Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2652/19.9YRLSB.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
REQUISITOS
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A revisão de sentença estrangeira ou acto equiparado com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional tem natureza formal, envolvendo apenas a verificação da regularidade formal ou extrínseca da sentença revidenda, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma.
II - O requisito de autenticidade previsto na al. a) do art. 980.º do CPC, enquanto condição de confirmação da sentença estrangeira, traduz-se na necessidade de o tribunal adquirir, documentalmente, a certeza do acto jurídico postulado na decisão revidenda, ainda que não se encontre formalizado em sentença no sentido próprio do termo.
III - A exigência da ausência de dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença a rever tem de ser entendida nos termos referidos no n.º 2 do art. 365.º do CC, relevando para tal apenas as dúvidas fundadas.
IV - O requisito relativo à inexistência de dúvidas sobre a inteligência da decisão, previsto na 2.ª parte da citada al. a), reporta-se ao conteúdo da decisão, no sentido de que o mesmo deve ser facilmente apreensível pelo órgão jurisdicional português. Atenta a natureza formal do nosso sistema de revisão formal, não cabe analisar, para tal efeito, a coerência lógica entre o segmento decisório e os fundamentos fáctico-jurídicos constantes da decisão revidenda.
V - Os princípios da ordem pública internacional do Estado Português a que se refere a al. f) do art. 980.º do CPC, dizem respeito aos princípios estruturantes da própria ordem jurídica portuguesa reportados aos valores essenciais do Estado português e que, nessa medida, não podem ceder.
VI - Mesmo a entender-se que integraria a ordem pública internacional do Estado Português a regra da unicidade de decisão judicial quanto ao divórcio por mútuo consentimento e quanto à regulação das responsabilidades parentais, o resultado a que se chega, no caso, com confirmação da decisão revidenda (que decretou o divórcio entre as partes onde foi homologado o acordo entre as mesmas que relegaram para acção autónoma o estabelecimento do regime das responsabilidades parentais referente aos filhos menores de ambos) não contém, em si mesmo, qualquer violação afrontosa ou intolerável desse valor pois, quando da confirmação da decisão, o regime de responsabilidades parentais dos menores já há muito se encontrava judicialmente fixado por decisão, embora esta ainda não tenha sido objecto de revisão em Portugal.
Decisão Texto Integral:




Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I - Relatório

1. AA, propôs (em 16-10-2019) acção de revisão de sentença estrangeira contra BB, pedindo a confirmação da sentença proferida pela …... Vara da Família e Sucessões do Foro Regional XII, Comarca de …, estado de …., …., que decretou o divórcio entre ambos.

Alegou para o efeito:

- ter casado com o Requerido em 22-11-2003, em …., …., …, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio consensual em acção que correu termos na ... Vara da Família e Sucessões do Foro Regional XII, Comarca de ….;

-  terem sido objecto de acções próprias as questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais referentes aos dois filhos menores de ambos.

 

2. Após citado, o Requerido deduziu oposição invocando a falta de legalização da sentença revidenda com a apostilha de Haia, defendendo ainda que a sentença que decretou o divórcio entre as partes não pode ser objecto de revisão sem que, simultaneamente, seja revista e confirmada a sentença que regulou as responsabilidades parentais relativas aos filhos de ambos.

3. Em resposta a Requerente alegou que no âmbito do processo de divórcio as partes acordaram remeter as questões relativas à regulação do exercício das responsabilidades parentais para outro processo, onde foi efectivamente regulado, mediante acordo judicialmente homologado. Refere, ainda, apenas pretender a revisão e confirmação da sentença que decretou o divórcio; não a decisão judicial que regulou o exercício das responsabilidades parentais referentes aos filhos de ambos.

4. Foram juntos pelas partes os seguintes documentos:

- pela Requerente: certidão da sentença revidenda, emitida pelo Tribunal que a proferiu, com nota de trânsito em julgado e certidão do seu assento de nascimento português;

- pelo Requerido: certidões dos assentos de nascimentos dos filhos de ambos e o seu assento de nascimento, bem como certidões dos processos judiciais relativos à regulação do exercício das responsabilidades parentais referentes aos filhos de ambos, bem como cópia certificada do seu cartão de cidadão.

5. Em alegações o Requerido pugnou pela improcedência da acção e a Requerente e o Ministério Público pela procedência da mesma. 

6. Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ….. (de 27-10-2020) foi julgada procedente a acção e confirmada a sentença proferida em 05-08-2014 pela … Vara da Família e Sucessões do Foro Regional XII, Comarca de …., estado de …., ….., que decretou o divórcio entre a Requerente e o Requerido, e homologou o acordo que manifestaram, nos termos do qual a ora requerente “voltará a usar o seu nome de solteira.

7. Inconformado o Requerido interpôs revista, defendendo que o acórdão violou a alínea f) do artigo 980.º do Código de Processo Civil (doravante CPC). Concluiu nas respectivas alegações (transcrição):

a) A sentença estrangeira que a Recorrida pretende ver confirmada pela Relação é a sentença que consta na íntegra da “certidão de objeto e pé” de fls 54/55 do processo …, expedida em 14/08/2019 (artigo 6.º da PI e Doc.3 desta, Ref.ª CITIUS ….. de 16/10/2019);

b) Embora o citado Doc.3 não se encontre legalizado com a apostilha de Haia, não podendo, por força dos artigos 423.º e 440.º do CPC, fazer prova dos fundamentos alegados na PI, constitui prova adquirida nos autos pois mostra-se datado, autenticado e assinado digitalmente pelo funcionário judicial, não tendo a presunção de autenticidade que daí advém por efeito dos artigos 365.º, 369.º e 370.º do Código Civil sido ilidida pela certidão de trânsito em julgado e pela cópia do termo de audiência, de fls. 165-167;

c) Nos termos conjugados do artigo 413.º e da alínea a) do artigo 980.º do CPC, o Doc.3 da PI não pode deixar de ser tomado em consideração para o efeito de demonstrar que no direito processual ...... a sentença proferida em audiência é plasmada em documento formalmente idêntico à sentença na aceção pátria do conceito e que nem a certidão apostilhada de fls 165 dos autos nem a cópia apostilhada do termo de audiência de fls. 167 são a verdadeira sentença ......;

d) Ao decidir em sentido contrário, o Acórdão recorrido violou as disposições anteriormente citadas e confirmou um termo de audiência que se demonstrou ser ato judicial diferente da sentença cuja revisão foi pedida na PI, em violação da exigência de certeza sobre a autenticidade do documento estabelecida pela alínea a) do artigo 980.º e pelo artigo 984.º do CPC;

