Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0860/10
Data do Acordão:10/12/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
AUTOLIQUIDAÇÃO
RECLAMAÇÃO GRACIOSA
RECLAMAÇÃO NECESSÁRIA
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
ERRO
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:I - A alegada inconstitucionalidade da norma ao abrigo da qual o contribuinte efectuou a autoliquidação integra o conceito de erro a que alude o n.º 1 do art. 131.º do CPPT.
II - No caso de erro na autoliquidação, a lei exige a reclamação graciosa prévia como forma de abrir a via contenciosa, a menos que (1.º) o fundamento da impugnação seja exclusivamente de direito e (2.º) a autoliquidação tenha sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela AT (art. 131.º, n.ºs 1 e 3, do CPPT).
III - Isto, porque a autoliquidação, que é efectuada pelo contribuinte, não constitui um acto administrativo e, por isso, não é impugnável directamente, exigindo-se antes da impugnação uma actuação da AT no sentido de “administrativizar” o acto.
IV - O segundo dos dois requisitos cumulativos exigidos pelo n.º 3 do art. 131.º do CPPT para dispensar a reclamação prévia enquanto condição para abrir a via contenciosa em caso de autoliquidação – «a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» – justifica-se porque, nesta hipótese, a AT já se pronunciou previamente sobre a questão suscitada e encontra-se vinculada pelas orientações (cfr. art. 68.º, n.º 4, da LGT), motivo porque seria inútil suscitar a sua intervenção através de reclamação graciosa, que teria de ser indeferida.
V - A mesma razão de ser vale para as situações em que o fundamento da impugnação seja exclusivamente a inconstitucionalidade da norma em que se fundou a autoliquidação por violação do princípio da irretroactividade da lei fiscal, pois também nesse caso a reclamação constituiria acto inútil por nunca poder ser julgada procedente, em virtude de a AT estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarada a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP), o que não é o caso.
Nº Convencional:JSTA00067187
Nº do Documento:SA2201110120860
Data de Entrada:11/04/2010
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Ref. Acórdãos:
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF BRAGA PER SALTUM
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC FISC GRAC - RECLAMAÇÃO ORDINÁRIA / DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL
Área Temática 2:DIR CONST - PODER POL
Legislação Nacional:CIRC01 ART81 N3 A
CPPTRIB99 ART70 N1 ART97 N1 C ART131 N1 N3
L 64/2008 DE 2008/12/05 ART5 N1
CONST97 ART18 N1 ART103 N3 ART212 N3 ART266 N2 ART281
CCIV66 ART9 N3
LGT98 ART55 ART68 N4 B
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC593/07 DE 2007/10/31 IN AP-DR DE 2008/05/15 PAG1599; AC STA PROC26222 DE 2006/02/15; AC STA PROC863/07 DE 2008/05/21 IN AP-DR DE 2008/09/29 PAG616
Referência a Pareceres:P PGR 62/96 DE 1998/05/28 IN DR IIS DE 1998/10/24
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO E COMENTADO 6ED VII PAG406 PAG408
CASALTA NABAIS DIREITO FISCAL 3ED PAG392
BAPTISTA MACHADO INTRODUÇÃO AO DIREITO E AO DISCURSO LEGITIMADOR PAG185 PAG186
VIEIRA DE ANDRADE DIREITO CONSTITUCIONAL 1977 PAG270
JOÃO CAUPERS OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES E A CONSTITUIÇÃO 1985 PAG157
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO
1.1 A sociedade denominada “A…, S.A.” (adiante Contribuinte, Impugnante ou Recorrente) deduziu impugnação judicial, pedindo no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga a anulação da autoliquidação de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) do ano de 2008 na parte respeitante à tributação autónoma das despesas de representação e de despesas com viaturas de passageiros, que considera não poder ser feita à taxa de 10% estabelecida na alínea a) do n.º 3 do art. 81.º do Código do IRC (CIRC), na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, por esta padecer de inconstitucionalidade por violação do princípio da irretroactividade da lei fiscal, mas à taxa de 5% que previa a mesma norma legal na anterior redacção.
1.2 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, após ouvir a Impugnante sobre a questão, suscitada pela Fazenda Pública, julgou verificada a excepção inominada decorrente da falta da reclamação graciosa prévia prevista no n.º 1 do art. 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que considerou indispensável por não estarem verificados os requisitos enunciados no n.º 3 do mesmo artigo, motivo por que absolveu a Fazenda Pública da instância.
1.3 Inconformada com essa decisão, a Impugnante dela interpôs recurso para este Supremo Tribunal Administrativo, que foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
1.4 A Recorrente apresentou as alegações de recurso, que sintetizou em conclusões do seguinte teor:
«
1. O vício que se imputa à autoliquidação impugnada nenhuma relação tem com a concreta situação contributiva da Impugnante, nem depende de forma alguma da sua apreciação pela administração tributária, vindo aqui a Impugnante pugnar pela inaplicabilidade por inconstitucionalidade de uma norma legal, a factos concretos assentes e indiscutidos;
2. Por outro lado, parece decorrer da sentença que previamente ao escrutínio judicial, se impõe sempre a pronúncia da administração fiscal sobre a inconstitucionalidade invocada pela Impugnante ora Recorrente, aventando-se mesmo a hipótese daquela decidir não aplicar a norma, o que se não concebe nos termos da lei;
3. Falha, pois, em toda a sua plenitude a sentença recorrida, discernindo-se da exposição apresentada um equívoco entendimento do papel e dos poderes da administração tributária e, bem assim, uma profundamente deficiente interpretação do artigo 131º do CPPT;
4. Desde logo, determinando o n.º 1 do artigo 131º do CPPT que, em caso de erro na autoliquidação, a impugnação judicial será necessariamente precedida de reclamação graciosa apresentada à administração tributária e tendo a liquidação efectuada pelo contribuinte sido feita com base em factos verdadeiros e que correspondem à realidade e mediante a aplicação das normas legais e regras administrativas em vigor, estamos perante uma situação de impugnação de autoliquidação que não se sustenta em erro do contribuinte, pelo que não cabe a presente impugnação na alçada do preceituado no n.º 1 do artigo 131º do CPPT, não se impondo a prévia reclamação graciosa do acto impugnado;
5. Mas sem prescindir, ainda que se entenda que o n.º 1 do artigo 131.º se aplica em qualquer caso de impugnação de autoliquidação, fundamentada ou não em erro do contribuinte, prevê o n.º 3 do mesmo artigo que poderá ser directamente apresentada aos Tribunais a impugnação que se fundamente exclusivamente em matéria de direito e tenha sido efectuada de acordo com instruções genéricas da administração tributária;
6. Sendo, no caso em apreço, inequívoco que a impugnação apresentada se fundamenta exclusivamente em matéria de direito, resta verificar se versa sobre questões em que existam orientações genéricas da administração tributária, pressuposto que tem como objectivo a necessidade de existência prévia de um litígio entre o contribuinte e a administração fiscal, sem o qual se não justifica a intervenção dos Tribunais;
7. Ora, numa situação em que se apresente uma correcção que verse exclusivamente matéria de direito e em que seja de antemão conhecido que a administração tributária discordará das pretensões do Impugnante, tal requisito de prévia reclamação redundaria num acto inútil e causador de atrasos desnecessários, razão pela qual, prevê a lei, no cumprimento dos princípios da economia e da celeridade processuais, que em tais casos, possa o contribuinte recorrer directamente às vias judiciais;
8. Assim sendo, temos que o fundamento da imposição de prévia reclamação graciosa não se estriba em nenhum dos argumentos aventados na sentença: destina-se este impositivo apenas a impor a confirmação da existência de um prévio desacordo ou litígio entre as posições adoptadas pelo contribuinte e pela administração fiscal, desacordo ou litígio este que as vias judiciais são chamadas a dirimir.
9. No caso em apreço, este desacordo ou litígio existe de antemão e não pode conceber-se que assim não seja, pois que, ao invés do que surpreendentemente propugna a sentença aqui posta em crise, a administração fiscal não pode sindicar a constitucionalidade de uma norma legal, nem pode em caso algum deixar de aplicar uma norma legal existente;
10. A administração fiscal está, nos termos do artigo 55º da LGT e no seguimento do princípio vertido no n.º 2 do artigo 266º da CRP, vinculada ao princípio da legalidade, pelo que não pode deixar de dar integral cumprimento aos normativos que o legislador ordinário criou e que estejam em vigor no ordenamento jurídico;
11. Assim, sendo a autoliquidação efectuada no cumprimento de preceitos legais cujo teor intrínseco não levanta quaisquer dúvidas ou questões, não cabe à administração fiscal pronunciar-se sobre a sua legitimidade, bastando-se com cumpri-las, pelo que se encontra a administração tributária exactamente na mesma situação em que se encontraria caso tivesse emitido orientações genéricas: vinculada a decidir de acordo com o previamente estipulado, ou seja, contra as pretensões do Contribuinte/Reclamante.
12. Uma prévia reclamação graciosa, no caso em apreço, não podia ter outro objectivo que não fosse o de atrasar a justiça e de multiplicar trabalhos inúteis, pois que, estando apenas em causa a inconstitucionalidade da aplicação de uma norma legal, que só pode ser conhecida em sede judicial, a decisão de uma eventual prévia reclamação graciosa estaria definida à partida, tal como estaria se houvesse orientações genéricas da administração fiscal nesse mesmo sentido;
13. Não pode, pois, deixar de se entender materialmente verificados os pressupostos para a directa impugnação judicial da autoliquidação em questão, previstos no n.º 3 do artigo 131º do CPPT, dispensando-se a reclamação prévia numa situação em que a sua decisão se encontra inequivocamente condicionada no sentido do seu indeferimento;
14. Razão pela qual labora em erro a sentença aqui posta em crise, na medida em que julga procedente a excepção invocada pela Fazenda Pública, abstendo-se de apreciar o mérito da acção de impugnação apresentada e absolvendo a Fazenda Pública da instância, por não ter sido previamente apresentada reclamação graciosa;
15. O que impõe a sua revogação, julgando-se improcedente por infundada a excepção invocada e ordenando-se a descida dos autos ao Tribunal a quo para apreciação do mérito da impugnação apresentada.
Termos em que deverá o presente Recurso ser julgado procedente, anulando-se a decisão Recorrida, pelos motivos acima expostos, e julgando-se improcedente a excepção invocada, ordenando-se em seguida a descida dos autos ao tribunal administrativo e fiscal de Braga para que se pronuncie sobre o mérito da acção intentada com o que se fará inteira e sã
JUSTIÇA!» ( As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente são transcrições, aqui como adiante.).
1.5 A Fazenda Pública não contra alegou.
1.6 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso. Isto, em síntese, porque considerou que, contrariamente ao que sustenta a Recorrente, a reclamação prévia não pode ser dispensada, pois, apesar de verificado o primeiro dos requisitos enunciados no n.º 3 do art. 131.º do CPPT, não se verifica o segundo – que a autoliquidação tenha sido efectuada de acordo com orientações genéricas da AT –, sendo que este nunca pode ser dispensado, ainda que o fundamento da impugnação judicial seja a inconstitucionalidade da aplicação de uma norma legal. Mais considerou que não procede o argumento da inutilidade da reclamação, uma vez que só após esta passa a existir ou a poder ficcionar-se a existência de acto susceptível de impugnação judicial.
1.7 A questão suscitada pela Recorrente é a (de saber se a decisão recorrida fez correcto julgamento relativamente à questão) da interpretação do art. 131.º, n.ºs 1 e 3, do CPPT, designadamente quanto à necessidade da prévia reclamação para abrir a via contenciosa.
* * *
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO
Com vista à apreciação e julgamento da excepção dilatória, Tribunal a quo fixou a matéria de facto nos seguintes termos:
«MATÉRIA DE FACTO
Pelos documentos juntos aos autos com relevância para o caso, considero provados os seguintes factos:
1. A Impugnante em 22.05.2009, apresentou a modelo 22 do IRC, do ano de 2008, tendo no campo 365 – Tributação Autónoma, apresentado o valor de 23.048,91 € (fls. 61 a 66 dos autos);
2. Em 29.05.2009, procedeu ao pagamento do IRC, do ano de 2008, no valor de 4.649,86 € (fls. 66 dos autos),
3. A presente impugnação judicial foi apresentada no Serviço de Finanças em 01.09.2009».
*
2.2 DE DIREITO
2.2.1 DAS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR
A Contribuinte procedeu à autoliquidação do IRC do ano de 2008.
Ulteriormente, veio apresentar impugnação judicial, pedindo que a autoliquidação seja anulada na parte respeitante à tributação autónoma das despesas de representação e de despesas com viaturas de passageiros. Isto, porque considera que, pelo menos relativamente às despesas efectuadas desde 1 de Janeiro de 2008 até à data da entrada em vigor da Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro ( A Lei entrou em vigor no dia seguinte ao da publicação, ou seja, no dia 6 de Dezembro de 2008, de acordo com o disposto no seu art. 6.º.), que veio dar nova redacção à alínea a) do n.º 3 do art. 81.º do CIRC, não pode produzir efeitos o agravamento da taxa daquela tributação de 5% para 10%, sob pena de violação do princípio constitucional da irretroactividade da lei fiscal ou, pelo menos, dos princípios da certeza e segurança jurídicas.
A Juíza entendeu que a reclamação graciosa que o n.º 1 do art. 131.º do CPPT impõe ao contribuinte, no caso de erro na autoliquidação, para ter acesso à via contenciosa não podia ser dispensada, por não estar verificado o segundo dos requisitos que o n.º 3 daquele artigo exige para essa dispensa. Assim, na falta dessa reclamação, entendeu verificada a correspondente excepção dilatória inominada, pelo que absolveu a Fazenda Pública da instância.
A Impugnante recorre dessa decisão para este Supremo Tribunal Administrativo e, se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, são os seguintes os seus motivos de discordância:
· não se impunha a reclamação graciosa prévia porque não estamos perante um erro da autoliquidação, «que foi feita com base em factos verdadeiros e que correspondem à realidade e mediante a aplicação de normas legais e regras administrativas em vigor»; mas, caso se venha a concluir que houve erro, então há que considerar que
· estão verificados os requisitos legais para a sua dispensa, pois é inequívoco que a impugnação se fundamenta exclusivamente em matéria de direito e, no caso, a reclamação graciosa seria manifestamente inútil e causa de atrasos desnecessários; isto, porque o fim por ela prosseguido – «a confirmação da existência de um prévio desacordo ou litigio entre as posições adoptadas pelo contribuinte e pela administração fiscal» que o tribunal é chamado a dirimir – pode desde já dar-se por verificado, pois está em causa exclusivamente uma questão de inconstitucionalidade da aplicação de uma norma legal e a AT, vinculada que está ao princípio da legalidade, «não pode sindicar a constitucionalidade de uma norma legal, nem pode em caso algum deixar de aplicar uma norma legal existente», «pelo que se encontra […] exactamente na mesma situação em que se encontraria caso tivesse emitido orientações genéricas: vinculada a decidir de acordo com o previamente estipulado, ou seja, contra as pretensões do Contribuinte».
Assim, a questão a apreciar e decidir prende-se com a interpretação do art. 131.º, n.ºs 1 e 3, do CPPT, designadamente, com a necessidade da reclamação graciosa prévia para abrir a via contenciosa no caso de autoliquidação e sobre o segundo requisito de dispensa dessa reclamação.
São estas vertentes da questão que passaremos a conhecer de seguida.
2.2.2 DA OBRIGATORIEDADE DA RECLAMAÇÃO GRACIOSA PRÉVIA PARA ABRIR A VIA CONTENCIOSA NO CASO DE AUTOLIQUIDAÇÃO
Sustenta a Recorrente que não há lugar à reclamação graciosa prevista no art. 131.º, n.º 1, do CPPT, como condição de acesso à via contenciosa de impugnação, porque não há erro na autoliquidação.
Salvo o devido respeito, se não há erro, então porque pretende o Contribuinte a anulação da autoliquidação?
Como refere JORGE LOPES DE SOUSA, o erro pode ser «quer nos factos em que assentou a liquidação, quer na aplicação das normas legais respectivas» ( Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume II, anotação 3 ao art. 131.º, págs. 406 a 408.). Ora, manifestamente, a Impugnante assaca à autoliquidação um erro de direito. Erro que decorre do facto de, na tese da Impugnante, na autoliquidação ter sido aplicada norma legal (o art. 81.º, n.º 3, do CIRC) numa redacção (a que lhe foi dada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro) que, na medida em que o legislador expressamente (no art. 5.º, n.º 1, da referida Lei) manifestou a intenção de reportar os seus efeitos a uma data anterior à da sua publicação e início de vigência (e, portanto, a factos tributários passados), tem efeitos retractivos e, por isso, viola o princípio constitucional consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP.
A aplicação de norma inconstitucional na autoliquidação, a confirmar-se, constituirá um erro sobre os pressupostos de direito de que enferma esse acto.
Sempre salvo o devido respeito, o argumento da Recorrente enferma de petição de princípio (a verdade da conclusão é pressuposta pelas premissas): a Recorrente sustenta que não há erro na autoliquidação porque pressupõe que o erro a que alude a facti species do n.º 1 do art. 131.º do CPPT é o erro imputável ao contribuinte, como resulta inequivocamente da conclusão 4 das conclusões de recurso, em que afirma: «tendo a liquidação efectuada pelo contribuinte sido feita com base em factos verdadeiros e que correspondem à realidade e mediante a aplicação das normas legais e regras administrativas em vigor, estamos perante uma situação de impugnação de autoliquidação que não se sustenta em erro do contribuinte» (negrito no original). Falta é demonstrar que a lei (n.º 1 do art. 131.º do CPPT) se refere apenas ao erro do contribuinte.
