Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
21/12.0GAODM.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
COMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 06/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Em ordem a manifestar a sua concordância ou discordância em relação à suspensão provisória do processo proposta pelo Ministério Público, a apreciação do juiz de instrução não está restrita à verificação de alguns dos pressupostos previstos no artigo 281º, nº 1, do C. P. Penal, podendo e devendo estender-se a todos eles, neles se incluindo, naturalmente, a aptidão das injunções e regras de conduta propostas para realizar os fins que, em regra, são satisfeitos com a aplicação de uma pena.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal da Comarca de Beja (Odemira, Instância Local, Secção de Competência Genérica, J1) corre termos o Inquérito n.º 21/12.0GAODM (Actos Jurisdicionais), no qual foi decidido, por despacho de 22.01.2013 – e por se considerar que não se verificam os pressupostos a que alude o art.º 281 n.º 1 do CPP – não dar a concordância à decisão do Ministério Público para a suspensão provisória do processo.
Notificado de tal despacho, vem o Ministério Público arguir a nulidade do mesmo, nos termos dos artigos 119 al.ª e) e 122 do CPP, por violação das regras de competência do tribunal e, em consequência – porque in casu se verifica a ocorrência das alíneas a) a d) do n.º 1 do art.º 281 do CPP – se substitua o mesmo por outro que dê a concordância à proposta de suspensão provisória do processo, arguição que foi indeferida, em síntese, nos seguintes termos:
- “Desde já se diga que a decisão proferida não é passível de recurso. Nesse sentido decidiu o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Novembro de 2009, Processo n.º 270/09.9YFLSB (consultável em www.dgsi.pt), de cujo sumário resulta que «[a] discordância do Juiz de Instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 281 do Código de Processo Penal, não é passível de recurso»;
- Não se verificou a nulidade prevista nos supra transcritos artigos (119 al.ª e) e 122 do CPP), uma vez que o Juiz de Instrução Criminal apenas se limitou a analisar os termos do “acordo” alcançado entre o Ministério Público e os arguidos RMAM e AJLC, ou seja, aferiu se estavam presentes os pressupostos das alíneas a) a f) do n.º 1 do art.º 281 do CPP; e considerando que não estavam verificadas as al.ªs e) e f) do mencionado n.º 1 do art.º 281, não poderia o Juiz de Instrução Criminal dar a sua concordância à aplicação da figura jurídica da suspensão provisória do processo, decisão que proferiu no âmbito das suas competências, de verificação dos pressupostos legais da suspensão provisória do processo, pelo que inexiste qualquer causa de nulidade do processado.
2. Recorreu o Ministério Público desse despacho, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 – O Mm.º JIC violou, com o despacho de fol.ªs 129 a 133, os seus poderes de cognição, o que implica a nulidade (insanável) do ato, nos termos do art.º 119 al.ª e) do CPP, por violação das regras de competência do tribunal, o que traz as consequências do art.º 122 do CPP e, em consequência, o Mm.º Juiz, ao considerar no despacho subsequente, de 24.03.2014, de fol.ªs 149 a 152 (despacho recorrido), que atuou no âmbito das suas competências de verificação dos pressupostos legais de suspensão provisória do processo e que inexiste qualquer causa de nulidade do processado, violou, pois, o disposto nos art.ºs 119 al.ª e) e 122 do CPP.
2 – O Mm.º JIC devia ter declarado a nulidade do despacho de fol.ªs 129 a 133, nos termos dos art.ºs 119 al.ª e) e 122 do CPP, com base na violação das regras de competência do tribunal e, em consequência - porque “in casu se verificam a ocorrência das al.ªs a) a f) do n.º 1 do art.º 281 do CPP” – devia tê-lo substituído por outro em que desse a concordância à proposta de suspensão provisória do processo.
3 – O Mm.º JIC interpretou o art.º 119 n.º 1 al.ª e) do CPP no sentido em que a verificação dos pressupostos legais da suspensão provisória do processo, incluindo os das al.ªs e) e f) do n.º 1 do art.º 281 do CPP, não consubstancia uma “violação das regras de competência do tribunal”, mas, salvo o devido respeito, o Mm.º JIC está errado e deveria ter interpretado e aplicado aquele dispositivo em sentido diverso, ou seja, de que ao apurar se se verificam as al.ªs e) e f) do art.º 281 n.º 1 do CPP está a violar as regras de competência.
4 – Ao Mm.º JIC está subtraída a possibilidade de considerar que a injunção proposta é insuscetível de realizar, de forma adequada e suficiente, as necessidades de prevenção.
5 – Com efeito, e como melhor decorre do acórdão do STJ para fixação de jurisprudência proferido em 18.11.2009, Proc. 270/09.9YFLSB, em que foi relator Santos Cabral, disponível em www.dgsi.pt, ao Juiz não cabe senão a apreciação dos pressupostos e condições da suspensão que se analisem num mero juízo verificativo de conformidade à lei, estando-lhe vedada a intervenção nos juízos de prognose ou na margem de apreciação por parte do titular da acção penal (a previsão da al.ª a) do n.º 1 e a adequação das injunções ou regras de conduta adotadas).
6 – As intervenções do Juiz de Instrução na fase de inquérito ocorrem para assegurar a tutela dos direitos fundamentais do arguido e é nessa perspetiva, de Juiz das liberdades, que deve ser enquadrada a intervenção do Juiz de Instrução na suspensão provisória do processo, quer porque não se verificam os respetivos pressupostos formais, nomeadamente, a concordância livre e esclarecida do arguido e assistente, quer porque os indícios recolhidos não são suficientes para fundamentar uma convicção sobre a responsabilidade criminal do arguido.
7 – Assim, o Juiz de Instrução Criminal apenas deve discordar da suspensão provisória do processo se as injunções ou regras e conduta propostas pelo Ministério Público atentarem contra a dignidade pessoal do arguido, atingirem o núcleo indisponível dos seus direitos fundamentais ou forem desproporcionadas, revelando uma restrição excessiva e injustificada desses direitos individuais. O Juiz de Instrução não pode, sob pena de exorbitar o seu papel, inviabilizar a medida por entender que aquelas injunções ou regras são insuficientes para satisfazer as necessidades preventivas daquele caso concreto ou, substituindo-se ao Ministério Público, propor outras medidas. A sua função é garantir os direitos e não de os restringir.
8 – Nestes termos, deveria o Mm.º JIC ter declarado a nulidade do despacho com a ref.ª 4572105, nos termos dos art.ºs 119 al.ª e) e 122 do CPP, com base na violação das regras e competência do tribunal e, em consequência - porque “in casu se verificam a ocorrência das al.ªs a) a f) do n.º 1 do art.º 281 do CPP” – deveria tê-lo substituído por outro em que desse a concordância à proposta de suspensão provisória do processo. Não o tendo feito, o Mm.º JIC, com o despacho de 24/03/2014, de fol.ªs 149 a 152, violou o disposto nos art.ºs 119 al.ª e) e 122 do CPP, ao considerar que atuou no âmbito das suas competências e que inexiste causa de nulidade do processado.
9 – Nestes termos, deverá julgar-se procedente o recurso e substituir-se o despacho recorrido (de fol.ªs 149 a 152) por outro que declare a nulidade do despacho com a ref.ª 4572105 (fol.ªs 129 a 133), nos termos dos art.ºs 119 al.ª e) e 122 do CPP, com base na violação das regras de competência do tribunal.
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3. Admitido o recurso e remetidos os autos a este tribunal, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, invocando em defesa da sua posição o acórdão deste tribunal de 10.28.2014, Proc. 3/14.8GCODM-A.E1, de que foi relatora a Exm.ª Senhora Juíza Desembargadora Maria Leonor Esteves.
4. Cumprido o disposto no art.º 417 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª b) do CPP).
5. Para tanto importa considerar:
1 – Por decisão de 13.11.2013 (fol.ªs 3 a 6 destes autos) o Ministério Público decidiu:
Determinar “a suspensão provisória do processo aos dois arguidos pelo período de três meses, a contar da notificação ao arguido do despacho que determinara a suspensão, mediante a imposição das seguintes injunções aos arguidos:
(…)”.
Determinar a remessa dos “autos ao Exm.º Juiz de Instrução nos termos do artigo 281 n.º 1 e 384 n.º 1 do CPP”.
2 – Por decisão do Exm.º Juiz de Instrução de 22.01.2013 (fol.ªs 7 a 11) foi decidido não concordar com a suspensão provisória do processo, por não se verificarem “a totalidade dos pressupostos a que alude o disposto pelo n.º 1 do art.º 281 do CPP” (designadamente os previstos nas al.ªs e) e f)).
3 – O Ministério Público veio arguir a nulidade desse despacho, ao abrigo dos art.ºs 119 al.ª e) e 122 do CPP, em síntese, por considerar que o Juiz de Instrução não é competente para conhecer daquela questão (a verificação dos pressupostos previstos no art.º 281 n.º 1 al.ª e) e f) do CPP).
4 – Indeferida tal nulidade (despacho de 24.03.2014, de fol.ªs 17 a 20), veio o Ministério Público a recorrer dessa decisão, nos termos que acima constam.
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6. A motivação do recuso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Tais conclusões – porque delimitam o âmbito do recurso, como é pacífico na jurisprudência dos tribunais superiores – devem ser claras e precisas, de modo a que não se suscitem dúvidas, quer quanto às razões da divergência do recorrente relativamente à decisão recorrida, quer quanto às questões que pretende ver apreciadas/conhecidas pelo tribunal superior.
Atentas as conclusões da motivação do recurso apresentado pelo Ministério Público, assim consideradas, uma única questão vem colocada à apreciação deste tribunal, que é a se saber se o Juiz de Instrução – a quem compete dar a sua concordância à suspensão provisória do processo, nos termos do art.º 281 n.º 1 do CPP – é competente para apreciar/verificar a existência dos pressupostos de que depende a suspensão, designadamente, os previstos nas al.ªs e) e f), ou seja, se o grau da culpa do agente não é elevado e se é de prever que o cumprimento das injunções e regras e conduta respondem “suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir”.
Esta é, pois, a questão a decidir.
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Dispõe o art.º 281 n.º 1 do CPP que “… o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do Juiz de Instrução, a suspensão provisória do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:

e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir”.
Esta questão, tal como vem suscitada, é em tudo idêntica à suscitada anteriormente, no Proc. 3/14.8GCODM-A.E1, que correu termos no mesmo tribunal e onde se decidiu, na sequência do recurso então interposto (acórdão de 28.10.2014, de que foi relatora a Exm.ª Senhora Juíza Desembargadora Leonor Esteves, publicado in www.dgsi.pt), que, “em ordem a manifestar a sua concordância ou discordância em relação à suspensão provisória do processo proposta pelo Ministério Público, a apreciação do juiz de instrução não está restrita à verificação de alguns pressupostos exigidos pela norma, podendo e devendo estender-se a todos eles, neles se incluindo, naturalmente, a aptidão das injunções e regras de conduta propostas para realizar os fins que, em regra, são satisfeitos com a aplicação de uma pena…”.
Sem grandes divagações, deve dizer-se desde já que não vemos razões para concluir de modo diverso.
Por um lado, não faz sentido a invocação – para fundamentar decisão diversa - do acórdão para fixação de jurisprudência de 18.11.2009, proferido no Proc. 270/09.9YFLSB, pois o que aí se decidiu é que “a discordância do Juiz de Instrução em relação à determinação do Ministério Público visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art.º 281 do CPP, não é passível de recurso”; esta foi a decisão que fez vencimento nesse acórdão, pouco relevando para o caso presente os argumentos utilizados para a fundamentar, quer porque esta não era a questão que aí era apreciada, quer porque os mesmos correspondem a uma posição que temos como minoritária e que restringem a posição do Juiz de Instrução à verificação de questões que contendem com direitos fundamentais do arguido, estando-lhe vedada a avaliação dos indícios do inquérito com vista a apurar a intensidade do grau da culpa e a conformidade das injunções e deveres de conduta determinados pelo Ministério Público.
Não nos revemos nessa posição.
De facto, não é essa a posição maioritária da jurisprudência, como bem nos dá conta o acórdão deste tribunal acima identificado, donde se conclui, em síntese, citando o acórdão da RP de 1.07.2009, Proc. 287/09.3PBMTS-A.P1, que “… ao Juiz de Instrução incumbe verificar a existência dos pressupostos da suspensão do processo e, entre eles, necessariamente, formular um juízo sobre a adequação das injunções e regras de conduta às necessidades de prevenção que se fazem sentir no caso É essa a única interpretação que o normativo no segmento «ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir» consente.
Por conseguinte, não tem apoio na letra da lei o entendimento restrito… de que «o consentimento judicial à suspensão provisória do processo justifica-se pela necessidade de evitar a aplicação de injunções ou regras de conduta arbitrárias ou desproporcionadas…»” Neste sentido podem ver-se também (aí identificados) os acórdãos da RP de 21.12.05, Proc. 0515569, de 18.03.2009, Proc. 1856/08.4PBMTS.P1, de 29.04.2009, Proc. 1003/08.2PCMTS.P1, de 27.05.2009, Proc. 7/09.2PCMTS-A.P1, de 1.07.2009, Proc. 287/09.3PBMTS-A.P1, de 8.07.2009, Proc. 19/09.6PTPRT.P1, e de 18.11.2009, Proc. 1418/08.06TAMAI-A.P1, e da RL de 9.02.00, CJ, XXV, t. 1. 152, e – na doutrina - Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 105, e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 722.
Não deixará de se acrescentar, por um lado, que a decisão de concordância do Juiz de Instrução com a proposta/decisão de suspensão provisória do processo – e concordar significa isso mesmo, aceitar, dar o seu consentimento a algo com que se concorda – sendo uma decisão consciente, supõe a análise da decisão/proposta e respetivos fundamentos, ou seja, a verificação dos pressupostos legalmente exigidos para a suspensão e, naturalmente, o poder/dever de discordar, caso não se constate que algum deles não se verifica, por outro, que não se descortina do art.º 281 do CPP – e não deve o intérprete, na fixação do sentido e alcance da lei, face ao disposto no art.º 9 n.º 3 do Código Civil, presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados? – que a competência do Juiz de Instrução, no juízo de concordância que aí se exige, esteja limitada/restringida à verificação de algum/alguns dos pressupostos aí enunciados, por outro lado, ainda, isto em nada colide com a competência do Ministério Público, pois que, como se escreveu no acórdão da RP de 8/07.09, acima citado (a propósito da natureza das injunções e regras e conduta e controlo da sua legalidade pelo Juiz de Instrução), “… o princípio do acusatório acolhido na sua plenitude não prescinde do controlo judicial daquelas imposições comportamentais, ainda que restrito ao controlo da respetiva legalidade, o que pressupõe também o controlo do juízo de adequação, que a lei penal, aliás, prevê, até porque se tais medidas forem desajustadas serão ilegais…”, ou seja, o Ministério Público investiga, analisa os factos, faz a sua imputação e, se concluir que se verificam os respetivos pressupostos, propõe/decide a suspensão provisória do processo; o Juiz não intervém na investigação, não intervém na imputação dos factos nem na decisão do Ministério Público, findo o inquérito, ele limita-se a controlar, no âmbito da sua função jurisdicional – que com aquela não se confunde - a legalidade da suspensão, em suma, se se verificam os respetivos pressupostos, uma vez que, por imposição legal, a suspensão do processo depende da sua concordância.
Improcede, por isso, o recurso interposto.
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7. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso.
Sem tributação.

(Este texto foi por mim, relator, integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 02-06-2015

Alberto João Borges
Maria Fernanda Pereira Palma