Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0359/12
Data do Acordão:11/05/2014
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:REFORMA DE DECISÃO JUDICIAL
ÂMBITO
FUNDAMENTOS
PEDIDO
REFORMA
Sumário:I - A faculdade prevista no art. 614.º do CPC refere-se apenas aos erros materiais, respeitantes à expressão da vontade do julgador (quando se possa concluir que se escreveu coisa diversa do que se queria escrever), não podendo ao seu abrigo pedir-se a correcção de erros de julgamento.
II - A reforma das decisões judiciais, como uma das excepções legalmente previstas aos princípios da estabilidade das decisões e do esgotamento do poder jurisdicional após a decisão, pressupõe que, por manifesto lapso, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, a decisão tenha sido proferida com violação de lei expressa ou que dos autos constem documentos ou outro meio de prova que, só por si e inequivocamente, implique decisão em sentido diverso e que não tenha sido considerado igualmente por lapso manifesto (cf. arts. 613.º, n.º 2, e 616.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC).
III - O manifesto lapso não pode referir-se à falta de consideração de factos alegados na petição inicial, situação não subsumível à previsão do n.º 2 do art. 616.º do CPC, tanto mais que o Supremo Tribunal Administrativo, quando julga como tribunal de revista, não pode sindicar a matéria de facto fixada pelas instâncias, nem pode considerar outra factualidade senão a que aí foi fixada.
Nº Convencional:JSTA000P18168
Nº do Documento:SA2201411050359
Data de Entrada:03/30/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Pedido de reforma do acórdão que anulou a sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 367/09.5BEPNF

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade denominada “A………………, Lda.” (a seguir Requerente), notificada do acórdão proferido por este Supremo Tribunal Administrativo que, conhecendo do recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública, anulou a sentença proferida pela Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, vem, invocando o disposto nos arts. 614.º e 616.º do Código de Processo Civil (CPC), pedir a «rectificação/reforma» do acórdão, por considerar que neste (i) «terá ocorrido lapso e inexactidão […] quando refere não existir “substrato fáctico” para suportar este vício», o que entende configurar «situação susceptível de rectificação ao abrigo do disposto no artigo 614.º/n.º 2 do CPC» e (ii) «[p]oderá, igualmente, considerar-se que [a] situação em causa é passível de conduzir a reforma do acórdão nos termos previstos no artigo 616.º/n.º 2 b) do CPC, pois constam do processo meios de prova (os docs. da p.i. indicados) que levariam a decisão diversa».
Se bem interpretamos a alegação aduzida pela Requerente, sustenta que o acórdão incorreu em erro ao considerar que da matéria de facto assente não consta que o Director de Finanças tenha praticado qualquer acto de “condução ou instrução do procedimento de revisão da matéria tributável” e que «não está provado nem foi alegado facto algum do qual, ainda que remotamente, se possa inferir que o Director de Finanças do Porto praticou no procedimento qualquer acto que possa ser qualificado como de “condução ou instrução” do procedimento». Isto porque entende que nos itens 9.º a 19.º da petição inicial, que respeitam à tramitação do procedimento de revisão, «alegou que os procedimentos de revisão foram conduzidos e instruídos na Direcção de Finanças do Porto», factualidade essa suportada pelos documentos que juntou com aquele articulado.
Mais sustenta que, aceitando embora que a sentença não deu tais factos como provados, a questão não será então de falta de alegação, mas de falta de julgamento de facto que, se não puder ser colmatada pelo Tribunal ad quem, deverá determinar a baixa dos autos ao Tribunal a quo para «melhor fundamentação (de facto e de direito)».
Assim, conclui que este Supremo Tribunal Administrativo incorreu em «lapso e inexactidão no acórdão quando refere não existir “substrato fáctico” para suportar este vício», lapso que, se não for passível de rectificação ao abrigo do art. 614.º, n.º 1 (Apesar de a Requerente invocar o n.º 2 do art. 614.º, afigura-se-nos que pretenderia invocar o seu n.º 1.), do CPC, determinará a reforma nos termos previstos no art. 616.º, n.º 2, alínea c), do mesmo Código, «pois constam do processo meios de prova (os docs. da p.i. indicados) que levariam à decisão diversa».

1.2 Notificada do requerimento, a Fazenda Pública não se pronunciou.

1.3 Colhidos os vistos dos Conselheiros adjuntos, cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTOS

2.1 OS TERMOS DO PEDIDO

Notificada do acórdão proferido por este Supremo Tribunal Administrativo, veio a Recorrida pedir a sua rectificação, ao abrigo do disposto no art. 614.º do CPC, ou a sua reforma, ao abrigo do art. 616.º do mesmo Código.
Se bem interpretamos a alegação aduzida para suportar aquele pedido alternativo, considera a Recorrida, ora Requerente, que naquele acórdão – na parte em que afirmou que da matéria de facto assente não consta que o Director de Finanças tenha praticado qualquer acto de “condução ou instrução do procedimento de revisão da matéria tributável” e que «não está provado nem foi alegado facto algum do qual, ainda que remotamente, se possa inferir que o Director de Finanças do Porto praticou no procedimento qualquer acto que possa ser qualificado como de “condução ou instrução” do procedimento» – «terá ocorrido lapso e inexactidão […] quando refere não existir “substrato fáctico” para suportar este vício», o que entende configurar «situação susceptível de rectificação ao abrigo do disposto no artigo 614.º/n.º 2 do CPC» e «[p]oderá, igualmente, considerar-se que [a] situação em causa é passível de conduzir a reforma do acórdão nos termos previstos no artigo 616.º/n.º 2 b) do CPC, pois constam do processo meios de prova (os docs. da p.i. indicados) que levariam a decisão diversa».
Ou seja, ambos os pedidos formulados – de correcção do erro material verificado no acórdão e de reforma deste por erro manifesto de julgamento – são-no com a mesma fundamentação: o acórdão não teria atentado na alegação aduzida pela Impugnante nos arts. 9.º a 19.º da petição inicial e, bem assim, nos documentos apresentados com esse articulado.
Antes do mais, cumpre recordar o que, a propósito do erro de julgamento quanto à competência do Director de Finanças para «conduzir e instruir» o procedimento de revisão previsto no art. 91.º e segs. da Lei Geral Tributária (LGT), ficou dito no acórdão cuja rectificação ou reforma ora são peticionadas (As notas que no original estavam em rodapé serão transcritas no texto, entre parêntesis rectos.):

«[…] vista a matéria de facto dada como assente, não vislumbramos que tenha sido praticado por essa entidade administrativa qualquer acto de “condução ou instrução” do procedimento de revisão; o único acto que consta do probatório como tendo sido praticado pelo Director de Finanças do Porto, rectius pela Directora de Finanças Adjunta mediante delegação do Director de Finanças do Porto, é a decisão do procedimento de revisão (cfr. facto provado sob o n.º 20). Mas, relativamente a essa decisão, motivada pela falta de acordo dos peritos (cfr. facto provado sob o n.º 19 e n.º 6 do art. 92.º da LGT), a sentença decidiu pela competência do Director de Finanças do Porto e, nessa parte, transitou em julgado.
Ou seja, a nosso ver, a questão da incompetência do Director de Finanças para “conduzir e instruir” o procedimento de revisão, decidida pela Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, não constitui sequer uma verdadeira questão, pois carece em absoluto de substrato fáctico: não está provado nem foi alegado facto algum do qual, ainda que remotamente, se possa inferir que o Director de Finanças do Porto praticou no procedimento qualquer acto que possa ser qualificado como de “condução ou instrução” do procedimento (2) [(2) Note-se, a latere, que a lei refere expressamente que «o procedimento é conduzido pelo perito da administração tributária» (cfr. n.º 2 do art. 92.º da LGT)].
Assim, ainda que se conceda que o Tribunal a quo não incorreu em excesso de pronúncia, nos termos que ficaram expostos no ponto anterior, a verdade é que os considerandos que expendeu sobre a competência para “conduzir e instruir” o procedimento de revisão – certos ou errados, não interessa agora apurar – não assumem relevância alguma sobre a situação de facto tal qual ela vem configurada. Para que a pudessem assumir seria necessário que estivesse demonstrado, e não está, que o Director de Finanças do Porto, de algum modo, “conduziu e instruiu” o procedimento.
Trata-se, pois, e sempre salvo o devido respeito, de um vício putativo que nunca poderia determinar a anulação (consequencial) da liquidação».

Vejamos, pois, se a fundamentação aduzida pela Requerente pode sustentar a procedência de algum dos pedidos ora por ela formulados, seja o de rectificação seja o de reforma do acórdão.