Ora, a nosso ver, nada autoriza a interpretação da lei sustentada pela Recorrente, pois não há elemento hermenêutico algum que aponte no sentido de que a lei quis impor a reclamação graciosa prévia para aceder à via contenciosa apenas nos casos em que o erro na autoliquidação seja imputável ao sujeito passivo: nem a letra, nem a teleologia da norma.
Se a intenção do legislador fosse essa, por certo teria adoptado uma redacção que o revelasse (como o fez em muitas outras disposições legais, em que, pretendendo retirar consequências jurídicas de um facto imputável aos serviços da AT ou ao contribuinte, sempre o referiu expressamente ( V.g., nos arts. 23.º, n.º 1, alínea b), 35.º, n.ºs 1 e 2, 43.º, n.ºs 1, 2 e 3, 53.º, n.º 2, 57.º, n.º 4, 78.º, n.ºs 1, 2 e 4 e 91.º, n.º 9, alínea a), da LGT e nos arts. 39.º, n.º 2, 53.º, n.º 1, 61.º, n.º 1, alínea a), 64.º, n.º 3, 86.º, n.º 4, alínea a), 89.º, n.º 6, 183.º-A, n.º 2, 190.º, n.º 6, 201.º, n.º 7 e 235.º, n.ºs 2 e 3, do CPPT)), sendo que se pressupõe que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento (cfr. art. 9.º, n.º 3, do Código Civil (CC)).
Por outro lado, a teleologia da norma também não exige qualquer juízo de imputação subjectiva relativamente ao erro. Como a doutrina ( Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, ob. e loc. cit. ) e a jurisprudência têm vindo a salientar, «[a] razão de ser da exigência legal da reclamação graciosa prévia à impugnação judicial prende-se com o facto de a autoliquidação não ser um acto tributário da Administração Tributária do qual se possa impugnar directamente. Daí que a lei exija que o sujeito passivo provoque esse acto da Administração Tributária a fim de dele deduzir impugnação judicial» ( Cfr. o acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Fevereiro de 2006, proferido no processo com o n.º 26.622, publicado no Apêndice ao Diário da República de 29 de Setembro de 2006 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2006/32210.pdf), págs. 312 a 316, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/fb2ac773d93c79dd8025711d003be0e1?OpenDocument.
No mesmo sentido, vide também os seguintes acórdãos desta Secção:
- de 31 de Outubro de 2007, proferido no processo com o n.º 593/07, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Maio de 2008 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2007/32240.pdf), págs. 1599 a 1602, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/f72719138f8258a7802573910059b770?OpenDocument;
- de 21 de Maio de 2008, proferido no processo com o n.º 863/07, publicado (ainda que lhe falte a decisão) no Apêndice ao Diário da República de 29 de Setembro de 2008 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2008/32220.pdf), págs. 616 a 619, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6e91a393d9688abe802574580035f6e1?OpenDocument.).
Seja como for, e finalmente, mesmo a aceitar-se a tese da Recorrente, que esse erro tenha que ser do contribuinte, sempre teríamos que concluir que, in casu, o erro invocado na impugnação judicial é devido à sociedade Impugnante, pois a autoliquidação foi efectuada por ela por sua própria iniciativa. Assim, foi ela quem declarou 10% das despesas efectuadas com despesas de representação e de despesas com viaturas de passageiros (inscrevendo esse montante no quadro 10, campo 365, da declaração modelo 22), e efectuou a liquidação com base nesse valor, quando bem podia ter declarado 5%. A afirmação de que o fez em obediência à lei em vigor não exclui a verificação do erro, pois é a própria Recorrente quem vem afirmar a inconstitucionalidade dessa lei.
Concluímos, pois, que no caso sub judice não se pode sustentar a não obrigatoriedade da reclamação graciosa prévia a que alude o art. 131.º, n.º 1, do CPPT com o fundamento de que não houve erro na autoliquidação.
2.2.3 DA VERIFICAÇÃO DOS REQUISITOS PARA A DISPENSA DA RECLAMAÇÃO GRACIOSA PRÉVIA
Defende a Recorrente que, mesmo a admitir-se que a reclamação graciosa prévia era requerida para abrir a via contenciosa de impugnação judicial, sempre haveria de concluir-se que estavam verificados os requisitos de que o n.º 3 do art. 131.º do CPPT faz depender a dispensa dessa reclamação: o fundamento da impugnação judicial for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela AT. Cumpre recordar que esses dois requisitos são de verificação cumulativa, como resulta da conjunção copulativa e utilizada pelo legislador na redacção da norma.
É inequívoca a verificação do primeiro dos requisitos, como a decisão recorrida reconheceu. Onde surge divergência entre a Contribuinte e a decisão recorrida é relativamente ao segundo requisito, ou seja, o de a autoliquidação ter sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela AT: enquanto a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga considerou que o mesmo não estava verificado – porque «não existe conhecimento da existência de qualquer orientação genérica emitida pela administração tributária», nem a Impugnante a identifica –, a Recorrente entende que o mesmo deve ter-se por “materialmente verificado” por, atenta a sua finalidade, dever considerar-se inútil a reclamação graciosa prévia.
A Recorrente não sustenta que a autoliquidação tenha sido efectuada de acordo com orientação genéricas ( Como ficou dito no acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de Maio de 2006, proferido no processo com o n.º 26622, publicado no Apêndice ao Diário da República de 26 de Outubro de 2006 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2006/32220.pdf), págs. 894 a 898, também disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1df0e7f4b644a36e8025718600380312?OpenDocument, por remissão para o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República com o n.º 62/96, de 28 de Maio de 1998, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Outubro de 1998 (http://dre.pt/pdfgratis2s/1998/10/2S246A0000S00.pdf), págs. 14960 a 14971, orientações genéricas «são actos do poder de direcção típico da relação de hierarquia administrativa, os quais dão a faculdade de emanar circulares interpretativas, ou seja, instruções gerais, vinculativas, dirigidas aos órgãos, funcionários e agentes subalternos, acerca do sentido em que devem - mediante interpretação ou integração – entender-se as normas ou princípios jurídicos que, no âmbito do exercício das suas funções, lhes caiba aplicar».) emitidas pela AT quanto à questão em causa. Concretizando a posição da Recorrente: entende esta que a reclamação graciosa prévia se destina «apenas a impor a confirmação da existência de um prévio desacordo ou litígio entre as posições adoptadas pelo contribuinte e pela administração fiscal, desacordo ou litígio este que as vias judiciais são chamadas a dirimir»; assim, e porque entende também que no caso sub judice «este desacordo ou litígio existe de antemão e não pode conceber-se que assim não seja, pois que […] a administração fiscal não pode sindicar a constitucionalidade de uma norma legal, nem pode em caso algum deixar de aplicar uma norma legal existente», pois está vinculada ao princípio da legalidade, concluiu que a prévia reclamação graciosa «não podia ter outro objectivo que não fosse o de atrasar a justiça e de multiplicar trabalhos inúteis».
Salvo o devido respeito, entendemos que a argumentação da Recorrente assenta num pressuposto errado, qual seja o motivo por que a lei exige a reclamação graciosa prévia para abrir a via contenciosa. Como resulta do que deixámos já dito, essa exigência legal tem a ver com a natureza da autoliquidação que, não sendo um acto praticado pela AT, não é susceptível de impugnação directa (Ou seja, apesar de a lei considerar que a autoliquidação é um acto sujeito a impugnação judicial (cfr. art. 97.º, n.º 1, alínea c), do CPPT), faz depender a mesma ). De acordo com o que ficou dito nos dois mais recentes acórdãos desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo que referimos supra, «no caso de autoliquidação, não há um acto da administração que seja imediatamente impugnável, mas sim um acto voluntário do contribuinte. Assim, bem se compreende que o legislador exija, neste caso, a prévia reclamação, a fim de que seja proferido um acto (ou se ficcione essa prática, no caso de indeferimento tácito), para que se abra a via contenciosa».
Assim, a reclamação graciosa terá como função a “administrativização” (Neste sentido, CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 392.) do acto do sujeito passivo. Ou seja, parafraseando JORGE LOPES DE SOUSA ( Ob. e loc. cit.), o art. 268.º, n.º 4, da CRP, garante protecção aos administrados contra os actos da administração e não contra os actos que eles próprios praticam, que tenham efeitos negativos nas suas esferas jurídicas; no caso de autoliquidação, não há qualquer actuação da AT que seja lesiva, não há ainda acto administrativo, «por não existir qualquer tomada de posição da administração sobre a sua relação com o contribuinte, na situação concreta gerada por este ao autoliquidar o tributo».
No caso de autoliquidação, a reclamação graciosa prévia justifica-se, pois, por a AT «não ter tido previamente possibilidade de tomar posição sobre a autoliquidação, efectuada pelo contribuinte por sua própria iniciativa». O que torna compreensível que, nos casos em que a AT já expressamente se pronunciou antecipadamente sobre a questão suscitada pelo interessado na impugnação, o legislador tenha entendido dispensar a reclamação graciosa prévia. É que, como salienta JORGE LOPES DE SOUSA, a AT está «vinculada à observância das «orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza emitidas sobre a interpretação das normas tributárias que estiverem em vigor no momento do facto tributário» [art. 68.º, n.º 4, alínea b), da LGT], pelo que é presumivelmente inútil suscitar a sua intervenção através de reclamação graciosa, que teria de ser indeferida» (Ibidem.).
Se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, a Recorrente pretende que no caso da impugnação judicial ser deduzida com fundamento em inconstitucionalidade de uma norma em que se baseou a autoliquidação lhe deveria ser dado tratamento idêntico – no que se refere à dispensa da reclamação graciosa prévia – à efectuada com base em orientações genéricas. Isto, porque, a seu ver, na reclamação graciosa a AT nunca poderia dar-lhe razão, reconhecendo o erro da Contribuinte e a inconstitucionalidade da norma aplicada na autoliquidação, porque a AT «não pode sindicar a constitucionalidade de uma norma legal, nem pode em caso algum deixar de aplicar uma norma legal existente» (cfr. art. 55.º da LGT e art. 266.º, n.º 2, da CRP) e, assim, a situação deveria merecer o mesmo tratamento que a da existência de orientações genéricas.
A Recorrente pretende, afinal, que se efectue uma interpretação extensiva (Nos termos da qual, «o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adoptada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que se pretendi dizer. Alarga ou estende então o texto, dando-lhe um alcance conforme ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei»; «assume normalmente a forma de extensão teleológica: a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são directamente abrangidos pela letra da lei mas são abrangidos pela finalidade da mesma» (BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, págs. 185/186).) do disposto no n.º 3 do art. 131.º do CPPT, de modo a que também no caso de a impugnação judicial ter exclusivamente como fundamento a inconstitucionalidade de uma norma de incidência aplicada na autoliquidação, a mesma não ficar dependente da prévia reclamação graciosa.
Afigura-se-nos que a Recorrente tem razão quando afirma que os mesmos motivos que levaram o legislador à dispensa da reclamação graciosa prévia quando existam orientações genéricas emitidas pela AT, justifica também a dispensa quando o interessado pretenda impugnar a autoliquidação com exclusivo fundamento na inconstitucionalidade da norma.
Na verdade, como ficou já dito, nesse caso a reclamação graciosa teria necessariamente que ser indeferida, porque a AT está vinculada à observância das orientações genéricas, por força do disposto na alínea b) do n.º 4 do art. 68.º da LGT. O que significa que, nesse caso, se pode presumir a inutilidade de suscitar a intervenção da AT.
Também assim será no caso em que a impugnação judicial tenha como fundamento exclusivo a inconstitucionalidade de uma norma em que se baseou a autoliquidação. Nesse caso, e a menos que esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP (Diz o art. 18.º da CRP no seu n.º 1: «Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas».), a AT não pode recusar-se a aplicar a norma com fundamento em inconstitucionalidade (Com interesse sobre a questão, vejam-se os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República referidos na Colectânea dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, volume V, pontos 10, 3, 3.2 – respectivamente, com as epígrafes «Fiscalização da constitucionalidade», «Fiscalização sucessiva» e «(In)aplicação de norma inconstitucional (poderes e deveres da Administração Pública)» –, cuja doutrina seguimos.). É que a Administração em geral está sujeita ao princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente (art. 266.º, n.º 2, da CRP (Diz o art. 266.º CRP: «1. A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé».) e a AT está-lo também por força do disposto no art. 55.º da LGT.
A nosso ver, a AT deverá aguardar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a emitir pelo Tribunal Constitucional (TC), nos termos do art. 281.º da CRP.
É que, como diz VIEIRA DE ANDRADE, «Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição» (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270.).
No mesmo sentido, JOÃO CAUPERS afirma que «a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207º [hoje, 204.º] e 266º, nº 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei.
Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excepcional» (Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, 1985, pág. 157.).
Concluímos, assim, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal.
