Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B2662
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: PRIVAÇÃO DO USO
DANOS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: SJ200810300026622
Data do Acordão: 10/30/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – A privação do uso do veículo, por parte do seu proprietário, em virtude de acidente de viação, só é reparável, se aquele provar, como é ónus do lesado, quais os danos em concreto que derivaram daquela privação.
II – Se o montante de uma indemnização for determinado através da equidade, tem de se entender que esse quantitativo está actualizado.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
AA e BB moveram a presente acção ordinária contra Companhia de Seguros T... SA, pedindo que o réu fosse condenado a pagar a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, à primeira, a quantia de € 21.457,66, acrescida dos juros de mora legais desde a citação e, ao segundo, a de € 2.791, 71, acrescida de idênticos juros.
A ré contestou e requereu a intervenção provocada acessória de CC.
Os autores replicaram e requereram a intervenção da Companhia de Seguros F... SA.
Admitidas os incidentes de intervenção, CC fez seu o articulado da ré e a Companhia de Seguros F... SA apresentou articulado próprio.
Perante este, os autores requereram as intervenções provocadas do Fundo de Garantia Automóvel e de DD, que foram admitidas. Apresentaram os chamados articulados próprios, sendo que a primeira pede a condenação da F... como litigante de má-fé e na consequente indemnização pelas despesas dos autos.

Na acção apensa nº 3414.03.0-B, DD pede a condenação da T... a pagar-lhe a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais a quantia de € 568.111,51, acrescida de juros de mora a partir da citação, bem como aquelas quantias que se vierem à apurar em execução de sentença relativas a despesas com o aparcamento do veículo FO, com a contratação duma pessoa para a auxiliar nas lides domésticas, e com transportes, tratamentos médicos, cirurgias e consultas. Pede igualmente os respectivos danos não patrimoniais.
A ré T... contestou e suscitou a intervenção de CC.
A autora replicou e pediu a condenação da ré como litigante de má fé em multa e indemnização a seu favor.
Admitido o incidente de intervenção, o interveniente fez seu o articulado da ré.

Na acção apensa nº 3414.03.0-A, EE pede a condenação da T... a pagar a quantia de € 100.670,35, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos juros moratórios a partir da citação bem como a quantia que se vier a apurar emexecução de sentença, resultante de danos futuros.
A ré contestou e suscitou o incidente da intervenção provocada de CC, que foi admitido, tendo o interveniente feito seu o articulado da ré.
Os processos seguiram os seus trâmites e, após o julgamento, foi proferida sentença em que:
1 No processo principal, foi a ré condenada a pagar à autora AA a quantia de € 2.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, a partir da decisão e a de € 10.442,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, a partir da citação. Foi ainda condenada a pagar ao autor BB a quantia de € 1000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, a partir da decisão e a de € 221,71, a título de danos patrimoniais, com idênticos juros a partir da citação.
No mais foi a ré absolvida do pedido

2 No apenso 3414.03.0-B, foi a ré condenada a pagar à autora DD a quantia de € 50.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida do juros de mora à taxa de 4%, a partir da decisão e a de € 64.010,51, a título de danos patrimoniais, com juros idênticos a partir da citação. Foi ainda condenada a pagar à autora uma indemnização que vier a ser fixada em ulterior decisão pelos danos futuros que entretanto se venham a verificar em consequência do acidente, designadamente despesas que a autora venha a suportar com tratamentos cirúrgicos, medicamentos, tratamentos, períodos de paralisação da sua actividade laboral, perda de rendimentos, dores sofrimentos e transtornos de que venha a padecer. Tudo acrescido dos respectivos juros legais.
No mais foi a ré absolvida do pedido.

3 No apenso 3414.03.0-A foi a ré condenada a pagar ao autor EE as quantias de € 2.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora à taxa de 4%, a partir da decisão; de € 17.811,35, a título de danos patrimoniais futuros, acrescida de idênticos juros, a partir da citação; de € 17,35 de dano emergente, acrescida de juros de mora, à taxa de 7%, contados desde a citação até 30.04.03 e de 4% a partir dessa data.
No mais foi a ré absolvida do pedido.

Apelou a ré, tendo o Tribunal da Relação julgado parcialmente procedente o recurso e fixado em € 35.000,00 o montante da indemnização por danos não patrimoniais a prestar a DD, revogando ainda a a sentença na parte em que atribuiu uma indemnização àquela pela privação do uso do FO.
Recorre agora esta última, a qual, nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese, as seguintes conclusões:

1 O veículo FO era utilizado nas deslocações da recorrente e sua família, pelo que a privação da sua utilidade tem um valor pecuniário, que deve ser fixado recorrendo à equidade.
2 Considerando que o aluguer de um veículo idêntico rondará os € 50,00 diários e o tempo que dele tem estado privada, é equilibrado fixar a indemnização em € 15.000,00
3 Atentos os sofrimentos físicos resultantes das lesões e respectivos tratamentos, bem como atentas as suas sequelas, dores e lesões estéticas, é equilibrado manter o valor de € 50.000 para os danos não patrimoniais, considerando os padrões de vida a partir da citação.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Nos termos do artº 713º nº 6 do C. P. Civil, consignam-se os factos dados por assentes pelas instâncias remetendo para o que consta de fls. 492 a 505.

III
Apreciando

1 A primeira questão a decidir é a de saber se a recorrente deve ser indemnizada pela privação do uso do veículo.
Alguma jurisprudência tem entendido que esse tipo privação constitui em si um dano indemnizável.
Mas vejamos.
O dano como a diferença entre o património actual realmente existente e aquele que existiria se não fosse a lesão danosa do artº 566º do C. Civil, implica que apenas sejam indemnizáveis os danos em concreto realmente verificados.
Ora, de acordo com o que acabamos de expor, a privação duma utilidade do património pode ou não constituir um dano, conforme acabe por diminuir ou não o mesmo acervo patrimonial. Isto, é claro, em termos de danos patrimoniais. E compete ao lesado fazer a demonstração de que ocorreu tal diminuição. O que não pode ser confundido com o incómodo resultante da falta do meio de transporte, que é indemnizável em sede de danos não patrimoniais.
No caso de privação de veículo e consequente privação da sua utilidade - de transporte rodoviário - pode muito bem acontecer que nenhum prejuízo tenha daí advindo para o que dele deixou de poder dispor: porque tinha outros meios de transporte à sua disposição, porque lhos facultaram, porque acabou por deles não necessitar. Donde que seja um ónus do lesado a quem compete provar o montante dos danos, provar também os prejuízos que lhe advieram da referida privação.
Não estamos, assim, de acordo e salvo o devido respeito com a posição de Abrantes Geraldes, quando diz que “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização” – Indemnização do Dano Privação do Uso 39 41 - . Essa modificação negativa tem de ter um conteúdo económico e pode não o ter. Que a privação do uso integra uma ofensa do direito de propriedade, disso não temos dúvidas. No entanto, como é sabido, a ofensa de um direito só funda a indemnização por dano patrimonial, se este concretamente se verificar. A simples privação do uso não é, só por si, uma lesão económica. Entendimento contrário – que foi o adoptado no Ac. deste STJ de 06.05.08, www.stj.pt 08A1279 - , indicado pela recorrente - levar-nos-á sempre a dar relevância ao dano económico provável e não ao dano económico real. Sem prejuízo da mera ofensa do direito ser indemnizável a título de dano não patrimonial. Aliás, a tese contrária ao entendimento que defendemos acaba sempre por ter de fixar uma indemnização através da equidade, dada a manifesta impossibilidade de determinar o conteúdo económico da lesão em si.
Como se entendeu no Ac. deste STJ de 16.09.08 – www.stj.pt 08A2094 – “A paralisação de um veículo não gera de per si prejuízos. Para que a imobilização de uma viatura possa significar danos para o seu proprietário é necessário alegar-se e provar-se factos nesse sentido.”.
Ora, a este respeito, apenas logrou a recorrente demonstrar, como se assinala na decisão em apreço, que “O veículo FO era utilizado em deslocações da autora e família.”.
O que, pelo que consignámos, é insuficiente para julgar provado um dano indemnizável.

2 A segunda questão é a do montante da indemnização pelos danos não patrimoniais fixados à recorrente.
A primeira instância fixou-o em € 50.000,00 e a Relação, comparando tais danos com os de outro caso, que entendeu semelhante, mas mais gravoso para o lesado e em que este STJ arbitrou a quantia de € 40.000,00, acabou por julgar adequada a indemnização de 35.000,00.
Concorda-se com este entendimento – a diferença da percentagem da incapacidade (maior no caso invocado), da idade (superior no caso dos autos), bem como conjunto das deformações físicas (maiores no primeiro caso), impõem que se faça uma distinção.

3 Finalmente há que referir que os juros de mora sobre esta quantia fixada como indemnização pelos danos não patrimoniais contam-se a partir da sentença, como decidiram as instâncias. Embora directamente a recorrente não levante a questão, o certo é que, ao referir que no cálculo do montante se deve atender ao padrão de vida a partir da citação, parece pretender que a quantia não seja actualizada e que vença juros a partir da dita citação. Ora, uma quantia fixada segunda a equidade, é-o, atendendo aos padrões actuais de justiça do julgador. Deste modo, ainda quando nada se diga, há que entender que tal montante é fixado de forma actualizada.
Termos em que improcede o recurso.

Pelo exposto, acordam em negar a revista e confirmam o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 30 de Outubro de 2008

Bettencourt de Faria (Relator)
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos