Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1949/22.5T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO

NULIDADE POR FALTA DE FORMA

ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 264.º, 1 E 2, 1.ª PARTE E 664.º, 2, DO CPC; ARTIGOS 220.º; 289.º, 1; 342.º, 1; 1142.º E 1143.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
               I – Para que se possa considerar tratar-se de um contrato de mútuo, é necessário que esteja provada a existência de um acordo mediante o qual o mutante se obriga a restituir igual quantia pecuniária, não bastando demonstrar uma deslocação patrimonial.
               II – O ónus da prova da existência de um mútuo incumbe ao autor

Decisão Texto Integral:
Apelações em processo comum e especial (2013)
*
Relator: Falcão de Magalhães
1.º Adjunto: Des. Cristina Neves
2.º Adjunto: Des. Luís Ricardo
Apelação nº 1949/22.5T8LRA.C1
 
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra1
 
I - A) - 1) – AA, viúvo, instaurou, no Juízo Central Cível ..., contra BB, viúva, acção declarativa sob a forma de processo comum, alegando, em síntese, que:

- Tendo passado, a partir de 2017, a coabitar com a Ré, em casa desta, em Portugal, a pedido da Ré, em 15 de Janeiro de 2018, efectuou uma transferência bancária a favor desta, no montante de 240.000,00 €, para a compra de um apartamento em França, que segundo esta dizia, iria ficar em nome de ambos, de forma a poderem ter um local próprio para viver quando se deslocassem a esse País, onde vivia uma filha da Ré e de onde o Autor era natural;

- Também a pedido da Ré, em 01 de Junho de 2018, efectuou, a favor da mesma, uma outra transferência bancária, no valor de 78.000,00, que se destinava à compra dum apartamento em Portugal, em ..., ...;

- A partir de determinado momento, veio a saber que a Ré não dera ao dinheiro o destino que anunciara, mas sim que o apartamento em França, que era para ficar em nome de ambos, fora adquirido pela filha da Ré;

 

- O relacionamento entre Autor e Ré degradou-se, tendo aquele abandonado a residência desta e regressado a França;

- Vendo-se sem o dinheiro que transferira a favor da Ré, no valor global de € 318.000,00, e sem os imóveis a cuja aquisição se destinava tal verba, o Autor pediu à Ré a devolução desse valor, sem juros, devolução essa que a Ré não levou a efeito.
Defendendo que a situação “sub judice” configurava um contrato de mútuo a favor da Ré, e que tal contrato era nulo, por inobservância da forma legal, o Autor terminou o seu articulado inicial pedindo que a acção fosse julgada procedente e, consequentemente, que fosse declarado nulo o referido contrato de mútuo e que a Ré fosse condenada a restituir-lhe a quantia de € 318.000,00, acrescida de juros civis à taxa de 4% ao ano, desde a citação até efectivo pagamento.

2) - A Ré, na contestação que ofereceu, negou a natureza de “empréstimos” às transferências efectuadas pelo Autor, alegando, ainda, que, a haver qualquer valor a devolver por parte dela, a situação seria subsumível ao instituto do "enriquecimento sem causa", sucedendo, porém, que o direito exercido ao abrigo de tal instituto estaria prescrito.

3) - O Autor, na réplica que apresentou, defendeu ser inaplicável, ao caso, o instituto do enriquecimento sem causa.

4) - Prosseguindo a acção os respectivos termos, realizada que foi a audiência final, veio a ser proferida sentença (em 04 de Maio de 2023), na parte dispositiva da qual se consignou:
«[…] julgo integralmente procedente a presente acção instaurada por AA.
Em consequência:

 

A. Declaro nulo o contrato de mútuo firmado, no ano de 2018, entre o autor e a ré BB.

B. Condeno a ré BB a restituir ao autor a totalidade da quantia cedida no âmbito do contrato de mútuo celebrado por ambos, a qual ascende a € 318.000,00 (Trezentos e dezoito mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação e até integral pagamento.
Custas pela ré. […]».

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B) – A Ré veio interpor recurso da sentença, oferecendo, a terminar a respectiva alegação, as seguintes conclusões:
«A)
O A. vem exigir a restituição de valores que diz ter mutuado à R., em quantia que ascende a € 318.000,00.
B)
A matéria dada como provada na douta sentença não pode ser admitida nos exactos termos aí consignados, devendo tal matéria ser reformulada, por não corresponder à prova existente nos autos e produzida em sede de audiência de julgamento.
C)
Deve a matéria dada como provada, constante dos n°s 7, 9, 10, 11, 13, 14 e 17 ser alterada, de acordo com o referido na parte 11.3., supra.
D)
Levando em linha de conta tais alterações, não pode o dispositivo da douta sentença subsistir, pois que os valores disponibilizados pelo A. à R. não consistiram em empréstimos, pelo que deverá a R. ser absolvida do pedido.
E)
 
Mesmo que assim se não entenda, nem por isso o decidido na douta sentença deve subsistir, pois que o A. não alega, pelo que não prova, os elementos e termos do alegados contratos de mútuo.
F)
De facto, o A. assume que se tratou de mútuos, e que, por não respeitarem a forma legalmente prescrita, são nulos por falta de forma.
G)
Daí, retira a conclusão de que a tal nulidade tem como consequência que o "mutuário" deve restituir os valores recebidos, sem mais, e unicamente porque tal desiderato legal assim o impõe.
H)
No entanto, não basta tal alegação e constatação, sendo ainda imprescindível alegar e provar os termos e condições do(s) alegado(s) contrato(s) de mútuo, segundo o regime legal da repartição do ónus da prova.
I)
Não tendo o A. cumprido tais requisitos legais, não pode dar-se como provada a existência de qualquer mútuo, o que tem como consequência necessária a absolvição da R. do pedido.
J)
Seja porque a matéria dada como provada não leva à conclusão da existência de qualquer mútuo, seja porque o A. não satisfez o ónus da prova a que estava obrigado, sempre a R. deveria ser absolvida do pedido. K)
 
Consequentemente, a douta sentença em apreço violou, entre outras, as disposições contidas nos art°s 1.142°; 220°; 342°, n° 1; e 473°, todos do C. Civil. […]».
Terminou pugnando pela procedência do recurso, com revogação da sentença recorrida e a sua absolvição do pedido. * II - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho2, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B35863).
Assim, as questões a solucionar resumem-se a saber se é de alterar a matéria de facto em que se fundou a decisão recorrida e se, face à matéria de facto a considerar como provada, é de entender como correcta a condenação proferida pelo Tribunal “a quo”, ou, ao invés, é de absolver a Ré do pedido;
*
 
III - A) - Na sentença da 1.ª Instância, a decisão proferida quanto à matéria de facto foi a seguinte:
«[…] Com relevância para a presente Decisão, resultam provados os seguintes factos:

1. No decurso dos anos 1977 a 1993, o autor conheceu a ré em França.

2. No período temporal acima referido, a ré encontrava-se emigrada em França.

3. O autor trabalhou para uma companhia de seguros; sendo que, assim, conheceu a ré enquanto cliente de tal seguradora. 4. No ano de 2016, faleceu CC, esposa do autor.
5. Após tal decesso, embora em data não concretamente apurada, o autor e ré reencontraram-se na casa do irmão desta, em França. 6. Encontrando-se o autor magoado pela morte de CC, o mesmo perguntou à ré se poderia passar a viver em Portugal.
7. No ano de 2017, o autor passou a habitar em casa da ré, sita em ..., ....
8. Sem falar português, foi a ré que ajudou o autor nas traduções e nos contactos com as autoridades portuguesas, obtendo-lhe o respectivo número de identificação fiscal e contribuindo para que o mesmo procedesse a abertura de conta bancária em Portugal (cfr. respectivos “Contrato de Abertura de Conta de Depósito Bancário e Prestação de Serviços”, a fls. 7, e “Ficha de Autorizações”, a fls. 7 verso, ambos juntos como parte integrante do documento n.° 1 da PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).

 
9. Após alguns meses de coabitação, a ré começou a pressionar o autor, pedindo-lhe dinheiro para a compra dum apartamento em França.
10. Assim, a ré dizia que tal apartamento iria ficar em nome de ambos, autor e ré, de forma a poderem ter um local próprio para se alojarem aquando das suas deslocações a França e onde a filha da ré - DD -, também aí emigrante, pudesse habitar.
11. No âmbito e com o propósito referido no ponto anterior, no dia 15-01-2018 o autor efectuou uma transferência bancária tendo como destino conta titulada pela ré, no montante de € 240.000,00 (cfr. respectiva “Ordem Transferência”, a fls. 8, junta como parte integrante do documento n.° 1 da PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
12. A 01-6-2018, o autor procedeu a outra transferência bancária para conta titulada pela ré, no valor de € 78.000,00 (cfr. respectiva “Ordem Transferência”, a fls. 8 verso, junta como parte integrante do documento n.° 1 da PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
13. A aludida quantia de € 78.000,00 fora destinada à compra da fracção autónoma identificada com a letra “C” de prédio sito na Rua ..., em ..., ... (cfr. o respectivo “Certificado Energético”, a fls. 9, junta como documento n.° 2 da PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
14. O autor ficou conhecedor de que o acima mencionado apartamento situado em ..., Rue ..., França e que seria para ficar na titularidade e
 
em nome do autor e da ré, fora adquirido pela filha desta - DD -. Tal informação foi obtida pelo autor após muito insistência com a ré.
15. A partir de então, o relacionamento entre o autor e a ré se degradou.
16. O autor deixou Portugal e voltou a residir em França.
17. O autor exigiu à ré a devolução dos valores acima referidos, em singelo.
18. A ré não procedeu à devolução de tais valores.
19. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da escritura pública outorgada a 13¬7-2018, junta como documento n.° 1 da contestação (fls. 15 a 17). O objecto da referida escritura pública respeita à formalização da aquisição, pela ré, da fracção autónoma identificada com a letra "A” do prédio descrito na ... CRP ... ...68/....
20. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da escritura pública outorgada a 28-8-2018, junta como documento n.° 2 da contestação (fls. 17 verso a 19). O objecto da referida escritura pública respeita à formalização da aquisição, pelo autor, da fracção autónoma identificada com a letra “C” do prédio descrito na ... CRP ... ...68/....
21. Autor e ré estiveram presentes na outorga de ambas as escrituras públicas acima referidas; sendo que uma de tais fracções seria destinada a constituir residência, enquanto a outra fracção autónoma configuraria um meio de obter rendimentos.
22. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da escritura pública outorgada a 28-8-2018, com a epígrafe “Testamento de
AA”, junta como documento n.° 3 da contestação
 
(fls. 19 verso a 20 verso). Em síntese, através da referida escritura pública o autor declarou legar à ré a fracção autónoma identificada com a letra “C”, a qual consta acima melhor identificada no ponto 20.
23. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da certidão da escritura pública outorgada a 03-9-2018, junta pelo autor com o seu requerimento de 30-1-2023 (fls. 47 e 48). Em síntese, através da referida escritura o autor revogou o testamento acima identificado no ponto 22 dos factos provados. O autor procedeu à outorga da aludida revogação sem que a ré soubesse.
24. O autor dirigiu bilhetes ou pequenas mensagens escritas à ré, sendo que aqui se considera integralmente reproduzido o teor de tais mensagens manuscritas, as quais foram juntas pela ré através do requerimento de 13-1-2023 (fls. 44 e 44 verso) e no decurso do depoimento da mesma no âmbito da audiência de julgamento.
Aspectos não provados.
Com relevância para a boa Decisão da causa, e sem prejuízo da factualidade acima dada como provada, resultam como não provados quaisquer outros aspectos alegados nos articulados e acima não indicados, nomeadamente:

a) Que, mercê do relacionamento acima expresso nos factos provados, o autor, ao longo dos anos de 1977 a 1993, tenha por diversas vezes ajudado a ré, nomeadamente na obtenção de documentos junto das autoridades administrativas francesas.

b) Que o autor tivesse autorizado a ré a habitar durante cerca de dois anos, graciosamente, num seu pequeno apartamento, sito em 46, Avenue ..., ..., França.

 

c) Que, ao saber do decesso da mulher do autor, a ré o tenha procurado, para lhe apresentar condolências.

d) Que tivesse sido a ré a propor ao autor que o mesmo passasse a residir em Portugal.

e) Que tivesse sido a degradação do relacionamento entre o autor e a ré - acima exposto no ponto 15 dos factos provados - que tivesse levado àquele a deixar Portugal.

f) Que a exigência de devolução da totalidade do capital, acima expressa no ponto 17 dos factos provados, tivesse sido imediata.

g) Que o autor tivesse sugerido à ré que a filha desta adquirisse um apartamento em França - acima referido no ponto 14 dos factos provados -; e que tivesse dito que contribuiria com um valor até ao montante de € 280.000.

h) Que o autor tivesse dito que o apartamento situado em França seria utilizado pelo mesmo autor, pela ré e por DD.

i) Que a ré tivesse ajudado o autor a receber uma herança aberta na Suíça, relativa a sobrinho deste, e cujo valor ascendesse a mais de € 800.000,00.

j) Que os valores acima indicados nos pontos 11 e 12 dos factos provados tivessem o propósito de compensar a ré, por alegadas ajudas prestadas a favor do autor, bem como pelo apoio emocional que lhe foi disponibilizado após o falecimento de CC.».

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B) – De acordo com o disposto no artº 1142º do Código Civil (CC), “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.”.
 
O artº 1143º do CC preceitua que: “Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a (euro) 25 000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a (euro) 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário.”.
Nos termos do art.º 220º do Código Civil “a declaração negocial que careça de forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”. 
O acima citado preceito, consagra, pois, como regra, a solução que considera as formalidades legais da declaração como formalidades “ad substantiam”, ou seja, formalidades exigidas sob pena de nulidade do negócio.
E a consequência da nulidade do mútuo, por falta de forma, é a restituição, pelo mutuário, ao mutuante, de tudo o que tiver sido prestado (artº 289º nº 1 do CC).
Como parece evidente a declaração da nulidade do mútuo por inobservância da forma legal e a respectiva consequência, pressupõem a prova de um contrato de mútuo.
Efectivamente, “Não consentindo a matéria de facto provada caracterizar um contrato de mútuo, não se verificando os requisitos que permitam a sua subsunção ao conceito definido no art.º 1142 do CC, prejudicada fica a questão da sua nulidade pela falta de forma, a qual pressupõe, obviamente, que se possa afirmar que foi celebrado entre as partes um contrato desse tipo.” (sumário do Acórdão do STJ, de 11/05/1999, Revista n.º 225/99 - 1.ª Secção)4.
Ora, para que se entenda estar-se perante um contrato de mútuo necessário é que se possa afirmar existir um acordo em que “…o mutuante se obriga a restituir igual quantidade de pecunia
 
recebida ou de coisas da mesma natureza e qualidade das res mutuadas” (A. Santos Justo, Manual dos Contratos Civis”, Vertentes Romana e Portuguesa, Petrony Editora, 2017, pág. 354).
Veja-se o que se escreveu no Acórdão da Relação do Porto, de 24/09/2018, Apelação nº 552/15.0T8FLG.P15: “…o contrato de mútuo para a sua conclusão e perfeição supõe dois elementos constitutivos, quais sejam: 
i) a entrega de uma coisa fungível ou de dinheiro por parte do mutuante, sendo que sem essa entrega (datio rei) por parte do mutuante não será possível ter-se como existente o contrato de mútuo típico, mas quando muito uma promessa de mútuo […];  ii) a obrigação de restituir outro tanto do mesmo género do que foi recebido, nomeadamente, quando está em causa o mútuo de dinheiro, a mesma quantia que foi entregue, acrescida de eventual remuneração. Esta última obrigação mostra-se essencial ao mútuo, quer ao mútuo oneroso, quer ao mútuo gratuito, destinando-se a reequilibrar a situação patrimonial das partes, colocando-as na situação em que se encontravam ao tempo da conclusão do negócio.
Esta obrigação corresponderá, assim, a uma obrigação pecuniária, quando tiver sido recebida uma quantia em dinheiro ou uma obrigação genérica no caso contrário, correspondendo sempre o género àquele da prestação recebida. […]».
Por outro lado, salientou-se no Acórdão desta Relação de Coimbra, de 29/06/2010, Apelação nº 749/08.0TBTMR.C1: «[…] Como é consabido, sobre o autor impende o ónus da prova dos elementos constitutivos do direito que invoca e que judicialmente pretende ver tutelado. 
 
Sendo que, caso não cumpra tal ónus, ou mesmo em caso de dúvida, a questão é decidida contra si – artºs 342º e 346º do CC.
Nesta conformidade não basta que o demandante, invocando como causa petendi da sua pretensão, um mútuo ou empréstimo, prove apenas a entrega.
Incumbe-lhe ainda convencer da obrigação de restituição.
Pois que só assim se delineia e consubstancia e perfecciona tal contrato. Sendo que outros fundamentos ou fitos podem estar subjacentes à efectivação da simples entrega, a saber: animus donandi, pagamento, compensação, etc […]».
E foi este, também, o entendimento seguido no citado Acórdão da Relação do Porto de 24/09/2018, onde se pode ler:
«[…] não basta que o demandante, invocando como causa petendi da sua pretensão, um mútuo ou empréstimo, prove apenas a entrega de determinado montante pecuniário; Incumbe-lhe ainda demonstrar a obrigação de restituição a cargo do demandado, pois que só assim se perfecciona o contrato de mútuo que lhe serve de fundamento.
Se fizer prova destes dois elementos constitutivos a acção procede; se o não fizer, a acção tem de improceder.
(…) não basta ao demandante demonstrar a deslocação patrimonial, sendo ainda mister demonstrar que nos termos convencionados essa deslocação patrimonial tinha que ser revertida, isto é, que o demandado estava obrigado a restituir a quantia mutuada, acrescida da eventual remuneração pela disponibilidade do capital.
Em idêntico sentido refere-se no AC STJ de 19.02.2009 que “a falta de prova da celebração de um contrato de mútuo impede a condenação na restituição do capital com fundamento em nulidade por falta de forma,
 
já que também tem de ser provado o título com que o dinheiro foi entregue ou passou a ser detido”, ou seja, que, nos termos convencionados (título ou causa), esse dinheiro teria que ser restituído pela parte que o recebeu, pois que só assim, como se expôs, se pode ter por verificado um contrato de mútuo. […]”.[…]».
Ora, no caso “sub judice”, não só não se encontra provado, ou, sequer, alegado, que tivesse havido qualquer acordo entre Autor e Ré, mediante o qual esta teria de restituir àquele as quantias de 240.000,00 € e de 78.000,00 €, a que montaram as transferências efectuadas a favor da Ré, respectivamente, em 15/1/2018 e em 1/6/2018, como, da matéria de facto, resulta provado que essas transferências visavam dotar a Ré de verbas para a mesma adquirir imóveis, para benefício de ambos, segundo alegou, o Autor, julgar nessa na altura.
Portanto, a própria alegação do Autor afasta a existência de acordo no sentido de a Ré restituir os referidos valores que foram transferidos a favor desta em 15/1/2018 e em 1/6/2018.
A conclusão a extrair, pois, é a de que da factualidade assente não resulta ter sido firmado o invocado mútuo, pelo que não é possível fazer apelo à inobservância de forma legal de tal contrato e à restituição que caberia fazer nessa situação, à sombra o disposto nos artºs 1143º, 220º e 289º nº 1, todos do CC.
Efectivamente, não provados os elementos que permitiriam afirmar que entre a Autor e a Ré se havia celebrado o contrato de mútuo à sombra do qual teriam ocorrido as referidas transferências, não provou, o Autor, como era seu ónus, um facto constitutivo do direito que invocava (art.º 342º, nº 1, do CC), ficando sem base de
 
sustentação, quer a peticionada declaração de nulidade6, quer o pedido de restituição formulado contra a Ré.7
Saliente-se que a falta de prova do contrato de mútuo não significa prova da inexistência de qualquer acordo entre as partes, ou falta de causa justificativa para a entrega à Ré das quantias transferidas a seu favor.
Assim, sem necessidade, sequer, de entrar na verificação dos respectivos pressupostos, resta acrecentar que a restituição fundada no enriquecimento sem causa foi causa de pedir em que o Autor não estribou (subsidiariamente) os seus pedidos, não podendo, pois, ser ponderada por esta Relação (cfr. artºs 264.º, nºs 1 e 2, 1ª parte, e 664.º,
2.ª parte, ambos do CPC).8
Do exposto resulta a inutilidade da alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, peticionada pela Apelante e cuja apreciação fica, assim, prejudicada.
A acção improcede, pois, pelo que importa revogar a sentença recorrida e absolver a Ré dos pedidos. * IV - Decisão:
 
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, julgando a Apelação procedente, revogar a sentença recorrida e absolver a Ré dos pedidos.
 
O Autor/Apelado suportará as custas do recurso e os da 1ª
Instância (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).
 
 
23/1/20249
 
(Falcão de Magalhães)
(Cristina Neves)
(Luís Ricardo)
 
 
                                                 
1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2 Só se utilizará a sigla “CPC” para referir o código pretérito, ou, excepcionalmente, nos casos em que transcrevemos texto onde essa sigla foi já utilizada para identificar o novo Código de Processo Civil.
3 Consultáveis no endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ que adiante se citarem sem referência de publicação.
4 Acessível, tal como os restantes sumários de Acórdãos do STJ, que vierem a ser citados sem referência de publicação, em https://www.stj.pt/?page_id=4471.  
5 Os Acórdãos e decisões sumárias dos Tribunais da Relação, que sejam citados sem referência de publicação, poderão ser consultados:
- Os da Relação de Coimbra, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase
- Os da Relação de Lisboa, em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase
- Os da Relação do Porto, em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase - Os da Relação de Évora, em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf?OpenDatabase
- Os da Relação de Guimarães, em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf?OpenDatabase
6 Cfr., quanto à necessidade da prova do contrato de mútuo, no caso de se invocar a nulidade deste, por inobservância da forma legal, o Acórdão do STJ, de 09/06/2005 (Revista nº 2102/04), assim sumariado: «I - Não pode proceder a acção de restituição da quantia emprestada, a qual tem como causa de pedir factos integradores de mútuo nulo por inobservância da forma legal, em face da falta da prova do mútuo, cujo ónus compete ao A. alegadamente mutuante (art.º 342, n.º 1, do CC).».
  Cfr., focando a falta de prova dos elementos caracterizadores do contrato, o Acórdão do STJ de 07/07/2010 (Revista n.º 147/06.0TBMCN.P1.S1 - 7.ª Secção), assim sumariado na parte que ora releva:« I - A simples emissão e entrega de um cheque não configura por si mesmo a existência de um contrato de mútuo. II - Para que no caso dos autos se pudesse inferir que a emissão do cheque configurava um contrato de mútuo, tornava-se necessário demonstrar, como alegou, que acordara com o réu o pagamento das quantias e com juros compensatórios. III - Não tendo ficado provada essa causa de pedir em todo o seu contexto factual alegado, em que se condensava a causa de pedir formulada na acção, o contrato de mútuo da quantia em dinheiro através da emissão e entrega do cheque não se demonstra.».
Cfr. t.b., em sentido idêntico, o Acórdão do STJ de 07/10/2010 (Revista n.º 451/2001.L1.S1 - 7.ª Secção), em cujo sumário se pode ler: «II - Ao autor incumbe o ónus da prova dos elementos constitutivos do direito a que  
                                                                                                                                                        
se arroga, ou seja, tendo alegado a celebração de um contrato de mútuo, sobre ele impende a obrigação de alegar e provar os factos integradores dos elementos constitutivos de tal negócio jurídico.».
Cfr. t.b., sobre o ónus da prova do contrato de mútuo, o Acórdão desta Relação, de 20/06/2000 (Apelação nº 1310/2000), sumariado em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.
7 Cfr., focando a falta de prova dos elementos caracterizadores do contrato, o Acórdão do STJ de 07/07/2010 (Revista n.º 147/06.0TBMCN.P1.S1 - 7.ª Secção), assim sumariado na parte que ora releva:« I - A simples emissão e entrega de um cheque não configura por si mesmo a existência de um contrato de mútuo. II - Para que no caso dos autos se pudesse inferir que a emissão do cheque configurava um contrato de mútuo, tornava-se necessário demonstrar, como alegou, que acordara com o réu o pagamento das quantias e com juros compensatórios. III - Não tendo ficado provada essa causa de pedir em todo o seu contexto factual alegado, em que se condensava a causa de pedir formulada na acção, o contrato de mútuo da quantia em dinheiro através da emissão e entrega do cheque não se demonstra.».
Cfr. t.b., em sentido idêntico, o Acórdão do STJ de 07/10/2010 (Revista n.º 451/2001.L1.S1 - 7.ª Secção), em cujo sumário se pode ler: «II - Ao autor incumbe o ónus da prova dos elementos constitutivos do direito a que se arroga, ou seja, tendo alegado a celebração de um contrato de mútuo, sobre ele impende a obrigação de alegar e provar os factos integradores dos elementos constitutivos de tal negócio jurídico.».
Cfr. t.b., sobre o ónus da prova do contrato de mútuo, o Acórdão desta Relação, de 20/06/2000 (Apelação nº 1310/2000), sumariado em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.
8 Cfr. o citado Acórdão do STJ, de 09/06/2005, assim sumariado, na parte que ora releva: «II - Estruturada única e objectivamente a acção na sobredita causa de pedir, improcederá também a pretensão deduzida somente na revista pelo autor vencido da restituição das quantias mutuadas por enriquecimento sem causa do mutuário, até porque no caso vertente não se lograram demonstrar os respectivos requisitos.».
Cfr. tb., com ampla citação de jurisprudência, o Acórdão da Relação de Lisboa de 7/11/2019, Apelação nº
3922/17.6T8CSC.L1-2, consultável em https://outrosacordaostrp.com/2019/11/07/ac-do-trl-de-07-11-

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 Processado e revisto pelo Relator.