Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2792/22.7T9VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
NATUREZA PÚBLICA
Nº do Documento: RP202501152792/22.7T9VNG.P1
Data do Acordão: 01/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de ameaça previsto e tipificado na sua forma agravada nos termos do disposto no artigo 155°/1 do Cód. Penal, na redacção decorrente da entrada em vigor das alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n° 59/2007, de 4 de Setembro, assume natureza pública.
II - Assim, a desistência de queixa constante dos autos é ineficaz, estando legalmente vedada a sua homologação, atento o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 155º do Cód. Penal, e 48º, 49º e 51º – estes dois últimos a contrario sensu – do Cód. de Processo Penal.

(Da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2792/22.7T9VNG.P1

Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia - Juiz 3

Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 2792/22.7T9VNG que corre termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia - Juiz 3, em 09-09-2024 foi proferido sentença homologatória de desistência de queixa apresentada pelo ofendido AA relativamente a 1 (um) crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º/1, 155º/1/c) (por referência ao art. 132º/2/l), 14º/1 e 26º, todos do Cód. Penal, de que se mostrava acusado o arguido BB.

Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 09/10/2024, o Ministério Público, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1. O arguido vinha acusado nos presentes autos da prática de um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelo art.º 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea c), por referência ao art.º 132.º n.º 2 alínea l), 14.º n.º 1 e 26.º todos do Código Penal.

2. No início da Audiência de Discussão e Julgamento que teve lugar nos presentes autos o ofendido nos autos pediu a palavra e no seu uso disse desistir da queixa apresentada contra o arguido BB, ao que o Ministério Público expressamente se opôs atenta a natureza pública do crime em causa.

3. De seguida a Mm.ª Juiz proferiu despacho sob a forma de Sentença no qual julgou válida e relevante a desistência de queixa formulada, homologou a mesma e julgou extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido, apesar da oposição do Ministério Público.

4. O Ministério Público não concorda com a admissibilidade da desistência de queixa formulada nos autos e consequentemente com a extinção da responsabilidade criminal do arguido BB pela imputada prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos art.ºs 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea a) do Código Penal, nos termos determinados pelo Tribunal a quo, sendo este o objecto do recurso.

5. A sentença sob censura estribou os seus fundamentos para a admissão da desistência de queixa formulada nos autos, nos doutos Acórdãos do TRP que cita, considerando que o crime de ameaça, mesmo na sua forma agravada, possui natureza semipública, sendo por via disso admissível ao ofendido desistir de queixa

e desse modo extinguir a responsabilidade criminal.

6. Porém, a jurisprudência dominante entende que o crime de ameaça, quando cometido na sua forma agravada tem natureza pública e por via disso, não admite que o ofendido desista da queixa, sendo a mesma desistência irrelevante.

7. Existem neste sentido diversos Acórdãos dos Tribunais superiores, mencionando-se a título exemplificativo o douto Acórdão do TR de Lisboa, datado de 19/05/2016, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Luís Gominho, o Acórdão do TR do Porto de 02/05/2017, Acórdão do TR de Coimbra 10/07/2013, Acórdão do TR de Guimarães de 09/05/2019.

8. Porém, por ser esta uma matéria controvertida e com entendimentos em sentidos antagónicos, encontra-se a aguardar veredicto o recurso de fixação de jurisprudência no Supremo Tribunal de Justiça, na 3.ª Secção, a correr termos no Processo n.º 41/19.4 GBVNF.G1-A.S1 onde a questão que se coloca é precisamente

a questão em crise nos presentes autos, ou seja, a de saber se, em procedimento criminal por crime de ameaça, previsto e punido no artigo 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea a) do Código Penal, é admissível desistência de queixa.

9. Em tais autos o sentido sugerido pelo Ministério Público na jurisprudência a fixar é o seguinte: “O crime de ameaça agravada p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º do Código Penal tem natureza pública.”

10. Ora, salvaguardando o devido respeito por diferente opinião, consideramos que a sentença sob censura fez uma errada interpretação do disposto nos artigos 153.º n.º 1, 155.º n.º 1 alínea a) e 116.º do Código Penal e o art.º 48.º do Código de Processo Penal, motivo pelo qual deverá ser revogada e ser determinado o prosseguimento dos autos.