e) Ao aceitar como decisão revidenda uma mera ata de audiência que não incorpora o acordo dos cônjuges quanto à partilha dos bens comuns (cfr. Ref.ª Citius …. de 13/08/2020), mas meras remissões para os “termos de fls 03/04 da petição inicial”, para o “requerimento inicial e a emenda”, para “o acordo e a emenda celebrados entre as partes” e para as “cláusulas e condições fixadas na avença e respectiva emenda”, o Acórdão recorrido, considerando que a sentença revidenda pode ser cindida pelo Tribunal da Relação na sua extensão e conteúdo, confirmou como sentença um ato processual que não contém o acordo quanto à partilha dos bens comuns do casal;

f) Como consequência, o Acórdão recorrido violou o artigo 5.º, n.º 2, alínea b) e novamente os artigos 980.º, alínea a), e 984.º do CPC, confirmando um ato insuscetível de ser conhecido em toda a sua extensão e conteúdo e, por conseguinte, manifestamente ininteligível;

g) Ao abdicar de tomar conhecimento do conteúdo da decisão revidenda e, por conseguinte, do teor do “acordo” quanto à partilha dos bens casal, o Acórdão Recorrido fez errada aplicação do artigo 413.º do CPC e concluiu erradamente que os bens comuns do casal objeto do acordo de partilha não se encontram situados em Portugal, quando do citado Doc.3 da PI resulta que, à exceção de uma conta bancária no Banco ...... I......SA, todos os demais bens do casal se situam em Portugal, sendo um deles um imóvel:

“1- um imóvel financiado na Cidade de …., Portugal, sito a Rua ….. A parcela mensal do financiamento é na quantia de 900 euros, sendo que o imóvel está locado pela quantia de 850 euros com retenção de imposto de renda em 20%. A dívida está em 270.860,00 euros. Já a A avaliação foi de 220.000,00 euros. Sendo que o primo da Sra. AA CC é avalista do contrato de financiamento. Diante da situação do imóvel, esse permanecerá no nome dos cônjugues, 50% para cada.

h) Na ordem jurídica portuguesa, por força dos artigos 1775.º, 1776.º, 1778.º e 1778.º-A do Código Civil, vigora a regra da unicidade da decisão judicial quanto ao divórcio e às responsabilidades parentais, segundo a qual não pode ser decretado o divórcio por mútuo consentimento sem que prévia ou simultaneamente seja judicialmente homologado o regime das responsabilidades parentais o que integra o regime de proteção dos superiores interesses das crianças e constitui não apenas um função indeclinável do Estado como também princípio da ordem pública internacional do Estado português;

i) Ao considerar, fazendo referência aos factos provados 11, 12 e 13, que “à data da propositura da presente ação já as responsabilidades parentais relativas aos filhos do casal se achavam reguladas por sentença transitada em julgado”, o Acórdão recorrido fez errada aplicação não só do artigo 12.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, segundo o qual a regulação das responsabilidades parentais tem a natureza de processo de jurisdição voluntária como também do artigo 988.º, n.º 1, do CPC, porquanto as respetivas decisões, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, podem ser alteradas, nomeadamente com fundamento em circunstâncias supervenientes o que é precisamente a situação subjacente aos factos provados dado que, conforme Procuração junta aos autos com a PI (Ref.ª Citius …. de 16/10/2019), está demonstrado que à data da propositura da presente ação de revisão a citada sentença era já objeto de uma ação revisional (Facto 14), tendo os menores, por conseguinte, deixado de poder residir com a Recorrida em …..;

j) Sendo a lei substantiva portuguesa a lei nacional comum do casal e dos filhos menores, devem as citadas normas ser aplicadas ao caso dos autos, porque esta é a solução mais favorável aos superiores interesses dos menores ora representados pelo Recorrente;

k) Ao aduzir que a sentença revidenda não foi proferida por um Tribunal da União Europeia para lhe recusar a aplicação do Regulamento (CE) N.º 2201/2003, o Acórdão recorrido fez errada aplicação dos artigos 1775.º, 1776.º, 1778.º e 1778.º-A do Código Civil e violou o artigo 983.º, nº 2 do CPC, porquanto os limites destes resultantes não incidem sobre a sentença revidenda, mas antes sobre a sentença de reconhecimento uma vez que é o resultado desta que coloca as crianças numa situação de desigualdade de proteção perante as demais, e de particular vulnerabilidade, o que é manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português que coloca o interesse dos menores acima dos interesses dos seus progenitores;

8. Conclui a Recorrida nas suas alegações (transcrição):
a)  A decisão recorrida não pode merecer deste Supremo Tribunal censura alguma; e, salvo melhor opinião, atenta a forma como litiga, o Recorrente ou não compreendeu o conteúdo do acórdão de que recorre e os fundamentos de facto e de direito em que o aresto de estribou; ou então, o que é substancialmente mais grave, não o quer compreender.

b) O acórdão ora recorrido julgou procedente a ação e confirmou a sentença proferida 05/08/2021 pela …..ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional XII, Comarca de …., estado de …, ….., que decretou o divórcio entre AA e BB, Recorrida e Recorrente, e homologou o acordo que manifestaram, nos termos do qual a ora Recorrida voltará a usar o nome de solteira.

c)  O Recorrente alega que o acórdão recorrido “suprimiu na sua ponderação a consideração de premissas essenciais, o que obsta a que se possa afirmar indubitavelmente que a decisão não conduz a resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem publica internacional do Estado Portugal decidindo assim com violação da alínea f) do artigo 980.º do CPC” e que “confirmou um ato processual de conteúdo ininteligível ao aceitar como decisão revidenda uma mera ata de audiência que não incorpora o acordo dos cônjuges quanto à partilha de bens comuns, mas meras remissões para os termos de fls 03/04 da petição inicial do processo ......, para o requerimento inicial e a emenda, para o acordo e a emenda celebrados entre as partes e para as clausulas e condições fixadas na avença e respetiva emenda”.

d) O ora Recorrente não tem razão nos seus fundamentos, não podendo proceder a alegação de que não se encontram preenchidos os requisitos do artigo 980.º do CPC.

e) O requerente da ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira está dispensado de fazer prova direta e positiva dos requisitos das alíneas b) a e) do artigo 980.º do CPC; a prova de que não se verificam os requisitos das alíneas b) a e) do artigo mencionado compete ao requerido, devendo, em caso de dúvida considerar-se preenchidos. Acompanha-se por isso o entendimento plasmado no acórdão recorrido do doutro tribunal a quo, com respaldo nos Acórdãos do STJ de 21/02/2006 (Oliveira Barros), p. 05B4168 e de 12/07/2008 (Moitinho de Almeida), p. 05B1880.

f) No processo especial de revisão de sentença estrangeira o Tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do ato jurídico postulado na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na aceção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte a decisão revidenda ainda que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença.

g) Conforme considerou o acórdão recorrido, a certidão junta pela Requerente, ora Recorrida, mostra-se devidamente autenticada, não deixa dúvidas sobre a sua autenticidade, nem sobre a inteligibilidade da decisão proferida na sentença revidenda, aliás, a documentação junta aos autos, analisada devidamente e de forma criteriosamente pelo douto tribunal a quo permitiu concluir que não há violação dos requisitos do artigo 980.º do CPC.

h) O Recorrente analisa os diversos documentos juntos aos autos e conclui, também, que estes constituem prova adquirida nos autos que não podem deixar de ser tomadas em consideração nos termos conjugados do artigo 413.º do CPC pois mostram-se datados e assinados digitalmente pelo funcionário judicial, não tendo a presunção de autenticidade que daí advém por efeitos dos artigos 365.º, 369.º e 370.º do CC sido ilidida pela certidão de transito em julgado e pela cópia do termo de audiência de fls. 165-167.

Efetuado o exame global de toda a  documentação atendida nos autos, entre os quais a certidão de trânsito em julgado da decisão revidenda, o termo de audiência de divórcio consensual, e a certidão de objeto e pé do processo, todos com a menção de que o “documento é cópia do original, assinado digitalmente por DD, liberado nos autos em 05/08/2014 às 16:28. Para conferir o original, acesso o site https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital/pg/abrirConferenciaDocumento.do, informe o processo ….0011 e código ……”; “documento é cópia do original, assinado digitalmente por EE, liberado nos autos em 05/08/2014 às 16:16. Para conferir o  original, acesso o site https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital/pg/abrirConferenciaDocumento.do, informe o processo …..0011 e código …..”; “documento é cópia do original, assinado digitalmente por FF. Para acessar os autos processuais acesse o site https://esaj.tjsp.jus.br/esaj, informe o processo …0011 e o código …..”, respetivamente, foram suficientes para o Tribunal a quo aferir da efetiva situação jurídica dos cônjuges e do teor da sentença ...... que decretou o divórcio, permitindo-lhe, com a segurança jurídica exigida, julgar procedente a ação e confirmar a sentença que proferiu o divórcio e a regulação das relações pessoais e patrimoniais do recorrente e recorrida.

j) O Recorrente não impugna o conteúdo dos documentos em análise; pelo contrário, reconhece-os e atesta, inclusive, a sua validade enquanto “prova adquirida nos autos, sendo documento autenticado e assinado digitalmente pelo funcionário judicial, e por isso válido nos termos conjugados do artigo 413.º do CPC e 365.º, 369.º e 370.º do Código Civil”.

k) Andou por isso bem o Tribunal a quo ao considerar que nada impede a revisão e confirmação da sentença proferida em 05/08/2014 pela …..ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional XII, Comarca de ….., estado de …., ….., para vigorar no direito interno português.

l) A jurisprudência maioritária salienta que o pendor predominantemente formal característico da revisão face ao sistema português tem vindo a ser entendido no sentido de a mera junção de documento certificativo apenas da parte dispositiva da sentença, ou decisão propriamente dita ser bastante para satisfazer a exigência da alínea a) do artigo 980.º do CPC e, assim, viabilizar a concessão do exequatur. Assim sucedeu nos Acórdãos da Relação de Lisboa, de 14-11-2006 (processo nº 3329/2006-7, relatadopela Desembargadora RosaMariaRibeiroCoelho), da RelaçãodoPorto, de 07-05-2009 (processo nº 0835948, relatado pelo Desembargador Carlos Portela) e, da mesma Relação, de 25-11-2010 (processo 108/10.4YRPRT.P1, relatado pela Desembargadora Maria Amália Santos).

n) O Tribunal português com competência para a revisão e confirmação tem de adquirir, documentalmente, a certeza do ato jurídico postulado na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na acepção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte a decisão revidenda, ainda que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença que consta do art. 607º do CPC; por outras palavras, ao sentido a atribuir à expressão “decisão” que nela é usada e a respeito da qual se exige que possua a característica da inteligência ou inteligibilidade, sempre se entendeu que estava em causa tão só o dispositivo da sentença, ou seja, aquilo que o tribunal estrangeiro decidiu e já não “a coerência lógica entre as premissas e a conclusão”, “pois isso já seria, de certo modo, proceder a uma revisão de mérito, a qual tem carácter excepcional entre nós” . Pode concluir-se que o legislador ao aludir a “decisão”, está a reportar-se à parte dispositiva da sentença, à parte onde se contém o comando nela emitido.

o) O caso em análise contem certificada em toda a documentação do processo a decisão que dissolveu, por divórcio, o casamento celebrado entre o Recorrente e a Recorrida e na qual se incorpora também o acordo dos cônjuges quanto à partilha dos bens comuns. Não há dúvidas sobre a autenticidade dos documentos de onde consta a decisão a rever. Resulta do processo em causa que foi dissolvido, por divórcio, o casamento celebrado entre as partes; e o reconhecimento de tal comando decisório que decretou o divórcio, em si mesmo considerado, não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

p) O requerente da ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira está dispensado de fazer prova direta e positiva dos requisitos das alíneas b) a  o artigo 980.º do CPC; a prova de que não se verificam os requisitos das alíneas b) a e) do artigo mencionado compete ao requerido, devendo, em caso de dúvida considerar-se preenchidos. O requerido, ora Recorrente não provou a não verificação de um desses requisitos.

q) Verificando-se todos os requisitos necessários para a confirmação da decisão, impõe-se negar provimento ao recurso apresentado, mantendo-se a decisão do tribunal a quo.

r) Ao Tribunal a quo apenas compete exercer uma sindicância de carácter formal e não um reexame de mérito da decisão revidenda.

s) Não oferece dúvidas a autenticidade dos documentos que contêm a decisão a rever nem se suscitam dúvidas sobre a inteligência da decisão; a referida decisão proveio de entidade competente para a declarar; a decisão transitou em julgado e não versa sobre a matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses e não há indícios de que não tenha sido observado os princípios do contraditório e da igualdade das partes; a decisão a rever não é violadora do princípio de ordem pública internacional do Estado Português, e nada indicia que se possa invocar a litispendência ou caso julgado relativamente à mesma.

t) O Recorrente alega ainda que a sentença revidenda não pode ser reconhecida e revista porque resulta manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português porquanto não cumpre a regra da unicidade de decisão judicial quanto ao divórcio por mútuo consentimento e quanto à regulação das responsabilidades parentais (o Recorrente alega que não pode ser decretado o divórcio por mútuo consentimento sem que previa ou simultaneamente seja judicialmente homologado o regime das responsabilidades parentais).

u) Quanto a este ponto, a Recorrida acompanha na íntegra o douto entendimento plasmado no acórdão recorrido, e considerando a clareza e simplicidade de tal explicação, limita-se a decalcar o que é proferido: “O requerido sustentou que tal requisito não se encontra preenchido, porquanto na ação de divórcio que correu termos entre as partes as mesmas não manifestaram qualquer acordo no tocante à regulação do exercício das responsabilidades parentais referentes aos filhos de ambos, e porque em seu entender, os arts. 1775º, 1776º, 1778º e 1778º-A do Código Civil português devem ser interpretados no sentido de que não podem os cônjuges intentar ação de divórcio por mútuo consentimento sem que no âmbito da mesma ação acordem quanto ao exercício das responsabilidades parentais relativas aos filhos. Contudo, ainda que se interpretem os citados preceitos de acordo com o entendimento manifestado pelo requerido, sempre haverá que reconhecer que à data da propositura da presente ação já as responsabilidades parentais relativas aos filhos do casal se achavam reguladas por sentença transitada em julgado. Em consequência, no presente momento qualquer das partes pode intentar ação de revisão de sentença estrangeira tendo por objeto a sentença proferida na ação de guarda e regulamentação de visitas que a requerente intentou contra o requerido. O requerido manifesta o receio de que o reconhecimento dos efeitos do seu divórcio na ordem jurídica portuguesa sem que simultaneamente sejam reconhecidos os efeitos da decisão que regulou as responsabilidades parentais dos filhos do casal possa abrir caminho a que a requerente traga as crianças para Portugal e as desloque para outro país da União Europeia. Temos dificuldade em compreender como tal poderia suceder se, como o próprio requerido afirma, as crianças residem consigo no .... … Mas ainda que tal risco se verificasse, a forma de tutela dos interesses das crianças e do requerido enquanto pai não se alcança com a recusa do reconhecimento da sentença que decretou o divórcio entre as partes, mas antes no âmbito dos competentes procedimentos judiciais junto do Tribunal de Família e Crianças internacionalmente competente. A julgar pela pretensão que manifestou no articulado de oposição, o que o requerido parece pretender é que se inviabilize a revisão da sentença que decretou o divórcio entre as partes até que se mostre decidida a ação revisional de guarda que intentou contra a requerente. Com todo o respeito, um tal entendimento é que viola a ordem pública internacional do Estado Português, na medida em que obrigaria a requerente a manter-se casada, à luz do Direito Português, quando já é divorciada à luz do Direito ......, sendo certo que o requerido não questiona nem a validade nem a eficácia do divórcio...”

v) Com efeito, à data da propositura da presente de revisão da sentença estrangeira, já as responsabilidades parentais relativas aos filhos do Recorrente e Recorrida estavam reguladas por sentença transitada em julgado: em 16/09/2015 foi estabelecido e judicialmente homologado o acordo na ação de alimentos que correu termos na …..ª Vara da Família e Sucessões do Tribunal de Justiça do Estado de …. Comarca de …., Foro Regional XI – …., …. (processo n.º …..0011) que abrangeu não só as obrigações de alimentos como também o regime de guarda e visitas dos menores.

w) O Recorrente menciona a instauração de um processo de revisão do regime de responsabilidades parentais em 17/07/2019 no entanto a Requerente, ora Recorrida, não foi à data citada em juízo para qualquer ação. Na presenta data está, portanto, fixado o regime de responsabilidades parentais dos menores obtido por acordo entre Recorrente e Recorrido e homologado pelo tribunal judicial competente.

x) A Recorrida não pretendeu a revisão e confirmação desta sentença quanto ao regime de responsabilidades parentais dos filhos menores das partes, pretendeu e peticionou tão só a confirmação e revisão da decisão que decretou o divórcio com o Recorrente, a qual foi proferida no acórdão recorrido.

y) A julgar procedente a alegação do Recorrente, a Recorrida estaria obrigada a manter-se casada à luz do Direito Português, enquanto não fosse “obtido acordo em ação revisional de guarda dos menores”, quando já é divorciada à luz do Direito ......, o que não se pode conceder.

z) Acompanha-se uma vez mais o raciocínio do douto acórdão recorrido que considera que este entendimento do Recorrente, sim, viola a ordem pública internacional do Estado Portugal ao querer obter os efeitos de um divorcio por mútuo consentimento e acordo de alteração das responsabilidades parentais, quando, na realidade, o divórcio das partes já transitou em julgado em 05/08/2014 por decisão proferida no processo n.º ……0011 ….ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional XII, Comarca de …., estado de …., …...

aa) Assim sendo, está por de mais evidente que se encontram cumpridos todos os requisitos do artigo 980.º do CPC, fazendo soçobrar a pretensão formulada pelo Recorrente, não permitindo por isso que se conceda provimento ao recurso de revista.

bb) Pelo que deverá se deverá negar provimento ao recurso, o acórdão recorrido ser mantido e confirmada a sentença proferida em 05/08/2014 pela ….ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional XII, Comarca de ….., estado de …, ...., que decretou o divórcio entre a Recorrida e Recorrente.”.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do CPC) impõe-se conhecer as seguintes questões:
ð Da autenticidade e inteligência da decisão revidenda
ð Da violação dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português

1. Os factos

1. Provados

1- A Requerente, AA nasceu em 29-07-1978, e é filha de GG e de HH.

2- O Requerido BB nasceu em 23-11-1974, e é filho de II e de JJ.

3- Do assento de nascimento do requerido consta, sob o averbamento n° …, de 22-072008 a menção de que o mesmo “adquiriu a nacionalidade portuguesa, nos termos do artigo 3°, n° 1, da Lei n.° 37/81, de 03 de Outubro.”.

4- No dia 22-11-2003, em …, estado de …, ...., a Requerente e o Requerido casaram um com o outro, passando a requerente a usar “AA”.

5- O casamento referido em 4- foi inscrito no registo civil português através do assento de casamento n.º …. do ano de 2005 da Conservatória dos Registos Centrais.

6- LL nasceu em 20-08-2007 e é filha da Requerente e do Requerido.

7- MM nasceu em 26-12-2010, e é filho da Requerente e do Requerido.

8- A Requerente e o Requerido intentaram acção de divórcio consensual, que correu termos na …ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional XII, Comarca de …, estado de …, .... sob o n.º …...0011.

9- No âmbito do processo referido em 8-, por sentença proferida 05-08-2014 foi decretado o divórcio entre a Requerente e o Requerido, e homologado o acordo que os mesmos manifestaram, nos termos do qual, nomeadamente, “Os cônjuges decidem emendar vestibular para que se processe dos presentes autos tão somente o seu divórcio consensual, com consequente partilha de bens e voltando o cônjuge virago usar o nome de solteira, ou seja AA, relegando-se para ações próprias as questões relativas à guarda dos filhos menores, regulamentação de visitas e alimentos.”.

10- A sentença referida em 9- transitou em julgado na mesma data em que foi proferida.

11- A Requerente intentou contra o requerido uma “ação de guarda e regulamentação de visitas” que correu termos no mesmo tribunal referido em 8- sob o n° …....0011.

12- No âmbito do processo referido em 11, em 24-09-2015 foi proferida sentença homologando o acordo manifestado pelas partes, nos termos do qual, nomeadamente, os mesmos ajustaram o seguinte: “(...) GUARDA E VISITAS: Com relação a Guarda dos filhos a mesma será exercida de forma compartilhada, tendo os menores como residência fixa a da genitora sito Rua …. Quanto ao regime de visitas dos filhos fica estabelecido que: a) o pai poderá exercê-lo em finais de semana alternados retirando os filhos ao final do expediente escolar as sextas-feiras devolvendo no domingo até às 2oh diretamente na residência materna, iniciando no próximo final de semana. a.1) O genitor irá retirar os menores diretamente na salda da escola todas as quintas-feiras, devolvendo-os na escola no dia seguinte; b) em caso de feriado prolongado os filhos permaneceram com os monitores com quem passaram ou passarão o final de semana; c) no dia 24 de dezembro os filhos permanecerão sempre na companhia da mãe e no dia 25 de dezembro o pai irá retirá-los às 9:00 da manhã devendo devolvê-los no dia 26/12 até às 12h; d) o Ano- Novo dos anos pares os filhos passaram com o pai e dos anos ímpares passaram com a mãe; e) as férias escolares de janeiro e julho cada genitor passará uma metade os filhos esclarecendo que a primeira metade do mês de janeiro será do genitor que passar o ano novo; f) o aniversário da mãe e o dia das mães os filhos passaram com a mãe; g) o aniversário do pai dia dos pais os filhos passaram com o pai; h) os genitores poderão amigavelmente ampliar o regime de visitas conforme lhes convenha. (...)”.

13- A sentença referida em 12- transitou em julgado na mesma data em que foi proferida.

14- Em 17-07-2019 o Requerido intentou contra a requerente uma “ação revisional de guarda”, que sob o n° …...0011, corre termos no mesmo Tribunal referido em 11-, e “em dependência” ao processo ali identificado.

15- No processo referido em 14-, o Requerido alegou que a Requerente veio residir para Portugal, ficando os filhos de ambos a seu cargo; e requereu “a alteração do regime de guarda para a guarda unilateral”.

16- Mais requereu “que seja concedida a Tutela Antecipada inaudita altera parte, para que seja reconhecida a situação fática e concedida a guarda unilateral de seus filhos ao ora requerente”.

2. O direito

O Recorrente não se conformou com a decisão do Tribunal da Relação …. (de 27-10-2020) que julgou procedente a acção e confirmou a sentença proferida, em 05-08-2014, pela …ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional XII, Comarca de …., estado de …., ...., que decretou o divórcio entre a Autora, aqui Recorrida, e o Requerido, BB, aqui Recorrente, e homologou o acordo que manifestaram, nos termos do qual e entre mais aquela voltará a usar o nome de solteira.

Discorda da decisão invocando os seguintes fundamentos:

- o tribunal a quo confirmou um acto processual de conteúdo ininteligível ao aceitar como decisão revidenda uma mera acta de audiência que não incorpora o acordo dos cônjuges quanto à partilha de bens comuns (mas meras remissões para os termos de fls. 03/04 da petição inicial do processo ......);

- a decisão confirmada conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, porquanto não cumpre a regra da unicidade de decisão judicial quanto ao divórcio por mútuo consentimento e quanto à regulação das responsabilidades parentais (por não poder ser decretado o divórcio por mútuo consentimento sem que previa ou simultaneamente seja judicialmente homologado o regime das responsabilidades parentais).

Entende, por isso, não se encontrarem verificados os requisitos necessários à confirmação previstos nas alíneas a) e f) do artigo 980.º do CPC.

Carece de razão, conforme passaremos a justificar.

A revisão de sentença estrangeira ou acto equiparado com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional é de natureza formal, envolvendo tão só a verificação da regularidade formal ou extrínseca da sentença revidenda, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma.

Trata-se, pois, de um sistema de simples revisão formal[1] em que o princípio do seu reconhecimento reside na aceitação da competência do órgão de onde emana, limitando-se o tribunal a verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir em Portugal os mesmos efeitos que lhe são atribuídos no sistema de origem, impondo-se, para o efeito, a observância dos requisitos previstos no artigo 980.º, do CPC[2], sendo de conhecimento oficioso a verificação dos pressupostos a que se referem as alíneas a) e f) do citado artigo 980.º.

1. Da autenticidade e inteligibilidade da decisão revidenda

O Recorrente põe em causa os requisitos de autenticidade e inteligibilidade dos documentos juntos pela Requerente alegando que o Acórdão recorrido confirmou um ato processual de conteúdo ininteligível ao aceitar como decisão revidenda uma mera ata de audiência que não incorpora o acordo dos cônjuges quanto à partilha dos bens comuns (cfr. Ref.ª Citius …. de 13/08/2020), mas meras remissões para os “termos de fls 03/04 da petição inicial” do processo ......, para o “requerimento inicial e a emenda”, para “o acordo e a emenda celebrados entre as partes” e para as “cláusulas e condições fixadas na avença e respectiva emenda.

A argumentação em que se sustenta ignora duas realidades:

- o teor e a natureza da documentação constante dos autos, de acordo com a qual foi fixada a matéria de facto provada;

- o alcance dos requisitos de autenticidade e inteligência da decisão revidenda a que alude a alínea a) do artigo 980.º, do CPC.
Conforme se encontra acertadamente salientado no acórdão recorrido ao referir-se ao requisito previsto na alínea a) do artigo 980.º, do CPC, esta condição de confirmação da sentença estrangeira imposta pela nossa lei traduz-se na necessidade de o tribunal adquirir, documentalmente, a certeza do acto jurídico postulado na decisão revidenda, ainda que não se encontre formalizado em sentença em sentido próprio. Assim, há que aceitar, para tal efeito, o documento estrangeiro enquanto suporte da decisão revidenda ainda que sob o ponto de vista da sua forma não se mostre em paridade com a peça processual que no nosso direito preenche o conceito de sentença.
Por outro lado, a exigência da ausência de dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença a rever tem de ser entendida nos termos referidos no n.º 2 do artigo 365.º do Código Civil, relevando para tal apenas as dúvidas fundadas.
No que se refere à inexistência de dúvidas sobre a inteligência da decisão, requisito aludido na 2.ª parte da citada alínea a), o seu alcance reporta-se ao conteúdo da decisão, no sentido de que o mesmo deve ser facilmente apreensível pelo órgão jurisdicional português, não cabendo, porém, analisar da coerência lógica entre o segmento decisório e os fundamentos fáctico-jurídicos constantes da decisão revidenda, atenta a natureza formal do nosso sistema de revisão formal[3].

No caso, a fixação dos factos n.ºs 8 e 9 da matéria provada assenta em dois documentos juntos pela Requerente, autenticados com apostilha[4], na sequência do despacho que lhe foi dirigido pelo tribunal recorrido[5], que constituem fls. 165-167 dos autos. A saber:

- documento intitulado “certidão–trânsito em julgado, proveniente do Tribunal Judicial do Estado de …, Comarca de …., Foro Regional XII, …ª Vara da Família e Sucessões, referente ao Processo digital com o n.º …..0011 e indicando na menção “Classe- Assunto”: “Divórcio Consensual – Casamento”; na menção “Requerente” “BB e outro”, com o seguinte teor: “Certifico e dou que a r. sentença de fls. 44/45 transitou em julgado em 05/08/2014. Nada Mais. …., 05 de Agosto de 2014. Eu,, DD, Escrevente Técnico Judiciário. Consta ainda do documento a consignação da assinatura digital de DD;

- documento intitulado de “termo de audiência de divórcio consensual”, proveniente do Tribunal Judicial do Estado de …., Comarca de ….., Foro Regional XII, …ª Vara da Família e Sucessões, referente ao Processo digital com o n.º …...0011, indicando como data de audiência “05/08/2014 às 14:00h”, com o seguinte teor:

Nesta cidade de …., Edifício do Fórum, Sala de Audiências do Juízo, compareceram à presença do MM. Juiz de Direito da …. Vara da Família e Sucessões do Foro Regional XI-… DR. EE, as partes supra qualificadas, que manifestaram ao MM. Juiz a intenção livre e espontânea de divorciar-se, ratificando, no ato, o acordo apresentado. Em seguida compareceram a Dra. Promotora de Justiça, na função de Curadora de Família, Dra. NN, e a Advogada Dra. OO, OAB/SP …..546. Pela Dra. Promotora de Justiça foi dito que, tendo sido observadas as formalidades legais, nada tinha que opor à homologação do divórcio, INICIADOS TRABALHOS, pela ordem, pediu a palavra a Advogada dos divorciandos, para emendar a inicial nos seguintes termos: MM. Juiz, considerando que o único consenso possível para a guarda compartilhada é a divisão da permanência dos filhos com cada um dos divorciandos na forma prevista inicial, e que encontrou dificuldades para homologação por esse MM. Juízo, os cônjugues decidem emendar a vestibular para que se processe nos presentes autos tão somente seu divórcio consensual, com consequente partilha de bens e voltando ao cônjugue  virago a  usar seu nome de solteira, ou seja, AA, relegando-se para ações próprias as questões relativas à guarda dos filhos menores, regulamentação de visitas e alimentos. Quanto aos alimentos para os próprios divorciandos, neste ato, ratificam que dispensam reciprocamente, uma vez que exercem atividades laborativas. Quanto à partilha de bens, ficam ratificados os termos de fls 03/04 da petição inicial. Dada a palavra a Dra. Promotora de Justiça, pela mesma foi dito: MM. Juiz, pelo recebimento da emenda da exordial, nada opondo aos pedidos. Em seguida, pelo MM. Juiz de Direito foi, então, proferida a seguinte sentença: “Vistos. 1. Recebo a emenda à inicial apresentada neste termo, para que produza seus jurídicos e legais efeitos, ficando excluídos os pedidos de guarda, visitas e alimentos aos filhos menores do casal, que serão objeto de ações próprias. 2. Por outro lado, o requerimento inicial e a emenda satisfazem as exigências do artigo 226, 6º, da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 66/10, que suprimiu o requisito de prévia comprovação da separação de fato por mais 02 (dois) anos. 3. Ante o exposto, HOMOLOGO, por sentença, o acordo e a emenda celebrados entre as partes, para que produzam seus jurídicos e legais efeitos, e DECRETO O DIVÓRCIO CONSENSUAL dos requerentes, que se regerá pelas cláusulas e condições fixadas na avença e respetiva emenda, JULGANDO, via de consequência, EXTINTA a presente ação de conhecimento, com resolução do mérito, nos termos do artigo 269, inciso III, do Código de Processo Civil. Custas na forma da lei. Sentença publicada em audiência, intimadas as partes. Registre-se, sendo autorizada a extração de cópias necessárias.” Pelos interessados, foi manifestada a renúncia ao direito de recorrer. Pelo MM. Juiz foi proferido a seguinte decisão: “Homologo a renúncia ao direito de recorrer. Certifique-se, desde já o trânsito e expeça-se mandado de averbação. Para a expedição da carta de sentença, cumpram-se as obrigações acessórias previstas na legislação do ITCMD (Leis estaduais 10.705/2000 e 10.992/2001), e com a vinda aos autos da manifestação conclusiva da Fazenda Pública Estadual, bem como recolhido o valor devido ao Fundo Especial de Despesas do E. Tribunal de Justiça de ….., expeça-se o necessário. As partes saem de posse do mandado intimadas. Arquivem-se os autos, a seguir, se em termos. Nada mais. Para constar, eu, DD, lavrei este termo.”.

A mera análise do documento que incorpora a decisão revidenda permite constatar que nele se menciona a prolação de sentença.

Com efeito, a sua leitura evidencia estar em causa um acto emitido por um tribunal - Tribunal Judicial do Estado de ……, Comarca de ……, Foro Regional XII, …ª Vara da Família e Sucessões – onde foi analisada e decidida a pretensão que os Requerentes dirigiram a tal instância judicial, designadamente as estipulações sobre as consequências do divórcio que requereram referentes à dispensa recíproca de alimentos, à partilha de bens (ratificados os termos 03/04 da petição inicial) e à decisão de relegar para acções próprias as questões relativas à guarda dos filhos menores, regulamentação de visitas e alimentos.

A natureza e o teor dos referidos documentos devidamente apostilhados não permitem deixar dúvidas sobre a autenticidade e inteligibilidade da decisão proferida na sentença revidenda, carecendo de sentido as afirmações do Recorrente ao pôr em causa a integridade do seu conteúdo afirmando que os documentos apostilhados  não constituem “a verdadeira” sentença junta a fls.54/55, porquanto ocorre manifesta inexatidão do que nela se certifica (no entender do Recorrente por não incorporar o acordo dos cônjuges quanto à partilha dos bens comuns).

Ao concluir pela ininteligibilidade do documento reconduzida ao facto de dele não constar o acordo quanto à partilha dos bens comuns do casal[6], o Recorrente não está a pôr em causa qualquer incompreensibilidade, incongruência ou incompletude que impeça a decisão de ser inteligível, mas a tomar uma posição de fundo por considerar que o tribunal a quo incumpriu o dever de fazer a revisão do conteúdo integral da decisão revidenda.

Todavia, na sequência do que inicialmente referimos, persiste o Requerido em ignorar que o nosso sistema português de revisão de sentenças estrangeiras se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa.

Na verdade, se é certo que ao tribunal, neste âmbito, cumpre assegurar a clareza da decisão no sentido do conhecimento exacto da vontade que nela se queira exprimir[7], pois “não basta a inteligibilidade formal (…) é necessária, além dela, a inteligibilidade real, isto é, o conhecimento exacto do acto de vontade incorporado na decisão. (…) que a decisão seja compreensível[8], importa salientar que do teor da sentença revidenda (nos termos em que se encontra consignado no documento do que foi requerido pelas partes no sentido de “decidem emendar a vestibular para que se processe nos presentes autos tão somente seu divórcio consensual, com a consequente partilha de bens e voltando a cônjuge virago a usar o nome de solteira (…) Quanto à partilha de bens, ficam ratificados os termos de fls. 03/04 da petição inicial”) resulta expressa a homologação do “acordo e a emenda celebrados entre as partes, para que produzam seus jurídicos e efeitos legais, e DECRETO O DIVÓRCIO CONSENSUAL dos requerentes, que se regerá pelas cláusulas e condições fixadas na avença e respetiva emenda”, pelo que não há dúvida de que se mostra expressa a decisão de homologação do acordado pelas partes nessa parte, a qual, aliás, se encontra identificada e não pode deixar de ser compreendida, nomeadamente pelas partes, porque consignada em peça processual elaborada e requerida por ambas.

Por conseguinte, a sentença revidenda não padece de qualquer ininteligibilidade, sendo claramente compreensíveis o seu conteúdo e alcance.

 Cabe, pois, aderir ao que também nesse sentido refere o acórdão recorrido ao concluir pela verificação do requisito previsto na alínea a) do artigo 980.º do CPC:
- “No que respeita ao requisito da alínea a), o Tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do ato jurídico postulado na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na aceção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte a decisão revidenda, ainda que formalmente não seja um decalque, daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença (…).
(…) está em causa o reconhecimento do divórcio decretado por um tribunal ...... (…) e em primeiro lugar, verificamos que a certidão junta pela requerente, que se mostra devidamente autenticada, não deixa dúvidas sobre a sua autenticidade, nem sobre a inteligibilidade da decisão proferida na sentença revidenda.
Quanto a esta, o requerido objeta que a certidão apresentada é omissa quanto à partilha dos bens do casal.
Porém, a verdade é que à data do seu divórcio as partes residiam no ..... Nesta medida, a documentação relativa à partilha de bens só teria relevância caso alguma das partes tivesse alegado e provado que o casal tem bens em Portugal. Como tal não é o caso, não se achando demonstrada a necessidade de executar atos de partilha de bens comuns do casal no território português, entendemos que aquela omissão é absolutamente irrelevante.”.

2. Do resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português

Relativamente a esta questão o tribunal a quo, depois de ter tecido considerações jurisprudenciais e doutrinárias quanto ao alcance deste requisito, analisou a situação dos autos nos seguintes termos:
O requerido sustentou que tal requisito não se encontra preenchido, porquanto na ação de divórcio que correu termos entre as partes as mesmas não manifestaram qualquer acordo no tocante à regulação do exercício das responsabilidades parentais referentes aos filhos de ambos, e porque em seu entender, os arts. 1775°, 1776°, 1778° e 1778°-A do Código Civil português devem ser interpretados no sentido de que não podem os cônjuges intentar ação de divórcio por mútuo consentimento sem que no âmbito da mesma ação acordem quanto ao exercício das responsabilidades parentais relativas aos filhos.
Contudo, ainda que se interpretem os citados preceitos de acordo com o entendimento manifestado pelo requerido, sempre haverá que reconhecer que à data da propositura da presente ação já as responsabilidades parentais relativas aos filhos do casal se achavam reguladas por sentença transitada em julgado.
Em consequência, no presente momento qualquer das partes pode intentar ação de revisão de sentença estrangeira tendo por objeto a sentença proferida na ação de guarda e regulamentação de visitas que a requerente intentou contra o requerido.
O requerido manifesta o receio de que o reconhecimento dos efeitos do seu divórcio na ordem jurídica portuguesa sem que simultaneamente sejam reconhecidos os efeitos da decisão que regulou as responsabilidades parentais dos filhos do casal possa abrir caminho a que a requerente traga as crianças para Portugal e as desloque para outro país da União Europeia.
Temos dificuldade em compreender como tal poderia suceder se, como o próprio requerido afirma, as crianças residem consigo no .... ...
Mas ainda que tal risco se verificasse, a forma de tutela dos interesses das crianças e do requerido enquanto pai não se alcança com a recusa do reconhecimento da sentença que decretou o divórcio entre as partes, mas antes no âmbito dos competentes procedimentos judiciais junto do Tribunal de Família e Crianças internacionalmente competente.
A julgar pela pretensão que manifestou no articulado de oposição, o que o requerido parece pretender é que se inviabilize a revisão da sentença que decretou o divórcio entre as partes até que se mostre decidida a ação revisional de guarda que intentou contra a requerente. Com todo o respeito, um tal entendimento é que viola a ordem pública internacional do Estado Português, na medida em que obrigaria a requerente a manter-se casada, à luz do Direito Português, quando já é divorciada à luz do Direito ......, sendo certo que o requerido não questiona nem a validade nem a eficácia do divórcio.”. 

Há que confirmar, também, nesta parte, a decisão recorrida.

Não oferece controvérsia que, ao reportar-se aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, a alínea f) do artigo 980.º do CPC, refere-se aos princípios estruturantes da própria ordem jurídica portuguesa reportados aos valores essenciais do Estado português[9] e que, nessa medida, não podem ceder.

Insurge-se o Recorrente quanto ao acórdão defendendo que não pode ser obtido o reconhecimento da sentença ...... de divórcio por mútuo consentimento sem que, simultaneamente, seja reconhecido o novo regime de guarda e visitas[10] por a lei substantiva portuguesa, lei nacional comum do casal e dos filhos, não permitir que seja decretado divórcio por mútuo consentimento sem que, prévia ou simultaneamente, seja judicialmente homologado o regime das responsabilidades parentais.

Conforme decorre da matéria fáctica provada (factos 11 e 12), quando da instauração da presente acção, já se encontravam reguladas as responsabilidades parentais relativas aos filhos do Recorrente e da Recorrida através de sentença transitada em julgado em 16-09-2015, ainda que não objecto de reconhecimento em Portugal (acordo judicialmente homologado reportado quer à obrigação de alimentos quer ao regime de guarda e visitas).

Assim, independentemente da questão de saber se a alegada regra da unicidade de decisão judicial quanto ao divórcio por mútuo consentimento e quanto à regulação das responsabilidades parentais[11] integra a ordem pública internacional, como esta deve ser entendida, evidencia-se que, no caso, ainda assim, o resultado a que se chega com confirmação da decisão revidenda que decretou o divórcio entre as partes, de modo algum, contém em si mesmo qualquer violação afrontosa ou intolerável desse valor pois, sublinhe-se, o regime de responsabilidades parentais dos menores já há muito se  encontrava judicialmente fixado.

Por fim, cabe salientar, que a pendência de processo visando a alteração do regime já fixado quanto às responsabilidades parentais mostra-se inócua para tal efeito, pois a mera instauração da referida acção, independentemente da sua natureza (de processo de jurisdição voluntária), não afasta o regime instituído pela decisão anteriormente proferida, carecendo, assim, de fundamento os argumentos invocados pelo Recorrente nas alíneas i) a k) das suas conclusões de recurso.

Não existe, por isso, qualquer obstáculo, ao nível da ordem pública internacional do Estado português, para a confirmação da aludida sentença proferida pelo tribunal .......

Improcedem, assim, na sua totalidade, as conclusões da revista.

IV. DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 23 de Março de 2021

Graça Amaral (Relator)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Cfr. acórdão do STJ de 27-04-2017, processo n.º 9316.9YRCBR-Sl, acessível nas Bases Documentais do ITIJ.

[2] Ausência de dúvidas sobre a autenticidade e sobre a intelegibilidade do documento de que conste a sentença; trânsito em julgado da sentença; sentença proveniente do tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada com fraude à lei e que não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; que não possa invocar-se as excepções de litispendência ou caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; citação do réu nos termos da lei do país de origem e observância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes; não conter a sentença decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.
[3] Cfr. Acórdão do STJ de 15-01-2004, Processo n.º 03B4263, acessível nas Bases Documentais do ITIJ.
[4]Com a petição inicial a Autora havia junto dois documentos - “certidão de objeto e pé” datada de 14/08/2019 e “termo de audiência de divórcio consensual”, ambos não apostilhados.
[5] Para proceder à junção de “certidão emitida pelo tribunal que proferiu a sentença revidenda, com nota de trânsito em julgado e devidamente autenticada com a apostilha de Haia
[6] Defendendo, por isso, que o tribunal a quo considerou erradamente como sentença o mero “termo de audiência”.
[7] Tribunal da Relação de Lisboa de 19-06-2012, relator Luís Lameiras, processo n.º 1130/11.9YRLSB-7.
[8] Alberto dos Reis, Processos Especiais, Volume II – Reimpressão, Coimbra Editora, 1982, p. 161.

[9] Cláusula que não é confundível com a de ordem pública interna e cujo conteúdo “é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que pela sua relevância, integrem a constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo, os que tutelam direitos fundamentais, que não só informam mas também conformam a ordem pública internacional: a Constituição reflecte os valores mais importantes que conformam o plano estrutural ou a ordem jurídica fundamental de uma comunidade nacional, pelo que é nas normas de hierarquia constitucional que repousa a ordem pública internacional do Estado […]. O mesmo sucede, entre nós, com os princípios fundamentais de Direito da União Europeia. E são, ainda, referenciados como integrando a ordem pública internacional de cada Estado, princípios fundamentais como os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária quanto de fonte nacional.” - acórdão do STJ de 26-09-2017, Processo n.º 1008/14.4YRLSB.L1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.   
[10] Requerido através da “ação revisional de guarda”, que intentou no …., em 17-07-2019, contra a Recorrida e que corre termos sob o n.º …...0011 da …...ª Vara da Família e Sucessões do Tribunal da Comarca de …… (Foro XI - ……), na qual alegou que esta veio residir para Portugal, ficando os filhos de ambos a seu cargo, e requereu “a alteração do regime de guarda para a guarda unilateral” - factos provados n.ºs 14 e 15.
[11] No sentido de não poder ser decretado o divórcio por mútuo consentimento sem que prévia ou simultaneamente seja judicialmente estabelecido o regime de responsabilidade parentais.