Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0433/13
Data do Acordão:04/17/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:MANIFESTAÇÕES DE FORTUNA
ÂMBITO TEMPORAL
PRESUNÇÃO
Sumário:I - Saber se uma concreta questão admite ou não a produção de determinado meio de prova constitui questão de direito, pelo que o facto de o recorrente suscitar o erro de julgamento da decisão judicial que indeferiu a produção de prova testemunhal com o fundamento na sua inadmissibilidade não determina a incompetência do Supremo Tribunal Administrativo em razão da hierarquia (cfr. arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do ETAF).
II - A determinação do rendimento com base na aquisição de um bem previsto na tabela do n.º 4 do art. 89.º-A da LGT só pode ser feita uma vez, relativamente ao ano em que se verificou ou em qualquer um dos três anos seguintes em que, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, falte a declaração de rendimentos ou se verifique a desproporção aí prevista, e não em todos esses anos.
Nº Convencional:JSTA00068213
Nº do Documento:SA2201304170433
Data de Entrada:03/15/2013
Recorrente:A... E OUTRO
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - REC JURISDICIONAL
Legislação Nacional:LGT ART89-A N4
Referência a Doutrina:JOÃO SÉRGIO RIBEIRO - TRIBUTAÇÃO PRESUNTIVA DO RENDIMENTO ... ALMEDINA 2010 PAG305-309.
JOÃO SÉRGIO RIBEIRO - ALGUMAS NOTAS ACERCA DAS MANIFESTAÇÕES DE FORTUNA - ESTUDOS EM MEMÓRIA DO PROF DR SALDANHA SANCHES VOLV PAG197-210 PAG208-210.
BAPTISTA MACHADO - INTRODUÇÃO AO DIREITO E AO DISCURSO LEGITIMADOR ALMEDINA 1993 PAG182 PAG189.
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da decisão proferida no processo de recurso judicial n.º 2348/12.2BEPRT

1. RELATÓRIO

1.1 O Director de Finanças do Porto, ao abrigo do disposto no art. 89.º-A da Lei Geral Tributária (LGT) (Referimo-nos, aqui como adiante e na ausência de indicação em contrário à redacção dada àquele preceito pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2007). - (É à LGT que se referirão todas as disposições legais adiante referidas sem menção expressa do diploma de origem.), fixou o rendimento tributável de A……. e B……. (a seguir Contribuintes ou Recorrentes) dos anos de 2008, 2009 e 2010 (A AT, com base na mesma manifestação de fortuna e ao abrigo das mesmas disposições legais, fixou-lhes também o rendimento tributável do ano de 2007, mas esse acto não está em discussão nestes autos.) mediante avaliação indirecta.

1.2 Os Contribuintes recorreram para o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, a quem pediram a anulação daquele acto com os fundamentos, no que ora nos interessa (Os Contribuintes invocaram também outros fundamentos, que a sentença desatendeu, mas reagiram contra esta apenas quanto ao julgamento efectuado relativamente à possibilidade de a manifestação de fortuna em causa – aquisição de um prédio por preço superior a € 250.00 – servir de base à tributação por avaliação indirecta, cumulativamente, no ano em que ocorre e nos três anos seguintes.), de que (i) a Administração tributária (AT), porque utilizou a manifestação de fortuna em causa – aquisição de um imóvel por preço superior a € 250.000 num ano em que o rendimento declarado é inferior ao rendimento padrão – para presumir o rendimento tributável ocultado no próprio ano em que esta ocorreu, não podia utilizá-la para presumir rendimento tributável relativamente aos três anos seguintes e de que (ii) a AT violou os princípios do inquisitório e da verdade material por não ter efectuado as diligências que solicitaram em ordem a demonstrar os valores reais da aquisição. Apresentaram documentos e arrolaram testemunhas.

1.3 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto indeferiu a requerida produção de prova testemunhal e, do mesmo passo, proferiu sentença a julgar improcedente o recurso judicial. Para tanto, em resumo, considerou que, nos termos do n.º 4 do art. 89.º-A, porque os Contribuintes não fizeram a prova exigida pelo n.º 3 do mesmo artigo, «considera-se rendimento tributável em sede de IRS, no próprio ano e nos três seguintes, o rendimento padrão apurado nos termos da tabela»; que essa prova «teria de ser feita no âmbito do processo referente ao ano de 2007», sendo que os actos ora sindicados «são meros actos consequentes do acto de fixação operado com referência ao ano de 2007».

1.4 Os Contribuintes não se conformaram com a sentença e dela recorreram para este Supremo Tribunal Administrativo, apresentando com o requerimento de interposição do recurso a respectiva motivação, que resumiram em conclusões do seguinte teor:
«
1. A não inquirição das testemunhas arroladas pelos Recorrentes consubstancia uma inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso ao direito e por ofensa ao princípio do direito a um processo equitativo e por violação do princípio do inquisitório (art. 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa).

2. O indeferimento da audição das testemunhas arroladas pôs em causa a prova da matéria de facto alegada pelos Recorrentes, o que constitui violação do princípio do inquisitório e do contraditório.

