolver tudo, retirar a servidão e hipoteca, pois não é essa a realidade da vida diária e não se pode assentar a aplicação do direito em termos teóricos.

XIII - O Acórdão em crise, no que concerne à necessidade de interpelação está em manifesta contradição com o que foi decidido no Acórdão fundamento.”

Não houve contra-alegações.


3. Vem provado o seguinte (transcreve-se da sentença):

«1º O A. é filho e único herdeiro de CC., falecido que foi em 1/2/2009, no estado de casado com DD., e de DD. que acabou por falecer em 30/4/2009, no estado de viúva.

2º O seu pai CC. era beneficiário e tinha outorgado como promitente comprador, em 7/10/1992, com a Ré BB. e esta como promitente vendedora, um contrato-promessa de compra e venda, referente a um prédio urbano propriedade dela, sito na Rua …..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo …. e descrito na Conservatória do Registo Predial ……. sob descrição n.º ……. da freguesia …….. – cf. documento junto à petição inicial com o nº 3.

3º Por onde se extrai que a Ré BB., prometeu vender o identificado prédio ao pai do A., pelo preço de 4.500.000$00 (quatro milhões e quinhentos mil Escudos) que logo recebeu na totalidade e deu a respetiva quitação – cláusula 1.ª do citado contrato.

4º Mais ficando clausulado que a escritura de compra e venda seria feita a favor do promitente-comprador ou de quem ele indicasse, sendo realizada em Cartório Notarial, prazo, dia hora que ele viesse a indicar, avisando para o efeito a promitente vendedora, ora Ré, por carta registada com aviso de recepção, com antecedência mínima de 8 dias (Cláusula 3.ª).

5º O referido imóvel seria vendido livre e alodial, sem ónus ou encargos e completamente devoluto, tendo sido atribuído ao contrato-promessa o benefício da execução específica (cláusulas 2.ª e 4.ª do contrato).

6º Por carta registada com aviso de recepção de 26/01/2010, o A. notificou a Ré BB. da morte do pai, que era um facto do seu conhecimento pessoal, que ele A. era o seu único herdeiro e, desejando concluir o negócio prometido, marcara a escritura para o dia 8 de Fevereiro de 2010, pelas 15 horas, no Cartório Notarial do Notário Dr. EE., sito …., onde devia deslocar-se com o BI. e NIF advertindo-a das consequências gravosas se não cumprisse o contrato, que o obrigaria a executar o mesmo com os custos que isso lhe traria, a Ré recepcionou tal carta em 29/10/2010.

7º No dia e hora indicados, o Autor compareceu no referido Cartório com todos os documentos necessários para assinar a escritura do referido imóvel mas, pese embora se ter esperado até às 16 horas, a verdade é que a Ré não compareceu, não deu qualquer justificação, o que levou o referido Notário a emitir o certificado que a escritura se não outorgou “por culpa imputável à vendedora”.

8º Depois disso, o Autor tirou uma certidão predial e verificou que a Ré havia contraído um empréstimo na C.G.D. e dado de hipoteca o imóvel a favor desta instituição bancária, no valor de 48.500,00 €.

9º Como se também verifica desta certidão, o imóvel prometido vender encontra-se onerado com uma servidão de passagem de pessoas através de uma faixa de terreno a nascente com ….. m de largura e …. metros de comprimento, desde e extremidade Sul até ao poço comum com …….. derivações de nascente para poente, tendo cada uma delas a largura de …. cm e o comprimento de …… m para acesso ao quintal do prédio serviente e deste para o dito poço.»


4. Sendo certo que o objecto do recurso se delimita pelas conclusões das alegações (n.º 4 do artigo 635.º do Código de Processo Civil), está apenas em causa saber se ocorreu incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte da ré, promitente-vendedora e, portanto, se procede a acção de resolução.

Antes de mais, todavia, cumpre ter em conta o seguinte:

– O contrato-promessa de compra e venda, cuja cópia foi junta com a petição inicial, não marca prazo para a celebração do contrato de compra e venda; da respectiva cláusula 3.ª apenas consta que seria realizada no prazo, dia e hora que o promitente-comprador indicasse à promitente-vendedora, “por carta registada com aviso de recepção, com antecedência mínima de 8 dias”. Não tendo sido convencionado prazo para o cumprimento, este podia ser exigido da promitente-vendedora a todo o tempo, pela forma convencionada;

– Enviada a carta e fixada a data para a realização da escritura, tornar-se-ia exigível o cumprimento da prestação devida pela autora, ou seja, a outorga da compra e venda. A questão aqui colocada consiste em saber se, recebida a carta pela ré e não tendo comparecido no cartório indicado e celebrado o contrato definitivo, a ré apenas se constituiu em mora (n.º 1 do artigo 805.º do Código Civil) ou, se, como sustenta o autor, conjugada esta falta de comparência com as circunstâncias que vêm provadas (oneração do prédio com servidões prediais e com uma hipoteca), interpretadas à luz do contrato-promessa (em particular, da convenção segundo  qual o prédio seria vendido “livre e alodial, sem ónus ou encargos e completamente devoluto”), se deve entender que a autora entrou em incumprimento definitivo, assim conferindo ao autor o direito a resolver o contrato e a receber em dobro o sinal prestado (n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil). Na verdade, resulta do contrato-promessa que foi paga a totalidade do preço, mas, ainda assim, presume-se que a quantia entregue “tem carácter de sinal” (artigo 441.º do Código Civil);

– Vem definitivamente decidido que não pode ser considerada neste processo a compra e venda a terceiros do prédio a que o contrato-promessa respeita. Tratar-se-ia de um acto que sem qualquer dúvida tornaria objectivamente impossível o cumprimento do contrato-promessa pela ré, conferindo ao autor o direito de o resolver (n.º 2 do artigo 802.º do Código Civil) – cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 16 de Abril de 2009, proc. n.º 08B0491, de 20 de Junho de 2012, proc. n.º 1150/08.0TBMFR.L1.S1, ou de 8 de Junho dr 2017, proc. n.º 7461/14.9T8SNT.L1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt  ;

– É doutrina seguida no Supremo Tribunal de Justiça em inúmeras decisões, a de que, nos casos em que não se fixou no contrato-promessa um prazo certo ou não se previu um acontecimento futuro para tornar exigível o seu cumprimento, como aqui sucede, o contraente faltoso só entra em mora quando interpelado para cumprir (cfr., a título de exemplo, o acórdão de 23 de Novembro de 2017, proc. n.º 212/12.4TVLSB.L1.S1); e que o contrato-promessa só se considera definitivamente não cumprido quando o outro contraente perde o interesse na prestação ou procede à interpelação admonitória do contraente em mora, ou seja, lhe fixa um prazo razoável adicional para cumprir, resultando da interpelação que o desrespeito desse prazo o faz entrar em incumprimento (artigo 808.º o Código Civil), com as repectivas consequências – cfr., a título de exemplo, o acórdão de 2 de Fevereiro de 2017, www.dgsi.pt, proc. n.º 280/13.1TBCDN.C1.S1;

– Tem-se igualmente sustentado que essa interpelação admonitória se torna desnecessária quando a parte adoptou uma atitude da qual resulta, expressa ou tacitamente, a intenção de não cumprir o contrato-promessa ­ ­– cfr., por exemplo, o acórdão de 23 de Novembro de 2017, proc. n.º 212/12.4TVLSB.L1.S1

­– Seja porque, realizada a interpelação admonitória e decorrido o prazo assim fixado, ou praticado o acto do qual, expressa ou tacitamente, se deduz a vontade de não cumprir ou, ainda, porque, em consequência da mora da parte contrária, a parte perde objetivamente o interesse na prestação,  essa parte tem o direito de resolver o contrato (artigo 808.º do Código Civil) – ver o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Dezembro de 2018, proc. n.º 22335/15.8T8SNT.L1.S1


5. No caso presente, o recorrente sustenta que a atitude da ré consubstancia um incumprimento definitivo do contrato-promessa, tornando desnecessária a interpelação admonitória. As instâncias, todavia, entenderam que a ré se encontrava apenas em mora e, portanto, que a acção improcedia.

Entende-se que não merece censura tal decisão, porque (1) não está assente que relevância tinham no contexto do contrato-promessa a existência das servidões que oneram o terreno (2) não se sabe se a hipoteca poderia ou não ser levantada antes da escritura, ou seja: não há elementos, na acção, que permitam afirmar se a manutenção da servidão (ponto 9 dos factos provados) e a constituição da hipoteca revelam ou não de forma concludente a intenção de incumprimento do contrato-promessa, como observa o acórdão recorrido.

Não tem relevância, neste contexto, a atitude que a ré tomou na contestação – apenas revela uma proposta de solução do litígio por acordo com o autor.

No que respeita à “servidão de passagem de pessoas através de uma faixa de terreno a nascente com ……. m de largura e …….. metros de comprimento, desde e extremidade Sul até ao poço comum com …… derivações de nascente para poente, tendo cada uma delas a largura de ……. cm e o comprimento de ……… m para acesso ao quintal do prédio serviente e deste para o dito poço”  (ponto 9 dos factos provados), tendo em conta a data do registo respectivo (cfr. certidão junta aos autos), verifica-se que já existia quando o contrato-promessa foi celebrado; a ré sustenta, aliás, que o promitente-comprador, pai do autor, sabia da sua existência e mesmo assim tinha celebrado o contrato-promessa. Se tivesse sido feita uma interpelação admonitória eficaz, e se mantivesse a servidão, haveria então que proceder à interpretação do contrato-promessa para apurar se a cláusula de que “O referido imóvel seria vendido livre e alodial, sem ónus ou encargos” (ponto 5.º dos factos provados) abrangia ou não a servidão e que obrigação impunha à ré, posto que não seria possível extingui-la sem o concurso da vontade dos titulares do prédio dominante (cfr. artigo 1569.º do Código Civil).

Quanto à hipoteca, a real possibilidade de ser levantada também só interessaria na mesma eventualidade.


6. Finalmente o recorrente sustenta que a situação criada viola o princípio da boa fé contratual, de modo a “que por si só justifica a resolução por parte do promitente comprador” e que “o comportamento da promitente vendedora encerra uma violação grosseira do dever de lealdade”.

É certo que a boa fé, no sentido da devida consideração dos interesses da contraparte, é um princípio que deve nortear a actuação dos contraentes, nomeadamente na execução dos contratos (n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil).

O acórdão deste Supremo Tribunal  de 20 de Maio de 2015, indicado pelo recorrente como acórdão fundamento, refere-se ao princípio da boa fé (primeiro, para justificar a constituição em mora, depois, a perda do interesse no contrato definitivo e a transformação da mora em incumprimento) numa situação muito diferente daquela que a prova permite ter como verificada no caso presente: “No contrato-promessa não foi fixado prazo, remetendo-se para a altura em que a documentação se encontrasse em ordem. A necessidade de obtenção desta integra a previsão do n.º 2 do artigo 777.º do Código Civil. Todavia, ficou provado que os autores e demais ocupantes insistiram várias vezes junto do 1.º réu para que este cumprisse as exigências camarárias para que o prédio pudesse ser constituído em propriedade horizontal e procedesse à celebração das escrituras de compra e venda, tendo este pedido sempre mais prazo e dito que não estava em condições de efetuar aqueles atos. De toda a economia do contrato emerge que os 1.ºs réus estavam vinculados a realizar o que necessário fosse para se poder celebrar a escrituras. Interpelado repetidamente o 1.º réu, pediu sempre mais prazo e disse que não estava em condições de efetuar aqueles atos. Ao pedir mais prazo vinculou-se a cumprir no decurso dele, o que não se verificou. Entrou, pois, em mora. Mesmo que, por aqui, se não chegasse a esta figura sempre a ela se chegaria, visto o quadro descrito, através do princípio da boa fé.

