Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
451/17.1GEGMR-A.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: RECURSO
REJEIÇÃO
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
DISCORDÂNCIA DO JIC
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: RECLAMAÇÃO DESATENDIDA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
A declaração de concordância ou não concordância do juiz de instrução na suspensão provisória do processo é irrecorrível, nos termos dos como emerge dos mencionados artºs 399º e 400º do CPP.
Decisão Texto Integral:
Reclamantes: M. C., C. M. e A. F. (arguidos);
Recorrido: Ministério Público;
*****
I - Relatório

M. C., C. M. e A. F. vêm reclamar do despacho do Sr. Juíz do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal de Guimarães – Juiz 2 - datado de 30.10.2018, que não lhe admitiu o recurso por si interposto, com base na sua irrecorribilidade.

Segundo o reclamante o recurso deveria ter sido admitido pelos seguintes fundamentos:

1° A decisão de não admissão do recurso aponta para a tese da irrecorribilidade da decisão de não concordância com a promovida suspensão provisória do processo.
3° Tal decisão é recorrível.
4° A situação é controversa e merece nova reapreciação, motivo pelo qual deve o recurso ser admitido e julgado.
5° A declaração da irrecorribilidade daquela decisão consubstanciará sempre uma coarctação desleal, desproporcionada e injustificada, do direito dos arguidos a verem ser proferida uma decisão por um Tribunal Superior, em seu favor, que poderá implicar a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo que aceitaram.
6° A decisão objecto do recurso, efectivamente afectou-os de forma irremediável e impediu a aplicação da suspensão provisória do processo promovida pelo Ministério Público e aceite pelos arguidos.
7° A interpretação efectuada pelo despacho reclamado da norma do artigo 281° do CPP no sentido de que a decisão de não concordância com a suspensão provisória do processo é irrecorrível é inconstitucional por violação do direito à defesa e ao recurso previsto no disposto nos artºs 20º n°1 e 5 e 32° n°1 da Constituição da Republica Portuguesa.

Decidindo:

As incidências fáctico-processuais a considerar são as constantes do Relatório I supra e ainda o seguinte:

1. Nos autos de inquérito, o Digno Magistrado do Mº Pº proferiu o seguinte despacho:

«Os presentes autos indiciam suficientemente a prática pelos arguidos L. M., J. F., M. C., C. M. e A. F. de:

a) crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, o qual é punido com pena de prisão até 4 anos;
b) crime de injúria agravada, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1 e 184.º do Código Penal, o qual é punido com pena de prisão até 4 meses e 15 dias ou pena de multa até 180 dias;
c) crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, o qual é punido com pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias.

Na verdade, na data, hora e local que constam do Auto de Notícia os arguidos envolveram-se numa altercação no interior da discoteca “N80” e quando um dos intervenientes fugiu para o exterior e se dirigiu à Guarda Nacional Republicana, cujas instalações se situam nas proximidades, os arguidos dirigiram-se para os militares injuriando-os, agredindo-os e ameaçando-os, o que fizeram de forma dolosa (cfr. fls. 6 a 9).
*
Segundo o disposto no art. 281.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público pode decidir-se pela suspensão provisória do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, desde que se verifiquem os pressupostos cumulativos aí referidos.

No caso concreto, verifica-se, desde logo, que:

1) A moldura penal correspondente a cada um dos crimes cuja prática os arguidos se encontram indiciados não excede os cinco anos de prisão;
2) Os arguidos concordaram com a suspensão provisória do processo e não há assistente constituído nos autos (cfr. fls. 200, 217, 225, 231 e 237);
3) Os arguidos não foram condenados anteriormente por crime da mesma natureza, nem lhes foi aplicada suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza (cfr. fls. 51, 52, 156 a 172);
4) Não há lugar à aplicação de medidas de segurança de internamento, uma vez que não resulta dos autos factos que permitam considerar os arguidos como inimputáveis;
5) Atento o circunstancialismo descrito, os arguidos não actuaram com um grau de culpa elevado, já que tudo não terá passado de um acto irreflectido.

Na verdade, os arguidos actuaram num contexto em que insurgiram contra elementos da discoteca e sua reacção à presença da Guarda Nacional Republicana não foi a correcta, mantendo o nível de violência.

Por outro lado, considerando os ilícitos em causa e a gravidade dos factos quando considerados como um todo, optou-se pela proposta de um conteúdo das injunções mais expressivo, o que terá certamente repercussões no modo como a sociedade encara aquela conduta e, bem assim, a solução processual ora proposta.

Julga-se que a suspensão provisória contribuirá decisivamente para uma actuação dos arguidos mais cuidada para com as autoridades, não só no período de suspensão, como no futuro.

Estamos convencidos que o julgamento e a condenação dificilmente alcançariam resultados mais eficazes a este nível. De facto, a Justiça em nada fica beneficiada com um processo que passe por um julgamento, com um formalismo desnecessário para os fins que a lei penal persegue e, previsivelmente, para chegar a um resultado próximo das injunções ora propostas.

Vistas globalmente as circunstâncias da prática dos factos cremos que respondem suficientemente a essas exigências de prevenção especial e geral que, no caso, se fazem sentir, a imposição ao arguido das injunções e regras de conduta a seguir indicadas e que os mesmos aceitaram.

Em face de todo o exposto, nos termos do art. 281.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal, o Ministério Público propõe a suspensão provisória do processo, por um período de 5 meses, impondo aos arguidos as seguintes injunções e regras de conduta:

→ arguido L. M.:
a) efectuar um pedido de desculpa formal aos Militares da Guarda Nacional Republicana envolvidos;
b) o arguido deve prestar 150 horas de serviços de interesse público, em instituição da área da sua residência, nos moldes a indicar pela DGRSP.
→ arguidos J. F., M. C., C. M. e A. F.
a) cada um dos arguidos obriga-se a entregar € 750,00 ao Estado Português nos primeiros 4 meses a contar do início da suspensão;
b) o arguido deve no final do prazo que lhe foi concedido para pagamento juntar aos autos os respectivos comprovativos de pagamento.
*
Conclua os autos ao(à) Meritíssimo(a) Juiz de Instrução, nos termos e para os efeitos do art. 281.º do Código de Processo Penal».

2. De seguida, o Mmº Juiz de Instrução Criminal proferiu o seguinte:
3. «Tendo em consideração a moldura abstractamente prevista para os crimes imputados aos arguidos, que no caso do concurso real de crimes em apreço ultrapassa os cincos anos referidos no artigo 281.º do Código de Processo Penal, não dou a minha concordância à decretada suspensão provisória do processo.
*
Notifique e após devolva os autos ao Ministério Público».
4. Deste despacho interpuseram os arguidos recurso, o qual não foi admitido com fundamento na sua irrecorribilidade.
***
Vejamos:

Como preceitua o artº 405º, nº 1, do Código de Processo Penal (CPP), a reclamação para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige destina-se apenas contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso.

A questão reclamativa cinge-se em saber se é susceptível de impugnação por meio de recurso ordinário a decisão de discordância do juiz de instrução relativamente à suspensão provisória do processo da iniciativa do Mº Público.

Como os reclamantes admitem, estamos perante questão que fora objecto de alguma controvérsia, e cujos argumentos a favor pretendem aqueles estes repristinar, mas já objecto de jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça - que acolhemos - no Acórdão Uniformizador n.º 16/2009, publicado no Diário da República n.º 248, Série I, de 24/12/2009, onde se decidiu que «a discordância do Juiz de Instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, não é passível de recurso».

Não se descortina na sua douta alegação quaisquer novos argumentos jurídicos, para além da invocação genérica de que a declaração da irrecorribilidade daquela decisão os afectou de forma irremediável e impediu a aplicação da suspensão provisória do processo promovida pelo Ministério Público e aceite pelos arguidos.

Assim, sufragando-se os fundamentos plasmados naquele douto aresto de fixação de jurisprudência, destacar-se-á que “Em última análise, a forma enviesada como o legislador inscreveu a intervenção do juiz de instrução na suspensão provisória, submetendo-a, através da figura da «concordância», a um regime desadequado em face dos princípios constitucionais e do processo (o juiz não concorda, o juiz decide) necessariamente que teria de conduzir a consequências não ponderadas.

Como refere Anabela Rodrigues a verdadeira decisão de suspensão compete ao Ministério Público. Mais adianta a mesma autora que a concordância do juiz é, assim uma mera formalidade essencial, embora de conformação (validade) daquela decisão (do Ministério Público) prevista pelo legislador em nome da ideia que fundamenta o instituto. Não se trata assim de uma decisão de que se possa recorrer. É certo que, em termos formais-categoriais, a não concordância do juiz assume a forma de um «despacho» mas, em termos materiais, não é um acto decisório que assuma aquela força. Tratando-se, como se trata, de um controlo da legalidade, nenhuma razão há para intervir - não faria sentido - uma 2.ª instância quanto a essa fiscalização.

Entendemos, assim, que o despacho judicial que consubstancia a denominada «concordância» do juiz na suspensão provisória do processo é um acto processual de natureza judicial, não decisório, que constitui o pressuposto formal, e substancial, da determinação do Ministério Público de suspensão do processo nos termos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal.

Aliás, numa perspectiva teleológica do instituto em causa, importa referir, ainda, que o n.º 5 do artigo 281.º do Código de Processo Penal refere expressamente que a decisão de suspensão não é susceptível de impugnação, o que é uma concessão a exigências de celeridade processual. Assim, excluindo, como se exclui, a hipótese de o normativo se referir ao despacho de «concordância» judicial, é evidente que o seu objecto é a determinação do Ministério Público que suspende o processo. Pressupondo que o legislador se rege por critérios lógicos, e por uma articulação racional do sistema, não vislumbra como é que possa defender que a decisão que conforma o terminus da relação processual não admita impugnação de qualquer tipo e o despacho de «concordância» que é um pressuposto, e premissa daquela conclusão, já o admita.

É, também, na convergência daquela perspectiva com uma visão sistémica do processo penal como critério interpretativo, que somos impelidos à mesma conclusão de irrecorribilidade”.

Neste mesmo sentido a declaração do Exmo. Cons. António Pires Henriques da Graça, ao argumentar que “ Poderia questionar-se, eventualmente, se a não concordância do juiz de instrução, é, ou não, susceptível de equiparar-se a acto decisório ou, autonomizar-se como decisão judicial, uma vez que inviabilizaria a suspensão provisória do processo.

Mas tal questão, a meu ver, não tem suporte legal, nem exigência constitucional:

A - Na verdade, do artigo 281.º do CPP, não resulta que a concordância, e, por conseguinte, a não concordância, do juiz de instrução deva ser fundamentada nos termos estabelecidos pelo artigo 97.º, n.º 5, do CPP.
Porém os actos decisórios são sempre fundamentados, da forma indicada no artigo 97.º, n.º 5, do CPP.

Donde, o acto processual de concordância ou, de não concordância, do juiz de instrução na suspensão provisória do processo não pode ser considerado um acto decisório.

B - Por outro lado, o acto processual de concordância, ou, de não concordância, não tem a virtualidade de poder ser considerado despacho (acto decisório), uma vez que não decide sequer questão interlocutória, configurando-se apenas como pressuposto processual da decisão que é determinada por despacho do Ministério Público.(…)
D - Dispõe o artigo 205.º, n.º 1, da CRP: «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.»
Não sendo o acto processual de concordância ou, de não concordância, do juiz de instrução, uma decisão, pois que não constitui acto decisório, não se encontra abrangido pelo disposto no referido normativo constitucional.
E - Se o acto processual de concordância ou não concordância do juiz de instrução constituísse decisão sujeitava-se ao regime dos n.os 2 e 3 do referido artigo 205.º da CRP, o que seria inconjugável com a posição ou função do juiz de instrução no processualismo legal que estrutura o instituto da suspensão provisória do processo constante do artigo 281.º do CPP.
F - É da exclusiva competência do Ministério Público a determinação da suspensão provisória do processo, determinação essa que constitui acto decisório, assumindo-se como despacho, sendo que como estabelece o n.º 3 do artigo 97.º do CPP: «Os actos decisórios do Ministério Público tomam a forma de despachos» que, como se sabe, podem ser impugnados pela via hierárquica.
Porém, nos termos do n.º 5 do citado artigo 281.º do CPP: «A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação.»
7 - A actuação do juiz de instrução na suspensão provisória do processo redunda, formalmente, como acto processual, em «declaração» de concordância ou de não concordância, que não consubstancia, quer pela natureza, quer pela finalidade, acto decisório.
No âmbito do instituto processual da suspensão provisória do processo, o juiz de instrução não profere decisão.

Inexistindo decisão, não pode haver recurso.

A declaração do juiz de instrução na suspensão provisória do processo é pois irrecorrível, como se depreende dos artigos 399.º e 400.º do CPP”.
Acresce dizer que também não se vislumbra qualquer violação constitucional do direito à defesa e ao recurso previsto no disposto nos artºs 20º n°1 e 5 e 32° n°1 da Constituição da Republica Portuguesa, na alegada interpretação da norma do artigo 281° do CPP efectuada pelo despacho reclamado no sentido de que a decisão de não concordância com a suspensão provisória do processo é irrecorrível.
Com efeito, sobre tal matéria se pronunciou o Tribunal Constitucional no douto Acórdão n.º 101/2016, em 23/02/2016, no âmbito do processo n.º 585/2015 e publicado no Diário da República n.º 61/2016, Série II de 2016-03-29, nele se concluindo que a interpretação normativa acima analisada não viola o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, nem se vislumbra que infrinja outro parâmetro constitucional” e se decidindo “a) Não julgar inconstitucional a norma segundo a qual a discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para efeitos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, não é passível de recurso”.

Assim, o entendimento vertido no despacho reclamado de irrecorribilidade quanto à discordância de suspensão provisória do processo na fase de inquérito por parte do juiz de instrução, não configura uma violação dos princípios constitucionais de acesso ao direito, tutela jurisdicional efectiva e direito ao recurso consagrados em tais preceitos.

A lei só prevê a possibilidade de impugnação por via de recurso de actos (judiciais) decisórios.

Além disso, como se sublinha no Acórdão do TC nº 50/2010 de 03.02.2010 “o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões. […] O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões penais condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões que tenham como efeito afetar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla margem de manobra na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima em globo a faculdade de recorrer.”

A circunstância de o legislador prever situações em que não é admissível recurso cabe, portanto, nessa margem de liberdade, constitucionalmente reconhecida.

Inexiste, pois, a invocada inconstitucionalidade.

A declaração de concordância ou não concordância do juiz de instrução na suspensão provisória do processo é, portanto, irrecorrível, como emerge dos mencionados artºs 399º e 400º do CPP.

Logo, pelas razões aduzidas, desatende-se a reclamação.

III – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, desatende-se a reclamação apresentada.

Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC’s.
Guimarães, 08.01.2019.

O Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,

António Júlio Costa Sobrinho