3. A presunção a que alude o artigo 89.º-A da LGT só pode operar para o ano a que o facto aquisitivo diz respeito e não para quatro anos, sob pena de violação da não confiscatoriedade, uma violação do princípio da boa fé e uma violação do princípio da proporcionalidade.

Nestes termos, deve ser revogada a douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto […]».

1.5 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

1.6 Não foram apresentadas contra alegações.

1.7 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que deve ser declarada a incompetência do tribunal em razão da hierarquia para conhecer do recurso. Isto, em síntese, porque considera que «os recorrentes, como fundamento da sua pretensão, além do mais, nas conclusões 1 e 2, invocam que o tribunal recorrido, violando o princípio do inquisitório, não cumpriu com a obrigação da produção de prova testemunhal por si requerida e que consideram útil e necessária para a boa decisão da causa» e que, «[p]ortanto, os recorrentes pedem a apreciação da necessidade de diligências (produção de prova testemunhal) e a sua determinação, pelo que o recurso não tem por fundamento exclusivamente matéria de direito».

1.8 Dispensaram-se os vistos dos Juízes adjuntos, atento o carácter urgente do processo.

1.9 As questões que cumpre apreciar e decidir, a primeira suscitada pelo Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal Administrativo e as demais suscitadas pelos Recorrentes, são as de saber

·se este Supremo Tribunal Administrativo é competente em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso jurisdicional, o que, como veremos adiante, passa por indagar se no recurso foi suscitada questão de facto; na afirmativa,

·se a sentença recorrida fez correcta aplicação do direito quando considerou que a verificação de uma única manifestação de fortuna pode determinar a fixação da matéria tributável por métodos indirectos em quatro anos seguidos, quais sejam o ano em que se verificou a aquisição do bem que constitui essa manifestação e os três anos seguintes (cf. conclusão 3); na afirmativa,

·se a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto incorreu em erro de julgamento ao dispensar a prova testemunhal (cfr. conclusões 1 e 2).


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto procedeu ao julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«Factos provados com relevância para a decisão da causa:

1. A AT procedeu à avaliação indirecta dos rendimentos sujeitos a IRS, dos RRs, para o ano de 2007;

2.Tendo fixado o rendimento tributável, a enquadrar na categoria G, em € 52.140,00 (fls. 34);

3. Esta avaliação resultou na sequência da aquisição por parte dos RRs de um imóvel pelo preço de € 260.700,00;

4. Nesse ano de 2007, os RRS declararam um rendimento global de € 7.677,11;

5. Os recorrentes recorreram judicialmente daquele acto de fixação de rendimentos, dando origem ao processo n.º 2636/09.BEPRT (fls. 66 e ss.);

6. Que foi julgado parcialmente procedente;

7. A AT apresentou recurso da decisão do TAF do Porto;

8. Por acórdão do TCA-Norte, de 18.11.2010, foi o recurso da AT julgado procedente e revogada a sentença do TAF do Porto;

9. Com referência ao ano de 2008, os RRs declararam o rendimento global de € 8.058,56;

10. Com referência ao ano de 2009, os RRs declararam o rendimento global de € 8.230,44;

11. Com referência ao ano de 2010, os RRs declararam o rendimento global de € 8.324,86;

12. A AT notificou os recorrentes, para efeitos de audição prévia, do seu projecto de decisão sobre manifestações de fortuna, referente a IRS dos anos de 2008, 2009 e 2010, pretendendo fixar o respectivo rendimento tributável em €52.140,00 para cada ano (fls. 81 e ss.);

13. Os recorrentes apresentaram defesa, tendo requerido a notificação da sociedade vendedora para apresentar o comprovativo dos recebimentos efectivamente feitos por estes (fls. 97);

14. Por decisão do DF do Porto, de 29.09.2012, foi fixado, por métodos indirectos, dos rendimentos sujeitos a IRS, dos anos de 2008, 2009 e 2010, em € 52.140,00 para cada ano (fls. 106 e ss.);

15. Desse acto os recorrentes deduziram o presente recurso.


*

Factos não provados:

Com interesse para a decisão da causa não foram apurados».


*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

O Director de Finanças do Porto, perante a aquisição por A……. e B…….. de um imóvel, no ano de 2007 e pelo preço de € 260.700,00, e em face da desproporção superior a 50%, para menos, entre o rendimento declarado pelos Contribuintes para efeitos de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) desse ano (€ 7.677,11) e o rendimento padrão revelado por aquela aquisição em face da tabela do n.º 4 do art. 89.º-A (20% da manifestação de fortuna, ou seja, € 52.140,00), e considerando que os mesmos não tinham conseguido fazer a prova a que alude o n.º 3 do mesmo artigo, procedeu à fixação da matéria tributável em € 52.140,00, a enquadrar na categoria G do IRS, tudo nos termos do n.º 4 do citado art. 89.º-A e do art. 9.º, n.º 1, alínea d), do Código do IRS (CIRS).
Os Contribuintes recorreram judicialmente dessa decisão, nos termos do disposto no art. 146.º-B do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável ex vi dos n.ºs 7 e 8 do art. 89.º-A (Dizem os n.ºs 7 e 8 do art. 89.º-A da LGT, na redacção da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro (antes eram os n.ºs 6 e 7, do mesmo artigo):
«7 - Da decisão de avaliação da matéria colectável pelo método indirecto constante deste artigo cabe recurso para o tribunal tributário, com efeito suspensivo, a tramitar como processo urgente, não sendo aplicável o procedimento constante do artigo 91.º e seguintes.
8 - Ao recurso referido no número anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, a tramitação prevista no artigo 146.º-B do Código de Procedimento e de Processo Tributário».), mas sem êxito, uma vez que por acórdão de 18 de Novembro de 2010 da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte foi julgado integralmente improcedente o recurso judicial.
Com fundamento no trânsito em julgado dessa decisão e no facto de o rendimento declarado pelos Contribuintes para efeitos de IRS e para cada um dos anos de 2008, 2009 e 2010 ser inferior em mais de 50% relativamente àquele que considerou ser o rendimento padrão para cada um desses anos (20% do preço da referida aquisição, ou seja, € 52.140,00), o Director de Finanças do Porto, mediante a invocação do disposto nos arts. 87.º, alínea d), e 89.º-A, n.º 4, fixou-lhes o rendimento tributável para cada um daqueles anos de 2008 a 2010 em € 52.1400,00.
Os Contribuintes discordaram dessa fixação e recorreram judicialmente do acto do Director de Finanças do Porto que a determinou, pedindo ao Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto a anulação do mesmo.
Como fundamentos desse pedido invocaram, na parte que ora nos interessa considerar, que, com base na mesma aquisição de um bem, não é possível a fixação do rendimento tributável ao abrigo do art. 89.º-A relativamente a mais do que um ano. Ou seja, tendo a AT procedido à fixação do rendimento tributável por avaliação indirecta nos termos daquele preceito legal relativamente ao ano de 2007 com base na manifestação de fortuna evidenciada com a referida aquisição de um imóvel, já não podia utilizar o mesmo facto como suporte para a fixação do rendimento tributável pelo mesmo método relativamente a outros anos.
Os Contribuintes alegaram também que a AT violou os princípio do inquisitório e da verdade material ao não efectuar as diligências por ele solicitadas em ordem a demonstrar os valores reais do negócio.
Com a petição inicial apresentaram documentos e arrolaram testemunhas.
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto indeferiu a requerida produção da prova testemunhal e, do mesmo passo, (ou seja, proferindo sentença no mesmo momento), julgou o recurso improcedente. Sustentou na sentença, em resumo, que o n.º 4 do art. 89.º-A permite que se considere «rendimento tributável em sede de IRS, no próprio ano e nos três seguintes, o rendimento padrão apurado nos termos da tabela». Sustentou ainda que o contribuinte, relativamente a estes três anos seguintes, nem sequer pode fazer a prova a que alude o n.º 3 daquele art. 89.º-A, uma vez que tal prova só pode ser efectuada no processo referente ao ano em que se verificou a manifestação de fortuna, sendo que os actos de fixação do rendimento tributável nos três anos seguintes não são mais do actos consequentes do acto de fixação relativamente àquele ano (Note-se que na tese da AT não há sequer que possibilitar ao sujeito passivo, relativamente a cada um desses três anos seguintes e nos termos do n.º 3 do art. 89.º-A, a demonstração de rendimentos de outras origens, ou seja, não se lhe permite demonstrar que, nesses períodos, teve outros rendimentos não sujeitos a declaração e que permitiriam a manifestação de fortuna em causa.).
Os Contribuintes recorreram dessa sentença para este Supremo Tribunal Administrativo. Insistem na tese de que, com base numa única aquisição que seja considerada relevante enquanto manifestação de fortuna, o art. 89.º-A apenas permite a fixação do rendimento tributável por avaliação indirecta num único ano.
Sustentam também que a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto incorreu em erro de julgamento ao indeferir a produção de prova testemunhal requerida pelos Contribuintes.
O Procurador-Geral Adjunto suscitou a questão da incompetência em razão da hierarquia deste Supremo Tribunal Administrativo para conhecer do recurso, com o fundamento de que este não tem por fundamento exclusivamente matéria de direito, uma vez que os Recorrentes «pedem a apreciação da necessidade de diligências (produção de prova testemunhal) e a sua determinação».
Assim, as questões a apreciar e decidir são as que deixámos enunciadas em 1.9.

2.2.2 DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL EM RAZÃO DA HIERARQUIA

Cumpre iniciar a apreciação do recurso pela questão da competência, sabido que é questão de ordem pública e prioritária em relação a qualquer outra (cfr. art. 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro). Cumpre, designadamente, aferir a competência em razão da hierarquia, cuja falta determina a incompetência absoluta do tribunal, que é do conhecimento oficioso e pode ser arguida até ao trânsito em julgado da decisão final (cfr. art. 16.º do CPPT), como no caso o foi pelo Ministério Público.
Nos termos do disposto nos arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e no art. 280.º, n.º 1, do CPPT, a competência para conhecer dos recursos das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância em matéria fiscal é da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo quando os recursos tenham por exclusivo fundamento matéria de direito, constituindo uma excepção à competência generalizada dos tribunais centrais administrativos, aos quais cabe conhecer «dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26.º» [art. 38.º, alínea a), do ETAF].
Assim, para aferir da competência em razão da hierarquia do Supremo Tribunal Administrativo, há que olhar para as conclusões da alegação do recurso e verificar se as questões controvertidas por elas suscitadas se resolvem mediante uma exclusiva actividade de aplicação e interpretação de normas jurídicas, ou se, pelo contrário, implicam a necessidade de dirimir questões de facto, seja por insuficiência, excesso ou erro, quanto à matéria de facto provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, seja porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, seja ainda porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos (Vide, entre outros, os acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
– de 16 de Dezembro de 2009, proferido no processo com o n.º 738/09, publicado no Apêndice ao Diário da República de 19 de Abril de 2010 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2009/32240.pdf), págs. 2052/2057, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/faa144134d6efbf5802576a30041135b?OpenDocument;
– de 21 de Abril de 2010, proferido no processo com o n.º 189/10, publicado no Apêndice ao Diário da República de 30 de Março de 2011 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2010/32220.pdf), págs. 670/674, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8445188eb602055b80257711005292ba?OpenDocument.).
No caso sub judice, o Procurador-Geral Adjunto sustenta a invocada incompetência em razão da hierarquia com a alegação de que os Recorrentes, «como fundamento da sua pretensão, além do mais, nas conclusões 1 e 2, invocam que o tribunal recorrido, violando o princípio do inquisitório, não cumpriu com a obrigação da produção de prova testemunhal por si requerida e que consideram útil e necessária para a boa decisão da causa» e que, «[p]ortanto, os recorrentes pedem a apreciação da necessidade de diligências (produção de prova testemunhal) e a sua determinação, pelo que o recurso não tem por fundamento exclusivamente matéria de facto».
Salvo o devido respeito, não concordamos. É certo que inexiste obstáculo à possibilidade de os Recorrentes suscitarem no presente recurso a questão da legalidade do despacho que indeferiu a produção de prova testemunhal por eles requerida. Mesmo para quem sustente a necessidade de essa decisão ser objecto de recurso autónomo, a verdade é que os Recorrentes só com a notificação da sentença puderam dela tomar conhecimento, uma vez que a mesma não lhes foi notificada senão naquela ocasião, o que bem se compreende, uma vez que o despacho foi proferido quando da prolação da sentença e imediatamente antes desta. É também certo que a alegação que se reconduza à invocação da insuficiência da prova produzida constitui questão de facto.
Mas, a nosso ver e salvo o devido respeito, no caso está em causa, não a insuficiência da prova produzida nos autos, mas a admissibilidade da produção de prova testemunhal. Na verdade, a questão em causa reconduz-se a saber se, em sede do recurso judicial em que se discute a legalidade da actuação da AT, ao pretender que, verificada a aquisição de um bem que a lei considere manifestação de fortuna relevante, é permitida a fixação do rendimento tributável, não só relativamente ao ano em que ocorreu essa aquisição, como também nos três anos seguintes (no pressuposto, obviamente, de que o rendimento declarado em todos eles não atinge 50% do rendimento padrão legalmente fixado).
O problema de saber se para dirimir uma concreta questão se admite ou não a produção de determinado meio de prova resolve-se mediante uma actividade exclusiva de aplicação e interpretação de normas jurídicas, designadamente as que regulam a prova e o meio processual utilizado e, eventualmente, a conformidade destas com as regras constitucionais, maxime as da tutela jurisdicional efectiva, designadamente na sua vertente do acesso ao direito, ou seja, constitui questão de direito.
Assim, o facto de o recorrente suscitar o erro de julgamento da decisão judicial que indeferiu a produção de prova testemunhal com o fundamento na sua inadmissibilidade não determina a incompetência do Supremo Tribunal Administrativo em razão da hierarquia.

2.2.3 DA POSSIBILIDADE DE FIXAR O RENDIMENTO TRIBUTÁVEL AO ABRIGO DO N.º 4 DO ART. 89.º-A DA LGT E COM FUNDAMENTO NA MESMA MANIFESTAÇÃO DE FORTUNA RELATIVAMENTE A MAIS DE UM ANO

Estabelecida que ficou judicialmente a legalidade da actuação da AT ao proceder à fixação do rendimento tributável do ano de 2007 por avaliação indirecta nos termos do art. 89.º-A (Como resulta do que deixámos já dito e da matéria de facto consignada na sentença recorrida sob os n.ºs 1 a 8.), a questão que ora se nos coloca é exclusivamente a de saber se, com base na concreta manifestação de fortuna evidenciada (a compra pelos ora Recorridos de um imóvel pelo preço de € 260.700,00 quando o rendimento por eles declarado no ano da aquisição para efeitos de IRS foi de € 7.677,11), é legítima a actuação da AT, de, com base nessa mesma manifestação de fortuna e ao abrigo daquela norma legal, proceder à fixação do rendimento tributável dos anos de 2008, 2009 e 2010, sendo que também em relação a cada um destes anos os rendimentos declarados pelos Contribuintes revelam uma desproporção superior a 50%, para menos, relativamente ao rendimento padrão resultante da tabela prevista no n.º 4 daquele artigo 89.º-A.
Recordemos aqui a redacção do art. 89.º-A, na redacção que nos importa considerar, que é a da Lei do Orçamento do Estado para 2007 (Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro):

«1- Há lugar a avaliação indirecta da matéria colectável quando falte a declaração de rendimentos e o contribuinte evidencie as manifestações de fortuna constantes da tabela prevista no n.º 4 ou quando o rendimento líquido declarado mostre uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão resultante da referida tabela.

2 - Na aplicação da tabela prevista no n.º 4 tomam-se em consideração:

a) Os bens adquiridos no ano em causa ou nos três anos anteriores pelo sujeito passivo ou qualquer elemento do respectivo agregado familiar;

b) Os bens de que frua no ano em causa o sujeito passivo ou qualquer elemento do respectivo agregado familiar, adquiridos, nesse ano ou nos três anos anteriores, por sociedade na qual detenham, directa ou indirectamente, participação maioritária, ou por entidade sediada em território de fiscalidade privilegiada ou cujo regime não permita identificar o titular respectivo.

c) Os suprimentos e empréstimos efectuados pelo sócio à sociedade, no ano em causa, ou por qualquer elemento do seu agregado familiar.

3 - Verificadas as situações previstas no n.º 1 deste artigo, bem como na alínea f) do artigo 87.º, cabe ao sujeito passivo a comprovação de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna ou o acréscimo de património ou o consumo evidenciados.

4 - Quando o sujeito passivo não faça a prova referida no número anterior relativamente às situações previstas no n.º 1 deste artigo, considera-se como rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, no ano em causa, e no caso das alíneas a) e b) do n.º 2, nos três anos seguintes, quando não existam indícios fundados, de acordo com os critérios previstos no artigo 90.º, que permitam à administração tributária fixar rendimento superior, o rendimento padrão apurado nos termos da tabela seguinte:

    Manifestações de fortuna
Rendimento padrão
Imóveis de valor de aquisição igual ou superior a € 250.00020% do valor de aquisição.
Automóveis ligeiros de passageiros de valor igual ou superior a € 50.000 e motociclos de valor igual ou superior a € 10.000.50% do valor no ano de matrícula com o abatimento de 20% por cada um dos anos seguintes.
Barcos de recreio de valor igual ou superior a € 25.000Valor no ano de registo com o abatimento de 20% por cada um dos anos seguintes.
Aeronaves de TurismoValor no ano de registo com o abatimento de 20% por cada um dos anos seguintes.
Suprimentos e empréstimos feitos no ano de valor igual ou superior a € 50 00050% do valor anual
[…]».

Prima facie, numa interpretação muito cingida à letra da lei, poderia retirar-se do texto o sentido de que o n.º 4 do art. 89.º-A legitima a actuação da AT posta em causa no recurso judicial: na verdade, a redacção daquela norma parece autorizar a interpretação de que, verificada que seja uma concreta aquisição de bens constantes da tabela aí prevista, caso o sujeito passivo não justifique (Por facilidade de exposição, vamos usar a expressão justificar com o sentido de demonstração da origem ou fonte dos valores aplicados na aquisição dos bens que constituem as manifestações de fortuna e da não obrigatoriedade da declaração desses valores como rendimentos para efeitos de tributação em IRS.) a desproporção a que a lei confere relevância relativamente ao rendimento declarado no ano da aquisição, permitirá a presunção de rendimentos, cumulativamente, no ano em que se verificou a aquisição e nos três anos seguintes.
Mas, a nosso ver e salvo o devido respeito por opinião contrária, não é essa a melhor interpretação da lei, sendo que na tarefa hermenêutica, o elemento literal, constituindo ponto de partida e limite para extrair o sentido da norma (Com a função de «eliminar aqueles sentidos que não tenha qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei» (BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, págs. 182 e 189).), não constitui o elemento decisivo, nem sequer o mais importante, papel que está reservado à «unidade do sistema», nos termos do n.º 2 do art. 9.º do Código Civil.
Na verdade, na interpretação da lei, para além do referido elemento gramatical, há ainda que atender ao elemento lógico, exigindo este, designadamente, que se considere o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma (elemento teleológico) e que se atente nas demais disposições que regulam as manifestações de fortuna, designadamente a fim de perscrutar a sua natureza e o seu âmbito temporal de relevância, e atender ao lugar que aí ocupa a norma interpretanda (elemento sistemático), sendo que apenas da conjugação de todos esses elementos interpretativos surgirá o verdadeiro sentido daquela norma (Cfr. BAPTISTA MACHADO, Idem, págs. 175 a 192.).
Vejamos:
De acordo com o n.º 2 do art. 89.º-A, a tabela do n.º 4 do mesmo artigo aplica-se aos bens que nela estão previstos e estejam na disposição do sujeito passivo, quer tenham sido adquiridos no ano relativamente ao qual a AT pretende reportar a manifestação de fortuna quer tenham sido adquiridos nos três anos anteriores.
Como bem salienta JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, cuja tese quanto à aplicação da tabela do art. 89.º-A subscrevemos (Vide
– JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, Tributação Presuntiva do Rendimento – Um Contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Colectável, Almedina, Abril 2010, págs. 305 a 309;
– JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, Algumas Notas Acerca das Manifestações de Fortuna, Estudos em Memória do Professor Doutor J.L. Saldanha Sanches, volume V, págs. 197 a 210, maxime págs. 208 a 210.) e que, com a devida vénia, seguiremos de perto, quando não transcrevermos, «[e]m princípio, a aquisição do bem é tomada em consideração, para a verificação de uma eventual discrepância entre os rendimentos declarados e o rendimento padrão constante da tabela, no próprio ano em que essa aquisição se verificou». No entanto, logo dá conta dos motivos – combate à evasão fiscal – que levaram o legislador a permitir que se presumam rendimentos com base na manifestação de fortuna nos três anos seguintes ao da aquisição: «se a relevância da aquisição do bem susceptível de ser considerado manifestação de fortuna se limitasse ao ano em que foi adquirido, bastaria, ao sujeito passivo que tivesse a intenção de praticar a evasão fiscal, declarar, nesse ano, um rendimento que não estivesse desfasado do rendimento padrão resultante da aplicação da tabela, podendo nos anos seguintes declarar rendimentos ostensivamente baixos, sem que a Administração Fiscal algo pudesse fazer [no âmbito da presunção do art. 89.º-A] para a isso obstar».
Por isso, o legislador entendeu permitir que se presumam rendimentos com base na aquisição de bens, não só no ano em que se efectuou a aquisição, como nos três anos seguintes, sendo que a essa possibilidade também não será alheia a intenção de precaver as situações em que, à data em que é detectada a aquisição que constitui manifestação de fortuna, a AT já não pode efectuar a liquidação relativamente ao ano em que a mesma se verificou por já ter caducado o respectivo direito (cfr. art. 45.º).
Mas, como taxativamente refere o citado Autor, «a presunção só pode ser feita uma vez, e não em vários anos».
Era também esse o entendimento da jurisprudência nos casos (poucos, tanto quanto sabemos) em que a AT, com base numa mesma aquisição que a lei releva como manifestação de fortuna e apoiando-se no n.º 2 do art. 89.º-A, entendeu presumir, cumulativamente, rendimentos relativamente a mais do que um ano (Cfr. os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte, proferidos no âmbito da redacção do n.º 4 do art. 89.º-A anterior à que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro:
– de 26 de Janeiro de 2006, proferido no processo n.º 1198/05.7BEVIS, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/74dd6faf5b7e0fda8025710a003ae792?OpenDocument;
– de 25 de Janeiro de 2007, proferido no processo n.º 636/06.0BECBR, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/41a7cc2b85e7c2de8025728a0050f7e9?OpenDocument,
sendo que neste a questão não foi apreciada, mas nele se dá conta de que a sentença recorrida rejeitou a tese da AT e, nessa parte, transitou em julgado;
– de 23 de Abril de 2009, proferido no processo n.º 615/07.6BECBR, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/f780a1dc8f8c3e23802575a7002d5bf1?OpenDocument.).
É certo que o inciso «e no caso das alíneas a) e b) do n.º 2, nos três anos seguintes» resultante da nova redacção dada ao n.º 4 do art. 89.º-A pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2007), suscita algumas dúvidas, uma vez que, na redacção anterior, não havia uma referência expressa à possibilidade de enquadrar o rendimento presumido através das manifestações de fortuna constantes da tabela nos três anos anteriores.
Mas, como adverte JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, «essa ideia já resultava do n.º 2, sem prejuízo de a contagem ser aí feita a partir do ano sujeito à inspecção, em direcção ao ano de aquisição, e agora, de acordo com o actual n.º 4 do artigo 89.º-A da LGT, a contagem se fazer a partir do momento de aquisição para o momento em que se pretende dar relevância à detenção do bem» e «o resultado é o mesmo, dado que as disposições constituem o reflexo uma da outra», ou seja, dizer que «para a detenção de um bem ser relevante, ele deve ter sido adquirido no ano em causa, ou num dos três anos anteriores, é a mesma coisa que dizer que a detenção de um bem é relevante no ano em que foi adquirido e nos três anos seguintes», motivo por que, no que respeita a este aspecto, relativamente ao n.º 2 o n.º 4 do art. 89.º da LGT não traz nada de novo.
Diz a primeira norma que «[n]a aplicação da tabela prevista no n.º 4 tomam-se em consideração: a) Os bens adquiridos no ano em causa ou nos três anos anteriores».
Na segunda norma diz-se precisamente o mesmo: verificada uma situação que a lei considera manifestação de fortuna, se o sujeito passivo não justificar a origem dos rendimentos que a permitiram, considera-se o rendimento presumido (rendimento padrão, a menos que existam elementos que permitam a fixação em montante superior) como rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, no ano em causa, e no caso das alíneas a) e b) do n.º 2, nos três anos seguintes.
A nova redacção do n.º 4 do art. 89.º-A visou unicamente harmonizar essa norma com o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 2 no que se refere à possibilidade de a presunção de rendimentos operar relativamente ao ano de aquisição do bem e aos três anos seguintes. Ou seja, nas alíneas a) e b) do n.º 2 dizia-se que para efeitos do n.º 1 eram considerados os bens adquiridos nesse ano e nos três anos anteriores. Porém, o n.º 4, que tratava da determinação da matéria colectável, era omisso quanto ao ano em que podia operar a presunção, omissão que a nova redacção veio colmatar, limitando-se a explicitar quais os anos relativamente aos quais podia ocorrer a determinação da matéria tributável.
Mas, se a redacção dada a este n.º 4 não foi a mais feliz – seria preferível que o legislador, ao invés da conjunção copulativa e tivesse usado a conjunção disjuntiva ou –, a verdade é que nada permite a interpretação no sentido de que o legislador pretendeu admitir a presunção de rendimentos, cumulativamente, no ano em que se verificou a aquisição e nos três anos seguintes.
Tanto quanto sabemos, a jurisprudência sempre recusou a tese da AT, nas poucas vezes em que temos conhecimento de que esta efectuou a presunção de rendimentos com base numa única manifestação de fortuna relativamente a mais do que um ano (Neste sentido, para além dos arestos referidos na nota anterior, o recente acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte, este proferido já no âmbito dada ao n.º 4 do art. 89.º-A pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro:
– de 28 de Fevereiro de 2013, proferido no processo n.º 519/12.0BEPNF, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/dd486fb2cdd2598480257b26003c5117?OpenDocument.), e não vemos motivo algum para dela divergir.
Note-se que a tese sustentada pela AT, como bem salienta JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, que dá numerosos exemplos dos resultados anómalos a que a mesma conduz, acabaria por assumir um «carácter gravemente sancionatório e eventualmente confiscatório» e abalaria a natureza jurídica do mecanismo das manifestações de fortuna, que assentam numa presunção de rendimentos ocultados.
Na situação sub judice, em que a manifestação de fortuna evidenciada é a aquisição de um imóvel, o resultado a que se chegaria – rendimento padrão obtido ao longo dos quatro anos: 2007, 2008, 2009 e 2010 – seria de 80% do valor do imóvel (Note-se que, no caso da aquisição de outros bens, o rendimento presumido ao longo de quatro anos pode mesmo exceder o valor de aquisição.), ou seja, € 208.560,00, o que se afigura manifestamente exagerado num sistema como o nosso, em que «a tributação com base nas manifestações de fortuna pode coexistir com rendimentos determinados de acordo com outros métodos, não havendo necessidade de presumir o rendimento global do contribuinte, mas somente os rendimentos que foram ocultados».
No caso da aquisição de bens móveis, o rendimento presumido poderia mesmo exceder largamente o valor da manifestação de fortuna (atingindo 140% desse valor, no caso dos automóveis, e os 280%, no caso dos barcos e aviões), o que justifica a referida conclusão quanto ao carácter confiscatório que assumiria este mecanismo de tributação na tese sustentada pela AT.
Por outro lado, como também salienta JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, que continuamos a seguir, a referida tese implicaria uma quebra no nexo de probabilidade (relação entre o valor da manifestação de fortuna, enquanto facto índice, e um determinado rendimento, como facto presumido) que deve ser ínsito à presunção e que está traduzido na tabela, sendo, no caso dos imóveis, fixado em 20% (Como é do conhecimento geral, para a generalidade das pessoas singulares, a aquisição de um imóvel (maxime quando se trata da habitação própria) exige a mobilização de poupanças geradas pelo rendimento de toda uma vida. Assim, mal se compreenderia que a lei pretendesse presumir que o sujeito passivo auferiu rendimentos de montante igual a 80% do seu valor num período de apenas quatro anos, o que significaria que a lei assumia que o rendimento de cinco anos seria suficiente para a aquisição de um imóvel que a lei considera ser uma manifestação de fortuna.).
Na verdade, entre nós o legislador configurou as manifestações de fortuna como presunções de rendimento: a lei, perante aquisições onerosas de bens ou consumos e na falta de declaração de rendimentos ou da desproporção que revelem relativamente ao rendimento declarado, se não for feita a prova da origem do rendimento que as permitiu, presume um determinado rendimento não declarado ou ocultado, em ordem à sua tributação. O legislador, com base em regras de experiência (e a recolha de dados estatísticos), formulou um nexo de probabilidade entre a detenção de determinados bens ou a realização de certos consumos e a existência de rendimentos que as suportem.
Mas, para que a presunção mantenha a sua natureza – e não passe a ter a natureza de ficção (Com interesse para a distinção entre ficções legais e presunções legais, vide BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, págs. 108 e 111.), o que suscitaria questões de conformidade constitucional (Ficcionar rendimento contende com o princípio da capacidade contributiva, implícito nos arts. 103.º e 104.º da Constituição da República.
Também o art. 4.º da LGT dispõe que «os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva».) – exige-se-lhe que respeite um «nexo de probabilidade ou nexo lógico» entre o facto base (manifestação de fortuna) e o facto presumido (rendimento padrão).
Ainda, sabido que é que a lei fiscal não admite presunções de rendimento inilidíveis – cfr. art. 73.º As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário».) –, como lidar com a circunstância de, na tese da AT, o sujeito passivo não poder ilidir, relativamente a cada um dos três anos seguintes àquele em que se verificou a aquisição do bem que a lei releva como manifestação de fortuna, a presunção de rendimentos resultante dessa manifestação de fortuna e de provar que os rendimentos declarados em cada um desses anos correspondem à verdade?
Concluímos, pois, que a presunção de rendimentos do art. 89.º-A apenas pode actuar uma vez, ou seja, relativamente ao ano em que se verificou ou em qualquer um dos três anos seguintes em que, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, falte a declaração de rendimentos ou se verifique a desproporção aí prevista, e não em todos esses anos.
No caso sub judice, porque a AT recorreu a essa presunção para determinar os rendimentos do contribuinte relativamente ao ano em que foi adquirido o imóvel que releva como manifestação de fortuna (2007), não a pode aplicar novamente.
Face ao exposto, concluímos pela ilegalidade da actuação da AT ao fixar os rendimentos dos Recorrente relativamente aos anos de 2008, 2009 e 2010 através da aplicação da avaliação indirecta da matéria colectável ao abrigo do art. 89.º-A, motivo por que o recurso será provido, como decidiremos a final.

2.2.4 DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO EM VIRTUDE DA DISPENSA DA PRODUÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL

A solução dada à questão que vimos de conhecer torna despiciendo indagar se o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, na medida em que dispensou a produção da prova testemunhal oferecida pelos Recorrentes com a petição por que impugnaram a decisão administrativa que lhes fixou o rendimento tributável dos anos de 2008, 2009 e 2010 por avaliação indirecta, incorreu em erro de julgamento.

2.2.5 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Saber se uma concreta questão admite ou não a produção de determinado meio de prova constitui questão de direito, pelo que o facto de o recorrente suscitar o erro de julgamento da decisão judicial que indeferiu a produção de prova testemunhal com o fundamento na sua inadmissibilidade não determina a incompetência do Supremo Tribunal Administrativo em razão da hierarquia (cfr. arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do ETAF).
II - A determinação do rendimento com base numa aquisição concreta de um bem previsto na tabela do n.º 4 do art. 89.º-A da LGT só pode ser feita uma vez, relativamente ao ano em que se verificou ou em qualquer um dos três anos seguintes em que, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, falte a declaração de rendimentos ou se verifique a desproporção aí prevista, e não em todos esses anos.


* * *

3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, acordam em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, julgando procedente o recurso judicial, anular a decisão administrativa que procedeu à fixação da matéria tributável dos anos de 2008, 2009 e 2010.

Custas pelo Recorrido, mas apenas em 1.ª instância, uma vez que não contra alegou o presente recurso.


*

Lisboa, 17 de Abril de 2013. – Francisco Rothes (relator) – Fernanda Maçãs (vencida conforme voto anexo) – Casimiro Gonçalves.

Proc nº 433/13

Voto de vencido

Não acompanho a decisão que fez vencimento por entender que a mesma não encontra apoio nem na letra nem na razão de ser do preceito.
Em relação ao primeiro aspecto, afigura-se que a norma em causa é clara, pois ao utilizar a expressão «nos três anos seguintes» pretende-se precisamente que a presunção baseada na manifestação de fortuna repercuta os seus efeitos durante esse período.
Por outro lado, com esta solução, o Acórdão acaba por dar às situações das alíneas a) e b) do art. 89º-A da LGT o mesmo tratamento dos casos previstos na alínea c), quando o legislador quis distinguir claramente as situações, violando-se também por esta via interpretativa a letra do preceito.
Quanto à razão de ser da norma do nº 4 do art. 89º-A da LGT, considera-se que o objectivo do legislador é o de incentivar o contribuinte a declarar os rendimentos reais, aplicando-se o rendimento padrão como um rendimento de substituição que deixa de funcionar se o contribuinte declarar rendimentos superiores, ou funciona por diferença, nunca por adicionamento, se declarar rendimentos inferiores.
Por outro lado, a alegação de a solução poder conduzir a um rendimento padrão de 80% também não se oferece excessiva, pois não chega a atingir os 100% do valor da aquisição do imóvel e tem de se comparar com o rendimento declarado.
A não ser assim, o objectivo visado pelo legislador deixa de se alcançar.
Partindo-se do exemplo do caso em apreço: uma manifestação de fortuna de cerca de 300 mil Euros (aquisição de imóvel em 2007) e o contribuinte apresenta declarações de rendimento de cerca de 8 mil Euros (durante os anos de 2007, 2008, 2009 e 2010).
Seguindo-se a interpretação do Acórdão, em situações análogas, os contribuintes deixam de ter interesse em justificar as manifestações de fortuna, uma vez que a consequência será uma única tributação de 20% sobre o valor da aquisição do imóvel, ou seja, cerca de 60.000 Euros.
Repare-se que o contribuinte pode até não justificar a manifestação de fortuna e nem declarar qualquer rendimento e acaba por ter um prémio: pagar imposto unicamente sobre 20% do valor da aquisição.
Sem prejuízo de se entender que o legislador poderia eventualmente ter sido mais rigoroso, afigura-se que a solução encontrada esvazia por completo o preceito favorecendo a fraude e a evasão fiscal, atendendo aos benefícios que resultam da não elisão da presunção.
Em suma, salvo o devido respeito, em nossa opinião, a interpretação sufragada no Acórdão vai em sentido contrário ao pretendido pelo legislador e daí a razão de ser deste voto de vencido.

Fernanda Maçãs.