Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
373/20.9PAVCD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
JIC
DESPACHO DE NÃO CONCORDÂNCIA
IRRECORRIBILIDADE
JURISPRUDÊNCIA UNIFORMIZADA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
JURISPRUDÊNCIA OBRIGATÓRIA
Nº do Documento: RP20221107373/20.9PAVCD-A.P1
Data do Acordão: 11/07/2022
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO APRESENTADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – É entendimento da jurisprudência maioritária que a declaração de concordância ou não concordância do juiz de instrução com a suspensão provisória do processo, proferida ao abrigo do disposto no artigo 281°, n.º 1, do Código de Processo Penal, é irrecorrível.
II – A interpretação de um pressuposto de aplicação daquele regime consubstancia ainda avaliação de pressupostos com vista à concordância ou discordância do JIC.
III – No acórdão de fixação de jurisprudência n.º 16/2009 foi esgrimido o argumento da recorribilidade da decisão de discordância do juiz de instrução com a decisão do MP de suspender provisoriamente o processo, mas a posição que fez vencimento foi no sentido da irrecorribilidade, ou seja, no sentido oposto à proposta de redacção para a resolução do conflito avançada pelo MP junto do STJ, não tendo sido apresentado qualquer argumento novo ou excepcional para questionar tal decisão.
IV – A concreta irrecorribilidade não viola o direito ao recurso, inexistindo um irrestrito direito ao recurso, já que este sofre limitações, mormente nas fases preliminares do processo, que atingem os diversos sujeitos processuais, restrição essa que constitui uma concessão a exigências de celeridade processual, dimensão fundamental do processo penal.
Reclamações: Reclamação n.º 373/20.9PAVCD-A.P1
2ª secção criminal

I.
1.- Nos autos de Inquérito com o n.º 373/20.9PAVCD em actos jurisdicionais e após requerimento de interposição de recurso pelo MP, foi proferido o seguinte despacho:
«Requerimento de interposição de recurso de fls. 128 e seguintes.
A declaração de concordância ou não concordância do juiz de instrução com a suspensão provisória do processo, proferida ao abrigo do disposto no artigo 281°, n.º 1, do Código de Processo Penal, é irrecorrível - nesse sentido cfr. a jurisprudência citada pelo recorrente Ministério Público e, entre outros, decisão de reclamação para o Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 18/03/2019, proferida no âmbito do processo n.° 2074/16.3T9LSB-A.L1-9, e decisão de reclamação para o Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto, datada de 08/01/2016, proferida no âmbito do processo n.° 8215/15.0T9PRT-A.P1.
Assim sendo, não admito o requerimento de interposição de recurso em apreço.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.»
*
É deste despacho que o Reclamante MP, traz a presente reclamação com os seguintes fundamentos, já em forma de conclusões:
1º O Ministério Público interpôs nos presentes autos recurso do despacho judicial de não concordância da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo assente no fundamento de estar em causa um concurso de crimes em que a moldura penal abstracta do conjunto excedia a pena de prisão de 5 anos;
2º O recurso interposto não foi admitido pelo Mmo. Juiz a quo, invocando que "A declaração de concordância ou não concordância do juiz de instrução com a suspensão provisória do processo, proferida ao abrigo do artigo 281°, n° 1 do C.P.P., é irrecorrível". (sublinhado nosso)
3º Discorda-se da decisão de não admissão de recurso proferida pelo Mmo. Juiz a quo, pelo que consideramos que tal despacho deverá ser revogado e substituído por outro que admita o sobredito recurso interposto nestes autos pelo Ministério Público com o qual se visa a impugnação do despacho judicial proferido nos autos.
4º A recorribilidade do despacho judicial foi alvo de aturada fundamentação pelo Ministério Público logo no introito do próprio recurso, fundamentando-se que exorbitava o âmbito de aplicação do Acórdão do S.T.J. n° 16/2009, indo para além do aí disposto, porque respeitava a errada interpretação de norma legal.
5º Com efeito, não está em causa a decisão de discordância do Mmo. Juiz à aplicação da suspensão provisória do processo, mas, antes, a interpretação que fez de um pressuposto formal de aplicação daquele regime.
6º Sendo esse o cerne do recurso interposto, mal se compreenderia que fosse insindicável a posição vertida em decisão judicial que fizesse errada interpretação de norma legal aplicável ao caso concreto, que se pretende ver discutida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto.
7º Não se recorreu do juízo valorativo subjacente à decisão de concordar ou não com a aplicação concreta do instituto de suspensão provisória do processo, antes, da interpretação da norma legal constante do Art° 281° do C.P. P. no tocante ao segmento - "Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos."
8º Ao não admitir o recurso interposto pelo Ministério Público, o Mmo. Juiz a quo violou o princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais penais previsto no Art° 399° do C.P.P.
9º A clamorosa deturpação dos princípios jurídico-penais de diversão e consenso subjacentes à consagração constitucional e legal do instituto de suspensão provisória do processo tem de ser corrigida por via do conhecimento do recurso interposto pelo Ministério Público.
10º Seria inaceitável que se permitisse que uma decisão violadora do que se tem por uma correcta interpretação legal pudesse ser tomada arbitrariamente pelo poder judicial - e não se admitisse - concomitantemente, como "remédio" jurídico, a interposição de recurso para um Tribunal de hierarquia superior como meio de reposição da legalidade ofendida por tal decisão judicial "injusta".
11º Mais. A posição tomada pelo Mmo. Juiz a quo traduz agravamento da posição do arguido no processo porque a interpretação que fez da norma legal - por impeditiva - na sua posição - de aplicação ao caso do instituo da suspensão provisória do processo empurrar inexoravelmente o arguido para um - indesejado - julgamento!
12º No recurso interposto pelo Ministério Público - não admitido pelo Mmo. Juiz a quo - assume-se uma interpretação da norma legal mais favorável ao arguido e como se disse atrás - mais consentânea com o que se pretende para uma justa composição dos interesses divergentes em equação.
13º A não admissão do recurso afronta as garantias de defesa do arguido, restringindo o efectivo acesso à Justiça proporcionado pela instância recursória, como consagrado no Art° 32°, n° 1 da CRP, afrontando, ainda, o direito a um processo equitativo que postula a efectividade do direito de defesa no processo, consagrado no Art° 20.°, n.° 4, da CRP.
14º O recurso interposto pelo Ministério Público contempla esta feição por proteger - reflexamente - através da aplicação de suspensão provisória do processo - os interesses do arguido.
15º A posição tomada pelo Mmo. Juiz a quo fere o princípio do acusatório, imiscuindo-se no papel do Ministério Público, enquanto entidade dominus do inquérito, quanto à promoção do processo, sendo, neste caso, que a posição tomada no inquérito seria a mais vantajosa para o arguido - em face do carácter bagatelar dos crimes e da gritante culpa diminuta patenteada.
16º Curiosamente, após o Mmo. Juiz a quo se ter pronunciado no sentido da não admissão do recurso, passa a tecer considerações sobre as razões que o levaram a não prestar a sua "concordância" ao despacho de aplicação da suspensão provisória do processo - travestindo-se de Juiz de uma instância superior a reanalisar a posição tornada em primeira instância - citando, precisa e inexplicavelmente, afinal, jurisprudência dos Tribunais superiores que pressupõe ser admissível a interposição de recurso de decisões judiciais de "não concordância com a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo!
17º Ao não admitir o recurso o Mmo Juiz a quo violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos Art°s 399° do C.P.P., 20°, n° 4, 32°, n° 1 e 219°, n° 1 da C.R.P. e 4o, n° 1, al. q) da Lei n.° 68/2019, de 27 de Agosto (Estatuto do Ministério Público).
Termina pedindo que o recurso seja admitido.
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II. Apreciação.
A questão colocada consiste em saber se é recorrível o despacho do juiz de instrução que não deu a sua concordância à decisão do Ministério Público no sentido de suspender provisoriamente o processo, nos termos previstos no artigo 281.º do Código de Processo Penal.
Dispõe o art.º 281º, n.º 7, do Código de Processo Penal: «A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação.».
No acórdão de fixação de jurisprudência nº 16/2009, DR, I Série de 24-12-2009, por sua vez, decidiu o STJ: “A discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, não é passível de recurso.”.
Alega o recorrente que o recurso interposto exorbita o âmbito de aplicação do AUJ, porque respeita a errada interpretação de norma legal, uma vez que não está em causa a decisão de discordância à aplicação da suspensão provisória do processo mas, antes a interpretação que fez o JIC de um pressuposto formal de aplicação daquele regime; que a irrecorribilidade viola o direito ao recurso do arguido e do Ministério Público, consagrado nos art.s 32º e 20º da Constituição.
Começando pelo primeiro dos argumentos afigura-se-nos que o recorrente faz uma distinção na lei entre os pressupostos de concordância, que a lei não consente. Com efeito, decorre da letra da lei que o acordo do juiz de instrução depende da verificação dos pressupostos de que a lei faz depender a suspensão provisória do processo:
- o crime em causa ser punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente;
- haver concordância do arguido e do assistente;
- não ter sido previamente aplicado este mesmo instituto por crime da mesma natureza;
- não haver lugar a medida de internamento;
- verificar-se ausência de culpa elevada;
- ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta seja suficiente às exigências de prevenção que se façam sentir.[1];[2].
