Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
688/24.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO DE USO
INDEMNIZAÇÃO
MONTANTE DIÁRIO PREVISTO NO ARTIGO 40.º
N.º 2
DO DL 291/2007
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 07/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – VISEU – JUÍZO CENTRAL CÍVEL– JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 334.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 32º Nº6, 36º Nº 1 AL. F) E Nº8, 37.º, 38º E 40º N.º 1 E 2, DO DECRETO-LEI N.º 291/2007, DE 21 DE AGOSTO
Sumário: I - Verbalizando duas testemunhas, com idênticos conhecimentos na matéria, valores diferentes para o valor de mercado de um veículo, e inexistindo documento que inequivocamente corrobore a versão de uma delas, é ajustado dar-se por provado o valor mediano dos montantes expressados.

II- Para se ter jus a indemnização por privação do uso, vg. de veículo automóvel, não basta a mera indisponibilidade do carro, mas, por outro lado, não se exige a prova de danos concretos e efetivos, sendo necessária, mas suficiente, a prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização.

III - A filosofia do DL 291/2007 de 31.08, vai no sentido de uma tramitação indemnizatória enxuta, célere e equitativa, para o que, na medida do possível, as partes, mesmo sem acordo inicial – artº 31º nº6 –, devem contribuir.

IV - A seguradora que não assume a sua responsabilidade de uma forma não suficientemente fundamentada e, ademais, inverosímil, perante os indícios que apontam claramente para a responsabilização do seu segurado, viola o disposto nos artigos 36º nº1 al e) e 40º nº1 do referido DL, e, assim, incorre nas sanções do seu nº2.

V – Este segmento normativo não pode ser aplicado irrestritamente, a todo e qualquer período temporal, independentemente do motivo do seu decurso, mas antes comedida e equitativamente, em função das circunstancias do caso, sob pena, vg., de abuso de direito.

VI - Assim, em acidente de viação: i) com perda total da viatura cujo valor de mercado ascendia a cerca de 10 mil euros; ii) em que o lesado comprou uma viatura logo passados 21 dias após a seguradora não assumir a responsabilidade; iii) e em que ele apenas aciona esta passados 421 dias após esta não assumir a responsabilidade, não pode este largo lapso temporal, do qual dimanaria uma quantia de mais de 42 mil euros, ser considerado para o efeito de tal preceito; antes se tendo por mais justo e equitativo, sob pena de estar a beneficiar-se a inação do credor e a aceitar-se uma atuação com abuso de direito na modalidade do desequilíbrio das prestações, o período de 90 dias, o qual, à míngua de prova em contrário, é suficiente para aquele acionamento.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: Carlos Moreira
Adjuntos: Vítor Amaral
Fonte Ramos
*

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA intentou  contra A... - Companhia de Seguros SA , a presente ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

Seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia 53.498,00€ (cinquenta e três mil quatrocentos e noventa e oito euros), acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Para tanto, alegou:

No dia 22.10.2022, cerca das 13.25horas, no IP..., km 71,800, ..., ..., ..., ocorreu um acidente de viação no qual foi interveniente, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-LX-.., do qual era proprietário, e o ligeiro de passageiros de matrícula ..-GD-.., conduzido e propriedade de BB, que havia transferido a responsabilidade civil decorrente da respectiva circulação para a Ré, através da Apólice ...20.

 Tendo este último perdido o controle da viatura e entrado em despiste, invadindo a faixa de rodagem de sentido oposto, até à berma, indo embater na frente do seu veículo, com a lateral traseira.

Em consequência desse embate, sofreu vários danos, nomeadamente a perda total da sua viatura, bem como os decorrentes da privação do respetivo uso, dos quais pretende ser indemnizado.

 A Ré, tendo tido conhecimento do acidente no dia 24.10.2022, até à presente data não assumiu a responsabilidade ou a declinou de modo fundamentado, pelo que está a mesma obrigada a pagar-lhe o montante diário previsto no artigo 40.º, n.º 2 do DL 291/2007, desde o dia 13.12.2022 até ao dia 06.02.2024 no montante global de 42.100.00€ (421 dias x 100€).

A Ré contestou.

Afirmou desconhecer as concretas circunstâncias em que ocorreu o acidente e impugnou o valor que o Autor atribuiu ao seu veículo, alegando ainda que lhe comunicou que a sua posição quanto à responsabilidade pelo sinistro ficava dependente da conclusão do processo crime n.º 112/22...., onde se aprecia o mesmo acidente de viação.

2.

Seguiu o processo os seus trâmites, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo que se deixou exposto, julga-se totalmente procedente a presente acção e, consequentemente, condena-se a Ré a pagar ao Autor a quantia global de €53.498,00 (cinquenta e três mil, quatrocentos e noventa e oito euros) acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento.»

3.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª/ Existe erro grosseiro na decisão da matéria de facto, concretamente no que se refere à alínea U: " À data do acidente o valor comercial do LX era de € 11 800,00".

2ª/ Os concretos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida são o depoimento da testemunha CC, mais concretamente nas passagens 8:21 a 9:51 e 10:22 a 14:54.

3ª/ Na verdade, para fundamentar o valor dado como provado de € 11 800,00 , a douta sentença recorrida acolheu o depoimento da testemunha DD.

4ª/ Esta testemunha limitou-se a dizer (v. passagem de 3:01 a 5:40), sem fundamentar, logo por pura afirmação sem fundamento, que o veículo valia entre € 11 000,00 e 12 000,00. Mas não sabia ou não tinha certeza do ano de construção do veículo, nem do número de quilómetros (v. passagem de 5:52 a 7:31 do seu depoimento).

5ª/ Acresce que ao ser questionado (v. passagem 5:52) se era esse o valor anunciado na internet, nos sites da especialidade, nomeadamente no "Sand Virtual" limitou-se a dizer que ainda hoje, veículos como o do Autor, em bom estado, valem € 8 000,00, subentendendo-se que não conhecia sequer tais anúncios.

 6ª/ Este valor de € 8 000,00, certamente por ter dado conta que não se justificava uma desvalorização de € 11 000,00/€ 12 000,00 para € 8 000,00 (diferença entre o que disse ser o da data do acidente e o da data actual) foi a seguir modificado , com o evoluir do seu depoimento para € 9 000,00/ € 9 500,00.

7ª/ Ou seja, quer este, quer o de € 8 000,00 à data actual, quer o de € 11 000,00 / € 12 000,00 à data do acidente nunca foram justificados ou fundamentados em nada, mas tão só afirmados.

8ª/ Já a testemunha CC, cujo depoimento foi prestado na mesma audiência (26/02/2025) explicou que o veículo foi vistoriado e peritado tinha uma estimativa de reparação de mais de € 20 000,00 (v. passagem do seu depoimento iniciado a 2:10).

9ª/ Esta testemunha explicou também que o valor encontrado no mercado para o mesmo veículo era de € 8 840,00 (v. passagem 8:21) encontrado através das vendas anunciadas na internet, em sites da especialidade, para veículos do mesmo estado.

10ª/ Declarou que a própria testemunha (CC) conferiu os valores anunciados e que os mesmos andavam entre € 7 500,00 e € 9 400,00.

11ª/ Declarou também (v. passagem 10:22) que a peritagem ao veículo foi feita no principio de Novembro de 2022 e a carta com o resultado da mesma foi enviada ao Autor em 9 de Novembro de 2022 e que a Ré fez a averiguação do acidente, mas havia várias versões e " não foi conclusiva".

12ª/ Com base no depoimento desta testemunha (v. passagem 8:21 a 9:51) resulta que o valor atribuído ao veículo foi de € 8 840,00 e que esse é o seu valor de mercado, tendo o mesmo sido obtido a partir da peritagem feita ao mesmo, e na consulta feita ao mercado.

13ª/ Aliás, qualquer pessoa pode fazer essa consulta pois está acessível a todos na internet, nos vários sites da especialidade , sendo certo que ao contrário do que transparece da douta sentença, o veículo do autor foi vistoriado por perito da empresa de avaliação e peritagem independente que foi incumbida pela Ré .

14ª/ Assim, não se compreende que tenha sido considerado provado que o valor do veículo era antes do acidente de € 11 800,00, devendo antes ser dado como provado, em lugar da resposta dada em "U" da fundamentação de facto" que "À data do acidente o valor comercial do LX era de € 8 840,00".

15ª/ Sendo os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, em conformidade com a conclusão anterior, o já referido nas conclusões 8ª/ a 13ª/ sendo também certo que tal é como que um facto notório, considerando que os valores de mercado estão acessíveis na internet a todos.

16ª/ Por outro lado, também deve considerar-se que a recorrente enviou ao Autor uma carta em 14/12/2022, que é o documento a que se refere a alínea EE) da "fundamentação de facto", da mesma constando que é enviada para os efeitos previstos "na alínea b) do nº 1 do art. 40º do Decreto lei 291/2007" (v. doc. 1 junto com a contestação).

17ª/ A alínea b) do nº 1 do art. 40º do Decreto Lei nº 291/2007 invocada em tal comunicação prevê precisamente a possibilidade ou hipótese de a responsabilidade não ter sido claramente determinada.

18ª/ Com tal carta objectivamente a recorrente transmitiu ao Autor que a responsabilidade não tinha sido assumida, porque lhe não era possível assumi-la, pois havia elementos a obter com a conclusão do processo crime que se encontrava pendente.

19ª/ Aliás, o Autor também era lesado em danos corporais, como consta do próprio auto de participação de acidente de viação (v. doc. 1 junto com a p.i.) e, portanto com legitimidade para reclamar a indemnização no mesmo processo crime, o que também confere prazos diferentes (v. art 37º do D.L. nº 291/2007, de 21 de Agosto).

20ª/ Esse processo crime estava, aliás, em segredo de justiça e como consta da informação junta aos presentes autos até só tem a audiência de julgamento marcada para os próximos dias 23 e 24 de Junho de 2025 (v. certidão junta pela recorrente em 12/06/2024 e comunicação electrónica do Juízo de Competência Genérica de São Pedro do Sul de 25/02/2025, de que a recorrente foi notificada por oficio da mesma data).

21ª/ A seguradora pode perante uma situação em que a responsabilidade não esteja claramente determinada ( ou seja, na hipótese da alínea b) do nº 1 do art. 40º do Decreto Lei nº 291/2007), responder como respondeu, pois no fundo, objectivamente, o que se extrai da carta de 14 de Dezembro de 2022 é que, naquela data ou até àquela data não assumia a responsabilidade.

22ª/ E isso não prejudica que posteriormente, em face de novos elementos possa mudar de posição assumindo a responsabilidade.

23ª/ Acresce que, não obstante e sem prejuízo do que vai dito , tal como decidiu o Acórdão da Relação de Évora de 10/2/2022, proc. 576/20.6T8EVR.E1. , num caso análogo existe abuso de direito por parte do Autor ao pretender beneficiar de um crédito calculado sobre um período de tempo que estava na sua esfera de disponibilidade aumentar ou reduzir .

24ª/ Como também se pode ler no citado Acórdão “o abuso de direito torna-se chocante, porque conduz a uma utilização do direito que não foi querida pelo legislador”, como é no caso o facto de o Autor poder instaurar a acção em 30 dias (tal como considerou o douto Acórdão citado) , em vez de ter estado a aguardar mais de um ano.

25ª/ O abuso de direito é do conhecimento oficioso, não estando, pois, sujeito ao princípio da preclusão (v. Ac. S.T.J. de 12/7/2028, proc. 2069/14.141t8PRT.P1.S1).

26ª/Já no que se refere à indemnização por privação do veiculo, a recorrente não ignora as divergências que existem na jurisprudência, sendo certo que, na sua opinião, para se ter direito à mesma terá que a privação do uso ter uma repercussão negativa do património do lesado, sendo que a mera privação do uso , sem tal repercussão, não é susceptível de fundar qualquer obrigação de indemnização, na linha do que pode ler-se, entre muitos outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2023, proc. 393/17.0T8PVZ.P1.S1.

27ª/ É incontornável que da douta decisão sobre a matéria de facto não resultou provado (nem tal vem alegado) qualquer repercussão negativa no património do lesado, o Autor.

28ª/ Na verdade, no caso dos presentes autos o que ficou provado foi apenas e só que o Autor e sua família teve de se socorrer de veículos emprestados por familiares.

29ª/ Ou seja: não resultou provado , nem vem sequer alegado que tenha havido qualquer repercussão negativa no património do autos e isso é essencial, em virtude do disposto no art. 566º, nº 2 do C. Civil.

30ª/ Deve, assim, a douta sentença de que se recorre ser revogada , reduzindo o valor da indemnização para o equivalente ao valor venal do veiculo de € 8 840,00 deduzido o valor do salvado de € 1122,00, o que dá € 7 718,00.

31ª/ Foi violado, entre outros , as disposições contidas:

- no art. 40º, nº 1 –b) e 2 do Dec. Lei 291/2007, na medida em que a carta de 14/12/2022 constitui uma resposta fundamentada.

- no art. 334º do Código Civil que considera abuso de direito a actuação do Autor, ao retardar a interposição da acção e assim fazer com que o seu crédito aumentasse.

- 566, nº 2 do C.Civil na medida em que, quanto à privação de uso do veiculo não considerou a necessidade de repercussão negativa no património do autor.

Contra alegou o autor pugnando pela manutenção do decidido comos seguintes argumentos finais:

1 - Não assiste qualquer razão à Recorrente na alegacão de que a alínea U dos factos provados (“U. À data do acidente o valor comercial do LX era de 11.800,00€ (23.º PI)”, deve ser alterada em virtude do depoimento da testemunha DD.

2 - A testemunha, além de exercer a profissão de mecânico de automóveis, realizava todas as reparações ao veículo do autor, tendo declarado que o mesmo estava em excelente estado de conservação, com todas as revisões realizadas, incluindo uma grande, de substituição completa da correia de distribuição que, como se sabe, é das revisões mais dispendiosas - depoimento das 10:29 às 10:39, minutos 2:29 a 4:00 e 4:50 a 5:25.

3 - Daí o seu valor, em outubro de 2022 (data do acidente) ser de 11.800€! Note-se que, como bem realçou a Recorrente, a testemunha afirmou que, “ainda hoje o valor seria entre os 9.000€ e os 10.000€”, sendo que “hoje” era o dia 26/02/2024, isto é, dois anos e quatro meses depois do acidente!

4 - Assim, não se vê qualquer contradição entre o que a testemunha declarou e o facto provado constante da alínea U) dos factos provados, não devendo esta ser alterada.

5 - A Ré alega que, tendo enviado uma carta ao autor, em 14/12/2022, a comunicação da não assunção da responsabilidade, pelo menos até àquela data, estava realizada.

6 - À luz do disposto no nº1 do artigo 40º, que explicita os termos em que deve ser cumprido o dever de comunicação final, da assunção ou não da responsabilidade, a comunicação que a Recorrente enviou ao A. em 14/12/2022 não contém uma resposta final, ainda que invoque o disposto no nº1 do artigo 40º, pois não contém qualquer posição final e definitiva de não assunção de responsabilidade, limitando-se a informar que o processo ainda se encontra em fase de instrução e que ainda não dispõe os elementos necessários – neste sentido, acórdão da Relação de Coimbra de 08/10/2024, processo n.º 488/21.6T8CTB.

7 - Acresce que, dada a clareza dos factos relativos à dinâmica do acidente, não existe qualquer justificação para a aguardar o desfecho do processo crime que foi instaurado, apenas, porque resultou uma morte.

8 - Não se argumente com o abuso de direito por parte do A. por ter acionado judicialmente a Ré/Recorrente mais cedo, pois é à seguradora que incumbe a gestão e controlo do processo de regularização dos sinistros automóveis de forma pronta e diligente, nos termos do disposto no art.º 31º do DL 291/2007, sendo ela, e não o lesado, que dispõe de um período de tempo que está na sua esfera aumentar ou reduzir.

9 - A aplicação da sanção cível prevista no n.º 2 do art.º 40.º do DL 291/2007 não pode ser coartada pela aplicação da figura do abuso de direito, pois que é automática e exercida como penalização imposta às Seguradoras que não cumpram os deveres de zelo, diligência e celeridade que lhe são impostos pelo art.º 36º daquele mesmo diploma legal.

10 - O art.º 498º do CPC estabelece o prazo de três anos para o lesado obter judicialmente o reconhecimento do seu direito; dentro desse prazo de três anos não é legítimo que o lesado passe a dispor de um menor prazo de prescrição apenas porque a penalização da Seguradora aumenta a cada dia que passa – neste sentido, Revista de 30/11/2022, Procº 576/20.6T8EVR.

11 - No sentido de aplicação da sanção pecuniária prevista no nº 2 do art.º 40º do DL 291/2007, além dos acórdãos já mencionados, acórdão da RG de 30/01/2025, processo 1006/21.1T8FAF, acórdão do STJ de 04/02/2021, processo 11280/17.2T8LRA, todos em www.dgsi.pt.

12 - A Ré/Recorrente entende que o dano da privação do uso é indemnizável, apenas no caso de se provarem prejuízos patrimoniais efetivos decorrentes de tal privação; não é essa a corrente jurisprudencial maioritária.

13 - A privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o art. 1305.º do CC lhe confere de modo pleno e exclusivo, bastando, para o efeito, que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava

14 - Para se concluir pela verificação duma desvantagem patrimonial decorrente da privação do uso do bem, basta que se prove que o pretendia utilizar, ou que normalmente o usaria, não sendo necessário provar direta e concretamente prejuízos efetivos, designadamente um acréscimo de despesa ou a frustração de um rendimento com o qual legitimamente contava.

15 - Estando provado nos autos o uso que o A. dava ao veículo e a falta que o mesmo lhe fez – alíneas W, X, Y, Z e AA dos factos provados – pelo que tem direito a ser ressarcido pelo dano da privação do uso.


4.
Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto.
2ª-  Inexistência de direito a  indemnização por privação do uso.
3ª – Abuso de direito do autor quanto ao pedido de pagamento  do montante diário previsto no artigo 40.º, n.º 2 do DL 291/2007 pelo período de 421 dias.

5.
Apreciando.
5.1.
Primeira questão.
5.1.1.
No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.
Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação – cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.
O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.
Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.
Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.
Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.
Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.
Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.
Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.
O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.
Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.
Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:
«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010,, p. 73/2002.S1.  in dgsi.pt pt; e, ainda, Ac. STJ de 02-02-2022 - Revista n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1.
5.1.2.
Por outro lado, e como constituem doutrina e jurisprudência sedimentadas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.
 A lei exige que os meios probatórios invocados imponham (não basta que sugiram) decisão  diversa da recorrida.
Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.
Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.
Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve o recorrente efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando - objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.
Ademais, e como é outrossim comummente aceite, esta pretensão apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.
E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos  in dgsi.pt;
5.1.3.
Pretende a recorrente a alteração da redação do ponto U dos factos provados, a saber:
U. À data do acidente o valor comercial do LX era de 11.800,00€ (23.º PI).
A Julgadora fundamentou este ponto nos seguintes termos:
«Em relação ao estado de conservação e funcionamento do veículo do Autor, acreditámos que era excelente, tal como vinha alegado, acreditando nas palavras isentas e conhecedoras de DD, mecânico, que explicou estar a viatura impecável, por dentro e por fora, com revisões feitas no momento próprio, dado que o Autor, seu cliente há vários anos, era muito meticuloso e até já tinha mudado a distribuição, assim se justificando a resposta dada à alínea S dos factos provados.
Foi também com base no depoimento de DD que se fixou o valor que o LX tinha à data do acidente, tendo esta testemunha confirmado a subscrição da declaração que consta dos autos (cf. doc. 5 junto com a PI), convencendo quanto ao facto de a viatura – cujas características estão especificadas no certificado de matrícula junto como documento 3 da petição inicial – por se encontrar em excelente estado de conservação, seria comercializável por valores entre os onze e os doze mil euros, em 2023, afirmando que, actualmente, ainda poderia ser negociado por valores entre os oito e os nove mil euros.
Mais se consigna que, por outro lado, a Ré não logrou contrariar tal realidade dado que, embora tenha alegado que atribuiu ao veículo o valor de €8.840,00, não juntou aos autos qualquer documento que pudesse indiciar nesse sentido e a testemunha CC, profissional de seguros, explicou que chegaram a esse valor através de pesquisas feitas na internet, tendo feito uma média entre os valores mais baixos e mais altos que encontraram nessas plataformas, sem considerarem o veículo em concreto que, como confessou, nunca observaram.
Já a recorrente pugna pela sua pretensão  de atribuir ao veículo o valor de mercado de  8.840, 00 euros nos termos explanados nas conclusões 2ª a 13ª.
Foi apreciada a prova com audição dos depoimentos.
Perscrutemos.
A testemunha  DD prestou um depoimento não muito concreto e assertivo, antes pelo contrário, mostrou-se algo  vago e inseguro.
Ademais, não justificou cabalmente o valor atribuído na avaliação de 11.800,00 euros na própria avaliação escrita que já tinha efetuado.
Nem sequer sabia ao certo as caraterísticas do veículo, vg. a data da sua construção, «penso que é de 2011 ou 2012».
Verbalizando que  valor será de 11- 12 mil euros, «assim por alto».
Destarte, este depoimento não se mostra, só por si, suficientemente convincente quanto ao valor.
Urge, pois, concatená-lo com o depoimento da  testemunha CC.
Este foi mais assertivo e elucidativo.
Referiu que pela pesquisa dos sites da internet da especialidade, o valor para um carro com estas caraterísticas variava entre 7 mil e quinhentos e 9 mil e quinhentos euros, conforme o estado e as caraterísticas.
Podendo alcançar-se um valor médio de 8.840,00 euros.
Não obstante o maior convencimento desta testemunha há que não esquecer que ele trabalha para a ré e, assim – e isto sem querer por em causa a sua honestidade – pode ter  algum interesse – material ou moral, direto ou indireto – no melhor desfecho da causa para a demandada.
E, assim -  consciente ou até sub conscientemente – ter a tendência para apresentar um valor que mais beneficie a ré.
Tudo visto e ponderado parece-nos que aqui se pode tomar uma decisão salomónica.
 Ou seja, considerarem-se os valores defendidos pelas partes – o de 11.800 euros e o de 8.800 euros (por arredondamento) –, somá-los e dividi-los por dois, assim se encontrando o valor médio de tais verbas.
Efetivando-se tal operação obtém-se o valor de 10.300,00 euros.
É este o valor que releva e deve ser considerado, indo a negrito no ponto respetivo.
E devendo ainda dar-se como provado, atento o teor do doc. junto aos autos que a carta enviada pela ré  ao autor, mencionada em EE o  foi para os efeitos previstos "na alínea b) do nº 1 do art. 40º do Decreto lei 291/2007.
5.1.4.
Decorrentemente, e no acolhimento parcial desta pretensão, os factos a considerar são os seguintes:

A. No dia 22.10.2022, pelas 13H35, no IP..., km 71,800, ..., ..., ..., ocorreu um acidente de viação (1º PI).

B. Nele foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-LX-.., propriedade e conduzido pelo Autor (2.º PI).

C. E o ligeiro de passageiros de matrícula ..-GD-.., conduzido e propriedade de BB (3.º PI)

D. Que havia transferido a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação para a Ré através da Apólice ...20 (3.º PI)

E. O local do acidente configura uma curva aberta (4.º PI).

F. A via é constituída por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, delimitadas por linha dupla contínua, em piso betuminoso e em bom estado de conservação (5.º PI)

G. A velocidade permitida no local é de 90km/hora (6.º PI).

H. Estava a chover e o piso estava molhado (7.º PI)

I. Não existia acumulação de água no piso, nevoeiro, ou qualquer obstáculo na via (8.º PI)

J. A faixa de rodagem tem uma largura de 7,45 m (9.º PI)

K. E possui uma inclinação ascendente, no sentido .../..., de cerca de 0,7% (10.º PI)

L. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em A., o GD circulava no sentido .../..., a velocidade não apurada (11.º PI).

M. Ao km 71,800, ao descrever a curva, que naquele sentido é para a esquerda, o condutor do GD perdeu o controlo da viatura e entrou em despiste, tendo a viatura rodado sobre si mesma no sentido anti-horário, invadindo a faixa de rodagem de sentido oposto e até à berma (12.º PI).

N. No sentido .../... circulava o LX, tendo sido embatido na frente pela lateral direita da traseira do GD (13.º PI)

O. O condutor do LX, que antes do embate ainda travou e desviou-se para a sua direita, foi projetado para além da berma do seu lado direito (14.º PI)

P. Como consequência do acidente, o LX sofreu danos que determinaram a perda total (17.º PI).

Q. O veículo do Autor era de marca Ford, modelo Focus, de 08.07.2011 (18.º PI)

R. Em 08.07.2022 foi à inspeção, possuindo 155.342 km (19.º PI).

S. Estava em excelente estado de conservação e funcionamento, satisfazendo as necessidades de transporte do agregado familiar (20.º PI).

T. A Ré atribuiu ao veículo o valor de 8.840,00€, sendo os salvados no montante de 1.122,00€ (21.º PI).

U. À data do acidente o valor comercial do LX era de 10.300,00€ (23.º PI).

V. O Autor vendeu os salvados por 1.122,00€ (24.º PI).

W. O LX era usado diariamente pela esposa do Autor nas suas deslocações para e do local de trabalho, que dista da sua residência cerca de 10 km (26.º PI).

X. Era usado, também, para levar o filho mais novo do casal, atualmente com 10 anos de idade, 2/3 vezes por semana, aos treinos de futebol em ..., no ..., que dista da residência 176 km (27.º PI).

Y. Além disso, era utilizado para todas as restantes deslocações do agregado familiar, incluindo em lazer (28.º PI).

Z. O Autor adquiriu um outro veículo apenas em 02.01.2023 (29.º PI)

AA. E teve de socorrer-se de veículos emprestados por familiares durante esses 72 dias (30.º PI).

BB. A comunicação da ocorrência do acidente à Ré foi efetuada no dia 24.10.2022 (33.º e 42.º PI).

CC. Encontra-se pendente o processo crime nº 112/22...., no Tribunal Judicial de S. Pedro do Sul onde se aprecia a responsabilidade penal do condutor do GD (3.º Cont e certidão judicial a fls. 46 dos autos.)

DD. Em 9/11/2022 a Ré remeteu uma carta ao Autor a dar-lhe conhecimento que os serviços técnicos da empresa de avaliação e peritagem B..., Lda. tinha avaliado os danos em € 20 654,00 e que o sinistro devia ser regularizado como Perda Total do veículo, tendo atribuído ao mesmo o valor de €8840,00 imediatamente antes do acidente e ao salvado o valor de €1.122,00, sendo o valor a considerar de €7.718,00, salientando que o processo se encontrava em fase de instrução pelo que, nesse momento, não se poderia pronunciar quanto à atribuição de responsabilidade (5.º a 7.º Cont. e documento 2 da PI).
EE.Em 14/12/2022, a Ré remeteu ao Autor uma outra carta a informá-lo, para os efeitos previstos "na alínea b) do nº 1 do art. 40º do Decreto lei 291/2007, que ainda não lhe era possível pronunciar-se quanto à responsabilidade na produção do sinistro e que o processo se encontrava em fase de instrução a fim de obter os elementos necessários à conclusão do mesmo, nomeadamente conclusão do processo crime, pelo que oportunamente voltariam ao contacto do Autor (4.º Cont. e documento 1 junto com a contestação.).


5.2.
Segunda questão.

Sobre este tema da privação do uso, máxime de uso de veículo, desenham-se três posições na nossa jurisprudência.

Uma, que julgamos minoritária, no sentido de que a mera indisponibilidade do bem, em abstrato, constitui, só por si, dano indemnizável, independentemente da sua utilização efetiva – cfr. Ac. do STJ de  08.05.2013, p. 3036/04.9TBVLG.P1.S1.

 Outra, que propende para a obrigação de ser provada a necessidade do veículo e a existência de concretos prejuízos ou, ao menos, uma  diminuição ao nível da satisfação das necessidades do proprietário.

Finalmente, outra, de cariz intermédio  e maioritário, que pugna que se, por um lado, não basta a simples privação do uso do bem, por outro também não se exige a prova de danos concretos e efetivos, sendo necessária mas suficiente, a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização.

Isto porque, normalmente, a privação do veículo causa tais afetações negativas,  não sendo de exigir a sua demonstração minuciosa, concedendo-se algum alívio probatório, pois que os danos decorrentes de tal privação, dimanam, desde logo - perante a premência da necessidade do automóvel na moderna sociedade -, das regras da lógica e da experiencia comum - Cfr. Acs. do STJ de 13-12-2007, p.07A3927;  de 16-09-2008, p.8A2094; de 30-10-2008, p.08B2662; de 30-10-2008 p.07B2131; de 10.01.2012, p. 189/04.0TBMAI.P1.S1.; de 04.07.2013, p.5031/07.7TVLSB.L1.S1 e de 30.04.2014, p. 353/08.2TBVPA.P1.S1. in  dgsi.pt.

Destarte, tem-se entendido que:

«Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usava e usaria normalmente (o que, na generalidade das situações concretas, constituirá facto notório ou resultará de presunções naturais a retirar da factualidade provada), para que possa exigir-se do lesante uma indemnização autónoma a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos quantificados, como, por exemplo, que deixou de fazer determinada viagem ou que teve de utilizar outros meios de transporte, com o custo correspondente.» - Ac. do STJ de 15.11.2011, p. 6472/06.2TBSTB.E1.S1.  e Ac. TRC de 05.03.2024, p. 3106/20.6T8VIS.C2.

Adere-se a esta última corrente, na consideração, não, apenas, de se tratar de posição maioritária, mas, também, de ela se enquadrar melhor no nosso sistema jurídico, que faz depender a obrigação de indemnizar da existência de danos.

É o que resulta, desde logo, do princípio geral da responsabilidade civil, estabelecido no n.º 1 do artigo 483.º do CCivil, e, depois, dos preceitos específicos sobre a matéria, nomeadamente os artigos 562.º, 563.º, 564.º e 566.º.

Na verdade, a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil depende da existência de danos e pressupõe a verificação do nexo de causalidade entre eles e o facto ilícito lato sensu  -artº 563º do CC.

Assim, a simples privação da possibilidade de uso do veículo  não é fator de atribuição de equitativa indemnização,  sendo ainda necessário demonstrar a concreta utilização que o lesado daria ao mesmo durante o período em que não o pode utilizar, a não ser que alegue outros prejuízos para além dessa privação.

Até porque, em regra, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos – artº 566º, nº 2, do CC.

A referida regra de cálculo da indemnização em dinheiro, inspirada pelo princípio da diferença patrimonial, não dispensa o apuramento de factos que revelem a existência de dano ou prejuízo na esfera patrimonial da pessoa afetada.

Assim, a mera privação do uso de um veículo automóvel é insuscetível de, só por si, fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil, pois que pode não ter qualquer repercussão negativa no património do lesado, ou seja, dela não resultar um dano específico, emergente ou na vertente de lucro cessante.

Porque, vg. existiam outros meios de transporte à  disposição do dono ou porque acabou por deles não necessitar.

Donde que seja um ónus do lesado não apenas a alegação em abstrato de danos decorrentes da privação da viatura por falta de reparação da entidade responsável, sendo necessária a alegação e prova concreta das situações em que a viatura deixou de ser fruída, mesmo que essa fruição ou gozo se traduza em atividades não lucrativas e se enquadre em aspetos úteis, lúdicos ou beneméritos.  

No caso  sub judice.
Diz a recorrente que para se ter direito  a uma indemnização por  privação do uso terá de haver  uma repercussão negativa do património do lesado, sendo que a mera privação do uso, sem tal repercussão, não é suscetível de fundar qualquer obrigação de indemnização.
O que, como se viu, se mostra tendencialmente correto.
E mais alega que  o autor não provou tal repercussão negativa.
Ora provou-se que:

W. O LX era usado diariamente pela esposa do Autor nas suas deslocações para e do local de trabalho, que dista da sua residência cerca de 10 km (26.º PI).

X. Era usado, também, para levar o filho mais novo do casal, atualmente com 10 anos de idade, 2/3 vezes por semana, aos treinos de futebol em ..., no ..., que dista da residência 176 km (27.º PI).

Y. Além disso, era utilizado para todas as restantes deslocações do agregado familiar, incluindo em lazer (28.º PI).

AA. E teve de socorrer-se de veículos emprestados por familiares durante esses 72 dias (30.º PI).

Perante estes factos é meridianamente intuível que o autor sofreu uma repercussão negativa  no seu património.

Pois que dos mesmos dimana que ele necessitava do carro, vg. para as deslocações que se provaram.

Pelo que, naturalmente,  a falta do mesmo, certamente que o prejudicou, quer porque o impediu de efetivar tal uso, quer porque, para a realização de tais deslocações, teve de socorrer-se de meios alternativos, os quais é suposto lhe terem acarretado custos.

Tanto basta para se concluir que o autor cumpriu, com a suficiência devida, o seu ónus probatório quanto a esta matéria.

 Pois que, reitera-se, dos factos apurados tem de concluir-se, numa exegese sagaz e eivada dos ensinamentos da vida e experiência comuns,  que ele  necessitava do carro e teve transtornos e prejuízos com a sua imobilização.

Assistindo-lhe, pois, jus a ser ressarcida pelos mesmos.
O período  de 72 dias da indemnização considerado e quantum diário de dez euros atribuído  nem sequer são colocados em crise no recurso, e, em todo o caso, sempre se  afigurariam adequados.

5.3.
Terceira questão.
5.3.1.
A julgadora, chamando à colação o disposto nos artºs 32º nº6, 36º nº1 al. f) e nº8 , 38º e 40º nº2  Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, decidiu nos seguintes, sinóticos e essenciais, termos:

«A norma do artigo 40.º, n.º 2 do citado diploma legal consiste numa sanção destinada a compelir a seguradora a pronunciar-se sobre a responsabilidade do sinistro, devendo aplicar-se quando a seguradora se atrasa na emissão de pronúncia quanto ao acidente e, quando o faz, descarta a sua responsabilidade.

Assim sendo, o lapso temporal a considerar para a aplicação da sanção compulsória/sancionatória é apenas o que medeia entre o termo do prazo legal para a pronúncia da seguradora e a data da sua tomada de posição negatória de responsabilidade.

Significa isto que a sanção compulsória prevista no artigo 40.º, n.º 2 do citado diploma legal só é aplicável às situações em que a seguradora nada comunica ou comunica a não assunção da responsabilidade, dispondo do prazo normal de trinta e dois dias úteis para o fazer.

O Autor alega que o prazo legal de 30 dias úteis se iniciou no dia 27.10.2022 e terminou no dia 12.12.2022, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a referida sanção pecuniária desde o dia 12.12.2022 até ao dia 06.02.2024 (data anterior à da propositura da acção).

em 14/12/2022, a Ré remeteu ao Autor uma outra carta a informá-lo que ainda não lhe era possível pronunciar-se quanto à responsabilidade na produção do sinistro e que o processo se encontrava em fase de instrução a fim de obter os elementos necessários à conclusão do mesmo, nomeadamente conclusão do processo crime e que oportunamente voltariam ao contacto do Autor (facto provado em EE.)

Ora, como ressalta de modo cristalino do teor desta… missiva, e ao contrário do que veio defender em sede de contestação, a Ré nunca formalizou/assumiu qualquer posição fundamentada quanto à responsabilidade pelo sinistro, como lhe impõe o artigo 36.º, n.º 1, alínea e) do Decreto Lei 291/2007 de 21.07, e essa resposta deveria ter surgido até ao dia 12 de Dezembro de 2022.

O teor dessa missiva não pode ser interpretado no sentido duma comunicação de não assunção de responsabilidade, tendo em mente o disposto no artigo 217.º do Código Civil, e a circunstância de estar pendente um processo crime, onde se apura a responsabilidade criminal do condutor seu segurado, não serve de justificação para tal inacção.

Já no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30.01.202511 se dá conta, por exemplo, que as situações de indefinição de responsabilidade entre as Seguradoras, por falta de acordo, não se podem repercutir negativamente sobre o lesado.

Observa-se que nem em sede judicial, na respectiva contestação, a Ré tomou uma posição quanto à responsabilidade do condutor seu segurado, violando, a nosso ver, de modo incompreensível, perante a clareza dos factos, o dever previsto no mencionado normativo legal, constituindo-se, desse modo, na obrigação de pagar ao lesado e ao Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, a quantia de duzentos euros por cada dia de atraso.

Como se referiu, o prazo de comunicação fundamentada terminou em 12.12.2022 pelo que, considerando que o Autor apenas contabilizou como data final do atraso no cumprimento do referido dever o dia 06.02.2024, verificamos que entre o dia 13.12.2022 e o dia 06.02.2024 decorreram, efectivamente 421 dias, o que totalizará, a título de sanção, a quantia peticionada de €42.100,00 (421x100€).».
5.3.2.
Dilucidemos.
O fim precípuo do regime do DL nº 291/2007 de 21/8 é o de
«garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel» – artº  Artigo 31.º

Nesta senda estatuem, vg., os seguintes preceitos.

Artigo 36.º

«Diligência e prontidão da empresa de seguros

1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve:

a) Proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar;

b) Concluir as peritagens no prazo dos oito dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea anterior;

c) Em caso de necessidade de desmontagem, o tomador do seguro e o segurado ou o terceiro lesado devem ser notificados da data da conclusão das peritagens, as quais devem ser concluídas no prazo máximo dos 12 dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea a);

d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão;

e) Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico;

f) Na comunicação referida na alínea anterior, a empresa de seguros deve mencionar, ainda, que o proprietário do veículo tem a possibilidade de dar ordem de reparação, caso esta deva ter lugar, assumindo este o custo da reparação até ao apuramento das responsabilidades pela empresa de seguros e na medida desse apuramento.

7 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, a empresa de seguros deve proporcionar ao tomador do seguro ou ao segurado e ao terceiro lesado informação regular sobre o andamento do processo de regularização do sinistro.»

E o artigo 38.º

«Proposta razoável

1 - A posição prevista na alínea e) do n.º 1 ou no n.º 5 do artigo 36.º consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte.

2 - Em caso de incumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas no número anterior, quando revistam a forma dele constante, são devidos juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável ao caso sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal ou, em alternativa, sobre o montante da indemnização proposto para além do prazo pela empresa de seguros, que seja aceite pelo lesado, e a partir do fim desse prazo.

3 - Se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos nas disposições identificadas no n.º 1 até à data da decisão judicial ou até à data estabelecida na decisão judicial.

4 - Para efeitos do disposto no presente artigo, entende-se por proposta razoável aquela que não gere um desequilíbrio significativo em desfavor do lesado.»

E o artigo 40.º

«Resposta fundamentada

1 - A comunicação da não assunção da responsabilidade, nos termos previstos nas disposições identificadas nos n.os 1 dos artigos 38.º e 39.º, consubstancia-se numa resposta fundamentada em todos os pontos invocados no pedido nos seguintes casos:

a) A responsabilidade tenha sido rejeitada;

b) A responsabilidade não tenha sido claramente determinada;

c) Os danos sofridos não sejam totalmente quantificáveis.

2 - Em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas nos n.os 1 dos artigos 38.º e 39.º, quando revistam a forma constante do número anterior, para além dos juros devidos a partir do 1.º dia de atraso sobre o montante previsto no n.º 2 do artigo anterior, esta constitui-se devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de (euro) 200 por cada dia de atraso.»

Sendo de ter presente que, nos termos do Artº 32º nº6:

«6 - Para a aplicação do regime previsto no presente capítulo não é necessário que os interessados tenham chegado a acordo sobre os factos ocorridos aquando do sinistro.»


No caso vertente, e versus o entendido na sentença, consideramos que o expendido pela ré na carta de 14.12.2022, consubstancia, a  rejeição,  ou,  no mínimo, a não assunção, naquela data, da  responsabilidade do seu segurado e, por virtude do contrato, da sua própria responsabilidade, enquanto seguradora.
Ou, pelo menos,  o que, tanto quanto interpretamos, é a posição vertida na sentença, expressa uma dúvida quanto à responsabilidade do seu segurado, e, assim, reflete o entendimento da ré de que a responsabilidade não está claramente definida e imputada.
Por conseguinte, a sua posição subsume-se na previsão da al. a), ou, no mínimo, na da al. b)  do artº 40º.
Não obstante, desde logo e numa primeira fase, o cerne da questão reside, em saber se tal posição foi, ou não,  devidamente fundamentada, como exige a lei.
E, depois, mesmo que tenha sido fundamentada, se a fundamentação aduzida era, ou não, idónea e suficiente a respaldar tal atuação da ré no sentido de não admitir, logo naquele momento,  a responsabilização  do seu segurado e, por reflexo do contrato, de si própria.

Como bem se expende na sentença, a fundamentação não carece de ser minuciosa e exaustiva.

Mas também não pode assumir um jaez de tal modo vago e indeterminado que não permita intuir o  seu  conteúdo e cariz.

 E, assim, para ela ser  sindicável  de sorte a poder concluir-se se foi  bem ou mal invocada, se é, ou não é, aceitável.

Ora em tal missiva a ré apenas informou o autor que ainda não lhe era possível pronunciar-se quanto à responsabilidade na produção do sinistro e que o processo se encontrava em fase de instrução a fim de obter os elementos necessários à conclusão do mesmo, nomeadamente conclusão do processo crime, pelo que oportunamente voltariam ao contacto do Autor.

Esta fundamentação é insuficiente, por demasiado vaga e genérica.

Perante os elementos, vg. documentais, do processo claramente indiciadores da atribuição da responsabilidade do acidente ao seu segurado, a ré teria de ser mais concretizadora no sentido de indicar quais as diligências que estava a desenvolver no sentido de convencer que tais indícios poderiam ser,  ou não, infirmados e, assim, o seu segurado (des)responsabilizado do acidente.

Ademais, a invocação do processo crime não colhe e volta-se  até contra si.

A responsabilidade criminal  é um «mais» relativamente à responsabilidade meramente contraordenacional, sendo que esta é suficiente para operar a responsabilização no plano meramente cível.

Se o seu segurado foi criminalmente indiciado e vier a ser condenado, tal demonstra que sobre ele recaíam já  fortes indícios da sua responsabilização criminal, e por acréscimo, da responsabilização cível.

E se não for condenado, tal não afasta necessáriamente a responsabilização do condutor no plano cível, e, por acréscimo e por virtude do contrato de seguro,  não afasta a responsabilidade da ré.

Depois, numa fase subsequente, e mesmo que a fundamentação aduzida fosse   clara e suficiente, urgiria  apreciar se ela se  revelaria idónea para o efeito pretendido.

Desde logo naquele pretérito momento e atentos os elementos de prova que a ré já tinha ao seu dispor, e que apontavam claramente para a responsabilização do seu segurado, não se revelaria.

Tal como se veio a demonstrar com a tramitação destes autos.

Efetivamente, e pela prova produzida e os factos apurados, -   pontos M, N, O – a culpa do sinistro, desde logo para efeitos meramente cíveis, deve ser imputada ao condutor do segurado na ré.

Como resulta da fundamentação da sentença, estes factos foram dados como provados essencialmente com base em elementos documentais.

Tendo nela sido expendido:

«Esta descrição do acidente coaduna-se inteiramente com os elementos que ressaltam da reportagem fotográfica e do esboço do acidente que foi feito pelos militares do Destacamento de Trânsito, destacando-se, a este propósito, o depoimento assertivo de EE, do NICAV, o qual afirmou que se tratou de uma averiguação fácil de fazer, não tendo qualquer dúvida que o veículo de marca Peugeot, ao descrever a curva para a esquerda entrou em despiste, rodou em sentido anti-horário e foi colidir, com a traseira, na frente esquerda da viatura que seguia em sentido contrário…».

Ora estes documentos já existiam no processo do sinistro aquando da tomada de posição da ré,

Do que decorre que a ré, ao tempo em que escreveu a carta de 14 de dezembro, já tinha acesso à informação necessária que claramente indicava a responsabilidade do condutor do veículo por si segurado..

Pelo que lhe era exigível formular uma proposta de indemnização dos danos corporais, nos termos do artigo 37º, ao invés de negar, ou colocar em dúvida insanável, a responsabilidade do seu segurado.

Temos assim que a ré não apenas violou a filosofia subjacente ao diploma em referência, que pretende uma tramitação indemnizatória enxuta, célere e equitativa, como, em concreto, desrespeitou o disposto nos artºs 36º nº1 al e) e 40º nº1.

Reitera-se que perante os elementos do processo que apontavam claramente para a culpa do condutor seu segurado, a ré deveria ter assumido a responsabilidade, mesmo que provisória ou condicional – veja-se que esta modalidade até é admitida para os danos corporais: artº 37º nº2 al. a).

Mas não apenas não assumiu a responsabilidade como ao que parece, se demitiu de posteriormente diligenciar pelo apuramento de dados que contrariassem os já existentes que apontavam para a responsabilidade do seu segurado.

E nem sequer informando o autor de tais diligências,  ou falta delas, como exige a lei – artº 36º nº7  - ; antes permanecendo inativa e, ao que parece, comodamente à espera do desfecho – em princípio irrelevante ou inócuo – do processo crime.

Decorrentemente, a conclusão final é que ela  violou os aludidos preceitos e incorreu na sanção prevista no nº2 do artº 40º.

5.3.3.

Do abuso de direito.

5.3.3.1.

Estatui o artº 334º do CC:

Abuso do direito

«É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.»

A figura do abuso de direito é uma válvula de escape do sistema jurídico que tem por fito obstar a soluções, que, se  apenas oriundas da estrita perspetivação das normas legais, se assumiriam de tal modo injustas que atingiriam o patamar da iniquidade e imoralidade.

Na verdade:

«I - O abuso do direito, consagrado no art. 334.º do Código Civil, corresponde, sobretudo, a uma manifestação concreta do princípio da boa fé.

 II - O comportamento, manifestamente atentatório da boa fé, deve ser repudiado pela ordem jurídica, qualificando como ilegítimo o exercício do direito baseado nesse comportamento e obstando à concretização da respetiva pretensão jurídica».- Ac. do STJ de 28-09-2017,  proc. n.º 97/14.6T8ACB-A.C1.S1.

Destarte, não é qualquer solução legal, se admissívelmente alicerçada e escorada numa possível interpretação e aplicação de uma norma jurídica, mesmo que possa ser suscetível de não consecutir com o rigor ou amplitude exigíveis a justiça do caso,  que permite ou clama o chamamento da figura/instituto do abuso de direito.

Assim, a conduta que tem virtualidade de consubstanciar este abuso não pode ser uma qualquer, injusta, desadequada ou desproporcionada até.

 Antes se tendo de assumir como manifestamente ou clamorosamente contrária a certas normas ou princípios jurídicos, como a boa fé,  intoleravelmente inquinadora dos bons costumes, ou inadmissivelmente desproporcionada atento o fim social ou económico do direito em dilucidação.

O artº 334º do CCivil consagra uma conceção objetiva ou objetivista: não é necessária a consciência do abuso bastando que este exista na realidade.

O abuso de direito assume diversas modalidades.

As mais relevantes, são: o venire contra factum propium  proprium, a exceptio doli, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Na espécie mais se coaduna, desde logo em tese e em abstrato, esta última modalidade.

O desequilíbrio reporta-se  ao exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados  estranhos aos que são admissíveis pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objetiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objetivo).

5.3.3.2.

Perscrutemos  pois a possível aplicação da mesma in casu.

Como se diz na sentença, aliás alicerçada em aresto desta Relação em que o presente também foi Relator:  - Ac. TRC de 04.02.2020, p. 558/18.8T8FIG.C1 -  «A norma do artigo 40.º, n.º 2 do citado diploma legal consiste numa sanção destinada a compelir a seguradora a pronunciar-se sobre a responsabilidade do sinistro, devendo aplicar-se quando a seguradora se atrasa na emissão de pronúncia quanto ao acidente e, quando o faz, descarta a sua responsabilidade.»

Porém, não é apenas sobre a seguradora que recai a obrigação de contribuir para uma tramitação célere e escorreita do processo com vista à atribuição da indemnização devida e à justa composição do litígio no mais breve lapso temporal.

Também sobre o segurado tal dever impende.

Assim o impõe o artº 34º, a saber:

1 - Em caso de sinistro, o tomador do seguro ou o segurado, sob pena de responder por perdas e danos, obriga-se a:

b) Tomar as medidas ao seu alcance no sentido de evitar ou limitar as consequências do sinistro.

Por outro lado:

«…a norma do cit. art. 40.º, n.º 2 assume natureza sancionatória para a seguradora incumpridora do dever de diligência no respeitante à celeridade na resolução que lhe cabe do conflito….

…importará atender…ao conceito de “lesado” para efeitos de aplicação do normativo em questão.

Assim, “lesado”, para o efeito, não poderá considerar-se uma pessoa simplesmente prejudicada pela ocorrência de um sinistro automóvel, ou mesmo uma pessoa que tenha reclamado perante uma seguradora a reparação de prejuízos decorrentes de um acidente de viação, exigindo-se antes que se trate de uma pessoa que, para além de reunir aqueles pressupostos, seja titular de um direito de indemnização ante a seguradora...

Apenas tal conceito de “lesado” se mostra, a nosso ver, compatível com a unidade do regime de seguro obrigatório em causa, e mesmo com a unidade do nosso sistema de responsabilidade civil no seu todo, assente na ocorrência de um prejuízo efetivo resultante de um ato ilícito e culposo.» -  Ac. TRP de 05.12.2023, p. 1641/22.0T8MAI.P1.

(sublinhado nosso)

Assim sendo verifica-se que o  dano substantivo e real  e mais efetivo que o autor sofreu foi ter ficado sem o veículo, bem como ter sofrido a  privação do  seu uso, porque completa e irremediavelmente destruído.

A perda  e o não uso do veículo, para além do  seu valor intrínseco, implicava, porque necessário na sua vida quotidiana, prejuízos e afetações negativas. 

Tendo-se provado que: «Z. O Autor adquiriu um outro veículo apenas em 02.01.2023», temos que a partir desta data o dano da privação do uso  tais afetações cessaram.

E tem de entender-se que a quantia sancionatória compulsória de 200 euros diários prevista no artº 40º nº 2 destinava-se, ao menos na sua essencialidade mais relevante,  a impelir a seguradora a atribuir ao autor uma verba  cujo destino e aplicação seria supostamente para a aquisição de um novo veículo.

Porém, e ainda bem, o autor conseguiu comprar um novo carro sem necessidade de esperar pela indemnização da ré.

A assim ser, o fito precípuo de tal artigo para a cominação com o pagamento dos 200 euros diários foi consecutido, ainda que a expensas do autor.

Certo é que o autor  continuou a ter em relação à ré o direito a uma indemnização pelo valor  do carro e pela privação do uso no período respetivo.

Mas, com a aquisição de novo veículo, a urgência na atribuição desta indemnização  deixou de ser tão impressiva, pois que o statuo quo ante sinistro  relativamente à realidade material essencial tinha sido já reposto pelo autor.

Pelo que, desde logo por este motivo, a continuação da responsabilidade da ré a este título, também para todo o período em que o autor já tinha adquirido um novo veículo e decorrido até à instauração da ação, deixa,  numa sensata, razoável e equitativa exegese de tal preceito atenta a sua finalidade precípua supra referida,  de ter sustentabilidade.

5.3.3.3.

Acresce que, como se viu, tanto o segurado, como o lesado de um sinistro tem o dever de colaboração com a seguradora no sentido de se minimizarem os prejuízos recíprocos e a situação fique regularizada o mais brevemente possível.

Na verdade:

«O lesado que num acidente de viação se recusa a cooperar com a Seguradora na peritagem do seu veículo sinistrado, sendo esta diligência indispensável para a Seguradora emitir a sua proposta no prazo legalmente fixado, não tem o direito de exigir os juros em dobro, previstos no art. 38 nº2 do DL nº 291/2007 de 21/7 e a sanção cominada no art.40 nº2 do mesmo diploma, porque a falta de colaboração essencial no cumprimento, sem justificação, constitui o credor em mora accipiendi.» - Ac. do STJ de 23.04.2024, p. 7772/20.4T8LSB.L1.S1.

No caso vertente, e mutatis mutandis, assim é.

O autor, ademais ciente de que o direito lhe assistia, deveria, perante a posição se não assunção de responsabilidade por banda da ré e a sua posterior inação, ser mais lesto na defesa dos seus direitos e interesses.

Para o que deveria ter proposto a ação mais precocemente

Não sendo pois razoável e justo que se beneficie a inação do autor no sentido de que quanto mais tarde ele instaurasse a ação mais proveitos colheria ao abrigo de tal norma, se irrestritamente interpretada.

Efetivamente, interpretar  e aplicar tal preceito irrestritamente nas presentes circunstâncias factuais - ou seja, durante um dilatado período  de tempo de 421 dias,  apenas ou essencialmente oriundo da inação do credor; quando o principal resultado que com ele se pretende alcançar já foi alcançado; com a consequência de a  este título ser-lhe atribuído um valor indemnizatório de  mais de 42 mil euros, quando o veículo acidentado valia  apenas cerca de dez mil; quando o autor apenas ficou privado do  seu uso por um período total de 72 dias pelo qual foi atribuída uma indemnização de 720,00 euros; quando comprou outro carro e apenas foi privado do uso por um período de 21 dias após a não assunção de responsabilidade pela ré -, consubstanciaria efetivamente uma situação de abuso de direito na modalidade do desequilíbrio das prestações.

Tudo visto e, cremos, sensata e sagazmente ponderado, entendemos como razoável o período de noventa dias durante o qual o autor poderia, com melhor indagação do caso e pedidos de informação junto da ré, ter  instaurado a ação.

Nesta conformidade se atingindo a final conclusão que a sanção do artº 40º nº 2  apenas deve reportar-se a este período, sob pena de abuso de direito na aludida modalidade.

Destarte, e em suma, ao autor assiste jus às seguintes quantias:

- 9.178,00 euros pela diferença entre o valor venal do veículo e o valor do salvado.

- 720,00 euros pela privação do uso.

- 9.000,00 euros ao abrigo do artº 40º nº2 do aludido diploma.

 Tudo no valor global de 18.898, 00 euros.

 Valor este acrescido de juros à taxa legal de 4%, desde a citação  e até integral pagamento.

Procede, em parte, o recurso.

6.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso parcialmente procedente e, agora, condenar a ré a pagar ao autor a quantia de 18.898,00 euros, valor este acrescido de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a citação  e até integral pagamento.

No mais se absolvendo.

Custas pelas partes na proporção da presente sucumbência.

Coimbra, 2025.07.08.