2.2 PEDIDO DE RECTIFICAÇÃO DO ACÓRDÃO

É certo que o n.º 2 do art. 613.º do CPC consagra, como uma das excepções ao princípio do esgotamento do poder jurisdicional previsto no n.º 1 do mesmo artigo («1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 - É lícito, porém, ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes».), a possibilidade da rectificação dos erros materiais; mas, relativamente a estes, há que atentar no disposto no n.º 1 do art. 614.º do mesmo Código: «Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz».
A situação sub judice, manifestamente, não integra a primeira parte da previsão do n.º 1 do art. 614.º, que se refere à omissão do nome das partes, da condenação em custas ou da fixação da proporção da responsabilidade das partes por estas. Poderá integrar a segunda parte daquela previsão, que alude a «erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto»?
O erro de escrita verifica-se quando se escreve, por lapso, coisa diversa daquela que se queria escrever e o erro de cálculo verifica-se quando, apesar de se ter escrito o que se pretendia, se errou uma operação do cálculo e, por isso, se chegou a resultado diferente do que chegaria se as operações estivessem certas; um e outro só são manifestos quando o erro se evidenciar do teor da própria declaração ou do seu contexto, designadamente dos termos que a precederam, permitindo assim a sua fácil detecção e a conclusão inequívoca de que se escreveu algo diferente do que se queria escrever [cfr. art. 249.º do Código Civil («O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta».)].
Como resulta do teor do art. 614.º do CPC, a possibilidade de correcção refere-se apenas às situações de erro material e já não às de erro de julgamento (Quanto à noção de erro material e sua distinção do erro de julgamento, vide ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V, pág. 130.). Em qualquer das situações aí previstas estamos perante erro material, que «respeita à expressão da vontade do julgador e deve, consequentemente, incidir ou reflectir-se numa conclusão não consentida pelas premissas. A este erro opõem-se os erros ou inexactidões que se verifiquem no processo interno de formação do juízo expresso da decisão, devendo distinguir-se o erro material do erro de julgamento: o primeiro verifica-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da decisão não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real; o segundo verifica-se quando o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra a lei expressa ou contra os factos apurados. Neste último caso, está errado o julgamento e ainda que o juiz logo se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667.º [(A correspondência, hoje, seria para os arts. 613.º, n.º 2 e 614.º do CPC.)] para emendar o erro.
Como ensina o Prof. Alberto dos Reis, «é necessário que do próprio conteúdo da decisão ou dos termos que a precederam se depreenda claramente que se escreveu manifestamente coisa diferente do que se queria escrever: se assim não for, a aplicação do art. 667.º é ilegal, pois importa evitar que, à sombra da mencionada disposição, o juiz se permita emendar erro de julgamento, espécie diversa do erro material.
[…]
E também a jurisprudência do STJ vem desde há muito afirmando que «os erros ou inexactidões materiais, cuja rectificação é permitida por esse preceito, só se verificam quando se escreveu coisa diversa do que se quis escrever, quando o teor da decisão não coincide com o que se tinha em mente escrever, podendo consistir em se ter omitido o que se quis consignar, ou se verificar manifesto lapso no que se consignou (acórdão de 12 de Março de 1954, Boletim, n.º 42, pág. 193), não abrangendo os casos em que a vontade declarada não diverge da vontade real (acórdão de 26 de Outubro de 1954, Boletim. n.º 45, pág. 197); quando seja manifesto que as palavras traíram a intenção do julgador ou que este, por lapso, disse coisa diversa do que tinha em mente (acórdão de 6 de Junho de 1958, Boletim, n.º 78, pág. 315), não abrangendo os erros ou inexactidões intelectuais, verificados no processo interno de formação do juízo expresso na decisão (acórdão de 23 de Fevereiro de 1962, Boletim, n.º 114, pág. 421); quando respeitem à expressão da vontade do julgador, e não a mal-conformação da própria vontade decisória (acórdão de 20 de Janeiro de 1977, Boletim, n.º 263, pág. 210).
Assim, o que importa apurar, para se saber se, sim ou não, o erro ou inexactidão pode considerar-se meramente material, e não de julgamento, sendo consequentemente rectificável nos termos do artigo 667.º, é qual teria sido a vontade real do juiz, para depois se confrontar esta com a declarada e ver se se coadunam ou divergem.» (cfr. ac. do STJ, de 19/3/1981, proc. 69.376, in BMJ n.º 305, págs. 230 e sgts.) – cfr. igualmente, entre outros, o ac. do mesmo STJ, de 3/4/1991, AJ, 18.º, 11)» (Acórdão desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Março de 2011, proferido no processo n.º 920/10, publicado no Apêndice ao Diário da República de 11 de Agosto de 2011 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2011/32210.pdf), págs. 416 a 421, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/0112a9d7bfb36bd380257856003f872c?OpenDocument.).
No caso, tendo presente o que vimos de dizer, é manifesto que os termos em que a Requerente configura o erro que invoca não permitem enquadrá-lo na categoria dos erros materiais: o teor do acórdão não permite de modo algum concluir que, quando nele se deixou escrito que «a questão da incompetência do Director de Finanças para “conduzir e instruir” o procedimento de revisão, decidida pela Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, não constitui sequer uma verdadeira questão, pois carece em absoluto de substrato fáctico: não está provado nem foi alegado facto algum do qual, ainda que remotamente, se possa inferir que o Director de Finanças do Porto praticou no procedimento qualquer acto que possa ser qualificado como de “condução ou instrução” do procedimento», se escreveu o contrário do que se queria afirmar; bem pelo contrário, como decorre do teor do acórdão, tal asserção é a expressão fiel da vontade dos Conselheiros que o subscreveram, como resulta, aliás, de todo o contexto, designadamente quando no mesmo aresto se afirmou que «na sentença recorrida não encontramos a mínima alusão a que o procedimento de revisão tenha sido “conduzido e instruído” pelo Director de Finanças do Porto. Na verdade, vista a matéria de facto dada como assente, não vislumbramos que tenha sido praticado por essa entidade administrativa qualquer acto de “condução ou instrução” do procedimento de revisão; o único acto que consta do probatório como tendo sido praticado pelo Director de Finanças do Porto, rectius pela Directora de Finanças Adjunta mediante delegação do Director de Finanças do Porto, é a decisão do procedimento de revisão (cfr. facto provado sob o n.º 20). Mas, relativamente a essa decisão, motivada pela falta de acordo dos peritos (cfr. facto provado sob o n.º 19 e n.º 6 do art. 92.º da LGT), a sentença decidiu pela competência do Director de Finanças do Porto e, nessa parte, transitou em julgado» e que «os considerandos que [a Juíza do Tribunal a quo] expendeu sobre a competência para “conduzir e instruir” o procedimento de revisão – certos ou errados, não interessa agora apurar – não assumem relevância alguma sobre a situação de facto tal qual ela vem configurada. Para que a pudessem assumir seria necessário que estivesse demonstrado, e não está, que o Director de Finanças do Porto, de algum modo, “conduziu e instruiu” o procedimento».
Salvo o devido respeito, o erro imputado pela Requerente ao acórdão não pode ser qualificado como material, mas antes como de julgamento, resultante da alegadamente incorrecta abordagem feita à questão suscitada pelo invocado vício de incompetência para “conduzir e instruir” o procedimento de revisão, que teria resultado num erro na própria conformação do juízo expresso no resultado do acórdão.
Por outro lado, para além de, como deixámos já dito, as rectificações permitidas ao abrigo daquelas disposições legais serem apenas as respeitantes a erros materiais, tais como omissão do nome das partes, omissão de pronúncia quanto a custas, erros de escrita ou de cálculo, ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, exige-se ainda, naturalmente, que tais rectificações não colidam com o sentido da decisão anteriormente proferida, uma vez que a mesma se encontrava consolidada no âmbito do processo (Neste sentido, vide o acórdão desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 21 de Maio de 2014, proferido no processo n.º 251/14, ainda não publicado no jornal oficial, mas disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/56c8555a04b4f7a080257ce40048c69c?OpenDocument.).
Improcede, pois, o pedido de rectificação do acórdão.

2.3 PEDIDO DE REFORMA DO ACÓRDÃO

2.3.1 Cumpre agora apreciar e decidir se a alegação dos Requerentes integra ou não motivo para a reforma do acórdão, designadamente se é subsumível à previsão do art. 616.º, n.º 2, do CPC, que estipula:

«2 - Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida».

Esta norma reproduz o n.º 2 do art. 669.º, n.º 2, do CPC na versão anterior à vigente (Ou seja, na versão anterior à que foi aprovada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho e rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 36/2013, de 12 de Agosto.), o qual, por sua vez, na redacção que lhe foi dada pela reforma de 1995/1996 e que sofreu alteração (não relevante para os efeitos de que nos ocupamos) introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, dizia:

«2 - Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida».

Ou seja, pela reforma de 1995/1996, o art. 669.º do CPC, para além de continuar a permitir a reforma das decisões judiciais (Embora a norma se refira apenas à sentença, deve considerar-se aplicável a todas as decisões judiciais, designadamente aos acórdãos dos tribunais superiores, como resulta expressamente do disposto nos arts. 666.º, n.º 1, e 685.º do CPC.) quanto a custas e multa, veio, de forma inovadora, permiti-la também relativamente a erros de julgamento, em certos casos. O relatório do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, justifica tal inovação nos seguintes termos:

«[…] sempre na preocupação de realização efectiva e adequada do direito material e no entendimento de que será mais útil, à paz social e ao prestígio e dignidade que a administração da Justiça coenvolve, corrigir que perpetuar um erro juridicamente insustentável, permite-se, embora em termos necessariamente circunscritos e com garantias de contraditório, o suprimento do erro de julgamento mediante a reparação da decisão de mérito pelo próprio juiz decisor, ou seja, isso acontecerá nos casos em que, por lapso manifesto de determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica, a sentença tenha sido proferida com violação de lei expressa ou naqueles em que dos autos constem elementos, designadamente de índole documental, que, só por si e inequivocamente, impliquem decisão em sentido diverso e não tenham sido considerados igualmente por lapso manifesto. Claro que, para salvaguarda da tutela dos interesses da contraparte, esta poderá sempre, mesmo que a decisão inicial o não admitisse, interpor recurso da nova decisão assim proferida.
Recurso este que, note-se, é admissível ainda que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, como refere expressamente o art. 670.º, n.º 4, do CPC».

Ou seja, numa solução que mereceu muitas críticas à doutrina (Vide, entre outros, CARDONA FERREIRA, Guia de Recursos em Processo Civil (Declarativo), 2.ª edição, pág. 32 e FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 9.ª edição, págs. 65/66.), a lei passou a admitir, como uma das excepções ao esgotamento do poder jurisdicional, que, em circunstâncias muito extraordinárias, o tribunal alterasse a decisão que ele próprio proferiu. Assim, a possibilidade de reforma de uma decisão judicial ao abrigo (hoje) do n.º 2 do art. 616.º do CPC tem carácter de excepção, sendo que «quanto ao alcance do mesmo preceito legal, o STA tem construído um critério orientador para a definição do carácter manifesto do lapso cometido e que possibilita a imediata reparação do erro de julgamento que o originou. Tem sido, com efeito, sublinhada a excepcionalidade desta faculdade, que insere um desvio aos princípios da estabilidade das decisões judiciais e do esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 666.º, n.º 1, do CPC) [( A que hoje corresponde o art. 613.º.)], salientando-se que a mesma só será admissível perante erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor ou autores da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-la levado ao desacerto» (Cf. Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 25, pág. 54, também citado por JORGE LOPES DE SOUSA no Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, II volume, anotação 8 ao art. 126.º, pág. 388 e, entre muitos outros e para além dos aí referidos, ainda os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
de 26 de Setembro de 2012, proferido no processo n.º 211/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/32166b9bdc3ba51f80257a8c0035db4e?OpenDocument;
de 21 de Novembro de 2012, proferido no processo n.º 155/11, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/f8c8e88e07b5544480257ac40051fd24?OpenDocument;
de 19 de Dezembro de 2012, proferido no processo n.º 740/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ee09f657978c6d7080257aed004c75e3?OpenDocument;
de 13 de Março de 2013, proferido no processo n.º 822/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9bff0bec75fc8bac80257b42004b0062?OpenDocument.).
A referida faculdade não se destina, manifestamente, à reapreciação dos factos apurados e sua interpretação ou à reapreciação das regras e princípios de direito aplicados. Se quanto a estas, houver divergência entre o alegado pela parte e o decidido pelo tribunal, a sua reapreciação e a correcção de eventuais erros por este cometidos só será possível em sede de recurso, desde que este seja admissível.
Dito isto, e sendo certo que a lei admite em abstracto a reforma do acórdão, cumpre verificar se a alegação da Requerente integra algum dos casos em que a mesma é autorizada ao abrigo do n.º 2 do art. 616.º do CPC.

2.3.2 Sustenta a Requerente que existem nos autos elementos documentais que, por si só, implicam necessariamente decisão diversa da proferida.
Isto, se bem alcançamos o teor da sua alegação, porque considera que na petição inicial alegou factualidade susceptível de integrar a conclusão de que o Director Distrital de Finanças “conduziu e instruiu” o procedimento de revisão e, ademais, que também juntou com aquele articulado documentos comprovativos dessa “condução e instrução”.
Ou seja, a Requerente sustenta que deveriam ter-se levado em conta factos que o acórdão cuja reforma pede não ponderou por manifesto lapso, sendo que do processo constam documentos que impõem, por si só, decisão em sentido diverso, ou seja, a prova de tais factos.
Salvo o devido respeito, a pretensão da Requerente não pode proceder.
O Supremo Tribunal Administrativo, no presente caso – recurso de uma sentença proferida por um tribunal de 1.ª instância –, não tem competência senão em matéria de direito (cfr. arts. 26, alínea b), e 38.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e art. 280.º, n.º 1, do CPPT). O que significa que nunca poderia este Tribunal considerar outra factualidade senão a que foi dada como assente em 1.ª instância.
Se a Requerente entendia que a sentença não fornecia a factualidade pertinente para que a questão da prescrição fosse apreciada e que a prova produzida nos autos devia ter dado lugar à fixação de outra e/ou diversa matéria de facto, deveria ter estruturado o seu recurso em moldes diversos, designadamente atacando a matéria de facto e para fazê-lo deveria ter dado cumprimento ao disposto no art. 685.º-B do CPC («1 - Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C.
[…]»), na redacção em vigor à data (Referimo-nos ao Código de Processo Civil anterior à reforma operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 36/2013, de 12 de Agosto, e na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto.), sendo que então o recurso seria da competência do Tribunal Central Administrativo Norte (Como resulta das regras de distribuição da competência em razão da hierarquia, maxime os arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e, bem assim, o disposto no art. 280.º, n.º 1 do CPPT.), que poderia, sindicando o julgamento da matéria de facto, alterá-lo, se fosse caso disso.
Já este Supremo Tribunal Administrativo, enquanto tribunal de revista, não tem poderes em matéria de facto e, por isso, limitou-se a sindicar o julgamento efectuado com base na factualidade que foi fixada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.
Pode não ter feito o melhor julgamento, mas a reforma não serve para reapreciar o mesmo, mas apenas para permitir a correcção de lapsos manifestos.
Nem se diga que se o Supremo Tribunal Administrativo entendia que os factos não eram suficientes deveria, ao invés de negar provimento ao recurso, ordenar a ampliação da matéria de facto. É que o acórdão em momento algum considerou insuficiente a matéria de facto dada como assente relativamente à questão em causa.
Pode não ter feito o melhor julgamento, mas, seguramente, não lhe pode ser assacado o erro manifesto ou palmar que é o único que pode suportar o pedido de reforma.
Pelo que ficou dito, o pedido de reforma não pode proceder.

2.2 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - A faculdade prevista no art. 614.º do CPC refere-se apenas aos erros materiais, respeitantes à expressão da vontade do julgador (quando se possa concluir que se escreveu coisa diversa do que se queria escrever), não podendo ao seu abrigo pedir-se a correcção de erros de julgamento.
II - A reforma das decisões judiciais, como uma das excepções legalmente previstas aos princípios da estabilidade das decisões e do esgotamento do poder jurisdicional após a decisão, pressupõe que, por manifesto lapso, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, a decisão tenha sido proferida com violação de lei expressa ou que dos autos constem documentos ou outro meio de prova que, só por si e inequivocamente, implique decisão em sentido diverso e que não tenha sido considerado igualmente por lapso manifesto (cf. arts. 613.º, n.º 2, e 616.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC).
III - O manifesto lapso não pode referir-se à falta de consideração de factos alegados na petição inicial, situação não subsumível à previsão do n.º 2 do art. 616.º do CPC, tanto mais que o Supremo Tribunal Administrativo, quando julga como tribunal de revista, não pode sindicar a matéria de facto fixada pelas instâncias, nem pode considerar outra factualidade senão a que aí foi fixada.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência (como o impõe o n.º 2 do art. 719.º do CPC), em indeferir o pedido de reforma do acórdão.

Custas pela Requerente.


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Lisboa, 5 de Novembro de 2014. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Casimiro Gonçalves.