Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2079/15.1T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO
ESTADO ESTRANGEIRO
DIREITO INTERNACIONAL
IMUNIDADE JURISDICIONAL
SOBERANIA NACIONAL
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
PRISÃO PREVENTIVA
HABEAS CORPUS
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
DIREITO CONSUETUDINÁRIO
DEFESA POR EXCEPÇÃO
DEFESA POR EXCEÇÃO
RENÚNCIA
Data do Acordão: 12/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO - FONTES DE DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO - RESOLUÇÃO DE CONFLITOS / RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS / IMUNIDADES JURISDICIONAIS.
Doutrina:
- Jónatas Machado, Direito Internacional, 4.ª edição, 229, 232, 239.
Legislação Nacional:
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 8.º, 20.º.
Referências Internacionais:
CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS: - ARTIGO 13.º.
CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE AS IMUNIDADES JURISDICIONAIS DOS ESTADOS E DOS SEUS BENS (CIJEB), APROVADA EM PORTUGAL PELA RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPUBLICA Nº46/2006, DE 2006.04.20, PUBLICADA EM 2006.06.20 E RATIFICADA PELO SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA PELO DECRETO-LEI N.º 57/2006.
Sumário :
I - Na ordem jurídica internacional, os Estados caracterizam-se pela sua igual dignidade soberana – igualdade nas relações entre os Estados, exigência de igualdade dos Estados perante o direito internacional.

II - Constitui corolário desta igual dignidade soberana dos Estados a garantia de imunidade de jurisdição aos Estados e à sua propriedade, ou seja, em princípio, nenhum Estado pode julgar os atos de um outro ou mesmo de um dos seus órgãos superiores, máxime, por intermédio de um dos seus tribunais, sem o consentimento deste.

III - A garantia de imunidade pode ser absoluta – quando um Estado se escusa pura e simplesmente a submeter à sua jurisdição qualquer ato de outro Estado – ou relativa – quando o reconhecimento da imunidade se apoia em distinções, como as que distinguem atos “iure imperium” e atos “iure gestiones”, com base na natureza e fim do ato, submetendo apenas os segundos à jurisdição de outro Estado.

IV - Sem prejuízo da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens – aberta à subscrição, em Nova Iorque, em 17-09-2005, e ratificada por Portugal – ainda não se encontrar em vigor, tem-se entendido que ela exprime, nos seus traços gerais, o direito consuetudinário vigente, ao afirmar o princípio da imunidade dos Estados, salvo em situações em que o Estado, expressa ou implicitamente, haja renunciado à mesma e em situações em que a imunidade é recusada quando estejam em causa transações comerciais, contratos de trabalho, danos causados por pessoas e bens, propriedade, posse e utilização de bens.

V - Insurgindo-se o autor contra uma decisão das autoridades judiciarias do Estado réu que ordenou a sua prisão preventiva, a qual se manteve durante 233 dias até ser deferido o pedido de “habeas corpus” por si formulado, é manifesto que tal ato foi praticado pelo réu no uso do seu “ius imperii”, na medida em que um ato judiciário tem que ser tido como praticado por um ente soberano.

VI - Como tal, em sede de ação de indemnização intentada, em Portugal, pelo autor contra esse Estado, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude dessa detenção, não estava o réu impedido de invocar a exceção de imunidade de jurisdição, sem que o facto de se ter defendido igualmente por impugnação e requerido a condenação do autor por litigância de má fé configure qualquer renúncia tácita a essa imunidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 2015.03.06, na Comarca de Coimbra – Coimbra – Instância Central Secção Cível, AA intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra a República Popular de Angola (RPA).


Pediu

 a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de 6.854.560,13 €, a título de indemnização por  danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em virtude de ter estado detido durante 233 dias, por ato praticado pelas autoridades judiciárias da Ré.


Alegou

em resumo, que

- residindo então em Angola, onde exercia a sua atividade profissional, o Tribunal Provincial de Benguela decidiu, em 27 de novembro de 2012, pronunciar o autor por um crime particular de que vinha acusado, no processo criminal nº 2407/DPIC/2009, ordenando a sua prisão preventiva imediata;

- esteve detido desde o dia 16 de janeiro de 2013 até ao dia 5 de setembro de 2013, data em que foi libertado na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional de Angola, de 29 de Agosto de 2013, que revogou a prisão preventiva, deferindo o pedido de ”habeas corpus” a tal respeito formulado pelo autor.


Contestando

- a ré defendeu-se por exceção, invocando a imunidade de jurisdição, alegando que a prisão preventiva por um Estado soberano de um cidadão no âmbito de um processo-crime em curso na sua jurisdição interna, configura manifestamente um ato de “ius imperii”;

- defendeu-se ainda por impugnação,  concluindo pelo reconhecimento da imunidade de jurisdição à ré, julgando-se procedente a exceção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, e pela sua absolvição da instância, pedindo ainda a condenação do autor como litigante de má-fé em multa e indemnização à ré.


Em 2016.01.14, foi proferida sentença, com o seguinte teor:

Pelo exposto, reconheço a imunidade de jurisdição da República de Angola e, consequentemente, absolvo o réu da instância.

O autor apelou, sem êxito, pois a Relação de Coimbra, por acórdão de 2016.05.10, confirmou a decisão recorrida.


Novamente inconformado, o réu deduziu revista excecional, que foi admitida.

Apresentou as respectivas alegações e conclusões.

A recorrida contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Cumpre decidir.


As questões

Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido

são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:

A) – Nulidade

B) – Proibição da invocação da imunidade de jurisdição

C) – Renúncia à invocação da imunidade

D) – Inconstitucionalidade.


Os factos

Os factos a ter em conta são os acima e adiante referidos, decorrentes da tramitação processual.


Os factos, o direito e o recurso


A) – Nulidade

Entende o autor recorrente que, nas suas conclusões das alegações da apelação que deduziu para a Relação de Coimbra, tendo alegado que uma decisão que admitisse a imunidade de jurisdição configuraria uma violação do princípio da confiança e da tutela jurisdicional efetiva, previsto no nº 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, conduzindo a uma situação de verdadeira denegação de justiça, tal matéria não foi objecto de pronúncia por aquela Relação, pelo que, por isso, foi cometida a nulidade de omissão de pronúncia prevista na 1ª parte da alínea d) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

Mas não é assim.


E não e assim, porque a questão foi enunciada, a folhas 4 do acórdão, como uma das questões a decidir, sendo que da abordagem que foi feita sobre a imunidade da jurisdição e suas consequências, a seguir melhor explicitada, resulta, se não expressamente, pelo menos implicitamente, que a consideração daquela imunidade não constituía qualquer denegação de justiça, tendo até em conta o disposto no artigo 62º do Código de Processo Civil.

Nesta conformidade, não se verifica a nulidade invocada.


B) – Proibição da invocação da imunidade de jurisdição

Na sentença proferida na 1ª instância entendeu-se que “a decisão do Tribunal Provincial de Benguela, que decidiu, em 27 de Novembro de 1012, pronunciar o aqui autor pelo crime de que foi particularmente acusado e na sequência de tal pronúncia, ordenou a prisão preventiva imediata do autor, enquanto expressão do exercício do poder judicial de um Estado Estrangeiro” constitui “um verdadeiro ato de soberania, relativamente ao qual tem cabimento a invocação da imunidade jurisdicional”, pelo que não renunciando a ré a essa imunidade, ”ela não podia deixar de ser reconhecida”.

No acórdão recorrido entendeu-se também que a ré RPA gozava de imunidade de jurisdição, na medida em que o ato que lhe é atribuído pelo autor foi realizado no exercício do seu poder soberano, não de verificando qualquer exceção à invocação daquela imunidade, pois o ato não tinha qualquer conexão material relevante com o território português.

E também porque “no caso em apreço, a situação relatada pelo autor nunca se moveria dentro daquelas situações de grave violação dos direitos humanos ou do direito internacional humanitário justificadora da derrogação do princípio da imunidade de jurisdição do estado relativamente a atos por si exercidos ao abrigo de um "ius imperii".

O recorrente entende que a ré não podia invocar a exceção da imunidade de jurisdição face ao estabelecido no artigo 12º da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens (CIJEB), diploma este em que se especifica os “processos judiciais nos quais os Estados não podem invocar a imunidade”, e que o recorrente entende ter “positivado” o “direito consuetudinário internacional”, estando assim “definitivamente afastada a distinção clássica entra atos de soberania e atos de gestão privada do Estado”.

Mas não é assim.

Vejamos.


As convenções internacionais constituem a mais importante fonte de direito internacional, sendo que uma convenção internacional consiste num acordo escrito através do qual os Estados contratantes se vinculam juridicamente à adoção de uma determinada conduta ou estabelecem determinadas relações particulares entre si.

Outra fonte do direito internacional é o costume, ou seja, normas não escritas, geralmente estabelecidas tácita, consensual e historicamente pela memória e pelo uso

São seus elementos constitutivos o elemento fáctico – verificação empírica de uma prática reiterada, dotada de razoável duração, consistência, repetição e generalidade – e o elemento psicológico – a convicção (ou o consentimento) de obrigatoriedade da prática em presença, ou da respetiva admissibilidade ou proibição, conforme os caso.


A soberania é um dos elementos constitutivos do Estado.


Hoje, entende-se que a soberania estadual, potencialmente ilimitada no plano interno, encontra-se, no entanto, subordinada ao direito internacional e aos valores transnacionais de respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos seus direitos básicos, ou seja, a soberania está hoje associada à responsabilidade de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos e de promover o seu bem-estar económico e social – Jónatas Machado “in” Direito Internacional, 4ª edição, página 229

Uma das marcas da soberania consiste n exercício dos poderes de jurisdição, que se prende com o poder estadual de disciplinar juridicamente uma determinada matéria, com o poder de exigir o cumprimento de normas por meios administrativos e policiais e com o poder de levar um determinado sujeito a julgamento pela prática de uma infração - mesmo autor, ob. cit. página 232.

Na ordem jurídica internacional, os Estados caraterizam-se pela sua igual dignidade soberana – igualdade nas relações entre os Estados, exigência de igualdade dos Estados perante o direito internacional.

Um outro corolário desta igual dignidade soberana dos Estados no direito internacional diz respeito à garantia de imunidade de jurisdição aos Estados e à sua propriedade, ou seja, em princípio, nenhum Estado pode julgar os atos de um outro ou mesmo de um dos seus órgãos superiores, máxime, por intermédio de um dos seus tribunais, sem o consentimento deste.

Esta imunidade tem na sua base a deferência para com a prerrogativa de soberania do Estado demandado; a impossibilidade prática, em muitos casos, de executar uma sentença contra ele proferido pelo Estado do foro e a noção de que num conflito entre Estados soberanos, os tribunais de um deles, na sua qualidade de órgãos de soberania, não oferecem a garantias de uma justiça independente e imparcial.

Desde logo, a imunidade soberana dos Estados compreende a “imunidade processual”, nos termos da qual um Estado, incluindo qualquer das suas unidades constitutivas, órgãos, entidades no exercício de prerrogativas de soberania ou representantes, não pode ser submetido à jurisdição interna de outros Estado sem o seu consentimento, devendo os ordenamentos jurídicos internos assegurar a existência de uma exceção processual de incompetência - mesmo autor, ob. cit., página 239

O incremento da atividade estatal determinou a distinção entre atos do governo (jus imperii) e atos de natureza comercial (jure gestiones), negando neste último caso a imunidade de jurisdição – trata-se da doutrina da imunidade restritiva ou relativa.

Assim, tem-se entendido que garantia de imunidade pode ser absoluta - quando um Estado se escusa pura e simplesmente a submeter à sua jurisdição qualquer ato de outro Estado - ou relativa – quando o reconhecimento da imunidade se apoia em distinções, como as que distinguem atos “iure imperurim” e atos “iure gestiones”, com base na natureza e fim do ato, submetendo apenas os segundos atos à jurisdição de outro Estado.

Daí, a importância da distinção entre atos de autoridade soberana ou de império, em que o Estado se comporta como um ente soberano e atos de direito privado, em que o Estado estrangeiro pratica atos como pessoa coletiva, que não são próprios da sua qualidade de ente soberano.

Portanto, só quando um Estado atuar sem o jus imperium é que se entende que esse Estado pode ser responsabilizado noutro Estado e ser submetido à sua jurisdição.

Trata-se de um entendimento que pode ser considerado como uma norma consuetudinária de direito internacional público.

Esta imunidade relativa, imposta pelo recurso crescente ao direito privado por parte dos Estados, é considerada como a mais consentânea com a tendência atual no sentido de responsabilização dos poderes públicos por danos, contratuais ou extracontratuais, causados aos particulares.

A transição da imunidade absoluta para a imunidade relativa não tem sido fácil, verificando-se hoje uma tendência para o levantamento da imunidade dos Estados que pratiquem ou auxiliem a prática de atos extraterritoriais de terrorismo, do ponto de vista do Estado do foro e que sejam especificamente designados de terroristas.

Na sequência do disposto no artigo 13º da Carta das Nações Unidas, tem havido um movimento para a codificação do Direito Internacional, ou seja, para a conversão do direito consuetudinário num corpo sistemático de regras escritas.

Em 2005.09.17, foi aberta à subscrição, em Nova Iorque, a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens (CIJEB), aprovada em Portugal pela Resolução da Assembleia da Republica nº46/2006, de 2006.04.20, publicada em 2006.06.20 e ratificada pelo Senhor Presidente da República pelo Decreto-Lei 57/2006.

Naquela Convenção afirma-se o princípio da imunidade dos Estados, salvo em situações em que o mesmo, expressa ou implicitamente, haja renunciado à imunidade e em situações em que imunidade é recusada quando estejam em causa transações comerciais, contratos de trabalho, danos causados a pessoas e bens, propriedade, posse e utilização de bens.

Nos termos do disposto no artigo 30º dessa Convenção, a sua entrada em vigor estava dependente do depósito do 30º instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão junto do Secretário-geral das Nações Unidas.

Até ao momento apenas assim procederam vinte e um Estados subscritores, pelo que, apesar de já ratificado por Portugal, ainda não se pode considerar em vigor a dita Convenção.

Portanto e ao contrário do que entende o recorrente, as suas normas não podem ser aplicadas ao caso concreto em apreço.

No entanto tem-se entendido que ela exprime, nos seus traços essenciais, o direito consuetudinário vigente no domínio em causa.


Posto este conceitos, voltemos ao caso concreto em apreço.


O autor pretende ser ressarcido pela ré, RPA, por todos os prejuízos que alegadamente sofreu e continua a sofrer em virtude de “por ato praticado pelas autoridades judiciárias da ré”, ter sido detido e mantido em prisão de forma ininterrupta durante 233 dias”, “à margem das mais elementares regras do direito penal internacional e angolano”, “de forma ilegal e arbitrária”.

Manifestamente, o ato contra o qual se insurge o autor, foi praticado pela ré no uso do seu “jus imperii”, na medida em que a prática de um ato judiciário tem que ser tida como ato praticado por um ente soberano, através de um dos seus órgãos, um Tribunal.

E ainda que se se considere – como parece deve considerar-se – que mesmo atuando por atos de “jus imperii” um Estado está obrigado a não praticar violações graves de direitos humanos, o facto que a alegada conduta da ré não pode assim ser classificada, na medida em que, como bem se refere no acórdão recorrido “o autor foi detido no âmbito de um processo judicial e, tendo-se socorrido dos meios de impugnação previstos no sistema judicial angolano, logrou obter a sua libertação, que veio a ser decretada pelo Tribunal Constitucional, na sequência de um pedido de “habeas corpus” por si deduzido.


Concluímos, pois, que a ré não estava impedida de invocar a imunidade de jurisdição.


C) – Renúncia à invocação da imunidade

No acórdão recorrido entendeu-se a ré não havia renunciado ao direito de beneficiar da imunidade de jurisdição, ao intervir neste processo, porque sendo certo “que a intervenção no processo pode ter por efeito ou pode ser interpretada por lei como uma renúncia à invocação da imunidade de jurisdição – mas apenas quando o Estado intervenha nos autos sem, de imediato, proceder à invocação de tal imunidade, omissão que o legislador equipara a um consentimento no exercício da jurisdição por parte do outro estado”, não era este o caso dos autos, na medida em que “o Réu República de Angola canaliza a sua defesa em torno, e essencialmente, da imunidade de jurisdição que lhe assiste, pretensão que formula a título principal, sendo a defesa por impugnação deduzida a título meramente subsidiário”.


O autor recorrente defende que caso se entendesse não ser aplicável o já referido artigo 12º da Convenção, tendo em conta o disposto na alínea b), do nº1, do artigo 8º dessa Convenção, tinha que se considerar que o comportamento processual da ré conduziu à inviabilização da invocação dessa imunidade, na medida em que, apresentando contestação, “não cingiu a sua intervenção processual a esse único objetivo”, acrescentado a essa invocação a impugnação de factos alegados pelo autor e o pedido de condenação do autor como litigante de má-fé.


Cremos que também não tem razão.


Em relação às imunidades do Estado perante a jurisdição dos tribunais de outros Estados, progressivamente foram aceites exceções à regra da sua imunidade absoluta.


A primeira, basilar e tradicional, que em rigor não constitui uma exceção, antes torna a norma inaplicável, é o consentimento do Estado em causa.


Assim, considera-se que existiu renúncia à imunidade, se este consentiu expressamente na jurisdição dos tribunais do outro Estado por Tratado Internacional, por ato unilateral ou mesmo nos termos de contrato sujeito a qualquer direito interno ou mesmo a outra ordem jurídica.

Também se entende existir consentimento quando o Estado réu deduz qualquer pedido reconvencional contra o autor.

Bem como nos casos, em geral, que compareça em juízo sem invocar a sua imunidade, logo que tenha presente todos os elementos relevantes do processo

Não sendo a imunidade obrigatória, um Estado pode renunciar a ela, expressamente ou tacitamente pela sua conduta

Na verdade, a renúncia pode ocorrer “inter alia”, por Tratado, por comunicação diplomática ou através da submissão efetiva a um processo instaurado num tribunal nacional.

Para se dar a renúncia tácita, necessário é que exista uma vontade concreta do renunciante e uma manifestação idónea dessa vontade, não sendo suficiente qualquer presunção dessa renúncia.


Voltemos ao caso concreto em apreço.

A ré, na sua contestação – artigos 4º e seguintes – invocou expressamente a exceção de imunidade de jurisdição e pugnou pela incompetência absoluta dos tribunais portugueses e consequente absolvição da instância.

E defendeu-se também por impugnação, não sem antes alegar que “sem prejuízo da exceção acima arguida e, portando, não renunciando à supra invocada imunidade de jurisdição, (…) à cautela (…) aceita que é verdade o alegado pelo autor (…) ”, seguindo-se depois diversos artigos em que impugna factos alegados pelo autor.

Sendo certo que a ré não consentiu expressamente na jurisdição portuguesa, também é certo que dos termos da sua contestação não se pode concluir que o tenha feito tacitamente.

Antes e pelo contrário, o que se tem que concluir é que ela não renunciou à imunidade de jurisdição, pois, para além de a invocar expressamente, ao deduzir a impugnação, expressamente também alegou que o fazia “sem prejuízo” da invocação da exceção.

Finalmente, de forma alguma se pode considerar que ao deduzir um pedido de litigância de má-fé contra o autor, a ré tenha tacitamente renunciado à sua imunidade.

Na verdade, tendo em conta o que já anteriormente tinha referido - que não era essa a sua vontade - nunca se podia presumir da invocação daquele pedido que dava um passo atrás e alterava essa vontade no sentido de renunciar à imunidade.

Concluímos, pois, que a ré não renunciou à imunidade de jurisdição que lhe é reconhecida.


D) – Inconstitucionalidade

Finalmente entende o recorrente que “uma interpretação que não admita o julgamento da presente ação pelos tribunais portugueses configura uma situação de violação da norma constitucional prevista no artigo 20º, nº1, da Constituição da República Portuguesa.

Cremos que também não tem razão.


O direito de acesso ao direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no citado normativo constitucional, constitui uma garantia imprescindível da proteção dos direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à noção de Estado de Direito.

Esse direito não pode ser denegado por insuficiência de meios económicos, conforme decorre da última parte do mesmo normativo.

O que está em causa no presente processo é o direito de acesso ao direito e aos tribunais portugueses.

Ora o autor, invocando a sua insuficiência de meios económicos, beneficiou de apoio judiciário para a instauração da presente ação.

Assim, essa insuficiência não o impediu de ter o acesso ao direito e aos tribunais portugueses, conforme invoca.

A alegada insuficiência económica para instaurar um processo jurisdicional na RPA não pode deixar de se irrelevante para o efeito do disposto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que as normas deste diploma se dirigem, naturalmente, à ordem jurídica portuguesa, pelo que, tendo sido tomada em conta nesta ordem a insuficiência económica do autor e concedido o respetivo de apoio judiciário para a ultrapassar, é de concluir que aquele princípio constitucional não foi violado.

 Finalmente, há que dizer que a considerar-se a existência da violação invocada pelo autor, então teríamos que concluir pela inexistência da imunidade jurisdicional da ré, o que contrariaria os princípios de direito internacional, conforme acima ficou explicitado e decorre do disposto no artigo 8º da mesma Constituição.


Assim, não se nos afigura que ocorra a denegação de justiça invocada pelo autor.


A decisão


Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 7 de Dezembro de 2016


Oliveira Vasconcelos (Relator)

Fernando Bento

João Trindade