A interpretação de um pressuposto de aplicação daquele regime consubstancia ainda avaliação de pressupostos com vista à concordância ou discordância do JIC.
Por outro prisma, a avaliação da verificação dos pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo inscreve-se naquilo que o Tribunal constitucional no seu acórdão n.º 7/87 denominou de “competência para a suspensão do processo e imposição de injunções e regras de conduta”[3] e para a qual exigiu a intervenção do juiz de instrução, que foi legalmente acolhida sob a forma de concordância do juiz de instrução.
A atuação do juiz não extravasou a apreciação dos pressupostos e condições de suspensão como um juízo de conformidade à lei, não questionou o leque de opções decisórias do MP, nomeadamente, sobre deveres e injunções.
Por outro lado, resulta dos autos que o JIC, ao contrário do que pretende o recorrente, teve uma visão das coisas facilitadora da aplicação do instituto do consenso, pois ao fundamentar a sua discordância, admitiu que “nada … obstar à suspensão no caso de concurso de crimes, desde que a moldura penal abstracta do conjunto não seja superior a 5 anos”, quer isto dizer que admitiu a aplicação do instituto a um arguido com “eventual responsabilidade” em mais do que um crime. O recorrente no despacho de suspensão provisória do processo não usou sequer o mecanismo previsto no artigo 16º, n.º 3, do CPP, que é em alguns setores doutrinários esgrimido para obviar aos limites impostos pela letra da lei em casos como o presente[4].
No acórdão de fixação de jurisprudência n.º 16/2009[5] foi esgrimido o argumento da recorribilidade da decisão de discordância do juiz de instrução com a decisão do MP de suspender provisoriamente o processo, tendo o Exmo. PGA junto do STJ formulado redação para a resolução do conflito no sentido de “A decisão de discordância do juiz de instrução com a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do artigo 281.º do C. P. Penal, é passível de recurso”. Não foi esta a posição que fez vencimento. Não foi, consequentemente, apresentado qualquer argumento novo ou excecional para questionar a decisão de fixação de jurisprudência.
A concreta irrecorribilidade não viola o direito ao recurso[6]. O reclamante parte de um pressuposto que não existe, nomeadamente o de um irrestrito direito ao recurso. O direito ao recurso sofre limitações, mormente nas fases preliminares do processo, que atingem os diversos sujeitos processuais. Essa restrição é uma concessão a exigências de celeridade processual, dimensão fundamental do processo penal.
No sentido da irrecorribilidade da discordância do JIC com a suspensão provisória do processo se pronunciaram múltiplas decisões dos nossos tribunais superiores.[7]
Pelo exposto a reclamação é para indeferir.
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III.
Indefere-se a reclamação.
Sem tributação.
Notifique.
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Porto, 07.11.2022
Maria Dolores da Silva e Sousa
[Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto]
______________
[1] Cf. Ac. do TRC de 25.09.2013, acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/d1631e6da707451f80257bf800366f07?OpenDocument
[2] E ainda os acórdão do TRE de 02.06.2015, acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/B56E913EAA29F12080257E660039CA65 e do TRP de 09.12.2009, acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/E1BFACA72F30CA398025768F00515B92
[3] Cf. acórdão do TC n.º 7/87, acedido aqui: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19870007.html
[4] Como admite alguma doutrina. Em contrário o ac. do TRC de 26.06.2019, acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/05fdc66b802658cf80258431003b3ffe?OpenDocument
[5] Nesse acórdão observa-se com pertinência, a determinado passo: «Pressupondo que o legislador se rege por critérios lógicos, e por uma articulação racional do sistema, não se vislumbra como é que possa defender que a decisão que conforma o terminus da relação processual não admita impugnação de qualquer tipo e o despacho de «concordância» que é um pressuposto, e premissa daquela conclusão, já o admita.»
[6] Cf. o acórdão do TC n.º 50/2010, de 03.02.2015, acedido aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100050.html e de forma mais específica ainda o ac.do TC n.º 101/2016, acedido aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20160101.html, onde de decidiu: «Não julgar inconstitucional a norma segundo a qual a discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para efeitos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, não é passível de recurso.»
[7] Cf., entre outras as seguintes decisões: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/0634b6d504b08afb802583cb00422f42?OpenDocument
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6b76d5dbb6c226cc80257f47002e7975?OpenDocument
http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/aeaf5eedefa59b358025843f004ebb3e?OpenDocument
Decisão Texto Integral: