Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01320/12
Data do Acordão:12/19/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
DISPENSA DE PRESTAÇÃO DE GARANTIA
ÓNUS DE PROVA
PROVA DE FACTO NEGATIVO
Sumário:I - É sobre o executado que pretende a dispensa de garantia, invocando explícita ou implicitamente o respectivo direito, que recai o ónus de provar que se verificam as condições de que tal dispensa depende, pois trata-se de factos constitutivos do direito que pretende ver reconhecido.
II - A eventual dificuldade que possa resultar para o executado de provar o facto negativo que é a sua irresponsabilidade na génese da insuficiência ou inexistência de bens não é obstáculo à atribuição àquele do ónus da prova respectivo, pois essa dificuldade de prova dos factos negativos em relação à dos factos positivos não foi legislativamente considerada relevante para determinar uma inversão do ónus da prova, como se conclui das regras do art. 344.º do CC.
III - Na situação referida, não se está perante uma situação de impossibilidade prática de provar o facto necessário para o reconhecimento de um direito, que, a existir, poderia contender com o princípio da proibição da indefesa, que emana do direito constitucional ao acesso ao direito e aos tribunais (art. 20.º da CRP), pois ao executado é possível demonstrar aquele facto negativo através de factos positivos, como são as reais causas de tal insuficiência ou inexistência de bens.
IV - Por outro lado, a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur».
Nº Convencional:JSTA00068014
Nº do Documento:SA22012121901320
Data de Entrada:11/29/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A......
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF LISBOA
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR FISC
Legislação Nacional:LGT98 ART52 N4 ART100
CPPTRIB99 ART125 N1 ART170 N3
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC0327/08 DE 2008/12/18; AC STA PROC0414/12 DE 2012/10/17
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO

1.1 A……… (adiante Executada, Reclamante ou Recorrida), invocando o disposto no arts. 276.º e 278.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), reclamou junto do Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa da decisão do órgão da Administração tributária (AT) que lhe indeferiu o pedido de dispensa da prestação de garantia por ela formulado ao abrigo do disposto nos arts. 52.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária (LGT) e 170.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em ordem à suspensão da execução fiscal.
A Executada pediu que aquela decisão fosse anulada. Alegou, em resumo e no que ora nos interessa (Apesar de a Executada ter invocado como fundamentos da reclamação os vícios de falta de fundamentação e de violação de lei, a sentença desatendeu o primeiro e foi com base no segundo que anulou a decisão administrativa. Por isso, em sede de recurso só nos interessa considerar este vício de violação de lei.), que a AT fez errada interpretação e aplicação da lei no que se refere aos requisitos para a dispensa da prestação de garantia.

1.2 O Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa julgou a reclamação procedente e, em consequência, anulou o acto reclamado. Para tanto, considerou, em síntese, que
· contrariamente ao que considerou a autoridade administrativa, está demonstrada a manifesta falta de meios económicos da Executada para prestar garantia;
· por outro lado, sendo certo que a autoridade administrativa não chegou a pronunciar-se sobre a verificação do requisito de que «a insuficiência ou inexistência de bens não seja da responsabilidade do executado», «nada nos autos indica que tenha havido por parte da Reclamante sonegação, dissipação de bens ou qualquer outra acção com o propósito de diminuir a garantia dos credores e não se vê que prova positiva possa a mesma fazer, nesta sede, para demonstrar que não lhe cabe responsabilidade na insuficiência ou inexistência de bens» e a jurisprudência aponta no sentido de que «recai sobre a AT o dever de provar que a Executada é responsável pela situação de insuficiência ou inexistência de bens penhoráveis, por os ter dissipado em prejuízo dos credores», sendo certo que a AT nada demonstrou, nem sequer alegou, nesse sentido.

1.3 A Fazenda Pública (adiante Recorrente) não se conformou com essa sentença e dela interpôs recurso para este Supremo Tribunal Administrativo, apresentando com o requerimento de interposição do recurso as respectivas alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor:
«
1) Nos termos do n.º 4 do art. 52.º da LGT a administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que em qualquer dos casos a insuficiência ou inexistência de bens não seja da responsabilidade do executado, tendo a sentença recorrida entendido, relativamente à prova do pressuposto constante da parte final do preceito legal transcrito, que, por ocorrer a inversão do ónus probatório, cabe à AT efectuar a prova do facto relativo à mencionada responsabilidade do executado.
2) Ora, a questão referente à eventual inversão do ónus probatório, neste domínio, foi, entretanto, objecto de apreciação no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 5/7/2012, proferido no processo 0286/12, no qual se esclarece que “I - É sobre o executado que pretende a dispensa da garantia que recai o ónus de provar que se verificam as condições de que tal dispensa depende, pois trata-se de factos constitutivos do direito que pretende ver reconhecido”, pelo que “II - A eventual dificuldade que possa resultar para o executado de provar o facto negativo que é a sua irresponsabilidade na génese da insuficiência ou inexistência de bens não é obstáculo à atribuição àquele do ónus da prova respectivo, pois essa dificuldade de prova dos factos negativos em relação à dos factos positivos não foi legislativamente considerada relevante para determinar uma inversão do ónus da prova, como se conclui das regras do art. 344.º do CC.”
3) Termos em que, tendo a sentença recorrida decidido com base em entendimento contrário ao que resulta das presentes conclusões, assim contrariando manifestamente a posição adoptada no douto aresto cujo sumário parcialmente se transcreve e violando, concomitantemente, o estabelecido no n.º 4 do art. 52.º da LGT, deverá a mesma ser revogada, com as legais consequências».

1.4 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

1.5 Não foram apresentadas contra alegações.

1.6 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso, revogada a sentença recorrida e mantida a decisão administrativa reclamada, com a seguinte fundamentação:

«Sob a epígrafe “Garantia da cobrança da prestação tributário” estabelece-se no art. 52.º da L.G.T. nomeadamente, o seguinte:
«1- A cobrança da prestação tributário suspende-se no processo de execução fiscal em virtude de pagamento em prestações ou reclamação, recurso, impugnação e oposição à execução que tenham por objecto a ilegalidade ou inexigibilidade da dívida exequenda (…)».
«2- A suspensão da execução nos termos do número anterior depende do prestação de garantia idónea nos termos dos leis tributárias».
(…)
«4- A administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação da garantia nos casos da sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelado pela insuficiência de bens penhoráveis para pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que em qualquer dos casos a insuficiência ou inexistência de bens não seja da responsabilidade do executado».
Por sua vez, o artigo 170.º do C.P.P.T. preceitua ainda o seguinte:
«1- Quando a garantia possa ser prestada nos termos previstos na lei, deve o executado requerer a dispensa ao órgão do execução fiscal»
(...)
«3- O pedido a dirigir ao órgão de execução fiscal deve ser fundamentado de facto e de direito e instruído com a prova documental necessária».
A requerente tinha alegado receber subsídio de desemprego, não ter bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, e ter ainda como rendimento o auferido por seu marido com o que faz face à renda da casa e a outras despesas.
E quanto à insuficiência de bens alegou ainda que tal se deveu a causa que lhe era imputável, mais fundamentando que lha é de entender, “porquanto não tem forma de obter aumento dos seus rendimentos mensais fixos que lhe permitam obter uma garantia bancária a prestar por instituição bancária”.
Quanto a esse requisito decidiu-se, aliás, não resultar alegado o necessário, mas ser o requisito da não imputação da insuficiência de bens um ónus a cargo da A.T..
Com efeito, o alegado não corresponde àquilo a que se refere o requisito em causa, a qual era de referir ainda ao que resultava da situação devedora originária B………, Lda., originária executada, sendo a reclamante também executada por reversão - a “génese da situação de insuficiência de bens”, conforme referem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, em Lei Geral Tributária, 4.ª ed. Encontro da Escrita, 2012, p. 427.
Por outro lado, parece não ser caso de inversão de ónus de prova que deva levar a aplicar o disposto no art. 344.º n.º 2 do Cód. Civil, mas antes o previsto no art. 342.º n.º 1 do mesmo “àquele que alegar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Com efeito, no requerimento que apresentou não se ofereceu qualquer prova sobre as razões da insuficiência de bens, nem tal se encontra previsto que possa ser dispensado.
Assim, e ainda que se reconheça que o único facto alegado, de não ter forma de obter outros rendimentos, comporta um facto negativo relativamente ao qual a prova é difícil, tal apenas pode ter com consequência serem menores as exigências de prova, que “não se está perante uma situação de impossibilidade prática de comprovar o facto necessário”, conforme resultar ainda do decidido pelo Pleno do S.T.A., nomeadamente, no acórdão de 17-12-08, no recurso n.º 327/08, e que tem sido posteriormente reafirmado em acórdãos posteriores do mesmo - cfr. o ponto II do sumário daquele acórdão, transcrito na obra citada a p. 431, e o acessível em www.dgsi.pt.
É certo que na reclamação judicial que apresentou, a requerente veio já a oferecer provas no sentido inicialmente acima referido, bem como a alegar e juntar outras provas.
Tal não levou a que fosse alterado o acto de indeferimento foi proferido nos termos do art. 277.º n.º 2 do C.P.P.T., com fundamento em não haver ainda prova bastante.
Aliás, o que ficou ainda a constar do probatório, que a requerente veio posteriormente a auferir pensão por velhice, bem como que o seu cônjuge, não é de apreciar na reclamação também em face do previsto no art. 276.º n.º 1 do C.P.P.T., de que resulta que a reclamação visa apreciar, em face de direitos ou interesses legítimos do executado, a decisão proferida pelo órgão de execução fiscal».

1.7 Dispensaram-se os vistos dos Juízes adjuntos, atento o carácter urgente do processo.

1.8 A questão suscitada pela Recorrente é, como procuraremos demonstrar, exclusivamente a de saber se a sentença recorrida fez errado julgamento quando considerou que, em sede do procedimento para dispensa da prestação de garantia, incumbe à AT a alegação e prova da responsabilidade do executado na génese da insuficiência ou inexistência de bens.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«FACTOS PROVADOS

1. A Administração Fiscal instaurou contra a sociedade “B………, Lda.”, o processo de execução fiscal n.º 1520199601011561, e apensos, que tramitam pelo Serviço de Finanças de Loures - 1;

2. Os autos de execução reverteram contra a ora Reclamante, pelo montante de Euros 76.683,50, referente a dívidas de IRC e IVA dos anos de 1994 a 1996;

3. Em 3 de Março de 2010 a ora Reclamante requereu junto do Órgão da Execução Fiscal a dispensa de prestação de garantia, alegando, entre o mais, que: “A Executada encontra-se numa situação económica que não lhe permite angariar uma garantia de valor suficiente para prestar no presente processo de execução fiscal; (...) vive exclusivamente do subsídio de desemprego que aufere, sendo o seu agregado familiar composto pelo seu cônjuge, também executado nestes autos, o qual exerce actividade como trabalhador por contra de outrem; a Executada não é proprietária de quaisquer bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, sobre os quais possa constituir garantia real (...); Não é titular de depósitos a prazo ou de aplicações financeiras, que possa dar de garantia a uma instituição bancária para que tal entidade preste garantia bancária para entregar nos presentes autos de execução fiscal; Desta forma, não tem a Executada quaisquer meios que lhe permitam apresentara referida garantia”;

4. Em 17 de Agosto de 2011, na Divisão de Gestão da Dívida Executiva, da Direcção de Finanças de Lisboa, foi elaborada a informação que, para além de citar preceitos legais, acrescenta a factualidade que, de seguida, se transcreve, tendo por objecto o requerimento a que se aludiu em 3.:
2.2.10. Por consulta ao Cadastro electrónico de Bens Penhoráveis, verifica-se que não existem bens imóveis ou móveis em nome da requerente. O rendimento declarado para efeitos de IRS, refere-se ao montante auferido pelo cônjuge, como trabalhador dependente, pago pela sociedade C……… Lda, NIF ………, sendo esta também a última entidade pagadora de rendimentos à executada, em 2008. A requerente refere que é com esse rendimento e com o subsídio de desemprego que aufere, que faz face às despesas de sobrevivência, das quais renda de casa, sem que conste em qualquer declaração de rendimentos, o valor que suporta a esse título.
2.2.11. Porquanto, para feitos de suspensão dos autos, deverá a executada prestar garantia idónea nos termos do art. 199.º do CPPT, podendo consistir em garantia bancária, seguro- caução, penhor ou qualquer meio susceptível de assegurar os créditos da exequente, pois não se encontra devidamente fundamentado o pedido de dispensa de garantia, não tendo sido feita qualquer prova nem junta qualquer documentação”;

5. Em 22 de Agosto de 2011 Novembro de 2011 foi proferido, em substituição, pelo Director de Finanças Adjunto da D. F. de Lisboa, o seguinte despacho:
“Concordo. Indefiro o pedido de dispensa de garantia nos termos e com os fundamentos aduzidos na presente informação.
Ao S.F. de Loures - 1, para efeitos”;

6. Em 25 de Outubro de 2011 a Reclamante passou a auferir uma pensão por velhice no montante de Euros 1.303,22;

7. O marido da Reclamante auferia em Setembro de 2011 uma pensão mensal, com o valor ilíquido de Euros 1.543,42.

FACTOS NÃO PROVADOS

Com interesse para a decisão, nada mais se provou».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

Numa execução fiscal instaurada contra uma sociedade para cobrança coerciva de dívidas de IRC e de IVA, e que reverteu contra a ora Recorrida, esta, por certo tendo manifestado a intenção de impugnar graciosa ou contenciosamente a liquidação daquele imposto, requereu ao órgão de execução fiscal a dispensa da prestação de garantia a prestar para efeitos de suspensão da execução.
O órgão de execução fiscal indeferiu esse pedido com o fundamento de que «não se encontra devidamente fundamentado o pedido de dispensa de garantia, não tendo sido feita qualquer prova nem junta qualquer documentação» que demonstre a falta de meios económicos.
A Executada, que reclamou dessa decisão para o Tribunal Tributário de Lisboa ao abrigo do disposto nos arts. 276.º a 278.º do CPPT.
O Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa julgou a reclamação procedente e anulou o acto reclamado.
Começou o Juiz por referir que «dois são os requisitos, disjuntivos, de que a lei faz depender a possibilidade de o interessado ser dispensado da prestação de garantia; 1.º a ocorrência de prejuízo irreparável causado pela prestação da garantia, e 2.º a manifesta falta de meios económicos para a prestar; desde que, em qualquer dos dois casos, a insuficiência ou inexistência de bens não seja da responsabilidade do executado».
Depois, entendeu que, contrariamente ao que considerou a autoridade administrativa, está demonstrada a manifesta falta de meios económicos da Executada para prestar garantia e que o indeferimento do pedido com fundamento na não verificação desse requisito se deu por motivo meramente formal, que não merece tutela.
Salvo o devido respeito, deveria a sentença ter-se quedado por aí. Na verdade, o único fundamento por que a AT indeferiu o pedido de dispensa da prestação de garantia foi o de não ter sido apresentada prova da invocada falta de meios económicos para o pagamento da dívida exequenda e do acrescido. Em face desse entendimento, a autoridade administrativa não avançou no conhecimento de qualquer outro requisito da dispensa de prestação de garantia, designadamente no relativo à responsabilidade da Executada pela situação de insuficiência ou inexistência patrimonial para o pagamento da quantia exequenda e do acrescido.
Assim, sempre salvo o devido respeito, mal se compreende que o Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa tenha avançado no conhecimento desse requisito quando a autoridade administrativa o não fez. Recorde-se aqui que a competência para conhecer do pedido de dispensa é sempre e exclusivamente do órgão de execução fiscal (O relator reviu já, quanto à natureza da decisão de dispensa de garantia, a posição assumida no acórdão de 7 de Dezembro de 2011, proferido no processo n.º 1054/11, publicado no Apêndice ao Diário da República de 16 de Julho de 2012 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2011/32240.pdf), págs. 2298 a 2310, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ce52ce10d3db37f08025797a0032f902?OpenDocument.), como resulta do disposto no n.º 4 do art. 52.º da LGT, motivo por que «não pode ser exercido pelo tribunal em substituição daquela, tendo a actividade deste de resumir-se à verificação da ofensa ou não dos princípios jurídicos que condicionam toda a actividade administrativa e será um controle pela negativa, não podendo o tribunal substituir-se à Administração na ponderação das valorações que integram nessa margem [de livre apreciação]» (Cfr. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Encontro da Escrita, 4.ª edição, anotação 11 ao art. 52.º, pág. 429. ).
Ora, se o tribunal não pode conhecer do pedido de dispensa de prestação da garantia, mas apenas sindicar a legalidade da decisão do mesmo, também não faz sentido que avance no conhecimento de requisitos desse dispensa que não tenham sido objecto de conhecimento pelo órgão de execução fiscal.
A verdade é que o Juiz, reconhecendo que a autoridade administrativa não se tinha pronunciado sobre o requisito da responsabilidade da Executada pela situação de insuficiência ou inexistência patrimonial para o pagamento da quantia exequenda e do acrescido – afirmando expressamente que «embora a Administração Fiscal não se tenha pronunciado, a propósito, no despacho impugnado, ficando a montante da apreciação deste item» –, não se coibiu de avançar na apreciação desse requisito; e fê-lo dizendo, por um lado, que «nada nos autos indica que tenha havido por parte da Reclamante sonegação, dissipação de bens ou qualquer outra acção com o propósito de diminuir a garantia dos credores e não se vê que prova positiva possa a mesma fazer, nesta sede, para demonstrar que não lhe cabe responsabilidade na insuficiência ou inexistência de bens» e, por outro lado, que, como a jurisprudência tem vindo a afirmar (A sentença invoca em abono da sua tese dois acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul:
– de 15 de Maio de 2007, proferido no processo com o n.º 1780/07, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/41d390b62f1cafa9802572dd003330e3?OpenDocument;
– de 9 de Outubro de 2007, proferido no processo com n.º 2029/07, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/688ab655763dc5c38025737300441355?OpenDocument.), «recai sobre a AT o dever de provar que a Executada é responsável pela situação de insuficiência ou inexistência de bens penhoráveis, por os ter dissipado em prejuízo dos credores», sendo certo que a AT nada demonstrou, nem sequer alegou, nesse sentido.
A Fazenda Pública, se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões discorda da sentença apenas na parte em que nesta se deu como verificado o requisito de que a inexistência ou insuficiência de bens para pagamento da quantia exequenda e do acrescido não é imputável à Executada. Mais concretamente, entende que na sentença se fez errada interpretação e aplicação das regras do ónus da prova relativamente a esse requisito, contrariando inclusive a jurisprudência do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
Poderá, eventualmente, sustentar-se que a Fazenda Pública deveria era ter arguido a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (cfr. art. 125.º, n.º 1, do CPPT) e que, não o tendo feito, não haveria agora utilidade em conhecer do recurso (cfr. art. 137.º do Código de Processo Civil), uma vez que a sentença de anulação da decisão administrativa de indeferimento do pedido de dispensa de garantia sempre haverá de manter-se com o fundamento de que aquela decisão enferma de violação de lei no que respeita ao requisito da falta de meios económicos para o pagamento da dívida exequenda e do acrescido (Sobre a questão da utilidade do recurso quando não seja atacada a totalidade dos fundamentos que determinaram a decisão, vide JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume IV, anotação 12 c) ao art. 282.º, pág. 445.).
No entanto, a nosso ver, o recurso mantém a sua utilidade. Na verdade, a Fazenda Pública tem interesse em ver a sentença revogada na parte em que entendeu estar verificado o requisito da irresponsabilidade do executado pela falta de bens para pagamento da dívida exequenda e do acrescido.
Isto, porque, na sequência da anulação da decisão de indeferimento do pedido de prestação de garantia, o órgão de execução fiscal terá de proferir novo acto de apreciação daquele pedido, no qual, em obediência ao disposto no art. 100.º da LGT (Diz o art. 100.º da LGT: «A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».), proceda à «imediata e plena reconstituição da legalidade do acto». Esse novo acto poderá ser de sentido idêntico ao anterior, desde que não repita os vícios que determinaram a anulação deste, uma vez que a eficácia do caso julgado limita-se aos vícios que determinaram a anulação.
O que significa que a Administração tem interesse em ver revogada a sentença na parte em que conheceu do requisito da falta de responsabilidade na génese da insuficiência ou inexistência de bens, de modo a que não veja o novo acto a proferir em obediência ao art. 100.º da LGT condicionado pelos limites do caso julgado no que se refere àquele requisito.
Assim, como deixámos dito em 1.8, a questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença recorrida fez errado julgamento quando considerou que, em sede do procedimento para dispensa da prestação de garantia, incumbe ao órgão de execução fiscal a alegação e prova da responsabilidade do executado na génese da insuficiência ou inexistência de bens.


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2.2.2 ÓNUS DA PROVA DA FALTA DE RESPONSABILIDADE NA GÉNESE DA INSUFICIÊNCIA OU INEXISTÊNCIA DE BENS

A questão de saber sobre quem recai tal ónus tem-se vindo a colocar nos tribunais tributários. JORGE LOPES DE SOUSA, escalpelizando exaustivamente a questão, dá-lhe a melhor resposta:

« Como se depreende do art. 52.º, n.º 4, da LGT, para ser deferida a dispensa de prestação de garantia é necessário que se satisfaçam três requisitos, cumulativamente, embora dois deles comportem alternativas, pelo que o executado deverá na petição tê-los em conta:
que haja uma situação de inexistência de bens ou sua insuficiência para pagamento da dívida exequenda e do acrescido; (3) [(3) De harmonia com o disposto no art. 199.º, n.º 5, do CPPT, no âmbito do «acrescido» incluir-se-ão os juros de mora contados até à data do pedido, com o limite de cinco anos, e custas na totalidade, mais 25% da soma daqueles valores e da dívida exequenda]
que essa inexistência ou insuficiência não seja imputável ao executado;
que a prestação da garantia cause prejuízo irreparável ao executado ou que seja manifesta a sua falta de meios económicos.
Estando-se num processo de natureza judicial, as regras aplicáveis em matéria de ónus da prova são as previstas no CC, designadamente as que constam dos seus arts. 342.º e 344.º.
As regras básicas em matéria de ónus da prova, que constam do art. 342.º do CC são as de que «àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado» (n.º 1), que «a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita» (n.º 2) e que «em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito» (n.º 3).
O essencial deste critério de repartição do ónus da prova é também adoptado no procedimento tributário, por força do disposto no art. 74.º, n.º 1, da LGT em que se estabelece que «o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque».
No art. 344.º do CC estabelecem-se as situações em que, excepcionalmente, se afastam aquelas regras do art. 342.º que são «quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine» e «quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado».
À face destas regras, é de concluir que é sobre o executado, que pretende a dispensa de garantia, invocando explícita ou implicitamente o respectivo direito, que recai o ónus de provar que se verificam as condições de que tal dispensa depende, pois trata-se de factos constitutivos do direito que pretende ver reconhecido. Aliás, mesmo que se entenda que se está perante uma situação de dúvida (1) [(1) O facto de existir jurisprudência contraditória dos tribunais superiores, designadamente do TCAS, recomenda, só por si, que se considere a questão como duvidosa: no sentido de o executado não ter o ónus da prova da sua irresponsabilidade na génese da inexistência ou insuficiência dos bens para pagamento da dívida exequenda e do acrescido podem ver-se os acórdãos do TCAS de 3-5-2007, processo n.º 1715/07 , e de 15-5-2007, processo n.º 1780/07; em sentido contrário, pode ver-se o acórdão do mesmo Tribunal de 8-1-2008, processo n.º 2179/07], terá de considerar-se todos os factos de que depende a prestação de garantia como constitutivos do direito do executado, por força do disposto no n.º 3 do citado art. 342.º do CC.
Para além disso, o texto do n.º 3 do art. 170.º do CPPT aponta no mesmo sentido, ao estabelecer que o pedido deve ser instruído com a prova documental necessária, o que pressupõe que seja apresentada pelo executado toda a prova relativa a todos os factos que têm de estar comprovados para ser possível dispensar a prestação de garantia. (2) [(2) Mesmo que se entenda, como se refere na anotação anterior, que será possível ao executado requerer a produção de prova não documental, o n.º 3 do art. 170.º atribui ao executado o ónus de apresentar essa prova que seja necessária]
A eventual dificuldade de prova que possa resultar para o executado em provar o facto negativo que é a sua irresponsabilidade na génese da insuficiência ou inexistência de bens não é obstáculo à atribuição do ónus da prova respectivo, pois essa dificuldade de prova dos factos negativos em relação à dos factos positivos não foi legislativamente considerada relevante para determinar uma inversão do ónus da prova, como se conclui das regras do art. 344.º do CC. (3) [(3) Neste sentido, pode ver-se ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, página 451, nota (2) (página 467, na 2.ª edição), em que se refere que «já se tem entendido, erroneamente, que a extrema dificuldade de prova do facto pode inverter o critério legal de repartição do ónus da prova»]
É certo que por força do princípio constitucional da proibição da indefesa, que emana do direito de acesso ao direito e aos tribunais reconhecido no art. 20.º, n.º 1, da CRP, não serão constitucionalmente admissíveis situações de imposição de ónus probatório que se reconduzam à impossibilidade prática de prova de um facto necessário para o reconhecimento de um direito.
Mas, por um lado, nesta matéria não se está perante uma situação de impossibilidade prática de prova, pois a prova do facto negativo que é a irresponsabilidade do executado pode ser efectuada através da prova dos factos positivos, por via da demonstração das reais causas de tal insuficiência ou inexistência de bens.
Por outro lado, a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur». (1) [(1) Essencialmente neste sentido, pode ver-se MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 203, cujos ensinamentos são seguidos no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/83, de 11-7-1983, publicado no Diário da República, I Série, de 27-8-1983 e no BMJ n.º 328, página 297, em que se refere « não vale a máxima negativa non sunt probanda; a natural dificuldade da prova de um facto é coeficiente que não altera a repartição do ónus da prova; o mais que esse coeficiente, como outros, “podem é tornar aconselhável [...] a máxima iis difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur”»]
O que, nesta situação, se reconduzirá, no mínimo, a dever-se considerar provada a falta de culpa quando o executado demonstrar a existência de alguma causa da insuficiência ou inexistência de bens que não lhe seja imputável e não se fizer prova positiva da concorrência da sua actuação para a verificação daquele resultado» (JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume III, anotação 4 c) ao art. 170.º, págs. 233 a 235.).

