Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1526/21.8T8GRD-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
PENHORA ANTERIOR EM PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL DE IMÓVEL QUE CONSTITUI A CASA DE HABITAÇÃO DO EXECUTADO
RENOVAÇÃO DE EXECUÇÃO COMUM EXTINTA
A PEDIDO DA FAZENDA NACIONAL PARA VENDA DO IMÓVEL PENHORADO
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 839.º, 1, A); 847.º, 2; 848.º, 1 E 850.º, DO CPC
ARTIGOS 219.º, 5 E 244.º, DO CPPT
Sumário: A Fazenda Nacional não pode promover a venda de imóvel anteriormente penhorado em execução fiscal, que constitua a casa de habitação do executado, enquanto único exequente, apenas podendo aproveitar-se da mesma, se a venda for promovida, na execução comum, por outro credor.
Decisão Texto Integral: Apelações em processo comum e especial (2013)
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Relator: Falcão de Magalhães
1.º Adjunto: Des. Pires Robalo
2.º Adjunto: Des. Marques da Silva
Apelação n.º 1526/21.8T8GRD-D-C1
 
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
 
I - A) – 1) - Na acção executiva, para pagamento de quantia certa, iniciada, em 11/11/2021,  pela empresa A... STC, SA., contra os executados AA e BB, por dívida garantida por hipoteca constituída pelos executados sobre a fracção autónoma designada pela letra “H”, correspondente ao 1.º andar esquerdo, destinada a habitação, pertencente ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal, com dominação de lote 19, situado em ..., descrito sob o número ...85 da freguesia ... (...), na Conservatória do Registo Predial ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...58, foi efectuada, em 03-12-202, a penhora dessa a fracção autónoma, pertença dos executados.

2) - Os Executados, em 6.1.022, deduziram embargos de executado, alegando, entre o mais, a prescrição dos créditos;

3) – Constatando-se, que, com registo anterior à aludida penhora, da dita fracção, havia já, registadas, penhoras anteriores sobre o prédio em causa, designadamente, a levada a efeito no processo de execução fiscal nº ...62, foi proferida decisão, em 28/2/2022, sustando a execução relativamente a tal imóvel;

 
4)- A Autoridade Tributária veio informar que contra o executado AA encontrava-se activo o processo de execução fiscal ...62, mas o imóvel aí penhorado – que é o acima identificado e que foi penhorado para a presente execução -  constituía a casa de habitação do executado e restante agregado familiar pelo que nos termos do n° 2 do artigo 244° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), a Autoridade Tributária encontrava-se impedida de realizar a venda do imóvel em questão, não prescindindo contudo do direito de reclamar o crédito a que tivesse direito em caso de eventual venda em processo de execução comum.

5) - Por despacho de 10/9/2022, do Juízo Central Cível e Criminal da Guarda, foi declarada cessada a suspensão da penhora que recaía sobre o prédio penhorado, ordenada a venda desse imóvel e determinada a citação dos credores.

6) - Tendo sido citados os credores para reclamem os seus créditos, veio a Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público, em 29-09-2022, deduzir reclamação para pagamento do montante global de € 418 780, atinente a dívida do executado respeitante a IRS e juros respectivos e encargos com o processo de execução.
Alegou, entre o mais, que tal quantia global encontrava-se garantida por penhora prévia do prédio em causa, realizada a 30 de Março de 2010, no âmbito do processo de execução fiscal nº ...62, cujos trâmites se encontravam suspensos nos termos do disposto no art. 244.º n.º 2 do CPPT, alterado pela Lei n.º 13/2016, de 23/05.

7) - Em 9/5/2022, nos autos de embargos, foi proferido saneador sentença que, julgando procedente a excepção dilatória prevista no artigo 18º, nº1, al. b) do DL 227/2002, de 25 de outubro (omissão da alegação/prova de factos susceptíveis de concluir pela formal tramitação e/ou conclusão do

 
PERSI), absolveu os Executados da Instância.

8) - A Embargada/Exequente recorreu desta sentença e os Executados/Embragados, na resposta à alegação de recurso, pugnaram pela improcedência do mesmo, requerendo, ainda, que fosse julgada procedente a excepção da prescrição que haviam alegado nos embargos. 9) - Esta Relação de Coimbra, por Acórdão de 28 de Fevereiro de 2023 – notificado às partes e ao Ministério Público em 1/3/2023, e que transitou em julgado - julgando o recurso interposto pela Exequente/Embargada, revogou a sentença de 9/5/2022 e, entendendo que todas as prestações que integravam o crédito se encontravam prescritas, “conduzindo à procedência dos embargos e à extinção da execução em relação aos embargantes”:
- Revogou a decisão recorrida, na parte que julgou verificada a exceção dilatória prevista no artigo 18º, nº1, al. b) do DL 227/2002, de 25 de outubro, ao abrigo do disposto no artigo 576º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a consequente a absolvição dos embargantes da instância executiva;
- Julgou procedentes os embargos de executado.

10) - O Solicitador de Execução (SE) julgou a execução extinta, por inutilidade da lide, decisão que foi notificada aos a todos os intervenientes (27.4.2023);

11) - A Fazenda Nacional, enquanto credora reclamante, veio, em 27/4/2023, requerer, por intermédio da Ilustre Magistrada do Ministério Público, “…a renovação da execução para efectiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito, nos termos do disposto no art. 850.º n.º 2 do C. P. Civil.”.

12) - O SE, em 28/4/2023, pediu informação ao Tribunal sobre a pretensão da Fazenda Nacional, uma vez que, no seu entender, atento o decidido pelo

 
Acórdão de 28/2/2023, não poderia ocorrer a requerida renovação 13) - Em 26/5/2023, pela Mma. Juiz do Juízo Central Cível e Criminal da Guarda, foi proferido o seguinte despacho:
«Notificado da decisão de extinção da instância executiva, a credora reclamante “Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público, vem no requerimento com a Ref. 2176413 de 2023/04/27 do p.e., e dentro do prazo de 10 dias, requerer nos termos do artigo 850º do C.P.C., o prosseguimento da execução para pagamento do seu crédito. 
Devidamente notificados, os executados pugnam pelo indeferimento da pretensão do credor reclamante. 
Com efeito, e uma vez que o requerido se mostra tempestivo e o crédito foi oportunamente reclamado, ao abrigo do disposto no artigo 850º, nºs 1, 2 e 3 do C.P.C., determina-se a renovação da presente instância executiva que prosseguirá ulteriores processuais quanto aos bens sobre quais incida a garantia real invocada pelo referido credor reclamante que agora assume a posição de exequente
Notifique, incluindo o Exmo. Agente de Execução. […]».
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B) – Os Executados, que haviam já demostrado a sua discordância quanto à requerida renovação, mediante o requerimento datado de 5/5/2023, notificados do despacho de 26/5/2023, dele vieram interpor recurso para esta Relação, em 9/6/2023, recurso esse que foi admitido como apelação, com subida imediata e em separado, com arrimo, entre o mais, no disposto no artº 644º, n.º2, al. g), do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06 (doravante designado com a sigla NCPC, para o distinguir daquele que o precedeu e que se passará a referir como CPC[1]), o que acabou por ter a concordância do ora relator, no despacho de 9/5/2024, e que aqui se sufraga.
 
Na alegação de recurso formularam-se as seguintes “conclusões”:
«[…] A) Uma vez que a execução principal que corria neste Tribunal Judicial, foi antes já declarada sustada devido a uma anterior penhora efetuada “no âmbito do processo de execução fiscal n.°
...62”, tendo, no entanto, posteriormente, em 09/09/2022, sido proferido um despacho a ordenar o prosseguimento desta execução principal, sinteticamente, devido ao facto de, no âmbito da referida execução fiscal, a Fazenda Nacional estar impedida de realizar a venda do mesmo imóvel penhorado e tendo, entretanto, sido definitivamente decididos os embargos apensos a esta execução, declarando-se, sinteticamente, que ocorrera a prescrição da quantia alegadamente em dívida na execução principal, tendo sido, consequentemente, declarada extinta a execução principal pelo Sr. Agente de Execução por “inutilidade superveniente da lide ”, deixou de existir fundamento para o prosseguimento da única Reclamação de Créditos apensa, com fundamento em alegadas dívidas tributárias, em que “a credora reclamante” é a “Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público”.
B) Efetivamente, a única Reclamação de Créditos apensa, em que “a credora reclamante” é a “Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público”, não pode ser fundamento do prosseguimento destes autos, para além do mais por “inutilidade superveniente da lide”, uma vez que tratando-se de uma alegada dívida tributária, a reclamante “Fazenda Nacional” encontra-se impedida de realizar a venda do referido imóvel penhorado, ou de promover a sua venda (art.° 244° n° 2 do CPPT), uma vez que a execução principal foi extinta por decisão do Sr. Agente de Execução e não existe mais nenhuma outra dívida em execução nestes autos.
C) Aliás tratando-se de uma dívida tributária relativa ao ano de
 
1997, já ocorreu quer a prescrição no âmbito tributário (8 anos - artigo 48°, n.° 1 da LGT), quer a prescrição geral.
D) Pelo que, andou muito bem o Sr. Agente de Execução nos autos em epígrafe, ao proferir, com data de 27-04-2023, o seguinte despacho: “...apresente execução foi declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide.” E já não andou bem o MM juiz “a quo” ao proferir a decisão recorrida que não confirmou esta decisão do Sr. Agente de execução, tendo antes determinado o prosseguimento desta execução.
E) De referir ainda que o espírito do invocado artigo 850° do CPC (mencionado quer no requerimento do Ministério Público em representação da Fazenda Nacional, quer no Despacho recorrido), visa, essencialmente, evitar a inutilidade da Reclamação de Créditos já deduzida. Ora, uma vez que a referida execução fiscal está já numa fase muito mais adiantada, pois está já na fase da venda e nestes autos de execução ainda terá de ser apreciada a referida Reclamação de Créditos para depois se vir a decidir se esta Reclamação e Créditos será ou não procedente, o prosseguimento desta execução para apreciar a referida Reclamação de Créditos seria completamente inútil, indo assim contra a racionalidade e economia de meios e de tempo.
F) Acresce que tem sido entendimento unânime na jurisprudência que a proibição da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim (como é o caso dos autos), prevista no n.°2 do art.° 244.° do CPPT, diz respeito à venda por promoção da administração fiscal e destinada ao pagamento coercivo de dívidas fiscais do devedor (como é o caso dos autos). Ou seja, a interpretação que se faça do citado art.° 244°, n.° 2 do CPPT, tem de ser no sentido de que a Administração Fiscal não pode promover a venda do
 
imóvel penhorado, destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar. Pelo que, o sistema jurídico não permite que “Fazenda Nacional, representada pelo Ministério
Público” promova o prosseguimento desta execução através da sua Reclamação de Créditos, por ir contra o direito (art.° 244°, n.° 2 do CPPT), uma vez que se destinaria apenas ao pagamento coercivo de dívidas fiscais dos executados, já que foi extinta a execução principal no âmbito da qual foi deduzida a referida Reclamação de Créditos e não existe qualquer outra dívida em execução nestes autos.
G) De referir também que está judicialmente confessado (nomeadamente no n° 4 da Reclamação de Créditos) e documentalmente evidenciado que a causa de pedir e o pedido são os mesmos quer “no âmbito do processo de execução fiscal nº ...62”, quer nesta execução e a aqui reclamante (Fazenda Nacional) é também a exequente na referida Execução Fiscal. Pelo que, encontrando-se já a correr no Serviço de Finanças ... a referida execução fiscal, pelo menos desde 2010, ocorre ainda a exceção da litispendência, que é também de conhecimento oficioso e que se requer que seja apreciada e decretada com todos os efeitos legais, pois não pode estar a correr esta Reclamação de Créditos contra os executados (uma vez que foi extinta a execução principal) se a mesma causa de pedir e pedido já constam da anterior referida Execução Fiscal que se encontra ativa, em que os executados são os mesmos e o credor é também o mesmo (art.° 582° n° 1 do CPC).
H) Esta questão da litispendência foi alegada pelos executados no requerimento que deu entrada em 05/05/2023, portanto, em data imediatamente anterior ao despacho de que se recorre, e tal questão não foi apreciada no despacho recorrido, o que constitui uma nulidade (Art.° 615° n° 1 d) do CPC).
 
I) Aliás, o prosseguimento neste Tribunal Judicial, desta Reclamação de Créditos, seria, para além do mais, uma tentativa de a “Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público” conseguir atingir um objetivo ilegal que o sistema jurídico impede (art.° 244° n° 2 do CPPT), ou seja, que se procedesse à venda da casa de morada de família dos executados, apenas para se cobrar o crédito da Fazenda Pública, uma vez que a execução principal foi extinta e não existe mais nenhuma outra dívida em execução. Ou seja, poderia até entender-se que se está a promover uma decisão contra o direito (art.° 244°, n.° 2 do CPPT e 369° do CP).
J) Acresce referir que o mencionado Despacho recorrido refere, para além do mais: “... a credora reclamante “Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público, vem no requerimento com a Ref. 2176413 de 2023/04/27 do p.e., ... requerer ... o prosseguimento da execução para pagamento do seu crédito. ... ao abrigo do disposto no artigo 850º, n°s 1, 2 e 3 do C.P.C., determina-se a renovação da presente instância executiva que prosseguirá ulteriores processuais quanto aos bens sobre os quais incida a garantia real invocada pelo referido credor que agora assume a posição de exequente”. Todavia, a Reclamante não invocou no seu mencionado “requerimento com a Ref. 2176413 de 2023/04/27”, o n° 3 do art.° 850 do CPC, nem mencionou qualquer garantia real, nem identificou os bens sobre os quais incidisse qualquer garantia real. Aliás, nem existe qualquer garantia real que a Reclamante pudesse sequer invocar. Pelo que, não tendo sido cumpridas as exigências legais pelo requerente, não invocando o n° 3 do art.° 850 do CPC, nem sequer a garantia real e os respetivos bens sobre os quais incidisse garantia real, não poderia ter sido decidida “a renovação da presente instância executiva que prosseguirá ulteriores processuais quanto aos bens sobre os quais incida a garantia real
 
invocada pelo referido credor que agora assume a posição de exequente”. K) Uma vez que o Reclamante não invocou sequer o n° 3 do art.° 850 do CPC, nem mencionou qualquer garantia real, nem os respetivos bens sobre os quais incidisse garantia real, a decisão que determinou, para além do mais, “a renovação da presente instância executiva que prosseguirá ulteriores processuais quanto aos bens sobre os quais incida a garantia real invocada pelo referido credor que agora assume a posição de exequente”, foi para além do requerido pelo Reclamante, o que constitui mais uma nulidade (Art.° 615° n° 1 d) do CPC).

L) De referir também que Despacho recorrido não apresenta qualquer fundamentação para que não tenha que ser respeitado o previsto e invocado no art.° 794° n.° 1, do C. P. C.. Na verdade, constando dos autos que existe uma penhora anterior efetuada pela Administração Tributária, no âmbito da referida execução fiscal (tendo sido entretanto extinta a execução principal e não existindo qualquer outra dívida em execução), estes autos de execução deveriam, em último caso ser sustados. Efetivamente, o art.° 794° n.° 1, do C. P. C. não permite que o credor com penhora anterior reclame o seu crédito no processo onde foi efetuada a penhora posterior, permitindo-se apenas o contrário. Pelo que o despacho recorrido deve ser revogado, em último caso, também por desrespeito da referida norma (art.° 794° n.° 1, do C. P. C.).

M) A decisão recorrida que não pôs termo à execução, pois não confirmou a decisão do Sr. Agente de Execução que determinou a extinção da execução “por inutilidade superveniente da lide”, é suscetível de recurso autónomo com subida imediata, tendo em conta o previsto nomeadamente no nr 4 do artigo 853° do
CPC, que refere, para além do mais, “sobem imediatamente ... decisões que não ponham termo à execução” e ainda na alínea b) do n° 2 do art.° 853° do

 
CPC, que refere questões relevantes, suscetíveis de recurso autónomo, como sejam a decisão de extinção da execução que foi preferida pelo Sr. Agente de Execução e colocada em causa pelo despacho recorrido.

N) Tratando-se apenas do prosseguimento de uma execução fiscal (pois a execução principal foi extinta e inexiste nestes autos qualquer outra dívida em execução), trata-se de uma matéria da competência especializada da Jurisdição Tributária (onde efetivamente até já está a correr desde 2010 a referida pertinente execução fiscal e em estado muito mais adiantado), ocorre também incompetência absoluta deste Tribunal Judicial (nomeadamente arts 64° e 65° do CPC). De forma que a decisão de não apreciação da incompetência absoluta deste Tribunal, que é também de conhecimento oficioso, é também um dos fundamentos deste recurso de apelação (art.° 644° n° 2, b) do CPC).

O) De referir ainda que o espírito do invocado art.° 244° n° 2 do CPPT tem como fundamentos, nomeadamente o princípio constitucional "da dignidade da pessoa humana e a proteção da família”, assim como o artigo 65.° n° 1 da Constituição da R. P., sob a epígrafe «Habitação e Urbanismo», que estabelece o seguinte: «1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” “O direito à habitação consagrado neste artigo - cujo conteúdo se traduz no «direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família» (Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Volume I, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2017, pág. 958 e ss.) - assume, a exemplo do que se verifica com outros direitos sociais, uma dupla natureza ou dimensão, conforme tem vindo a ser reconhecido pelo Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (cf., neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.°s 101/92,

 
612/2019 e 393/2020).” Neste caso concreto, verifica-se essencialmente uma dimensão negativa ou defensiva, que se traduz no direito a exigir do Estado que se abstenha de atos que prejudiquem tal direito. Pelo que, o “mínimo de garantia” do direito à habitação é algo que se impõe, constitucionalmente, como obrigação ao Estado. Ou seja, a decisão recorrida interpreta indevidamente os referidos preceitos constitucionais, violando-os.

P) A decisão recorrida, uma vez que não pôs termo à execução, mantendo a decisão do Sr. Agente de Execução que determinou a extinção da execução, tem como consequência subsequente e necessária a imediata retirada da “posse" e da “propriedade de casa de habitação" aos recorrentes, fruto da imediata, consequente e subsequente venda. Ou seja, necessariamente, trata-se de uma decisão que diz respeito à posse e propriedade da casa de habitação (n.°3, b), do art.° 647.°, do CPC). Pelo que também se solicita que seja atribuído efeito suspensivo e subida imediata a este recurso de apelação, uma vez que a decisão recorrida irá causar aos recorrentes um prejuízo muito grave e irreparável pois implica a imediata retirada da posse e da propriedade da casa de habitação aos recorrentes, fruto da imediata, consequente e subsequente venda da casa que os recorrentes mobilaram e onde têm todos os seus pertences e recordações de uma vida, pois é onde residem e criaram os filhos desde que a compraram em 26/04/2000, conforme consta dos autos, não tendo qualquer outra habitação (junta-se doc. n°1, uma vez que se tornou necessário fruto do despacho recorrido) onde possam passar a residir ou guardar os móveis, pertences e recordações de uma vida. Pelo que, se este recurso não tiver subida imediata e efeito suspensivo não terá qualquer efeito útil (art.° 644° n° 2 h) e 647° n° 3 b) e 4 do CPC), sendo que, por outro lado, o exequente, em nada ficará prejudicado com o efeito

 
suspensivo pois está garantido por penhora registada desde 2010 (art.° 649 ° n° 2 do CPC). […]».
* II - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”[2] e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.
Assim, o que há a resolver, é, essencialmente, saber se, a requerimento da credora reclamante de créditos fiscais, Fazenda Nacional, a execução poderia ser renovada, para prosseguir, sob o único impulso desta, enquanto exequente, para pagamento desses créditos pelo produto do imóvel penhorado, sendo que, está amplamente reconhecido no processo, que tal imóvel, como aliás, foi dito pela Fazenda Nacional, através da Autoridade Tributária, é a casa de habitação do executado e restante agregado familiar, motivo que,  nos termos do n° 2 do artigo 244° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT),
 
impediu a Autoridade Tributária de realizar a venda desse imóvel no processo fiscal existente contra o ora Executado.
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III - A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I “supra”.
B) – Soba epígrafe, “Renovação da execução extinta”, dispõe o artº 850º do NCPC:
«1 - A extinção da execução, quando o título tenha trato sucessivo, não obsta a que a ação executiva se renove no mesmo processo para pagamento de prestações que se vençam posteriormente.

2 - Também o credor reclamante, cujo crédito esteja vencido e haja reclamado para ser pago pelo produto de bens penhorados que não chegaram entretanto a ser vendidos nem adjudicados, pode requerer, no prazo de 10 dias contados da notificação da extinção da execução, a renovação desta para efetiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito.

3 - O requerimento faz prosseguir a execução, mas somente quanto aos bens sobre que incida a garantia real invocada pelo requerente, que assume a posição de exequente.

4 - Não se repetem as citações e aproveita-se tudo o que tiver sido processado relativamente aos bens em que prossegue a execução, mas os outros credores e o executado são notificados do requerimento.

5 - O exequente pode ainda requerer a renovação da execução extinta nos termos das alíneas c), d) e e) do n.º 1 do artigo anterior, quando indique os concretos bens a penhorar, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no número anterior. […]».
Temos para nós que o decidido pelo Acórdão desta Relação, de 28/2/2023, não pode ser letra morta, e o mesmo, ao julgar procedentes os embargos, extinguiu a execução, o que, aliás, é expressamente dito nesse Acórdão, embora sem ser

 
na respectiva parte dispositiva.
E o caso julgado que assim se formou, quanto à extinção da execução, em nada é afectado pela decisão proferida, posteriormente, em 27.4.2023, pelo SE, a julgar a execução extinta, por inutilidade da lide.
E assim, é para nós claro, que, extinta a execução pelo Acórdão proferido em 28/2/2023, é mais que extemporâneo, atento o prazo de 10 dias estabelecido no nº 2 do citado artº 850, o requerimento de 27/4/2023, para renovação da instância, formulado pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, enquanto credora reclamante.
Mas, ainda que não se atente à aludida extemporaneidade, outro motivo existe, e até, diga-se, a montante deste, que obstaria à renovação da execução a requerimento da referida credora reclamante.
É que sendo o efectivo motivo da extinção da execução a procedência da oposição dos Executados – o que, aliás, leva à insubsistência da penhora e, portanto, à perda do direito de garantia da credora reclamante - não pode ter lugar a renovação da execução a requerimento do credor reclamante, como decorre do disposto nos artºs 839º, nº 1, a), 847º, nº 2 e 848º, nº 1, todos do NCPC (cfr. Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, “in” Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, 3ª edição, Almedina, págs. 853 e 854, na anotação 4ª ao artº 850; Cfr. em idêntico sentido, com ênfase na circunstância de a penhora ser afectada pela procedência da oposição à execução, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, “in” Código de Processo Civil Anotado Vol. II, 2020, reimpressão, a págs. 275, na nota 6ª ao artº 850º).
Por fim, não deixaremos de dar nota de um derradeiro obstáculo à renovação da instância face ao circunstancialismo que se verificava aquando do seu requerimento e do respectivo deferimento.
Como se sabe, a Lei nº 13/2016, de 23/53[3], veio alterar o Código de Procedimento e de Processo Tributário e a Lei Geral Tributária.
 
Assim, de acordo com as alterações introduzidas por essa Lei importa atentar: O nº 5 do artº 219.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário dispõe: “A penhora sobre o bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente está sujeita às condições previstas no artigo 244.º”
Por sua vez, o nº 2 do artº 244º do Código de Procedimento e de Processo Tributário preceitua: “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.”. Há quem entenda – e terá esse sido, porventura, o entendimento seguido pelo Tribunal “a quo” – que o facto de a Fazenda Nacional estar impedida, no processo de execução fiscal, de proceder à venda do imóvel aí penhorado e que constitua a habitação própria e permanente do devedor aí executado ou do seu agregado familiar, não pode tolher o direito  do credor que beneficie da penhora desse imóvel numa execução comum, de se fazer pagar por esse bem e, portanto, de promover a venda desse imóvel nessa execução. 
Nesse caso, tem também sido entendido, que, como o imóvel é vendido por outrem, que não a Fazenda Nacional, não sendo esta a responsável pelo impulsionar dessa venda, nada obstará a que, nessa execução venha reclamar os seus créditos, para poder, em concurso com outros credores, obter o pagamento, ao menos, parcial, desses créditos. (cfr., v.g., o Acórdão da Relação do Porto, de 07/06/2021, apelação nº 936/17.0T8PRT-B.P1).[4]
Só que, no caso presente, não ocorre a hipótese acima descrita, pois que a renovação requerida e autorizada tinha como escopo ser a própria Fazenda Nacional, enquanto exequente, a promover a venda do imóvel e não, propriamente, limitar-se a aproveitar da venda promovida nesta execução por outro credor, o que a nosso ver, deve entender-se estar vedado pela lei, pois que, na prática, seria defraudar a intenção que está subjacente ao impedimento estabelecido no artº 244º, nº 2, do Código de Procedimento e de Processo
 
Tributário, que é a do Estado, mediante a actuação da Autoridade Tributária não ser o causador de uma situação que, para satisfação dos seu créditos, deixe o devedor desprovido do imóvel que está afecto, exclusivamente, à habitação própria e permanente do mesmo, ou do seu agregado familiar.
Assim, estamos de acordo com o Acórdão da Relação de Évora, de 07/12/2023, apelação nº 559/12.0TBSTR-C.E1, quanto aí se escreve:
«[…] A Lei nº 13/2016, de 23.5, que alterou o CPPT (diploma subsidiariamente aplicável ao processo de execução de dívidas da segurança social, por força do disposto no artigo 6º do DL 42/2001, de 9.2) introduziu o nº 2 do artigo 244º, que proibiu (desprezaremos as excepções a tal proibição, uma vez que não se verificam no presente caso) a venda do imóvel penhorado que constitua efectiva habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.
Na exposição de motivos do Projeto de Lei n.º 87/XIII/1ª – que deu origem à citada Lei nº 13/2016 - pode ler-se, designadamente, o seguinte:
«Com esta medida, pretende-se proteger um direito essencial dos cidadãos, com maior relevância social, no caso do direito à habitação, posto em causa quando, num processo de execução fiscal, a habitação é objeto de venda judicial por iniciativa do Estado, por vezes em razão de quantias irrisórias face ao valor do imóvel.».
O legislador entendeu, assim, que, no confronto directo entre um crédito do Estado e o direito à habitação do devedor, a opção havia de fazer-se em favor deste último.
Tal não impede, porém, que, em execução cível – necessariamente promovida por um credor comum – em que tenha sido penhorada a habitação própria e permanente do executado, o Estado possa reclamar os seus créditos e ser pago, de acordo com a graduação, pelo produto da venda de tal bem. É que, neste caso, o confronto directo ocorre entre o crédito do exequente e o direito de habitação do executado, não tendo o legislador previsto a preferência pelo segundo.
Sucede que, na situação destes autos, extinta a instância executiva por força do pagamento do crédito do exequente pelo executado, deixou de se verificar qualquer
 
colisão entre aquele direito de crédito e o direito de habitação do executado. Renovada a instância executiva por requerimento do Estado e do ISS, o que passou a existir foi o confronto directo entre os créditos por eles reclamados, verificados e graduados e o mencionado direito de habitação. E este confronto directo, já o vimos, é resolvido pela prevalência do direito de habitação.
Não aplicar, no circunstancialismo destes autos, o disposto no artigo 244º nº 2 do CPPT, seria conferir ao Estado e ao ISS tratamento mais favorável do que aquele de que beneficiariam, nas mesmas condições, no âmbito de um processo de execução fiscal ou de execução de dívidas à segurança social. […]».
Idêntico entendimento, aqui aplicável, “mutatis mutandis”, teve a Relação de Lisboa, no Acórdão de 15/09/2022, apelação nº 4728/14.0T2SNT-D.L1-2, aí se dizendo:
«[…] O  propósito da referida Lei n.º 13/2016 foi proteger a casa de morada do executado quanto a credores públicos, obstando à sua venda executiva para ressarcir créditos fiscais ou de natureza equiparada, o que significa que mais do que a natureza do processo releva a natureza do crédito exequendo em si: sempre que este tenha natureza pública, por a respetiva titularidade pertencer a um ente público, e a execução, comum ou fiscal, prossiga exclusivamente em função desse crédito, por impulso de ente público, entende-se ser de aplicar o disposto no referido artigo 244.º, n.º 2, do CPPT e, pois, não pode proceder-se à venda de imóvel que constitua efetivamente casa de morada de família do devedor ou do seu agregado familiar.
Dito de outro modo, a habitação própria e permanente do executado não pode ser vendida para satisfazer créditos fiscais ou de natureza equiparada em execução fiscal ou comum quando esta prossiga sob impulso exclusivo do credor reclamante público.
A proteção da casa de morada de família que motiva a impossibilidade da venda desta na execução fiscal, conforme referido no artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, justifica que igualmente se obste à respetiva venda na execução comum quando o prosseguimento desta visa tão-só ressarcir um crédito reclamado por um ente público.
 
De outro modo, o ente público alcançaria por via da execução comum aquilo que não conseguiria na execução fiscal, o que seria um contrassenso, por certo não querido pelo legislador com a Lei n.º 13/16.
Situação diversa ocorre quanto a execução comum prossegue sob impulso de um credor comum: neste caso, tal impulso aproveita ao credor reclamante público que desta forma salvaguarda o seu crédito, conforme este tiver sido reconhecido e graduado na reclamação de créditos. 
In casu.
A execução prossegue para venda da casa de morada da executada B... e exclusivamente sob impulso de um credor reclamante público, o Instituto da Segurança Social, nos termos do artigo 850.º, n.º 2, do CPCivil.
Ora, tal não se configura possível em função do exposto e, pois, do regime decorrente do artigo 244.º, n.º 2, do CPPT nos termos explicitados.
Procede, assim, nesta parte o presente recurso, pelo que importa revogar a decisão recorrida e, assim, indeferir a renovação da instância executiva requerida pelo Instituto da Segurança Social […]».
De tudo o que se expôs, resulta, pois, que o Tribunal “a quo” não poderia ter deferido a requerida renovação da execução extinta, pelo que há que, na procedência da Apelação, revogar o despacho recorrido, ficando prejudicada a análise das restantes questões, só justificável caso não fosse esta a solução do caso “sub judice”.
*
IV - Em face de tudo o exposto decide-se, na procedência da Apelação, revogar o despacho recorrido.
 
Custas pela Apelada (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).
 
 
21/05/2024[5]
 
Luiz José Falcão de Magalhães
António Domingos Pires Robalo
António Fernando Marques da Silva 
 
                                                 
 


[1] Salvaguardando-se os casos em que esta última sigla seja transcrita de outro texto em que seja utilizada para referir já o novo código.

[2] Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em
“http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”.

[3] DIÁRIO DA REPÚBLICA N.º 99/2016, SÉRIE I DE 2016-05-23.

[4] Os Acórdãos e decisões sumárias dos Tribunais da Relação, que sejam citados sem referência de publicação, poderão ser consultados:
- Os da Relação de Coimbra, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase
- Os da Relação de Lisboa, em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase
- Os da Relação do Porto, em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase
- Os da Relação de Évora, em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf?OpenDatabase
- Os da Relação de Guimarães, em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf?OpenDatabase

  [5] Processado e revisto pelo Relator.