Concretizando:

11. Com as alterações introduzidas em 2007 no Código Penal, o crime de ameaça sob a sua forma agravada, passou a ter natureza pública, tendo o legislador considerado que a conduta violava os bens jurídicos protegidos com a incriminação de uma forma merecedora de sanção penal devido a um incremento da sua ilicitude.

12. A alteração da natureza jurídica do ilícito adoptou a mesma técnica legislativa adoptada para outros ilícitos, nomeadamente o furto e o furto qualificado – cfr. art.º 203.º e 204.º do Código Penal, porquanto, o legislador dispôs de forma expressa a necessidade de apresentação de queixa para o ser possível o procedimento criminal para o crime base, ou seja, o crime de ameaça – cfr. art.º

153.º do Código Penal, mas não o fez para o crime na sua previsão agravada – cfr.

art.º 155.º do Código Penal.

13. Assim, nada sendo referido, assume o ilícito uma natureza pública, sendo o seu procedimento fundado e legitimada a intervenção do Ministério Público na simples obtenção da notícia do crime, não sendo necessária qualquer denúncia ou manifestação de vontade do ofendido.

14. Não sendo assim, admissível como no caso dos autos a manifestação de vontade do ofendido ao pretender a extinção do procedimento criminal com a desistência de queixa que formulou.

15. Seguindo a argumentação vertida no douto Acórdão do TRE de 15/05/2012, relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Ana Bacelar Cruz supra citada e fazendo ainda nossos os argumentos vertidos nos doutos Acórdãos suprarreferidos mas não citados, que aqui damos por integralmente reproduzidos, só não o fazendo integralmente por mera economia processual,

16. Deve, pois, ser revogada a sentença / despacho que extinguiu a responsabilidade criminal do arguido e seja o mesmo substituído por outro que determine a ineficácia da desistência de queixa e o prosseguimento dos autos e o subsequente julgamento do arguido, nos termos supra descritos.

O recurso foi admitido.

A este recurso respondeu o arguido BB, em 05/11/2024, considerando dever ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida, e concluindo da seguinte forma:

1 - Vem o Ministério Público recorrer da sentença proferida nos autos que decidiu absolver o arguido BB, ora Recorrido, no âmbito da qual foi extinta a responsabilidade criminal do arguido, mas sem qualquer fundamento como a seguir se demonstrará.

2 - No dia da Audiência de Julgamento, o ofendido pediu a palavra e de livre vontade manifestou que queria desistir da queixa apresentada, sendo que a desistência foi livre, esclarecida e consentida; Para os devidos efeitos, importa realçar que o Ofendido nunca manifestou sequer vontade de prosseguir qualquer procedimento criminal contra o arguido.

3 - Com efeito, resulta da inquirição de AA, o Ofendido, conforme auto de inquirição constante do processo, de 23/05/2023, o seguinte que se passa a transcrever: “continuando a não desejar procedimento criminal contra o denunciado.- Disse não se recorda se o denunciado falou em "Matar", pois existem muitas situações análogas, são quase diárias e como tal não se recorda exactamente o que o denunciado disse em tom de ameaça.”

4 - Por um lado, o Ofendido nunca apresentou queixa e nunca manifestou vontade de participar em qualquer processo criminal contra o arguido.

5 - Por outro lado, resulta das suas declarações que o mesmo nunca se sentiu sequer ameaçado porque existem muitas situações deste género, numa base diária, pelo que o Ofendido já nem sequer se lembra das eventuais palavras menos simpáticas que lhe terão sido dirigidas e não se sentiu, portanto, afectado pelas mesmas.

6 - Neste cenário, importa parar e pensar na alocação de recursos do Estado para discutir uma situação de uma putativa ameaça de um indivíduo que claramente não se sentiu ameaçado e que nem sequer apresentou queixa, entre as quais, as várias notificações e ofícios enviados quer durante o inquérito, quer para o agendamento do julgamento e ainda o tempo despendido com os vários intervenientes envolvidos, como os vários funcionários judiciais, a patrona nomeada, a Meritíssima Juíza e o Sr. Procurador.

7 - Aqui chegados, o ofendido não se sentiu ofendido; quando foi notificado do julgamento, faltou ao trabalho (com todos os incómodos daí inerentes) e deslocou-se ao tribunal para reafirmar que não tinha interesse em prosseguir o processo-crime…mas ainda assim, o Ministério Público entende que o mesmo tem de continuar, apesar da alocação de recursos totalmente desnecessários e inúteis que o mesmo comporta com a agravante que está a ignorar completamente a vontade da pessoa (hipoteticamente) Ofendida!

8 - Perante a actual previsão e a evolução que se verificou, muitos tribunais já decidiram que não é defensável que o art. 155º constitua um tipo autónomo relativamente à previsão típica do crime de ameaça do art. 153º – premissa de que parte o Recorrente para atribuir natureza pública ao crime de ameaça agravada.

9 - Trata-se efectivamente de um crime de natureza semipública (neste sentido veja-se Ac. TRP de 13.11.2013, no Processo 335/11.7GCSTS.P1 e de 06.04.2022, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) nos termos do artigo 153.º do CP, o que significa que o procedimento criminal depende de queixa, podendo o Ofendido desistir da mesma, desde que não haja oposição do arguido até à publicação da sentença em primeira instância.

10 – Vimos, assim, invocar, em suma, a douta argumentação seguida nos acórdãos citados, de acordo com os quais, nem a evolução histórica da Lei, nem a reconstituição do pensamento legislativo, permitem concluir que existe uma intenção do legislador em alterar a pré-existente natureza semi-pública do crime de ameaça – na sua forma simples ou agravada - e ignorar por completo a vontade da pessoa ofendida, em concreto, a sua faculdade de desistir do procedimento criminal contra o putativo ameaçante.

11 – Por fim, fazendo ainda nossos os argumentos vertidos nos doutos Acórdãos supra referidos, mas não citados, que aqui damos por integralmente reproduzidos, só não o fazendo por mera economia processual, deve, pois, ser mantida a sentença recorrida, uma vez que a sentença sob censura fez uma correcta interpretação do disposto nos artigos 153.º n.º 1, 155.º n.º 1 alínea a) e 116.º do Código Penal, motivo pelo qual deverá ser mantida.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 20/03/2023, no parecer que emitiu propugna também pela improcedência do recurso, referenciando nos seguintes termos:

« Na realidade, cientes na natureza controvertida da questão, desde há vários anos que temos vindo a perfilhar o entendimento que o crime de ameaça agravado assume natureza semipública.

Tomando, como exemplo, o caso de uma ofensa à integridade física qualificada (nos termos do art. 145º do Código Penal), entendemos que esta disposição legal não altera a natureza (semipública) do ilícito.

É que, ao invés de outras (que qualificam ou agravam determinadas condutas, aí – uma vez mais – explicitadas), a norma em apreço não tipifica a acção/omissão a punir, mas apenas se reporta ao crime «base».

Ou seja, se no art. 144º se prevê: «Quem ofender o corpo e saúde de outra pessoa»; se no art. 204º se prevê: «Quem furtar coisa móvel alheia» e no art. 213º se prevê: «Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável…» ; já o art. 145º do Código Penal refere apenas «Se as ofensas à integridade física», ou seja, se aquelas ofensas previstas pelo art. 143º, «forem produzidas…».

Sufragando-se outro entendimento, daqui resultava que a ofensa à integridade física privilegiada (e, portanto, menos censurável que o crime previsto pelo art. 143º) teria de assumir natureza de crime público. É que o modo de redação deste artigo é, em tudo, similar ao da disposição referida supra.

Mais do que isso: se assim não se entendesse, perderia todo e qualquer sentido útil a parte final do nº 2 do art. 143º do Código Penal, onde se refere: «o procedimento criminal depende de queixa, salvo quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança…», ou seja, onde se ressalva apenas uma situação (que altera a natureza do crime), situação essa que se enquadra também numa das circunstâncias previstas naquele art. 145º.

Deste modo, considerando que o Código Penal deve ser lido como um todo, em termos de sistematização e coerência, entendemos que, quer o crime de a ofensa à integridade física qualificada nos termos do art. 145º do Código Penal, quer o crime de ameaça agravada (cuja norma remete, igualmente, para o crime base, sem concretização de qualquer conduta) assumem natureza semipública.

Propendendo, pois, para a improcedência do recurso, estamos seguros que este Venerando Tribunal pronunciar-se-á doutamente sobre a questão exposta. »

Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada vindo a ser acrescentado no processo.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

*

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.


*

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.

A esta luz, a questão a conhecer e decidir no âmbito do presente acórdão é a de saber se o crime de ameaças agravado tem natureza semi-pública e se admite ou não desistência de queixa.

São os seguintes os termos processuais relevantes para a apreciação e decisão sobre o objecto do presente recurso:

1º, nos presentes autos foi pelo Ministério Público deduzida, nos termos do disposto no art. 283º do Cód. de Processo Penal, acusação contra o arguido BB, imputando–lhe a prática, em autoria material, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º/1, 155º/1/c) [por referência ao art. 132º/2/l)], 14º/1 e 26.º, todos do Cód. Penal, e por factos dos quais será ofendido AA ;

2º, remetidos e distribuídos os autos para a fase de julgamento, no início da audiência de discussão e julgamento, no dia 09/09/2024, o ofendido nos autos AA pediu a palavra e no seu uso disse desistir da queixa apresentada contra o arguido BB, ao que o Ministério Público se opôs, não se opondo por seu turno o arguido.

3º, Nesta imediata sequência, pela Mma. Juiz foi proferida Sentença pela qual julgou válida e relevante a desistência de queixa formulada, homologou a mesma e julgou extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido – decisão, ora recorrida, que é do seguinte teor:

« SENTENÇA

O arguido BB, vem acusado da prática de 1 (um) crime de Ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, tudo nos termos dos factos constantes da acusação pública, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

Trata-se de um crime de natureza semipública (neste sentido veja-se Ac. TRP de 13.11.2013 e de 06.04.2022, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) nos termos do artigo 153.º do CP, o que significa que o procedimento criminal depende de queixa, podendo o ofendido desistir da mesma, desde que não haja oposição do arguido até à publicação da sentença em primeira instância.

Veio o ofendido AA desistir da queixa crime anteriormente apresentada contra o arguido BB e este declarou no auto de interrogatório de fls. 31 a 39 aceitar tal desistência.

Ouvido o Digno Magistrado do Ministério Público, este opõe-se à desistência de queixa apresentada considerando que o crime pelo qual o Arguido vem acusado reveste natureza Pública.

Assim atento todo o exposto, nomeadamente a desistência de queixa agora apresentada, a sua aceitação por parte do arguido, e apesar da oposição do digno Magistrado do Ministério Público, com os fundamentos constantes da promoção que antecede, (com a qual não concordamos) e o preceituado no artigo 116.º do Código Penal, julgo válida e relevante a desistência de queixa ora apresentada, pelo que a homologo, nos termos do artigo 51.º do Código Processo Penal.

Consequentemente julgo extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido BB.

Uma vez que o ofendido não foi admitido nos presentes autos na qualidade de Assistente, inexistem custas processuais nos termos do disposto no artigo 515.º, n.º 1, al d) a contrario do CPP.

Deposite de imediato e notifique.

Sem efeito as datas designadas para julgamento.

Dê baixa. »

Cumpre, pois, apreciar e decidir da supra enunciada questão, suscitada pelo recorrente/Ministério Público.

Alega, pois, o recorrente que, no caso dos autos, e porque estamos na presença do crime de ameaça agravada, o mesmo reveste natureza pública e, portanto, a manifestação por parte dos ofendidos em desistir de queixa é insusceptível de produzir a extinção do procedimento criminal.

Vejamos – antecipando desde já que se julga assistir razão ao recorrente/Ministério Público.

É certo que, na versão introduzida em alteração ao Código Penal pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, quer o tipo-base do crime de ameaças, quer o mesmo crime na sua forma agravada, estavam previstos na mesma norma – respectivamente nos nºs 1 e 2 do art. 153º do Cód. Penal –, e, assim ambos tinham natureza semi–pública por força do disposto no nº3 da mesma estatuição penal, onde se estabelecia indistintamente que "O procedimento criminal depende de queixa",.

Porém, com a entrada em vigor das alterações ao Código Penal por via da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o legislador autonomizou o tipo-base do crime de ameaças, o qual manteve a sua natureza semi–pública (cfr. n.º 2 do artigo 153º), passando o crime de ameaça na sua forma qualificada ou agravada, a estar previsto no art. 155º do Cód. Penal, não existindo neste último preceito qualquer referência à dependência de queixa para o procedimento criminal – exigência que se manteve apenas no art. 153º/2 do Cód. Penal.

