Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1298/13.0TTLSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
EMBAIXADA
CONTRATO DE TRABALHO
Data do Acordão: 11/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO EUROPEU - DECISÕES EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL /
COMPETÊNCIA EM MATÉRIA DE CONTRATOS INDIVIDUAIS DE TRABALHO - COMPETÊNCIAS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE) / AÇÕES (ACÇÕES) POR INCUMPRIMENTO CONTRA UM ESTADO-MEMBRO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO (ACÇÃO), PARTES E TRIBUNAL / COMPETÊNCIA / TRIBUNAL.
Doutrina:
- Lebre de Freitas, CPC Anotado, I, 3.ª Edição, p. 188.
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, 2.ª edição, pp. 108-109.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 41.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 59.º, 62.º, 63.º, 94.º, 96.º, A), 97.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT): - ARTIGOS 10.º, 11.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 8.º, N.º 4.
Legislação Comunitária:
REGULAMENTO (CE) N.º 44/2001 DO CONSELHO, DE 22.12.2000: - ARTIGOS 18.º, N.º2, 19.º.
TRATADO SOBRE O FUNCIONAMENTO DA UNIÃO EUROPEIA (TFUE): - ARTIGOS 251.º A 281.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO INTERNACIONAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE AS IMUNIDADES JURISDICIONAIS DOS ESTADOS E DOS SEUS BENS (APROVADA PELA RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA N.º 46/2006, RATIFICADA PELO DECRETO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA N.º 57/2006 E PUBLICADA NO DR, I SÉRIE, DE 20 DE JUNHO DE 2006).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 04.06.2014, P. 2075/12.0TTLSB.L1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Jurisprudência Internacional:
JURISPRUDÊNCIA DO TJUE:
-EM 19 DE JULHO DE 2012, NO PROCESSO C-44/11 (62011CJ0044), GRANDE SECÇÃO, DISPONÍVEL EM HTTP://EUR-LEX.EUROPA.EU/LEGAL-CONTENT/PT/TXT/PDF/?URI=CELEX:62011CJ0154&RID=24
Sumário :
I - Em detrimento da teoria da imunidade jurisdicional absoluta, é de perfilhar a teoria da imunidade jurisdicional relativa, hoje dominante na comunidade internacional, segundo a qual os Estados beneficiam de imunidade para os atos jure imperii, mas não para os atos jure gestionis, por tal se entendendo aqueles em que os Estados intervêm como pessoa de direito privado em relações de direito privado.

II - Uma embaixada deve considerar-se um "estabelecimento", para efeitos do disposto no art. 18.º, n.º 2, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, quando as funções dos trabalhadores estejam ligadas à atividade de gestão levada a cabo pela mesma.

III - Na ausência de qualquer risco de o peticionado pela A. interferir com os interesses do Estado iraniano em matéria de segurança, e tendo ainda em conta, nomeadamente, o art. 19.º do mesmo Regulamento, impõe-se concluir pelo não reconhecimento da imunidade de jurisdição invocada pela R. e, assim, no sentido da competência internacional dos tribunais do trabalho portugueses para apreciar a matéria em causa.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I.

1. AA, portadora do Cartão do Cidadão com o n.º de identificação civil …, emitido pela República Portuguesa, propôs contra República Islâmica do Irão a presente ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, alegando, em síntese, ter sido admitida em 14.06.2004 por contrato de trabalho a termo de um ano, sem indicação do motivo, para trabalhar como tradutora e desempenhar outros trabalhos que lhe fossem confiados na Embaixada da República Islâmica do Irão em Portugal, contrato que foi sendo renovado e se converteu em contrato sem termo, o qual a R. fez cessar unilateralmente.


Pede: i) que seja declarado que a A. foi submetida a despedimento ilícito; ii) a condenação da R. a reintegrá-la no seu posto de trabalho ou, vindo esta a optar pela indemnização substitutiva, no respetivo pagamento; iii) a condenação da R. no pagamento dos salários intercalares ou de tramitação, diferenças salariais em dívida (referentes a pagamento de férias, subsídios de férias e de Natal) e indemnização por danos morais sofridos, tudo acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, até integral pagamento.

2. A R. contestou, excecionando a sua imunidade jurisdicional – para tanto, alega que as funções desempenhadas pela A. (tradução de documentos e informação confidencial) estavam estreitamente relacionadas com o exercício da autoridade, bem como ter sido acordado entre as partes que o contrato se regia pela lei da República Islâmica do Irão –, bem como por impugnação.

 A autora respondeu à exceção.

3. Foi proferido despacho saneador, reconhecendo que a R. goza a imunidade de jurisdição e, assim, a julgar o Tribunal do Trabalho absolutamente incompetente para apreciar a ação.

4. A autora apelou, tendo a R. interposto recurso subordinado.

5. O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), julgando parcialmente procedentes os dois recursos, decidiu:

- “Revogar a decisão recorrida na parte em que se refere aos pedidos de condenação da R. no pagamento de férias, subsídios de férias e de Natal (não fundados no alegado despedimento ilícito), relativamente aos quais improcede a imunidade jurisdicional, sendo pois o tribunal internacionalmente competente para deles conhecer, ordenando‑se consequentemente o prosseguimento dos autos quanto a esses pedidos”;

- “Confirmar, com outro fundamento, a incompetência internacional do tribunal para apreciar os pedidos fundados no alegado despedimento, dada a procedência da imunidade jurisdicional do tribunal quanto a essa matéria, atento o motivo invocado para a cessação do contrato”.

6. A R. interpôs recurso de revista, alegando, em síntese, nas conclusões das suas alegações:

- O acórdão recorrido errou na parte em que considerou que relativamente aos pedidos de condenação da R. no pagamento de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal não se verifica a invocada imunidade jurisdicional considerando os tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecer destes pedidos.

- A recorrente goza de imunidade jurisdicional, já reconhecida quanto aos pedidos que têm como causa de pedir o alegado despedimento ilícito, devendo ser reconhecida igual imunidade quanto aos demais pedidos da Autora, uma vez que a restruturação que foi feita na Embaixada do Irão em Portugal incluiu tão só os agentes da missão diplomáticos onde se incluía a Autora.

- A Autora era a tradutora do corpo diplomático da Embaixada do Irão em Portugal.

- A Autora tinha os privilégios, o estatuto e o alcance das imunidades diplomáticas e da imunidade de jurisdição do Estado, pelo que a sua relação laboral, cumprimento ou incumprimento, é da exclusiva competência da Republica Islâmica do Irão.

- Encontrando-se este contrato excluído à jurisdição portuguesa, é inaceitável que as decisões da República Islâmica do Irão, relativamente aos membros da sua missão diplomática, sejam julgadas por outro Estado, neste caso o Estado Português.

- A Autora exercia funções no interesse do serviço público do Irão e em benefício do seu Estado e dos seus nacionais.

- As partes expressamente convencionaram no contrato que este era celebrado ao abrigo da Lei da Republica Islâmica do Irão, conforme se verifica pelo documento 1 da petição inicial.

- O Subsídio de Natal nunca foi pago à autora, porquanto o contrato sempre foi regulado pela Lei da Republica Islâmica do Irão, na qual não existe Natal.

- A decisão da República Islâmica do Irão não pagar o subsídio de Natal é um ato de jure imperii que não pode ser julgado pelos tribunais portugueses.

- O acordo consagrado no contrato de trabalho de trabalho, quanto à lei reguladora do mesmo, constitui um pacto atributivo de jurisdição válido nos termos do art. 94.º do CPC.

- As funções da Autora impõem que seja reconhecida a imunidade de jurisdição da ora Recorrente, quanto a todos os pedidos formulados pela Autora, nos termos do art.º 41.º do C. Civil, do n.º 1 do art. da 8.º da CRP, das aIs. a) e f) do n.º 2 do art. 11.º da Convenção Internacional das Nações Unidas, sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e seus Bens e do principio de Direito Internacional Consuetudinário segundo o qual os Estados Estrangeiros que gozam de imunidade de jurisdição, com fundamento no princípio da sua igualdade "par in parem non habet imperium".

7. A autora contra-alegou, pugnando pelo improvimento do recurso.



8. O Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em parecer a que apenas respondeu a R., na linha do antes sustentado nos autos.

9. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC[1]), em face das conclusões das suas alegações, a única questão a decidir[2] consiste em saber se os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer do pedido de condenação da R. no pagamento de férias e subsídios de férias e de Natal, por esta beneficiar de imunidade jurisdicional.


Cumpre decidir.


II.

10. Com interesse para a decisão da revista, consta dos autos tradução certificada do contrato de trabalho celebrado entre a A. e a R. (fls. 27 – 28), do qual consta, designadamente:

“(…)

2. A senhora (…) terá a função de tradutora e outros trabalhos confiados a ela.

(…)

6. As férias anuais remuneradas, de acordo com o número dos meses de serviço efetuado, serão de 24 dias por ano (máximo).

Nota: Os horários de trabalho, as férias oficiais e fins de semana serão de acordo com os regulamentos existentes na embaixada.

7. De acordo com os regulamentos da Embaixada (…) e com a aprovação do Ministério dos Negócios Estrangeiros (…) a contratada terá seguro desde o início.

(…)

10. Para os casos não previstos neste contrato, os regulamentos organizacionais, contratuais, financeiros e disciplinares do Ministério dos Negócios Estrangeiros e estatuto dos funcionários locais aprovados a 03/12/1384 (22/02/2006) serão válidos.

(…)”
 

III.

a) A fundamentação do acórdão recorrido:


11. O acórdão recorrido, embora reconhecendo a incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciar os pedidos fundados no alegado despedimento (segmento decisório que transitou em julgado), considerou que relativamente ao pedido de condenação da R. no pagamento de férias e subsídios de férias e de Natal não se verifica a invocada imunidade jurisdicional, com a seguinte argumentação:

“(…)

O Conselho da Europa, em 16/5/72, em Basileia, abriu à assinatura dos Estados membros e à adesão dos Estados não membros a Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados, que adota o critério de enunciar de modo específico (nos art. 1.º a 14.º) as situações e relações jurídicas relativamente às quais é aplicável a exceção ao princípio da imunidade dos Estados estrangeiros. Assinada por Portugal em 10/5/79, mas ainda não ratificada, esta Convenção foi ratificada por oito Estados (Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Luxemburgo, Holanda, Reino Unido e Suíça).

No seu artigo 5.º dispõe

“1- Um Estado contratante não pode invocar imunidade de jurisdição perante um tribunal de um outro Estado contratante se o processo se relacionar com um contrato de trabalho celebrado entre o Estado e uma pessoa singular, se o trabalho dever ser realizado no território do Estado do foro.

2 – O parágrafo 1 não se aplica:

a) se a pessoa física tiver a nacionalidade do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado;

b) se na altura da celebração do contrato a pessoa singular não tinha a nacionalidade do Estado do foro nem residia habitualmente nesse Estado; ou

c) se as partes do contrato acordaram em sentido contrário, por escrito, a menos que, de acordo com a lei do Estado do foro, os tribunais desse Estado tivessem jurisdição exclusiva em virtude do objeto do processo

3...”.

A nível mundial, no âmbito das Nações Unidas, a Comissão de Direito Internacional (CDI) iniciou em 1978 os trabalhos de codificação sobre imunidades jurisdicionais dos Estados de que resultou a elaboração de um projeto sobre imunidades jurisdicionais dos Estados e da sua propriedade [-]. Concluídos os trabalhos, foi aberta à assinatura em Nova Iorque em 17/1/2005, a “Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens”, que foi aprovada em Portugal pela Resolução da A.R. n.º 46/2006, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 57/2006, ambos publicados no DR. Iª série de 20/6/2006, tendo o instrumento de ratificação sido depositado junto do Secretário-Geral das Nações Unidas em 14/9/2006. A referida Convenção não se encontra ainda em vigor (por não terem sido depositados instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão em número suficiente, conforme estabelecido no respetivo art. 30.º, tendo-o sido apenas, até à data, por dezasseis Estados).

O respectivo art. 5.º define como regra a imunidade dos Estados, mas os art. 10.º a 16.º enunciam os actos sujeitos a restrição à imunidade.

O art. 11.º, sob a epígrafe “contratos de trabalho”, é do seguinte teor:

“1 – Salvo acordo contrário entre os Estados em questão, um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para o caso num processo judicial que diga respeito a um contrato de trabalho entre o Estado e uma pessoa singular para um trabalho realizado ou que se deveria realizar, no todo ou em parte, no território desse outro Estado.

2- O n.º 1 não se aplica se:

a) (…)

b) (…)

c) o processo judicial se referir à contratação, renovação do contrato ou reintegração do trabalhador;

d) o processo judicial se referir à cessação unilateral do contrato ou ao despedimento do trabalhador  e, se assim for determinado pelo chefe de Estado, chefe de governo ou ministro dos negócios estrangeiros do Estado empregador, esse processo puser em causa os interesses de segurança desse estado;

e) o trabalhador for nacional do Estado  empregador  no momento da instauração do processo judicial, salvo se a pessoa em causa  tiver residência permanente  no estado do foro; ou

f) o Estado empregador e o trabalhador acordarem diversamente por escrito, sob reserva de considerações de ordem pública conferindo aos tribunais do Estado do foro jurisdição exclusiva em função do objeto do processo.”

Se bem que as referidas Convenções não estejam ainda (por diferentes razões) em vigor na nossa ordem jurídica, o facto de existirem com o conteúdo referido é revelador do crescente peso que vem assumindo na comunidade internacional, tal como na doutrina e na jurisprudência dos diversos países, a conceção restrita da imunidade judiciária dos Estados.

Como se lê no ac. do STJ de 18/2/2006 (P. n.º 05S3279, disponível na base de dados do IGFEJ), o facto de Portugal não ter ainda ratificado a Convenção de Basileia sobre a imunidade dos Estados não a torna inócua, na medida em que, evidenciando uma certa tendência  na definição do princípio da imunidade dos Estados estrangeiros, na prática internacional, pode ajudar a definir o conteúdo, a marcha evolutiva e o sentido atual da correspondente regra consuetudinária, sendo certo que o costume internacional é a segunda das fontes formais enunciadas no art. 38.º n.º 1 do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça.

O mesmo se poderá dizer relativamente à Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades dos Estados e dos seus Bens, a qual, apesar de não estar ainda em vigor, tem o mérito de, ao estabelecer várias restrições ao princípio da imunidade jurisdicional dos Estados, demonstrar uma tendência generalizada na prática dos Estados no sentido do alargamento das restrições ao princípio da imunidade.

Segundo Jónatas Machado[-] “A imunidade relativa, imposta pelo recurso crescente ao direito privado por parte dos Estados, é considerada por uma parte substancial da doutrina como a mais consentânea com a tendência atual no sentido da responsabilização dos poderes públicos por danos, contratuais ou extracontratuais, causados aos particulares. Com efeito, tende a considerar-se que a imunidade não pode ser invocada, nomeadamente no caso de transações comerciais, contratos de trabalho[-], responsabilidade civil por ações ou omissões danosas, questões de propriedade imobiliária, mobiliária ou intelectual, participações sociais, utilização de embarcações para fins não oficiais, sempre que os elementos de conexão relevantes se encontrem localizados no território do Estado do foro.”

Também na jurisprudência portuguesa, designadamente no foro do trabalho, a teoria da imunidade restrita tem vindo a obter acolhimento mais alargado (cf., além dos ac. referidos na douta decisão recorrida, os ac. STJ 11/5/84, BMJ 337, pag. 305; STJ 30/1/91, BMJ 403, pag.267; STJ 4/2/97, CJ STJ, ano V, T.I, pag. 87; RL de 13/12/2000; RL 23/6/2004, e RL de 15/1/2014, estes últimos disponíveis na base de dados do IGFEJ).

Temos pois como adquirido que a teoria restritiva da imunidade[-]é hoje prevalecente sobre a da imunidade absoluta (o que, aliás, não é posto em causa por nenhuma das partes).      

Com a adoção desta teoria, torna-se questão fulcral a de saber se a atividade a que se refere o litígio é ou não soberana, ou seja, se estão em causa atos jure imperii ou jure gestionis.

Não é, todavia, pacífico o critério distintivo entre atos jure imperii e atos jure gestionis.

Embora seja dominante o critério que atende à natureza do ato - de acordo com o qual atos jure imperii são, sem dúvida, os atos de autoridade, de poder público, manifestação de soberania e atos jure gestionis, atos de natureza privada, que poderiam ser de igual modo praticados por um particular - alguns Estados defendem que se dê idêntico valor ao critério do fim, como refere Eduardo Correia Batista [-]. Na nota 279 da citada obra refere este autor que o art. 2.º n.º 1 al. c) do Projeto da Comissão de Direito Internacional [-]define “transação comercial” em função da sua natureza e não do fim a que se destina e, mais adiante, acrescenta “depois de uma cuidadosa resenha da jurisprudência interna sobre a questão, o grupo de trabalho da CDI, na sua reapreciação da questão, reconheceu que o critério da natureza era predominante, embora, por vezes, o do fim ainda recebesse algum acolhimento.”

Merece-nos uma referência especial o ac. do STJ de 13/11/2002, publicado na base de dados do IGFEJ, que relativamente à questão de saber se num determinado litígio laboral está em causa um ato de soberania ou um ato de gestão, chama a atenção para a relevância das funções desenvolvidas pelo trabalhador em causa, importando saber se se trata de funções subalternas ou, de algum modo, funções de direção na organização do serviço público do Estado demandado, funções de autoridade ou de representação. Aí se pode ler “A natureza das atividades a que há que atender são as que integram as funções do trabalhador em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular.” É que, como refere Isabelle Pingel-Lenuzza “um serviço do Estado, investido de uma missão de soberania pode empregar certas pessoas que não participam, de forma alguma, no cumprimento dessa missão” [-].

            Importa, pois, no caso vertente, atentar nos elementos de facto fornecidos pela petição – uma vez que é com base neles que há que aferir os pressupostos processuais, como é a competência internacional do tribunal, em cujo âmbito se coloca a da imunidade jurisdicional da R. - com vista a ajuizar se os atos do demandado que integram o objeto da ação são atos jure imperii ou atos jure gestionis.

Alega a A. que foi contratada em 2004, em Portugal [-] para exercer as funções de tradutora na embaixada da R. no nosso país, funções que sempre exerceu, tendo também executado outros trabalhos de secretariado. Que em 11/9/2012 o Sr. Embaixador lhe comunicou que, por motivos de redução de despesas da Embaixada, já não precisavam mais dos seus serviços e que seria despedida. Trabalharia até ao final de Dezembro de 2012, quando devia cessar o contrato. Tiveram lugar diversas reuniões nas quais a A. manifestou a sua discordância, tanto do motivo invocado, como por não ter sido escolhida para o efeito pessoa contratada havia menos tempo, assim como quanto ao valor de indemnização que lhe foi comunicada (cerca de € 8.000) e respetivo critério de cálculo. A pedido da R. a A. entregou um documento informativo sobre a sua situação e os elementos que entendia que tinham de ser considerados para efeitos de cálculo da indemnização. A R. insistiu diversas vezes com a A. para que assinasse tal documento, o que esta recusou, explicando que se tratava apenas de um documento informativo e por recear, face à forma como se vinha a desenrolar a actuação da Embaixada, que com a aposição da sua assinatura a R. atribuísse à mesma a justificação da cessação do contrato, desonerando-se das responsabilidades, designadamente indemnizatórias. Entretanto, devido a obras na Embaixada, designadamente no seu local de trabalho, por instruções da R., a A. havia passado a trabalhar ali apenas dois dias por semana (3ª e 6ª fª das 8 às 12h) e, no dia 19/10/2012 foi comunicado à A. que o Sr. Embaixador havia mudado de ideias quanto ao pagamento de indemnização, sendo-lhe entregue uma carta em que lhe era comunicada a decisão unilateral de redução do horário de trabalho a 8 h semanais, com a redução da remuneração na proporção, ao que a A. respondeu por escrito, manifestando surpresa pela alteração, lembrando que o que estava a ser tratado era a cessação do contrato, reclamando os seus direitos de acordo com a lei portuguesa, e sugerindo que se chegasse a acordo. Em resposta a R. enviou-lhe uma carta datada de 30/11/2012, recebida a 4/12/2012, transmitindo uma ideia de rescisão unilateral imputável à A., por ter deixado de comparecer na Embaixada. Ora a R. bem sabia que a razão pela qual a A. deixou de ir à Embaixada foi por lhe ter sido dito na reunião de 19/10 que só voltaria à Embaixada aceitando aquelas condições. Apesar de nova reunião realizada na Embaixada no dia 11/12, não foi alcançado acordo.

Conclui a A., da descrição antecedente, que a decisão de despedimento por extinção do posto de trabalho lhe foi comunicada verbalmente pelo Senhor Embaixador, não tendo sido observado o procedimento adequado, sendo o processo conduzido pela Embaixada com vista à cessação do contrato, inválido, pelo que pede se reconheça a ilicitude do despedimento e lhe sejam pagas todas as retribuições vencidas (…) desde o despedimento, até ao trânsito da sentença, e se condene a R. a reintegrá-la, ou, conforme opção a fazer ulteriormente, a pagar-lhe indemnização

Mais alega que a última retribuição que lhe foi paga foi a de Outubro de 2012 e que apenas gozou metade das férias de 2012, não lhe tendo sido pago qualquer subsídio, assim como nunca lhe foi pago subsídio de Natal, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe tais prestações (…)

(…)

Perante tal factualidade, se a celebração do contrato de trabalho entre a A. e a R. se pode considerar, sem dúvida, um acto de gestão privada ou jure gestionis, idêntico àquele que seria celebrado por qualquer empregador privado, tanto mais que as funções que à A. caberia desempenhar – tradução e outras funções de apoio administrativo – não são de forma alguma de direção na organização do serviço público levado a cabo pela Embaixada da R., isto é, não pressupunham desempenho de um poder de autoridade, o mesmo não nos parece que se possa afirmar quanto à alegada cessação do contrato, que é, ao fim e ao cabo, o cerne do litígio dos autos.

Para além de o próprio articulado da A. nos suscitar muitas dúvidas quanto a ter existido um verdadeiro despedimento, ou seja, a cessação do contrato de trabalho por decisão unilateral do empregador comunicada à trabalhadora – uma vez que a comunicação feita verbalmente à A. pelo Sr. Embaixador no dia 11/9/2012 parece ter sido apenas a comunicação da intenção de a despedir no final de Dezembro, não ainda a decisão final - mesmo que se aceite a interpretação dos factos efetuada pela A., para daí extrair a conclusão de que foi despedida pela R., sempre teríamos de ter em conta que o motivo invocado pelo Sr. Embaixador na referida comunicação verbal de 11/9/2012 foi a redução de despesas da Embaixada. Ora, afigura-se-nos que um tal motivo determina que a cessação do contrato, a ter existido, configure um verdadeiro acto jure imperii, um acto de soberania, relativamente ao qual tem cabimento a invocação da imunidade jurisdicional.

Com efeito, como referimos no ac. de 21/9/2005 que proferimos no processo 4107/05, constituiria uma ingerência intolerável, face ao princípio da igualdade soberana dos Estados, que um tribunal de um Estado pudesse julgar a decisão de um outro Estado relativamente à sua própria organização interna, como é a reestruturação dos serviços da Embaixada, por motivos de redução de despesas.

Por isso, entendemos proceder a invocada imunidade jurisdicional relativamente aos pedidos que se fundam no alegado despedimento ilícito, corroborando pois a decisão recorrida nessa parte, apesar de a respetiva fundamentação ter sido algo diversa (tendo, mais precisamente, a Srª Juíza recorrida aplicado a norma resultante do art. 11.º n.º 2 al. b) da Convenção da ONU sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, uma vez que o objeto do processo visava a reintegração e essa ser uma das situações em que a restrição à imunidade relativamente a contratos de trabalho é afastada). Não nos merece censura a apreciação efetuada pela Srª Juíza, tendo como correta a orientação traçada no citado ac. do STJ de 18/2/2006, quando afirma “sabido que na ordem interna portuguesa vigora a regra consuetudinária (costume internacional de âmbito geral – art. 8.º n.º 1 CRP), com o conteúdo e sentido  (atualizado) já referidos, mas considerando que toda a restrição ao princípio da imunidade deve estar generalizadamente radicada na consciência jurídica das coletividades, o que impõe grande prudência e muita segurança na sua aplicação, entendemos que o âmbito das restrições que aquela regra (consuetudinária) permite não pode ultrapassar …as que constam daquela Convenção (de Basileia) e do referido projeto de articulado (hoje Convenção da ONU sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens) segundo o qual, a imunidade pode ser invocada se estiver em causa um contrato de trabalho e o objeto do processo for a sua renovação ou a reintegração duma pessoa singular – art. 11.º n.º 2 al. b) – que aceitamos como manifestações de uma certa prática (ou tendência) internacional”.

Sustenta a recorrente que o tribunal errou porque ignorou e não conheceu do pedido alternativo à reintegração, que se consubstancia na indemnização, mas não lhe assiste razão, pois não cabia ao tribunal ajuizar como se não tivesse sido pedida a reintegração, mas apenas a indemnização alternativa àquela, uma vez que a lei atribui apenas ao trabalhador despedido o direito de fazer essa opção até ao encerramento da discussão em audiência final (art. 391.º n.º 1 do CT) e a A. não a tinha feito. Mas, mesmo que eventualmente a A. tivesse feito tal opção logo na petição, nem mesmo assim o tribunal devia conhecer dos pedidos fundados no alegado despedimento ilícito porque, como atrás referimos, a R. goza de imunidade jurisdicional quanto a essa matéria por configurar um acto jure imperii, atento o motivo invocado para o despedimento.

Já quanto aos demais pedidos formulados pela A. – pagamento de férias, subsídios de férias e de Natal - porque não radicam no alegado despedimento ilícito, mas tão só no incumprimento do contrato de trabalho, acto jure gestioni, como vimos atrás, assiste razão à recorrente, não se vendo fundamento bastante para justificar a incompetência internacional do tribunal, visto que a imunidade jurisdicional  quanto a  eles não pode proceder.

Com efeito, embora a R. no recurso subordinado venha pretender que se aprecie dos demais fundamentos de imunidade judiciária por si invocados – mormente o facto de a A. traduzir documentos confidenciais – entendemos que, ainda que eventualmente isso venha a ser dado como assente, não é suficiente para permitir qualificar a relação de trabalho estabelecida com a A. como acto jure imperii, pois, como anteriormente referimos, é a natureza do ato e não o seu fim que releva para a respetiva qualificação como ato de autoridade ou soberania ou antes como ato de direito privado.

E também o outro argumento invocado pela R. – que as partes acordaram que a relação se regesse pelo direito iraniano – não releva para o efeito porque a questão do direito aplicável numa situação em que há conexão com duas ordens jurídicas, é questão distinta da que se coloca quando se trata de decidir da imunidade jurisdicional, não sendo determinante.

(…)”


12. Como já se assinalou, o acórdão recorrido transitou parcialmente em julgado.

Quanto à matéria em discussão na presente revista (competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o pedido de condenação da R. no pagamento de férias e subsídios de férias e de Natal), sufragamos o seu sentido decisório, embora com diversos fundamentos, pelas razões que se passam a expor.



b) Considerações preliminares:


13. Na síntese de Miguel Teixeira de Sousa:[3]

“A diferença entre a competência interna e a internacional consiste no seguinte: a competência interna respeita às situações que, na perspetiva da ordem jurídica portuguesa, não possuem qualquer conexão relevante com outras ordens jurídicas. A competência internacional dos tribunais portugueses é, assim, a competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento português, uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresentam igualmente uma conexão relevante com a (…) portuguesa.

(…)

As normas de receção só determinam, através da referida conexão, que os tribunais de uma jurisdição nacional são competentes para apreciar uma relação jurídica plurilocalizada. Essas normas não são normas de competência, porque não a atribuem a um tribunal, antes se limitam a determinar as condições em que uma jurisdição nacional faculta os seus tribunais para a resolução de um certo litígio com elementos internacionais. As normas de receção preenchem, no âmbito processual, uma função paralela àquela que as normas de conflitos realizam no plano substantivo: estas determinam qual a lei aplicável a uma relação jurídica plurilocalizada (…); aquelas aferem se essa mesma relação pode ser apreciada pelos tribunais de uma certa ordem jurídica.”

14. Segundo a especificidade de cada caso concreto, e como decorre, nomeadamente, do disposto nos arts. 59.º, 62.º, 63.º e 94.º, do CPC, e dos arts. 10.º e 11.º, do CPT, a competência internacional rege-se por: (i) convenção das partes (pacto de jurisdição); (ii) pelo direito internacional convencional; (iii) pelo direito internacional consuetudinário; (iv) e pela lei (que, nesta matéria, tem natureza subsidiária).


c) Se as partes se encontram vinculadas por um pacto de jurisdição:


15. O princípio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, invocado pela R., radica no costume internacional, embora depois tenha sido acolhido e regulado, nomeadamente, pela Convenção Internacional das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens (aprovada pela resolução da Assembleia da República n.º 46/2006, ratificada pelo decreto do Presidente da República n.º 57/2006 e publicada no DR, I série, de 20 de Junho de 2006, mas que ainda não se encontra em vigor, por não terem sido depositados instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão em número suficiente, como bem refere o acórdão recorrido).

In casu, para fundamentar a pretensa imunidade de jurisdição[4], a recorrente invoca, entre outros aspetos, a violação de um pacto privativo de jurisdição [o carácter atributivo ou privativo do pacto de jurisdição é definido em relação à ordem jurídica portuguesa[5], pelo que o pacto invocado pela recorrente, a existir, seria “privativo” na perspetiva de Portugal (embora “atributivo” na do Irão), ao contrário do qualificativo mencionado pela recorrente nas suas alegações].

Ora, do clausulado pelas partes no contrato de trabalho celebrado (cfr. supra n.º 10) não decorre, manifestamente, a consagração de qualquer pacto de jurisdição, sendo certo que os autos também não noticiam que tal tenha ocorrido noutro momento.

Confundindo os planos substantivo e processual, a R. argumenta neste âmbito que ao contrato em causa é aplicável a lei iraniana.

Mas esta matéria, de natureza substantiva, em nada releva na esfera processual em que se situam os pactos de jurisdição (cfr. supra n.º 13), pelo que não nos cabe curar do acerto ou desacerto de tal afirmação (o art.º 41.º do C. Civil, neste âmbito chamado à colação pela recorrente, é uma “norma de conflitos” entre leis substantivas, como linearmente emerge, desde logo, da epígrafe da Secção do Código Civil em que o mesmo se insere).


d) A imunidade de jurisdição em matéria laboral, à luz do Regulamento (CE) n.º 44/2001 e do acórdão do TJUE de 19.07.2012:


16. Dispõe o art. 8.º, n.º 4, CRP, que “[a]s disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições (…) são aplicáveis na ordem interna (…)”.

Compreende-se o assim preceituado, uma vez que a ordem jurídica da União Europeia (UE) assenta em dois princípios fundamentais: (i) o da aplicabilidade direta do direito da UE (criando os instrumentos normativos da UE direitos e obrigações para os Estados-Membros e os seus cidadãos, garante-se por esta via a sua cabal e uniforme aplicação, em todos estes Estados); (ii) o do primado do direito da União (assim se excluindo qualquer revogação ou modificação do direito da UE pelo direito nacional e garante que, em caso de conflito com a legislação nacional, prevalece o direito da União).

Entre as instituições europeias, cabe ao Tribunal de Justiça (TJUE) interpretar o direito da EU, a fim de garantir a sua aplicação uniforme em todos os Estados-Membros [cfr. arts. 251.º a 281.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)[6]].

Deste modo, em caso de dúvida atinente à interpretação ou à validade de uma disposição do direito da UE, os tribunais nacionais podem, e por vezes devem, solicitar parecer ao Tribunal de Justiça, a título prejudicial.

17. Ora, nos termos do art. 19.º, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000[7]:

“Uma entidade patronal que tenha domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada:

1. Perante os tribunais do Estado-Membro em cujo território tiver domicílio; ou
2. Noutro Estado-Membro:
a) Perante o tribunal do lugar onde o trabalhador efetua habitualmente o seu trabalho ou perante o tribunal do lugar onde efetuou mais recentemente o seu trabalho; ou
b) Se o trabalhador não efetua ou não efetuou habitualmente o seu trabalho no mesmo país, perante o tribunal do lugar onde se situa ou se situava o estabelecimento que contratou o trabalhador.”

Concomitantemente, segundo o seu art. 18.º, n.º 2:

“Se um trabalhador celebrar um contrato individual de trabalho com uma entidade patronal que não tenha domicílio no território de um Estado-Membro mas tenha uma filial, agência ou outro estabelecimento num dos Estados-Membros, considera-se para efeitos de litígios resultantes do funcionamento dessa filial, agência ou estabelecimento, que a entidade patronal tem o seu domicílio nesse Estado-Membro.”

18. Em 19 de julho de 2012, no processo C-44/11 (62011CJ0044), em sede de reenvio prejudicial (cfr. art. 267º, do TFUE), o TJUE (Grande Secção) proferiu um acórdão[8] de especial relevância para a interpretação desta última norma.

Estava em causa o despedimento de um trabalhador com dupla nacionalidade, alemã e argelina, contratado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da Argélia para exercer funções como motorista na embaixada deste país em Berlim, sendo certo que o contrato incluía uma cláusula que consagrava a jurisdição exclusiva dos tribunais argelinos para quaisquer litígios decorrentes da relação de trabalho.

Incumbia ao trabalhador conduzir visitantes, colaboradores e, na qualidade de substituto, também o embaixador. Além disso, devia encaminhar a correspondência da embaixada para as entidades alemãs e para o correio. A mala diplomática era recebida e transmitida por outro colaborador da embaixada, que era conduzido pelo trabalhador. As partes estavam em desacordo relativamente à questão de saber se este prestava igualmente serviços como intérprete.

Em 9 de agosto de 2007, o trabalhador intentou num tribunal alemão uma ação contra a Argélia, pedindo para ser remunerado pelas horas suplementares de trabalho que alegava ter efetuado.

Em 29 de agosto de 2007, foi despedido, pelo que, ampliando o pedido, peticionou a condenação do empregador no pagamento de indemnização compensatória e a manutenção da relação de trabalho até́ ao fim do litígio.

Tendo previamente assinalado que o Regulamento n.º 44/2001 “contém um conjunto de regras que formam um sistema global, aplicáveis não apenas às relações entre diferentes Estados-Membros, mas também às relações entre um Estado-Membro e um Estado terceiro”, bem como que os seus arts. 18.º a 21.º, “como resulta do considerando 13 deste regulamento, têm por objetivo proteger a parte contratante mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos interesses dessa parte” (i.e., “devem ser interpretadas tendo em conta a preocupação de assegurar uma proteção adequada ao trabalhador, enquanto parte contratante mais fraca”), o referido acórdão do TJUE julgou:

- Que as embaixadas constituem um "estabelecimento", para efeitos do disposto no sobredito art. 18.º, n.º 2,quando as funções dos trabalhadores (...) têm ligação com a atividade de gestão levada a cabo pela embaixada no Estado acreditado;[9]

- Por outro lado, considerar inválido o mencionado pacto atributivo de jurisdição à Argélia, por inobservância dos requisitos impostos às derrogações contratuais, uma vez que, nos termos do art. 21.º do citado regulamento, esse pacto deve ser celebrado posteriormente ao surgimento do litígio ou, quando celebrado anteriormente, deve permitir ao trabalhador recorrer a tribunais diferentes dos consagrados nas regras atributivas de competência estabelecidas (na Secção 5.ª do Capítulo II, do Regulamento)[10].

Sobre esta última condição, o acórdão julgou que ela deve ser entendida no sentido de que o pacto de jurisdição, quando celebrado antes de surgir o diferendo, deve atribuir a competência para julgar a ação intentada pelo trabalhador a foros que acresçam aos previstos pelos artigos 18.° e 19.° do Regulamento n.º 44/2001, não tendo assim este tipo de pacto o efeito de excluir a competência destes últimos, mas, antes, o de alargar a possibilidade de o trabalhador escolher entre vários órgãos jurisdicionais competentes.[11]

A República Argelina, por seu turno, sustentara que reconhecer a competência de um órgão jurisdicional do Estado acreditador de uma embaixada equivale a violar as regras de direito internacional consuetudinário relativas à imunidade de jurisdição e que, tendo em conta essas regras, o Regulamento n.º 44/2001, nomeadamente o seu artigo 18.º, não seria aplicável ao litígio.

 Argumentação afastada pelo TJUE, nos seguintes termos:

“(...) [O]s princípios de direito internacional geralmente reconhecidos em matéria de imunidade jurisdicional excluem que um Estado possa ser demandado perante um órgão jurisdicional de outro Estado num litígio como o no processo principal. Essa imunidade de jurisdição dos Estados encontra-se consagrada no direito internacional e baseia-se no princípio in parem non habet imperium, não podendo um Estado ser submetido à competência jurisdicional de outro Estado.

No entanto, (...), no estado atual da prática internacional, essa imunidade não tem um valor absoluto, mas é geralmente reconhecida quando o litígio respeita a atos de soberania realizados iure imperii. Pode, porém, ser excluída se o recurso jurisdicional tiver como objeto atos realizados iure gestionis, os quais não estão abrangidos pelo poder público.

Por conseguinte, à luz do conteúdo do referido princípio de direito internacional consuetudinário (...), há que considerar que o mesmo não se opõe à aplicação do Regulamento n.º 44/2001 num litígio (...) no qual um trabalhador pede o pagamento de indemnização e contesta a rescisão do contrato de trabalho que celebrou com um Estado, quando o órgão jurisdicional chamado a pronunciar-se conclua que as funções exercidas por esse trabalhador não se enquadram no exercício do poder público ou quando não há risco de a ação judicial interferir com os interesses do Estado em matéria de segurança. (...)”

e) Quanto ao caso sub judice:

19. Antes do mais, refira-se que o entendimento perfilhado pelo TJUE pressupõe a adesão à teoria da imunidade jurisdicional relativa (em detrimento da teoria da imunidade jurisdicional absoluta), hoje dominante na comunidade internacional, doutrina segundo a qual os Estados beneficiam de imunidade para os atos jure imperii, mas não para os atos jure gestionis (por tal se entendendo aqueles em que os Estados intervêm como pessoa de direito privado em relações de direito privado), na linha do que neste âmbito vem sendo decidido por esta Secção Social do Supremo Tribunal (v.g. o recente Ac. de 04.06.2014[12]).

Concordamos com a clara e sólida argumentação do TJUE conducente à conclusão de que uma embaixada deve considerar-se um "estabelecimento", para efeitos do disposto no art. 18.º, n.º 2, do Regulamento n.º 44/2001, quando as funções dos trabalhadores (apenas) estejam ligadas à atividade de gestão levada a cabo pela mesma.
Este requisito encontra-se verificado no caso dos autos.

Na verdade:

Como se refere no supra citado Ac. de 04.06.2014 deste Supremo Tribunal, para tais efeitos, “a natureza das atividades a que se deve atender é a assumida pelas concretas funções da trabalhadora em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer outro trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular, sendo que, no caso, a resposta é negativa”.

Ora, as funções para as quais a autora foi contratada – “tradutora e outros trabalhos que lhe fossem confiados” (cfr. supra n.º 10) – não se enquadram, claramente, no plano da autoridade, direção ou representação da R. (dito de outra forma, tais funções não são especificamente decorrentes do exercício de poderes públicos), ainda que as mesmas possam reputar-se necessárias para o regular e normal funcionamento dos serviços próprios de uma missão diplomática.

Esta conclusão é insuscetível de ser abalada pelos escassos factos concretos a este propósito alegados na contestação da R. para a caracterizar tais funções.

Com efeito, para além de se repetir a já mencionada fórmula inserta no contrato de trabalho, nada de relevante é acrescentado no plano dos factos (alega-se, por exemplo, que “as funções desenvolvidas pela Autora sempre consistiram em funções de responsabilidade na organização do serviço público da República Islâmica do Irão, funções de confidencialidade, abrangidas pelo jus imperii, mas sem qualquer concretização factual).

Também não se vislumbra qualquer risco de o peticionado pela A. interferir com os interesses do Estado iraniano em matéria de segurança.

É certo que a recorrente invoca, na contestação, que a A. traduzia “documentos e informação confidencial”, alegação mais uma vez muito vaga e que de forma alguma permite vislumbrar qualquer colisão entre a presente ação e os imperativos de segurança do Estado iraniano, tanto mais que agora, no âmbito do recurso de revista, apenas está em causa o pedido de condenação da R. no pagamento de férias e subsídios de férias e de Natal.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, impõe-se concluir pelo não reconhecimento da imunidade de jurisdição invocada pela R. e, consequentemente, no sentido da competência internacional dos tribunais do trabalho portugueses para apreciar a matéria em causa, tendo em conta, para além do mais, o disposto nos arts. 18.º, n.º 2, e 19.º, do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22.12.2000.


IV.


20. Em face do exposto, negando a revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido, embora com diversos fundamentos.

Custas pela recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão.


Lisboa, 25 de Novembro 2014

Mário Belo Morgado (Relator)

Pinto Hespanhol

Fernandes da Silva

____________________
[1] Todas as referências ao CPC são reportadas ao regime processual introduzido pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, que é o aplicável à revista.

[2] O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679.º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido,  não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem sequer vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.

[3] Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, 2.ª edição, p. 108-109.
[4] A infração desta regra de competência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal [art. 96.º, a), do CPC] e é de conhecimento oficioso (art. 97.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Quanto ao regime da violação de um pacto privativo de jurisdição, há que distinguir duas situações: (i) a violação é invocada como mero fundamento da imunidade de jurisdição, como acontece no caso dos autos; (ii) ela é invocada autonomamente, caso em que constitui uma exceção dilatória distinta, com regime jurídico diverso.

Com efeito: nesta segunda situação, em contraste com o regime consagrado no anterior CPC, à luz do qual tal exceção apenas implicava a incompetência relativa do tribunal (cfr. arts. 101.º, 108.º e 111.º, n.º 3, desse diploma), atualmente ela determina a incompetência absoluta do tribunal (regime neste ponto semelhante ao da violação da imunidade de jurisdição); no entanto, diferentemente, ela continua a não ser de conhecimento oficioso [cfr. arts. 96.º, a), e 97.º, n.º 1, do NCPC]. 

[5] Como decorre do art. 94.º, do CPC, o pacto é atributivo quando - exclusiva ou alternativamente - concede competência a Tribunal português e privativo quando a retira (cfr. Lebre de Freitas, CPC Anotado, I, 3.ª Edição, p. 188).

[6] Disponível em http://europa.eu/eu-law/decision-making/treaties/index_pt.htm.
[7] Disponível em:
 http://eurlex.europa.eu/search.html?instInvStatus=ALL&or0=DTS=3,DTS=0&or1=DTT=R&DTN=0044&DTA=2001&qid=1415896834998&DTC=false&DTS_DOM=ALL&type=advanced&SUBDOM_INIT=ALL_ALL&DTS_SUBDOM=ALL_ALL.
[8] Disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62011CJ0154&rid=24
[9] Conclusão baseada na seguinte argumentação:

“Ao interpretar os referidos conceitos de «sucursal» [«filial»], de «agência» e de «outro estabelecimento», o Tribunal de Justiça identificou dois critérios que determinam se uma ação judicial relativa à exploração de uma dessas categorias de estabelecimento tem ligação com um Estado-Membro. Em primeiro lugar, o conceito de «sucursal» [«filial»], de «agência» e de «outro estabelecimento» pressupõe a existência de um centro de operações que se manifesta de forma durável face ao exterior, como prolongamento de uma casa-mãe. Esse centro deve ter uma direção e estar materialmente equipado para poder negociar com terceiros, os quais são assim dispensados de se dirigir diretamente à casa-mãe (...). Em segundo lugar, o litígio deve dizer respeito seja a atos relativos à exploração dessas entidades seja a obrigações assumidas por estas em nome da casa-‑mãe, quando estas últimas devem ser executadas no Estado em que estão situadas (...).

No processo principal, importa recordar, a título preliminar, que as funções de uma embaixada, como resulta do artigo 3.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, consistem essencialmente em representar o Estado acreditante, proteger os interesses desse Estado e promover as relações com o Estado acreditador. No exercício dessas funções, a embaixada, como qualquer outra entidade pública, pode agir iure gestionis e tornar-se titular de direitos e obrigações de caráter civil, na sequência, nomeadamente, da celebração de contratos de direito privado. É esse o caso quando celebra contratos de trabalho com pessoas que não cumprem funções que se enquadram no exercício do poder público.

No que respeita ao primeiro critério evocado (...), importa salientar que uma embaixada pode ser equiparada a um centro de operações que se manifesta de forma durável face ao exterior e que contribui para a identificação e a representação do Estado do qual emana.

Quanto ao segundo critério enunciado (…), é manifesto que o objeto do litígio (...), isto é, uma contestação no domínio das relações de trabalho, apresenta uma ligação suficiente com o funcionamento da embaixada em causa no que respeita à gestão do seu pessoal.

Por conseguinte, no que respeita a contratos de trabalho celebrados por uma embaixada em nome do Estado, esta constitui um «estabelecimento» na aceção do artigo 18.º, n.º 2, do Regulamento n.º 44/2001, quando as funções dos trabalhadores com os quais celebrou esses contratos têm ligação com a atividade de gestão levada a cabo pela embaixada no Estado acreditador. “

[10] Secção epigrafada “Competência em matéria de contratos individuais de trabalho” e que integra os arts. 18.º a 21.º.
[11] Neste âmbito, mais concretamente, ponderou o TJUE:

“[R]esulta (...)do referido artigo 21.º (...)  que os pactos atributivos de jurisdição podem «permitir» ao trabalhador recorrer a tribunais que não sejam os indicados nos artigos 18.° e 19.°. Daqui resulta que esta disposição não pode ser interpretada de forma a que um pacto atributivo de jurisdição se possa aplicar de maneira exclusiva e proibir, assim, ao trabalhador recorrer aos tribunais que são competentes nos termos dos ditos artigos 18.° e 19.°

Com efeito, o objetivo de proteger o trabalhador, enquanto parte contratante mais fraca, (...) não seria atingido se os foros previstos pelos (...) artigos 18.° e 19.°, para assegurar essa proteção, pudessem ser afastados por um pacto atributivo de jurisdição celebrado antes do surgimento do diferendo.

Além disso, não resulta do teor nem da finalidade do artigo 21.º (...) que tal pacto não possa atribuir a competência aos tribunais de um Estado terceiro, desde que não exclua a competência reconhecida com base nos artigos do regulamento.”
[12] P. 2075/12.0TTLSB.L1.S1 (Pinto Hespanhol), disponível em www.dgsi.pt.