Foi este o entendimento consagrado no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Dezembro de 2008, proferido no processo com o n.º 327/08 (Publicado no Apêndice ao Diário da República de 27 de Janeiro de 2009 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2008/32440.pdf), págs. 161 a 166, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/7b3a9814f7dd411980257538005a88dc?OpenDocument.) e que tem vindo a ser seguido neste Tribunal (Vide o acórdão de 2 de Fevereiro de 2011, proferido no processo com o n.º 16/11, publicado no Apêndice ao Diário da República de 11 de Agosto de 2011 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2011/32210.pdf), págs. 174 a 179, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/cd856c5635ba04b180257833004eea34?OpenDocument.).
Este entendimento sobre o ónus da prova da irresponsabilidade do executado na génese da situação de insuficiência ou inexistência de bens foi também reiterado nos acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Julho de 2012, proferido no processo com o n.º 286/12 (Ainda não publicado no jornal oficial, mas disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/c6cfae9ed228b55880257a3d0030c56f?OpenDocument.), e de 17 de Outubro de 2012, proferido no processo com o n.º 414/12 (Ainda não publicado no jornal oficial, mas disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/86b2a435c02a6f8a80257aa30038c0fc?OpenDocument.), ambos com a unanimidade dos Juízes Conselheiros actualmente em exercício de funções.
A sentença recorrida, que considerou, em sentido contrário, que recai sobre o órgão de execução fiscal o ónus de alegar e provar a responsabilidade da Executada pela situação de inexistência ou insuficiência de bens, fez errada interpretação e aplicação das regras aplicáveis.
Não pode, pois, manter-se a sentença na parte em que considerou que estava verificada a irresponsabilidade da Executada pela situação de inexistência ou insuficiência de bens para o pagamento da dívida exequenda e do acrescido enquanto requisito de dispensa de prestação da garantia, motivo por que, a final, a revogaremos nessa parte.


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2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões, decalcadas do sumário doutrinal do referido acórdão de 17 de Dezembro de 2008 do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I - É sobre o executado que pretende a dispensa de garantia, invocando explícita ou implicitamente o respectivo direito, que recai o ónus de provar que se verificam as condições de que tal dispensa depende, pois trata-se de factos constitutivos do direito que pretende ver reconhecido.
II - A eventual dificuldade que possa resultar para o executado de provar o facto negativo que é a sua irresponsabilidade na génese da insuficiência ou inexistência de bens não é obstáculo à atribuição àquele do ónus da prova respectivo, pois essa dificuldade de prova dos factos negativos em relação à dos factos positivos não foi legislativamente considerada relevante para determinar uma inversão do ónus da prova, como se conclui das regras do art. 344.º do CC.
III - Na situação referida, não se está perante uma situação de impossibilidade prática de provar o facto necessário para o reconhecimento de um direito, que, a existir, poderia contender com o princípio da proibição da indefesa, que emana do direito constitucional ao acesso ao direito e aos tribunais (art. 20.º da CRP), pois ao executado é possível demonstrar aquele facto negativo através de factos positivos, como são as reais causas de tal insuficiência ou inexistência de bens.
IV - Por outro lado, a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur».


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, conceder provimento ao recurso e revogar a sentença na parte recorrida, ou seja, na parte em que considerou verificada a irresponsabilidade da Executada pela situação de inexistência ou insuficiência de bens para o pagamento da dívida exequenda e do acrescido enquanto requisito de dispensa de prestação da garantia.

Sem custas.


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Lisboa, 19 de Dezembro de 2012. - Francisco Rothes (relator) - Fernanda Maçãs - Casimiro Gonçalves.