Ora, crimes de natureza pública são aqueles cujo procedimento se desencadeia oficiosamente (pelo Ministério Público) após aquisição da notícia do crime – por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia (cfr. art. 241º do Cód. de Processo Penal). Nos processos respeitantes à prática de crimes públicos não há, pois – e por oposição ao regime prevenido nos arts. 49º e 50º do Cód. de Processo Penal –, necessidade de intervenção do ofendido para que o processo corra os seus trâmites, isto é, pode o processo iniciar-se e prosseguir apenas por iniciativa do Ministério Público, mesmo que não se tenha verificado a apresentação de qualquer queixa.

Esta opção legislativa está associada à gravidade da ilicitude da conduta (nomeadamente por via do maior desvalor da acção) subjacente à prática dos factos criminalmente relevantes tipificados sua forma agravada/qualificada, como é o caso, no que ao crime de ameaça diz respeito, do referido art. 155º.

Tratando-se de crime agravado, e tendo o legislador optado por qualificá-lo como crime público, teve seguramente em vista acautelar de forma mais acentuada os valores colocados em crise com a actuação e os interesses públicos relacionados com a segurança e a paz comunitárias.

Por isso que tais crimes não podem ficar dependentes da vontade das vítimas apresentarem, ou não, queixa, sobretudo se os ofendidos tiverem determinadas funções profissionais na sociedade, como é o caso do «membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas» – para reportar às circunstâncias em referência na remissão operada pela alínea c) do art. 155º/1 do Cód. Penal, que nos autos está, precisamente, em causa –, justificando um interesse público (que transcende o interesse individual) que reclama uma tutela penal reforçada e justifica que se inicie e prossiga o respectivo procedimento criminal, mesmo contra a vontade do ameaçado.

O que também se percebe pela circunstância de interesses do Estado também serem ofendidos neste tipo de crimes, devendo estes, por isso, ter natureza pública.

Como, por todos, se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/07/2016 (proc. 467/13.7GASEI-A.C1)[[1]], “A opção do legislador de fazer constar do artigo 153º do C. Penal, na redacção em vigor, o crime de ameaça simples, a quem manteve a natureza de crime semi-público, e de ‘transportar’ o crime de ameaça agravado ou qualificado, para um outro preceito, o art. 155º do mesmo código, do qual não consta a menção «O procedimento criminal depende de queixa», juntando-o, para mais, a um crime, o de coacção agravada ou qualificada que, como dissemos, sempre teve, fosse na forma simples, fosse na forma agravada, salvo a excepção referida, a natureza de crime público, tem o inequívoco sentido de ter sido sua intenção atribuir ao crime de ameaça agravada ou qualificada a natureza de crime público.”.

No sentido de reconhecer natureza pública ao crime de ameaça agravado tem convergido a jurisprudência, citando–se, entre outros, os acórdãos:

– do Tribunal da Relação do Porto,

– de 15/09/2010 (proc. 354/10.0PBVLG.P1)[[2]]

– de 27/04/2011 (proc. 53/09.6BGVNF.P1)[[3]],

– de 12/11/2014 (proc. 883/12.1PAPVZ.P1)[[4]],

– de 26/11/2014 (proc. 396/12.1PASTS.P1)[[5]],

– de 17/02/2016 (proc. 509/12.3GBAMT.P1)[[6]],

- de 15/06/2016 (proc. 6928/13.0TDPRT)[[7]]

– de 28.02.2024 (proc. 111/23.4GAVFR.P1)[[8]],

– de 10/04/2024 (proc. 657/19.9PAPVZ.P1)[[9]]

– de 25/09/2024 (proc. 109/23.2PAVFR.P1)[[10]],

– e de 04/12/2024 (proc. 4020/23.9T9MTS.P1)[[11]],

– do Tribunal da Relação de Lisboa,

– de 13/10/2010 (proc. 36/09.6PBSRQ.L1)[[12]],

– de 30/04/2015 (proc. 64/14.0PAPTS–A.L1)[[13]],

– de 03/11/2015 (proc. 178/13.3PASCR.L1)[[14]],

– e de 19/05/2015 (proc. 361/12.9GAMTA.L1–5)[[15]],

– do Tribunal da Relação de Coimbra,

– de 14/07/2020 (proc. 667/18.3PCCBR.C1)[[16]],

– e de 22/11/2023 (proc. 62/21.7GCTND.C1)[[17]]

– do Tribunal da Relação de Évora,

– de 15/05/2012 (proc. 16/11.1GAMAC.E1)[[18]],

– e de 07/04/2015 (proc. 517/12.4PAOLH.E1)[[19]],

– e do Tribunal da Relação de Guimarães,

– de 15/11/2010 (proc. 343/09.8GBGMR.G1)[[20]],

– e de 12/01/2015 (proc. 59/13.0OGVCT.G1)[[21]].

Também parte da doutrina vem entendendo que, após a Revisão do Código penal operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de ameaça na sua forma agravada passou a crime público – neste sentido Taipa de Carvalho (in ‘Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I’, 2ª Edição, 2012, pág. 560) e Paulo Pinto de Albuquerque (in ‘Comentário do Código Penal à Luz da CR e da CEDH’, 6ª edição 2024, pág. 714).

Tudo ponderado, julga-se que o crime de ameaça previsto no art. 153° do Cód. Penal, previsto e tipificado na sua forma agravada nos termos do disposto no artigo 155°/1 do Cód. Penal, na redacção decorrente da entrada em vigor das alterações introduzidas pela referida Lei n° 59/2007, de 4 de Setembro, assume natureza pública.

E, nestes termos, a inexistência de qualquer norma a fazer depender de apresentação de queixa o procedimento criminal no caso de se verificar a conduta assim tipificada no artigo 155º/1 do Código Penal, determina a irrelevância da desistência da queixa apresentada pelo ofendido nos autos.

Nestes termos, a desistência de queixa constante dos autos é ineficaz, estando legalmente vedada a sua homologação, atento o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 155º do Cód. Penal, e 48º, 49º e 51º – estes dois últimos a contrario sensu – do Cód. de Processo Penal.

Por conseguinte, revoga-se a homologação da desistência de queixa determinada pela decisão recorrida, e, em consequência, determina-se o prosseguimento do julgamento por tal crime, objecto de oportuna acusação os autos.


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III. DECISÃO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e, em consequência decidem:

1º, revogar a sentença de homologação da desistência de queixa e consequente extinção do procedimento criminal em relação ao crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153º/1 e 155º/1/a) do Cód. Penal,

2º, determinar o prosseguimento do julgamento pelo aludido crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153º/1, 155º/1/c) (por referência ao art. 132º/2/l), 14º/1 e 26º, todos do Cód. Penal, imputado ao arguido BB .

Sem custas.


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Porto, 15 de Janeiro de 2025

Pedro Afonso Lucas

Maria Ângela Reguengo da Luz

Nuno Pires Salpico

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)

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[[1]] Relatado por Vasques Osório, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[[2]] Relatado por Maria do Carmo Silva Dias, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf 
[[3]] Relatado por Maria Dolores da Silva e Sousa, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf 
[[4]] Relatado por Fátima Furtado, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf 
[[5]] Relatado por Eduarda Lobo, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf 
[[6]] Relatado por Élia São Pedro, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf 
[[7]] Relatado por Maria Luísa Arantes, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf 
[[8]] Relatado por Francisco Mota Ribeiro, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf 
[[9]] Relatado por Pedro Menezes, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[[10]] Relatado por Maria Joana Grácio, acedido emwww.dgsi.pt/jtrp.nsf 
[[11]] Relatado por Maria Ângela Reguengo da Luz, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf 
[[12]] Relatado por Sérgio Corvacho, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf 
[[13]] Relatado por Carlos Benido, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf 
[[14]] Relatado por José Adriano, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf 
[[15]] Relatado por Luís Gominho, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf 
[[16]] Relatado por José Eduardo Martins, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf 
[[17]] Relatado por Rosa Pinto, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf 
[[18]] Relatado por Ana Bacelar, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf 
[[19]] Relatado por Clemente Lima, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[[20]] Relatado por Maria Augusta, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf 
[[21]] Relatado por Tomé Branco, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf