Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1932/22.0YRLSB.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: AFONSO HENRIQUE
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
IMUNIDADE JURISDICIONAL
TRIBUNAL ESTRANGEIRO
EXCEÇÃO DILATÓRIA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CONDENAÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
FORO ADMINISTRATIVO
FORO COMUM
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Inexistindo norma que preveja que as sentenças estrangeiras sejam revistas e confirmadas nos tribunais administrativos, essa competência está atribuída aos tribunais comuns, concretamente, às secções dos Tribunais da Relação.

II. A questão de violação de imunidade de jurisdição relativa deve ser levantada junto do tribunal estrangeiro e pressupõe a existência dum acto de governo/jus imperii, e não, de natureza comercial/jure gestiones, como é o caso.

III. Não se justifica a recusa do reconhecimento da sentença estrangeira revidenda, uma vez que o seu objecto não é da exclusiva competência dos tribunais portugueses.

IV. A condenação do Estado Português numa quantia devida a um particular italiano, no âmbito de um concurso público de empreitada, em que o Estado Português rejeitou indevidamente a candidatura daquele particular, conforme foi judicialmente reconhecido pelo STA português, não constitui um resultado ofensivo da ordem pública internacional, nem viola valores e interesses essenciais ou estruturais do ordenamento jurídico português.

Decisão Texto Integral:

ACORDÃO NESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (2ª SECÇÃO)

I - Nesta acção declarativa com processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, o Ministério Público, em representação do Estado Português, interpôs recurso de revista, tendo como objecto o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 09-03-2023, que confirmou a sentença proferida no dia 02-08-2011, no pº nº 6907/2011, que correu termos na 1.ª Secção do Tribunal Administrativo de Lácio, Itália, condenando o Estado Português, através do Ministério das Obras Públicas e dos Transportes, no pagamento de € 74 219,68 (setenta e quatro mil duzentos e dezanove euros e sessenta e oito cêntimos), acrescido dos juros e reavaliação monetária, desde a data da maturação do crédito até à data da publicação da sentença à sociedade C..., SPA, a qual foi declarada insolvente tendo o crédito sido adquirido pelo autor Banco IFFIS.

II - O recurso foi devidamente admitido como revista, nos termos dos arts. 980º alíneas c) e f) e do art. 985.º do CPC.I

III - Nas suas alegações de recurso, o Mº Pº concluiu pela:

a) incompetência material do Tribunal da Relação de Lisboa por violação do disposto nos arts. 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3 da CRP, conjugados com os arts. 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, al. g), do ETAF;

b) violação do princípio da imunidade de jurisdição;

c) da violação do disposto no art. 978.º, n.º 1, do CPC, revisão de sentença estrangeira sobre direitos privados;

d) da violação do disposto no art. 980.º, al. c), do CPC e da violação do disposto no art. 980.º, al. f), do CPC.

IV – APRECIANDO E DECIDINDO

Thema decidendum

Em função das conclusões do recurso, são estas as questões a dirimir - arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC:

1 - incompetência material do Tribunal da Relação de Lisboa;

2 - violação do princípio da imunidade de jurisdição;

3 - violação do estabelecido em termos de revisão de sentença estrangeira sobre direitos privados;

4 - violação do disposto das als. c) (incompetência de tribunal estrangeiro) e f) (incompatibilidade com os princípios de ordem pública do Estado Português), do artº 980 do CPC.

Citando os ensinamentos de Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, p.141, escreveu-se no Ac. do STJ de 12-07-2011, Revista n.º 987/10.5YRLSB.S11, O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se basicamente no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal. O que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz a certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa. Ou seja, desde que o tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa..

É este o entendimento seguido neste Supremo Tribunal, conforme se comprova nos mais recentes acórdãos datados de 02-07-2020, Revista n.º 224/18.4YRGMR.S12, de 02-12-2020, Revista n.º 1289/19.7YRLSB.S13 e de 23-03-2021, Revista n.º 2652/19.9YRLSB.S14.

Definido o regime da revisão de sentenças estrangeira adoptado pelo legislador, passamos a tratar das questões acima enunciadas.

1 - Da incompetência material do Tribunal da Relação de Lisboa, por violação do disposto nos arts. 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3 da CRP, conjugados com os arts. 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, al. g), do ETAF.

Invoca o recorrente Ministério Público que o acórdão recorrido padece de erro de julgamento, por violação dos arts. 37.º, al. e) e 7.º do ETAF, arts. 144.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 62/2013, de 26-08, art. 979.º do CPC, arts. 204.º, 211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da CRP e arts. 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, al. g) do ETAF, ao ter entendido que o Tribunal da Relação de Lisboa era materialmente competente para proceder à revisão da sentença italiana, que condenou o Estado Português ao pagamento de uma indemnização a um particular, por actos que integram responsabilidade extracontratual do Estado, matérias puramente administrativas.

Mais invoca que, caso assim não se entenda, sempre deve ser desaplicada a norma prevista no art. 979.º do CPC, por inconstitucional, quando se entenda que este normativo permite a revisão de sentenças que dirimam litígios emergentes de relações jurídico-administrativas pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

E, por fim, alega que, por inexistir norma que atribua competência aos tribunais administrativos para a revisão de sentenças estrangeiras, sempre deverá entender-se que esta lacuna não pode ser resolvida através de recurso aos casos análogos, nos termos do art. 10.º, n.º 1, do CC, mas antes com recurso ao n.º 3 deste normativo, através da criação de norma pelo julgador que permita ao Tribunal Central Administrativo apreciar este processo de revisão de sentença estrangeira, em face da separação entre a jurisdição judicial e a jurisdição administrativa.

O acórdão recorrido, quanto a esta parte entendeu que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais – art. 211 CRP (competência residual). Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – art.º 212/3 CRP. Inexiste qualquer preceito na legislação administrativa, nomeadamente ETAF (Lei 13/2002, de 19712 na redacção do DL 214-G/2015 de 2/10) que atribua competência aos tribunais administrativos para proceder à revisão e confirmação de sentenças estrangeiras. A competência para a revisão e confirmação de sentenças estrangeiras pertence ao Tribunal da Relação (secções cíveis), in casu, ao Tribunal da Relação de Lisboa. São estes Tribunais (Relação) que julgam os processos de revisão e confirmação de sentença estrangeira – cfr. art.ºs 979 CPC, 73 e) LOSJ (Lei de Organização Judiciária/Lei 62/2013 de 26/8).”

O STJ através do Ac. de 22-04-2004, proc. n.º 04B7055, relatado pelo Conselheiro Ferreira Girão, pronunciou-se acerca da competência do Tribunal das Relações, nos termos dos arts. 58.º, n.º 1, al. f), da LOFTJ e o 1095.º do CPC, actuais arts. 73.º, al. e) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (nos termos do qual compete às secções dos Tribunais da Relação, segundo a sua especialização, entre o mais, julgar os processos de revisão e confirmação de sentença estrangeira, sem prejuízo da competência legalmente atribuída a outros tribunais) e 978.º e 979.º do CPC.

Da conjugação destes dois normativos torna-se claro que está atribuída aos Tribunais das Relações a competência para proceder à revisão de sentenças estrangeiras, quer sejam emanadas de autoridades judiciais quer sejam sentenças arbitrais.

Conforme é referido no acórdão recorrido, inexiste norma que preveja que as sentenças estrangeiras sejam revistas e confirmadas nos tribunais administrativos, pelo que dúvidas inexistem que essa competência está atribuída aos tribunais comuns, nos termos da competência expressa que decorre da lei, não sendo caso para aplicar o disposto no art. 10.º do CC.

Também não se verifica qualquer interpretação inconstitucional do art. 979.º do CPC, que determine que os tribunais desapliquem este normativo, porquanto o legislador exprimiu expressamente a sua posição ao atribuir a competência exclusiva ao tribunal das Relações para rever e confirmar as sentenças estrangeiras. O recorrente parte do pressuposto que este tribunal não é competente por entender que se trata de uma decisão de um litígio administrativo, mas a verdade é que nem todos os litígios que envolvem o Estado são litígios administrativos, pois no caso trata-se de um litígio que trata de matéria em que o Estado não actuou em jus imperium, como melhor se explica no seguimento da motivação. Não existe, assim, qualquer interpretação contrária à CRP.

2 - Da violação do princípio da imunidade de jurisdição

Alega o recorrente que o Tribunal Administrativo de Lácio não poderia ter apreciado o litígio, pois estamos perante o direito a uma eventual indemnização que se trata de um direito público e a sua apreciação cabe em exclusivo aos Tribunais Administrativos Portugueses, pelo que o acórdão recorrido padece de erro de julgamento por violação do princípio da imunidade de jurisdição.

Relativamente a esta matéria, o acórdão recorrido discorreu o seguinte: “In casu, a decisão contida na sentença revidenda apreciou um pedido de indemnização da autora, a título de responsabilidade civil (indemnização do dano relativo à falta de adjudicação do contrato IP2 Soalheira-Castelo Branco com uma quantia base de leilão de Esc: 3.600.000.000 para o qual a requerente apresentara uma proposta de Esc: 3.098.460.186), ainda que alicerçada em danos causados por um acto administrativo, subsumindo-se, este último, a um acto de jus imperii. Não obstante, certo é, que a ilegalidade deste acto administrativo foi apreciada por, acórdão/sentença, de 7/12/99, proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo português que anulou a adjudicação disposta a favor de outras empresas concorrentes, considerando ilegítima a exclusão de uma proposta considerada anormalmente baixa em defeito da activação do necessário contraditório destinado a consentir que a referida empresa pudesse apresentar as suas justificações – cfr. sentença revidenda fls. 29 e sgs. (tradução). Daqui se extrai, que a sentença revidenda não apreciou nenhum acto de jus imperii do Estado Português, debruçando-se a decisão sobre matéria respeitante a jus gestiones do Estado Português.

Acresce, que o Estado Português, demandado na acção, interveio no processo pugnando pela improcedência da acção, pelo que não pode agora invocar/alegar imunidade de jurisdição obstando à revisão de sentença revidenda.

A imunidade de jurisdição é nas palavras de Francisco Ferreira de Almeida6 a impossibilidade de determinadas entidades, sem o seu consentimento, serem sujeitas a jurisdições estrangeiras, como sejam os Estados Estrangeiros e os órgãos com estatuto de direito internacional público, como as organizações internacionais.

Quanto à matéria de imunidade de jurisdição, ainda que em situações que não são semelhantes à presente, o STJ já foi chamado algumas vezes a pronunciar-se, pelo que realçamos nesta sede o Ac. de 07-12-2016, Revista n.º 2079/15.1T8CBR.C1.S17, relatado pelo Conselheiro Oliveira Vasconcelos, que discorreu o seguinte,“A soberania é um dos elementos constitutivos do Estado. (…) Na ordem jurídica internacional, os Estados caraterizam-se pela sua igual dignidade soberana – igualdade nas relações entre os Estados, exigência de igualdade dos Estados perante o direito internacional. Um outro corolário desta igual dignidade soberana dos Estados no direito internacional diz respeito à garantia de imunidade de jurisdição aos Estados e à sua propriedade, ou seja, em princípio, nenhum Estado pode julgar os atos de um outro ou mesmo de um dos seus órgãos superiores, máxime, por intermédio de um dos seus tribunais, sem o consentimento deste. Esta imunidade tem na sua base a deferência para com a prerrogativa de soberania do Estado demandado; a impossibilidade prática, em muitos casos, de executar uma sentença contra ele proferido pelo Estado do foro e a noção de que num conflito entre Estados soberanos, os tribunais de um deles, na sua qualidade de órgãos de soberania, não oferecem a garantias de uma justiça independente e imparcial.

Desde logo, a imunidade soberana dos Estados compreende a “imunidade processual”, nos termos da qual um Estado, incluindo qualquer das suas unidades constitutivas, órgãos, entidades no exercício de prerrogativas de soberania ou representantes, não pode ser submetido à jurisdição interna de outros Estado sem o seu consentimento, devendo os ordenamentos jurídicos internos assegurar a existência de uma exceção processual de incompetência8. O incremento da atividade estatal determinou a distinção entre atos do governo (jus imperii) e atos de natureza comercial (jure gestiones), negando neste último caso a imunidade de jurisdição – trata-se da doutrina da imunidade restritiva ou relativa. Assim, tem-se entendido que garantia de imunidade pode ser absoluta - quando um Estado se escusa pura e simplesmente a submeter à sua jurisdição qualquer ato de outro Estado - ou relativa – quando o reconhecimento da imunidade se apoia em distinções, como as que distinguem atos “iure imperurim” e atos “iure gestiones”, com base na natureza e fim do ato, submetendo apenas os segundos atos à jurisdição de outro Estado. Daí, a importância da distinção entre atos de autoridade soberana ou de império, em que o Estado se comporta como um ente soberano e atos de direito privado, em que o Estado estrangeiro pratica atos como pessoa coletiva, que não são próprios da sua qualidade de ente soberano. Portanto, só quando um Estado atuar sem o jus imperium é que se entende que esse Estado pode ser responsabilizado noutro Estado e ser submetido à sua jurisdição. Trata-se de um entendimento que pode ser considerado como uma norma consuetudinária de direito internacional público. Esta imunidade relativa, imposta pelo recurso crescente ao direito privado por parte dos Estados, é considerada como a mais consentânea com a tendência atual no sentido de responsabilização dos poderes públicos por danos, contratuais ou extracontratuais, causados aos particulares.

É esta posição adoptada neste STJ, no sentido da imunidade de jurisdição relativa, pois apenas se considera que um Estado pode invocar perante outro Estado a sua imunidade de jurisdição nos casos em que actua a coberto do seu jus imperium, mas não naqueles casos em que actuou em jus gestiones cfr. igualmente os Acs. do STJ de 19-01-2023, Revista n.º 25603/21.6T8LSB.L1.S19, relatada pelo Conselheiro Nuno Pinto de Oliveira; 15-05-2013, Revista n.º 2807/10.1TVLSB.S110; relatado pelo Conselheiro Fernandes do Vale; de 29-05-2012, Revista n.º 137/06.2TVLSB.L1.S111, relatada pelo Conselheiro Marques Pereira; de 04-02-1997, Revista n.º 809/9612, relatado pelo Conselheiro Fernando Fabião; de 25-11-2014 - Revista n.º 1298/13.0TTLSB.L1.S113, relatado pelo Conselheiro Mário Belo Morgado; de 04-06-2014 Revista n.º 2075/12.0TTLSB.L1.S114, relatado pelo Conselheiro Pinto Hespanhol; entre outros.

Note-se que nos citados arestos, tão só os que dizem respeito à responsabilidade do Estado por erro judiciário, o citado Ac. do STJ de 07-12-2016, e nos dois que respeitam à condenação de Estado estrangeiro no pagamento de serviços de saúde é que foi declarada a excepção dilatória de imunidade jurisdicional, por se entender que as relações entre as partes estão reguladas por normas de direito público, dirigidas exclusivamente aos titulares de um poder de autoridade ou de soberania, para lhes atribuir direitos especiais ou para lhes impor deveres especiais, cfr. os citados Acs. do STJ de 19-01-2023 e de 29-05-2012.

Os demais arestos citados tratam de situações respeitantes a contratos de trabalho ou prestação de serviços junto de Embaixadas ou consulados, tendo aí sido entendido que estaria tão só em causa a imunidade de jurisdição relativa. De facto, a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens15, excepciona as questões relativas a contratos de trabalho da reserva de imunidade de jurisdição, cfr. art. 11.º da referida Convenção.

In casu, estamos perante uma sentença italiana que condenou o Estado Português ao pagamento de uma indemnização a terceiro por actos de responsabilidade extracontratual, ao ter rejeitado, sem contraditório prévio, uma proposta de empreitada, no âmbito de um concurso público de empreitada.

A imunidade de jurisdição, por se tratar de uma excepção dilatória que conduz à incompetência absoluta dos tribunais e que, ainda que determina a incompetência absoluta, sempre determinaria a absolvição da instância, a qual tem cobertura legal na Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens. O art. 5.º da Convenção prevê que Sob reserva das disposições da presente Convenção, um Estado goza, em relação a si próprio e aos seus bens, de imunidade de jurisdição junto dos tribunais de um outro Estado.

Ora, afigura-se-nos que, uma vez que o Estado Português interveio no processo judicial que culminou com a sentença agora em revisão, era nesse processo que deveria ter invocada a sua imunidade de jurisdição, o que não fez.

Esta excepção dilatória não pode operar neste processo especial de revisão de sentença estrangeira, pois que o Estado Português já aceitou submeter-se à jurisdição italiana, ao ter intervindo nos autos sem ter invocado o privilégio da imunidade de jurisdição.

E, mais se refira que concordamos com a argumentação expendida no acórdão recorrido acerca da actuação do Estado Português sem vestes de jus imperium no concurso público de empreitada em que era dono de obra e rejeitou a candidatura da empresa italiana, sem o prévio contraditório.

Note-se que a circunstância de um dado litígio estar materialmente atribuído aos tribunais administrativos não é determinante para se considerar que o Estado ou entidade administrativa actuou munido de jus imperium, cfr. neste sentido Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa”, 17.ª ed, 2019, pág. 94, citado no AUJ n.º 51012/18.6YIPRT-A.P1.S1-A16, “(…) admite-se generalizadamente a atribuição legal aos tribunais administrativos da resolução de litígios referentes à atividade da Administração, ainda que respeitantes a relações ou incluindo aspetos de direito privado – assim, por ex. considerou-se admissível a atribuição à jurisdição administrativa da competência para julgar ações sobre contratos privados da administração (…), tendo em conta a miscigenação prática do direito público com o direito privado e a necessidade de assegurar o respeito pelos princípios públicos em toda a atuação administrativa (…)”.

Entendemos, assim, que não procede a alegada imunidade de jurisdição invocada, quer pelos fundamentos do acórdão recorrido, mas em especial porque a imunidade deveria ter sido invocada no processo cuja sentença se pretende a revisão.

3 - Da violação do disposto no art. 978.º, n.º 1, do CPC, revisão de sentença estrangeira sobre direitos privados

O recorrente mais alega que a responsabilidade civil em causa nos autos da sentença a rever é regida por regras administrativas e de direito público, pelo que não pode esta sentença ser objecto de revisão por não respeitar a direitos privados, tendo entendido desta forma o acórdão recorrido actuou em erro de julgamento relativamente ao art. 978.º do CPC.

O acórdão recorrido, relativamente a esta questão, discorreu o seguinte, “(…) a decisão que do tribunal administrativo italiano que condenou o Estado Português a pagar uma indemnização por perda de chance de uma empresa italiana num concurso público realizado em Portugal insere-se/está contida no segmento “decisão sobre direitos privados” (art.º 978 CPC) já que envolve o direito privado da empresa a participar em condições de igualdade com os demais concorrentes.

Daqui se extrai, que uma sentença estrangeira para ter eficácia em Portugal necessita de ser revista e confirmada.

Ora, atento o extractado supra, aquando da apreciação das questões anteriores sobre a natureza da acção de delibação, bem como a inexistência de imunidade de jurisdição (acto de jus gestiones), inexiste violação do preceituado no art. 978 CPC, soçobrando a pretensão.

Conforme esclarece Luís Correia de Mendonça17, o elemento relevante é o objecto da decisão e não propriamente a natureza do tribunal que a proferiu, pois o que é relevante é que estejam em causa “decisões sobre direitos privados”. Aqui, é irrelevante a natureza do tribunal que proferiu a decisão, pelo que será irrelevante ter sido um tribunal administrativo italiano a proferir a decisão, pois o que é relevante é que a decisão a rever respeite a direitos privados proferidos por entidade competente.

O n.º 1 do art. 978.º do CPC preceitua o seguinte, Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.

Impõe-se, assim, apurar se a sentença em revisão trata de direitos de natureza privada, e como tal sujeita a revisão e confirmação, ou antes versa sobre direitos com natureza pública, e como tal subtraída da alçada da revisão de sentença estrangeira prevista no art. 978.º do CPC.

O acórdão do STJ de 05-04-2022, Revista n.º 639/20.8YRLSB.S118, relatado pelo Conselheiro Henrique Araújo, já se pronunciou acerca do conceito “direitos privados”, no âmbito de processo de revisão de sentença brasileira que condenou o Estado Português ao pagamento de quantias correspondente a salários de trabalhadores de um Consulado de Portugal no Brasil. Neste aresto entendeu-se que a expressão “decisão sobre direitos privados” deve interpretar-se em termos amplos. Em face da clareza de exposição sobre esta matéria, transcrevemos parte deste aresto a propósito deste tema.

Veja-se o que escreve Luís de Lima Pinheiro, em "Direito Internacional Privado", Volume III, Tomo II, páginas 22 e 23, para clarificar as situações de exclusão da natureza privada:

"(...) não são privadas as situações que, por dizerem respeito a certas atividades públicas estrangeiras só podem ser objeto de regulação na ordem jurídica de um Estado estrangeiro e as situações que são primariamente conformadas por Direito público português. Assim, por exemplo, não são reconhecíveis ao abrigo do Direito de Reconhecimento Internacional Privado as decisões estrangeiras com caráter penal e as decisões proferidas por tribunais estrangeiros em violação da imunidade de jurisdição do Estado português.”

A decisão deve ter por objeto uma relação que no Estado de reconhecimento seja considerada 'privada', à luz do critério da posição dos sujeitos. Este critério relaciona-se com o jus imperii — uma prerrogativa de Direito Público, que designa "posição de autoridade" — faculdade de emitir comandos, gerais ou individuais, que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade desses destinatários. Nesta perspetiva, Direito Público é o sistema de normas que, tendo em vista a prossecução de um interesse coletivo, confere para esse efeito a um dos sujeitos da relação jurídica poderes de autoridade sobre o outro. São de Direito Público as normas que regulam a organização e a atividade do Estado e de outros entes públicos menores, as relações desses entes públicos entre si no exercício dos poderes que lhes competem, bem como as relações dos entes públicos enquanto revestidos de poder de autoridade com os particulares; são de Direito Privado as normas que, visando regular a vida privada das pessoas, não confere a nenhuma delas poderes de autoridade, mesmo quando pretendam proteger um interesse público considerado relevante. No Direito Privado os sujeitos estão em posição de paridade: são relações entre particulares, ou entre os particulares e os entes públicos, quando estes não intervenham revestidos de jus imperii, fazendo com que atuem como se fossem particulares. A principal diferença entre direitos públicos e privados está, assim, nas relações de hierarquia ou de igualdade entre as partes envolvidas.

Ora, no caso, também dúvidas não restam de que estamos perante direitos privados, porquanto a relação jurídica em discussão na sentença revidenda diz respeito à responsabilidade do Estado Português perante um ente particular, no âmbito de contrato público de empreitada, na qual se aprecia a actuação do Estado Português ao ter rejeitado, sem prévia audição, a proposta da empresa italiana. A actuação do Estado Português não se mostra investida de qualquer jus imperium, pois conforme resulta dos autos, já nas instâncias administrativas portuguesas, foi considerada inválida aquela exclusão, por não ter sido respeitado o princípio do contraditório. Tal qual decidido no acórdão recorrido, a sentença a rever integra uma decisão sobre direitos privados na medida em que envolve o direito privado da empresa italiana a participar em condições de igualdade com os demais concorrentes no dito concurso público. Apesar de estarmos perante uma relação entre um particular e o Estado Português, os direitos discutidos e a relação jurídica desenvolvida entre as partes mostrou-se pautada por critérios de igualdade, não tendo o Estado Português actuado sob as vestes de jus imperium.

Improcede, igualmente, esta parte da argumentação do recorrente.

4 - Da violação do disposto no art. 980.º, al. c), do CPC

Outro dos fundamentos do recurso do Ministério Público diz respeito à al. c) do art. 980.º do CPC, tendo alegado que a sentença a rever é relativa a litígio emergente de relação jurídica administrativa, regida pelo Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei n.º 67/2007 de 31-12, pelo que os Tribunais italianos não têm competência internacional para conhecer litígios emergentes de relações jurídicas administrativas portuguesas, por força do disposto nos arts. 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, al. g) do ETAF, 13.º e 22.º do CPTA sendo competência exclusiva dos Tribunais Administrativos portugueses.

Sobre esta questão, o acórdão recorrido discorreu do seguinte modo, “Como explica Miguel Teixeira de Sousa (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa – 115) … a relevância prática da competência exclusiva dos tribunais portugueses reside no seguinte: como, nessa hipótese, a jurisdição portuguesa não aceita a competência de nenhuma outra jurisdição para apreciar a acção, nenhuma decisão proferida por jurisdição estrangeira pode preencher as condições para ser ou se tornar eficaz na ordem jurídica portuguesa” – cfr. obra. cit. Luís Correia de Mendonça. A material da exclusiva competência dos tribunais portugueses é enunciada no art.º 63 CPC, a saber: a) matéria sobre direitos reais sobre imóveis ou de arrendamentos de imóveis situados em território português; b) matéria de validade da constituição ou dissolução de sociedades ou de outras pessoas colectivas que tenham a sua sede em Portugal, bem como matéria sobre a validade das decisões dos seus órgãos, c) matéria de validade de registos públicos e conservados em Portugal, d) matéria de execuções de imóveis sitos em território português; e) matéria de insolvência ou revitalização de pessoas domiciliadas em Portugal ou de pessoas colectivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português. E ainda, in obra cit. – 116 – “só quando a competência dos tribunais portugueses for exclusiva para a apreciação de um determinado objecto se justifica a recusa do reconhecimento da sentença estrangeira proferida sobe esse objecto por um tribunal que, segundo a jurisdição portuguesa, não é competente. Se assim não suceder, a jurisdição portuguesa, não podendo ignorar que a regra é a existência de competências concorrentes, aceita a competência do tribunal estrangeiro, pelo que qualquer decisão proferida nessas condições por esse órgão provém de tribunal competente segundo a norma de conflitos da jurisdição portuguesa. Por outro lado, a proveniência de decisão revidenda de outro tribunal que não aquele que possui a competência exclusiva, não impede a revisão e confirmação da sentença pelos tribunais portugueses, pois que, perante a jurisdição portuguesa, deve ter-se por precludida a invocação da eventual incompetência do tribunal que proferiu aquela decisão”.

In casu, tendo em atenção o extractado supra, o objecto da decisão revidenda excluída está do âmbito do art.º 63 CPC. Por outro lado, tal como referido (cfr. alínea a) e as demais), o nosso sistema de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras, acção de delibação (revisão meramente formal), não se debruça sobre a questão de mérito, nela se incluindo os pressupostos processuais dessa mesma acção (révision au fond). Destarte, afastada está a competência exclusiva dos tribunais portugueses sobre a matéria apreciada na decisão revidenda, falecendo a pretensão.”

Na interpretação da al. c) do art. 980.º do CPC exige-se apenas que os tribunais portugueses não sejam exclusivamente competentes e que a competência do tribunal de origem da sentença a rever não tenha sido provocada em fraude à lei, ou seja que não tenha ocorrido uma manipulação de elementos de facto ou de direito dos quais dependa o estabelecimento da competência internacional, cfr. neste sentido António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa19, Luís Correia de Mendonça20 e o citado Ac. do STJ de 05-04-2022.

Luís Correia de Mendonça21, ao citar Miguel Teixeira de Sousa, esclarece que “só quando a competência dos tribunais portugueses for exclusiva para apreciação de um determinado objecto se justifica a recusa de reconhecimento da sentença estrangeira proferida sobre esse objecto por um tribunal que, segundo a jurisdição portuguesa não é competente Se assim não suceder, a jurisdição portuguesa, não podendo ignorar que a regra é a existência de competências concorrentes, aceita a competência do tribunal estrangeiro, pelo que qualquer decisão proferida nessa condições por esse órgão provém de tribunal competente segundo a norma de conflitos da jurisdição portuguesa”. Por outro lado, “a proveniência da decisão revidenda de outro tribunal que não aquele que possui uma competência exclusiva, não impede a revisão e confirmação da sentença pelos tribunais portugueses, pois que, perante a jurisdição portuguesa, deve ter-se por precludida a invocação da eventual incompetência do tribunal que proferiu aquela decisão”22.

O art. 63.º do CPC estabelece as matérias que são da exclusiva competência dos tribunais portugueses: Os tribunais portugueses são exclusivamente competentes:

a) Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis situados em território português; todavia, em matéria de contratos de arrendamento de imóveis celebrados para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos, são igualmente competentes os tribunais do Estado membro da União Europeia onde o requerido tiver domicílio, desde que o arrendatário seja uma pessoa singular e o proprietário e o arrendatário tenham domicílio no mesmo Estado membro;

b) Em matéria de validade da constituição ou de dissolução de sociedades ou de outras pessoas coletivas que tenham a sua sede em Portugal, bem como em matéria de validade das decisões dos seus órgãos; para determinar essa sede, o tribunal português aplica as suas regras de direito internacional privado;

c) Em matéria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal;

d) Em matéria de execuções sobre imóveis situados em território português;

e) Em matéria de insolvência ou de revitalização de pessoas domiciliadas em Portugal ou de pessoas coletivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português.

Da análise deste normativo resulta claramente que a competência exclusiva dos tribunais portugueses para matéria decidida na sentença a rever não resulta desta regra legal.

Impõe-se, ainda, averiguar se existe uma norma no âmbito do direito administrativo que exclua da competência dos demais tribunais a matéria relativa à responsabilidade do Estado.

Nem o ETAF nem o CPTA têm uma norma de competência exclusiva equiparável ao art. 63.º do CPC, e conforme já decidido no citado aresto do STJ de 05-04-2022, estas normas servem como critério de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, mas não funcional como critério de atribuição de competência internacional exclusiva, tarefa que se encontra atribuída tão ao art. 63.º do CPC.

Também neste aresto se afastou a possibilidade de o art. 212.º, n.º 3, da CRP, funcionar como reserva de competência internacional exclusiva dos tribunais administrativos portugueses, e citando os constitucionalistas Jorge Miranda e Rui Medeiros, conclui que na doutrina dominante inexiste uma reserva absoluta material dos tribunais administrativos por força deste normativo, pelo que também não se mostra possível dali extrai uma reserva absoluta internacional de competência dos tribunais administrativos.

Seguindo a linha de raciocínio do citado aresto do STJ, realçamos ainda que tão só revela carácter exorbitante da competência do tribunal estrangeiro quando essa competência pessoal não apresente qualquer conexão pessoal ou territorial com a relação controvertida dirimida na sentença revidenda, nem resulte da autonomia da vontade, do critério dos efeitos ou do critério da necessidade23. No caso, existe conexão territorial com os tribunais italianos, uma vez que o autor tem nacionalidade italiana, pelo que se conclui que inexiste qualquer violação do disposto no al. c) do art. 980.º do CPC.

4 - Da violação do disposto no art. 980.º, al. f), do CPC

Invoca, ainda, o recorrente que a sentença a rever ofende a ordem pública internacional do Estado Português porque aplicou direito administrativo italiano a relações jurídicas às quais é aplicável o direito administrativo português, pelo que o acórdão recorrido sofre de erro de julgamento, por violação dos arts. 209.º, n.º 1, als. a) e b), 211.º, n.º 1, e 212.º, da CRP e do art. 22.º, n.º 1, do CC e art. 980.º, al. f) do CPC.

O acórdão recorrido decidiu do seguinte modo, quanto a esta matéria, “A excepção de ordem pública internacional/reserva de ordem pública, visa impedir a aplicação de uma norma estrangeira que, pela via indirecta da execução de sentença estrangeira, conduza, no caso concreto, a um resultado intolerável (aplicada ao nível dos casos concreto não comportando qualquer juízo de desvalor sobre a própria norma estrangeira cuja aplicação é recusada). Toda a acção preclusiva da ordem pública internacional incide directa e unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da lei estrangeira e não já sobre a lei em si. Não é a decisão propriamente que conta, nem os seus fundamentos, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento” – cfr., entre outros, Ac. STJ de 19/8/2008, Proc. 07A4790, cit. nas alegações e de 31/1/23, relatora Ana Resende, in www.dgsi.pt. Daqui se extrai, que o fundamento para a exclusão da revisão, respeita ao possível resultado da aplicação das normas estrangeiras reguladoras das relações materiais e não já à aplicação das normas estrangeiras em si mesmas. In casu, face ao exarado supra, não ficou demonstrado que a aplicação das normas (direito italiano e/ou outras) acarretariam/conduziriam, por via da revisão e confirmação da sentença, a um resultado intolerável, pondo em causa aspectos essenciais da ordem/sistema jurídico do foro. Acresce, que a revisão e confirmação da sentença revidenda também não coloca em causa a ordem pública internacional do Estado Português, em matéria de dualidade de jurisdições, já que ordem jurídica portuguesa, tal como a italiana, prevê uma dualidade de jurisdições – tribunais judiciais/tribunais administrativos (estes últimos dirimem conflitos emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais) -, inexistindo qualquer violação dos art.ºs 209/1 a) e b), 211 e 212 CRP. Assim, falece a pretensão.”

Em comentário à al. f) do art. 980.º do CPC, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa24, explicam que (…) a sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. É mister cindir a ordem pública internacional da ordenm pública interna, abrangendo esta princípios e normas imperativas que limitam a autonomia privada (art. 280.º, n.º 2, do CC), enquanto aquela “exprime um conjunto de princípios nacionais que vedam a aceitação interna de decisões estrangeiras, por contrariedade a valores muito significativos” e profundos do direito interno (art. 22.º do CC, cf. Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem, pp. 445-446).

É entendimento dominante na jurisprudência do STJ que a revisão de sentença estrangeira no nosso ordenamento jurídico tem uma natureza meramente formal, não pressupondo a análise dos fundamentos de facto e de direito da sentença a rever. Para aferir da violação ou não dos princípios de ordem pública internacional devemos cotejar o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, de modo a obstar que o caso concreto configure um resultado intolerável, não sendo suficiente que a solução dada pela sentença estrangeira seja diferente da solução que seria encontrada no direito nacional, mas antes que esse resultado seja manifestamente incompatível com o nosso direito interno, isto é, uma ofensa grosseira ou contradição flagrante com os princípios fundamentais da lei nacional, cfr. neste sentido os Acs. do STJ de 31-01-2021, Revista n.º 585/22.0YRLSB.S125, relatado pela Conselheira Ana Resende; de 22-04-2021, Revista n.º 78/19.3YRLSB.S126, relatado pelo Conselheiro Tibério Nunes da Silva; de 23-09-2021, Revista n.º 2247/20.4YRLSB.S127, relatado pelo Conselheiro Vieira e Cunha.

Salientamos o já citado Ac. do STJ de 05-04-2022, citando o também citado Ac. do STJ de 23-09-2021, que de forma lapidar nos esclarece que o que conta para vingar a excepção de ordem pública internacional não é a própria decisão, nem os seus fundamentos, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento.

Desta forma, entendemos que a condenação do Estado Português no pagamento de uma dada quantia a um particular italiano, devido à responsabilidade civil do Estado Português, no âmbito de um concurso público de empreitada, em que o Estado Português rejeitou a candidatura deste particular, sem cumprir o prévio e necessário contraditório (sendo certo que que a ilegalidade deste acto administrativo foi apreciada por, acórdão/sentença, de 7/12/99, proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo português que anulou a adjudicação disposta a favor de outras empresas concorrentes, considerando ilegítima a exclusão de uma proposta considerada anormalmente baixa em defeito da activação do necessário contraditório destinado a consentir que a referida empresa pudesse apresentar as suas justificações – cfr. sentença revidenda fls. 29 e sgs. (tradução)) não constitui um resultado ofensivo da ordem pública internacional ou mesmo um que resultado que viole valores e interesses essenciais ou estruturais do ordenamento jurídico português.

Em conclusão, entendemos, que deverá ser considerada totalmente improcedente a revista, devendo confirmar-se a decisão recorrida.

Sumariando:

I. Inexistindo norma que preveja que as sentenças estrangeiras sejam revistas e confirmadas nos tribunais administrativos, essa competência está atribuída aos tribunais comuns, concretamente, às secções dos Tribunais da Relação.

1. A questão de violação de imunidade de jurisdição relativa deve ser levantada junto do tribunal estrangeiro e pressupõe a existência dum acto de governo/jus imperii, e não, de natureza comercial/jure gestiones, como é o caso.

2. Não se justifica a recusa do reconhecimento da sentença estrangeira revidenda, uma vez que o seu objecto não é da exclusiva competência dos tribunais portugueses.

3. A condenação do Estado Português numa quantia devida a um particular italiano, no âmbito de um concurso público de empreitada, em que o Estado Português rejeitou indevidamente a candidatura daquele particular, conforme foi judicialmente reconhecido pelo STA português, não constitui um resultado ofensivo da ordem pública internacional, nem viola valores e interesses essenciais ou estruturais do ordenamento jurídico português.

DECISÃO

- Assim e pelos fundamentos expostos, improcede a revista.

Sem custas, atento à qualidade do recorrente (MºPº) e da acção.

Lisboa, 25-1-2024

Afonso Henrique (relator)

Isabel Salgado

Catarina Serra

______


1. Disponível na íntegra em  http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/146e58c5f2016691802578db003c7862?OpenDocument, cujo sumário é:

  I - Em matéria de reconhecimento de sentenças estrangeiras, perfilam-se duas orientações extremas: a da “revisão de mérito” e a da “aceitação plena”: a) no primeiro caso, a recepção de uma sentença impõe uma revisão de mérito, o que implica quase que se ignore o aresto de origem, relegado para a posição de simples fundamento, para que o Estado do foro proceda a julgamento, emitindo a final uma nova decisão de mérito; b) no segundo caso, advoga-se o acolhimento amplo das sentenças estrangeiras, sendo certo que cedo se reconheceu a dificuldade da sua aplicação no estado puro, o que originou a existência de excepções, considerando as peculiaridades dos ordenamentos jurídicos dos países de acolhimento.

  II - O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal, o que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa.

  III - Desde que o tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-se os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que se proceda a um novo julgamento da causa.

  IV - A excepção à referida regra só ocorre se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, caso em que a impugnação também pode ser fundada na circunstância de que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos da lei portuguesa – cf. art. 1100.º, n.º 2, do CPC.

  V - Em Portugal está consagrado o princípio segundo o qual as sentenças estrangeiras são admitidas a desenvolver na ordem jurídica do foro os efeitos que lhe são atribuídos no sistema jurídico de origem, tendo o Estado Português condicionado a produção de tais efeitos, salvo tratado ou lei especial em contrário, a um conjunto de requisitos sediados nos arts. 1094.º e segs. do CPC.

  VI - Nas situações em que se pede revisão de uma decisão que decretou o divórcio de um casal, proferida em tribunal estrangeiro, mesmo que a sentença revidenda integre a partilha dos bens do casal, não é legítimo fazer apelo à regra da competência exclusiva dos tribunais portugueses, constante do art. 65.º-A do CPC.

2. Não publicado na DGSI, estando disponível através do sharepoint, assim que o acesso se mostre regularizado, cujo sumário é, I - O nosso sistema de reconhecimento das sentenças estrangeiras é informado pelo princípio da revisão predominantemente formal, ou seja, pelo controlo da regularidade formal ou extrínseca da sentença estrangeira, que dispensa a apreciação dos seus fundamentos de facto e de direito. II - Deve tão-somente tomar-se em linha de conta a decisão contida na sentença estrangeira e não os respectivos fundamentos, como era geralmente entendido na vigência da versão anterior do preceito, por ser mais compatível com o nosso sistema de controlo das sentenças estrangeiras, que é fundamentalmente de revisão formal (ou de delibação).↩︎

3. Não publicado na DGSI, estando disponível através do sharepoint, assim que o acesso se mostre regularizado, cujo sumário é, I - O regime interno do direito português, excluídas convenções e outras fontes internacionais, consagra um sistema de simples revisão formal das decisões estrangeiras. II - Na ação de revisão e confirmação de sentença apenas se verifica se a decisão estrangeira está em condições de produzir efeitos em Portugal, isto é, se se verificam os requisitos taxativamente indicados nos arts. 978.º e ss. do CPC. III - O requerente necessita deste processo para a tutela do seu direito de ver reconhecida e confirmada a sentença estrangeira em que foi parte. IV - As decisões que respeitem ao exercício das responsabilidades parentais não são definitivas e podem ser sempre alteradas desde que se verifiquem factos ou circunstâncias que tenham aptidão a preencher a superveniência legitimadora de uma alteração. V - Mesmo revista a decisão dos autos, a recorrente sempre pode invocar/opor que há uma decisão posterior que regulamenta o exercício das responsabilidades parentais e alegar que a decisão que o requerente pretende seja revista, foi alterada por outra. Mas tal circunstância não é obstáculo à revisão.

4. Disponível em  http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6fa02bf0ff9e6574802586a1005a9d74?OpenDocument, cujo sumário é o seguinte, I - A revisão de sentença estrangeira ou acto equiparado com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional tem natureza formal, envolvendo apenas a verificação da regularidade formal ou extrínseca da sentença revidenda, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma. II - O requisito de autenticidade previsto na al. a) do art. 980.º do CPC, enquanto condição de confirmação da sentença estrangeira, traduz-se na necessidade de o tribunal adquirir, documentalmente, a certeza do acto jurídico postulado na decisão revidenda, ainda que não se encontre formalizado em sentença no sentido próprio do termo. III - A exigência da ausência de dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença a rever tem de ser entendida nos termos referidos no n.º 2 do art. 365.º do CC, relevando para tal apenas as dúvidas fundadas. IV - O requisito relativo à inexistência de dúvidas sobre a inteligência da decisão, previsto na 2.ª parte da citada al. a), reporta-se ao conteúdo da decisão, no sentido de que o mesmo deve ser facilmente apreensível pelo órgão jurisdicional português. Atenta a natureza formal do nosso sistema de revisão formal, não cabe analisar, para tal efeito, a coerência lógica entre o segmento decisório e os fundamentos fáctico-jurídicos constantes da decisão revidenda. V - Os princípios da ordem pública internacional do Estado Português a que se refere a al. f) do art. 980.º do CPC, dizem respeito aos princípios estruturantes da própria ordem jurídica portuguesa reportados aos valores essenciais do Estado português e que, nessa medida, não podem ceder. VI - Mesmo a entender-se que integraria a ordem pública internacional do Estado Português a regra da unicidade de decisão judicial quanto ao divórcio por mútuo consentimento e quanto à regulação das responsabilidades parentais, o resultado a que se chega, no caso, com confirmação da decisão revidenda (que decretou o divórcio entre as partes onde foi homologado o acordo entre as mesmas que relegaram para acção autónoma o estabelecimento do regime das responsabilidades parentais referente aos filhos menores de ambos) não contém, em si mesmo, qualquer violação afrontosa ou intolerável desse valor pois, quando da confirmação da decisão, o regime de responsabilidades parentais dos menores já há muito se encontrava judicialmente fixado por decisão, embora esta ainda não tenha sido objecto de revisão em Portugal.

5. Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b19fac13bf00794e80256e99003f6364?OpenDocument.

6. In Direito Processual Civil, 2019, 3.ª Edição, Vol. I, Almedina, p. 472 e ss.

7. Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/08b9289a992dc7c7802580820052539f?OpenDocument.↩︎

8. Jónatas Machado “in” Direito Internacional, 4ª edição, p. 239.

9. Texto integral disponível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9e4e95a984a78e16802589400059d275?OpenDocument.

10. Texto integral disponível em PDF.

11. Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/47AAB1D40FB6DE5180257A3200341C01.

12. Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b5792135ad656ab9802568fc003b6015?OpenDocument.

13. Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2494d0bd1a82f0d280257dab005d4332?OpenDocument.

14. Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/581e6b6b0905e3cc80257cee0032fccd?OpenDocument.

15. Texto integral em https://files.dre.pt/1s/2006/06/117a00/43444363.pdf.

16. Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a9f69e8f187e0ed08025883100365156?OpenDocument.

17. In Acção de Delibação, O Direito, Ano 152º (2020), III, Edições Almedina, p. 500.

18. Texto integral disponível em PDF.

19. In Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, Reimpressão, pp. 426 e ss..

20. In obra citada, pp. 510 e 511.

21. In obra citada, p. 511.

22. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª Edição, Lex, Lisboa, 116.

23. Cfr. neste sentido Luís de Lima Pinheiro, in Direito Internacional Privado, Vol. III, Tomo II, p. 222.

24. In Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, Reimpressão, pp. 428 e ss..

25. Texto integral disponível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a38ccb604133f4cc80258949003adf3e?OpenDocument.

26. Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cbdfaf11274e5d1c802586d800470bea?OpenDocument&ExpandSection=1.

27. Texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0ad9a653d026b8da8025875a0033f0c4?OpenDocument&Highlight=0,2247%2F20.4YRLSB.S1.