9. Verificado o primeiro requisito do artigo 808.º, n.º1, também do Código Civil, interessa agora determinar se a mora se converteu em incumprimento definitivo. E ter-se-á convertido, além do mais que agora não interessa, se o credor perdeu interesse na prestação. Essa perda é apreciada objectivamente, refere o n.º 2 do preceito. Todavia, “isso significa apenas que o credor não deve rejeitar a prestação a seu bel-prazer, mas apenas com fundamento em interesses ou motivos dignos de tutela. Esses interesses ou motivos dignos de tutela serão por via de regra motivos ligados aos fins subjectivos do credor, aqueles fins cuja satisfação determinava a prestação.” (Baptista Machado, Obra Dispersa, I, 151). Corresponde tal à finalidade geral da obrigação, sendo, portanto, na satisfação ou insatisfação dos fins visados pelo credor que deve ser situado o fulcro da decisão. O autor celebrou o contrato-promessa de compra do imóvel descrito, entregando quantia elevada a título de sinal e indo para lá viver com o seu agregado familiar. No contrato (cláusula 4.ª) ficou consignado, que “na efectivação da escritura, a venda será feita livre de quaisquer foros, ónus, encargos ou outras responsabilidades, sejam elas de que natureza forem.” Surpreendentemente, constatou que sobre o imóvel incidiam duas penhoras e duas hipotecas, estando um dos processos executivos já na fase de venda por negociação particular. Este quadro é particularmente grave pondo em causa, de modo muito intenso, a realização do fim da prestação que era a aquisição do imóvel totalmente livre. Um cidadão normal colocado na posição do autor tinha toda a legitimidade para se desinteressar do negócio e até para o repudiar. Será mesmo legítima a pergunta sobre quem quereria prosseguir com o contrato - promessa de imóvel a respeito do qual se verifica o que se descreveu. Arriscaria comprá-lo para o ver “passar”, direta ou indiretamente, para a mão dos credores. Parece-nos, por isso, claro que deve ser entendido que, mesmo no plano objetivo que a lei impõe, o autor perdeu interesse na prestação.

(…) Ora o que foi feito relativamente ao imóvel encerra uma violação grosseira do dever de lealdade. Prometido vender, com sinal corrido e habitado já pelo promitente - comprador, é duplamente hipotecado; não se pagando os créditos garantidos, “deixa-se” que sobre ele incidam penhoras e que um dos processos executivos entre na fase da venda.

E contra isto não se diga que, a qualquer momento, o devedor pode pagar tudo, com levantamento das penhoras, fim dos processos executivos e distrate das hipotecas, estando habilitado a cumprir o contrato-promessa tal como resulta da apontada cláusula 4.ª. Seria um raciocínio em que a realidade da vida estaria obnubilada por uma visão puramente teórica, quando a aplicação do direito pressupõe um olhar atento sobre aquela realidade.”  

A semelhança entre os dois casos encontra-se na oneração do prédio, prevendo o contrato-promessa que a venda seria feita sem qualquer oneração.

No entanto, falta no caso presente um elemento de facto que foi considerado relevante no acórdão fundamento para censurar a actuação do promitente-vendedor: o incumprimento dos sucessivos prazos de que foi dizendo carecer. Muito diferentemente, nada se sabe sobre a razão que conduziu ao prolongado lapso de tempo entre a celebração do contrato-promessa e a propositura da acção de que agora se trata.

Também nada se sabe, como se disse já, do sentido da cláusula que impunha a venda livre de ónus e encargos, no que toca à servidão. E, quanto à hipoteca, é seguramente diferente da situação em que já estava em curso uma venda executiva; e, de toda a forma, julgar infringido o princípio da boa fé sem se saber minimamente qual a razão de esta acção ser proposta tanto tempo depois de celebrado o contrato promessa – e,  é importante acrescentar, vários anos depois da morte do pai do autor – impede que se percorra esse caminho.

O mesmo se diga quanto à alegação de violação do princípio da lealdade – se por esta afirmação o recorrente tem em vista coisa diferente da regra da boa fé na vida dos contratos.

Não se encontra motivo para censurar o acórdão recorrido.


7. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 21 de Janeiro de 2021


A relatora atesta que os adjuntos, Conselheiro Olindo dos Santos Geraldes e Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado, votaram favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.


Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)