O que nos leva a concluir, com a Recorrente, que no caso sub judice a reclamação graciosa prévia, porque deduzida com fundamento exclusivo na inconstitucionalidade da alínea a) do n.º 3 do art. 81.º do CIRC, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, por violação do princípio da irretroactividade da lei fiscal não poderia ter outro destino senão o indeferimento. Nada obstando a que a reclamação graciosa fosse deduzida com esse fundamento (cfr. art. 70.º, n.º 1, do CPPT), a verdade é que a mesma não pode conhecer outra decisão senão aquela, pois, como deixámos dito, a AT não tem a possibilidade recusar a aplicação da norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC tivesse já emitido declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Ora, se a decisão da reclamação graciosa nunca poderia ser noutro sentido senão no do indeferimento, temos que concordar com a Recorrente que essa reclamação constituiria acto inútil.
Na verdade, não podemos subscrever a argumentação aduzida no despacho recorrido, que parece ir no sentido de que a AT sempre poderia não aplicar a norma por reputá-la inconstitucional.
Assim, não se discutindo que estamos perante fundamento meramente de direito, as mesmas razões que levaram o legislador a dispensar a reclamação graciosa no caso de existirem orientações genéricas emitidas pela AT, justificam também a dispensa no caso em que o fundamento seja exclusivamente a inconstitucionalidade da norma; tal como naquele caso a AT «já se pronunciou antecipadamente sobre a questão suscitada pelo interessado na impugnação […], pelo que é presumivelmente inútil suscitar a sua intervenção através de reclamação graciosa, que teria de ser indeferida», também neste caso, não tendo a AT possibilidade de se pronunciar noutro sentido senão no do indeferimento, seria inútil a sua intervenção.
Neste caso, contrariamente ao que sucede na generalidade dos casos de autoliquidação, verifica-se à partida, isto é, ainda antes da tomada de posição da AT mediante a decisão da reclamação graciosa, a situação de litígio susceptível de justificar a intervenção do tribunal administrativo e fiscal (cfr. art. 212.º, n.º 3, da CRP).
Haverá, pois que interpretar extensivamente o n.º 3 do art. 131.º do CPPT, de modo a que se permita a impugnabilidade directa da autoliquidação também nos casos em que a impugnação judicial seja deduzida exclusivamente com fundamento na inconstitucionalidade da norma em que se baseou aquele acto tributário, designadamente por violação do princípio da irretroactividade fiscal. Conquanto tal situação não esteja contemplada na letra da lei, está abrangida pelo seu espírito, inexistindo qualquer razão que permita concluir que o legislador, tendo ponderado a situação, não lhe quis dar a mesma solução jurídica que àquela que expressamente previu na norma.
A decisão recorrida que assim não considerou, porque partiu do pressuposto, errado, de que a AT poderia decidir pela não aplicação da norma caso a entendesse inconstitucional, não pode manter-se.
2.2.4 CONCLUSÕES
O recurso será, pois, provido e, preparando a decisão, formulamos seguintes conclusões:
I - A alegada inconstitucionalidade da norma ao abrigo da qual o contribuinte efectuou a autoliquidação integra o conceito de erro a que alude o n.º 1 do art. 131.º do CPPT.
II - No caso de erro na autoliquidação, a lei exige a reclamação graciosa prévia como forma de abrir a via contenciosa, a menos que (1.º) o fundamento da impugnação seja exclusivamente de direito e (2.º) a autoliquidação tenha sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela AT (art. 131.º, n.ºs 1 e 3, do CPPT).
III - Isto, porque a autoliquidação, que é efectuada pelo contribuinte, não constitui um acto administrativo e, por isso, não é impugnável directamente, exigindo-se antes da impugnação uma actuação da AT no sentido de “administrativizar” o acto.
IV - O segundo dos dois requisitos cumulativos exigidos pelo n.º 3 do art. 131.º do CPPT para dispensar a reclamação prévia enquanto condição para abrir a via contenciosa em caso de autoliquidação – «a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» – justifica-se porque, nesta hipótese, a AT já se pronunciou previamente sobre a questão suscitada e encontra-se vinculada pelas orientações (cfr. art. 68.º, n.º 4, da LGT), motivo porque seria inútil suscitar a sua intervenção através de reclamação graciosa, que teria de ser indeferida.
V - A mesma razão de ser vale para as situações em que o fundamento da impugnação seja exclusivamente a inconstitucionalidade da norma em que se fundou a autoliquidação por violação do princípio da irretroactividade da lei fiscal, pois também nesse caso a reclamação constituiria acto inútil por nunca poder ser julgada procedente, em virtude de a AT estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarada a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP), o que não é o caso.
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3. DECISÃO
Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e ordenar que os autos regressem à 1.ª instância, a fim de aí prosseguirem os seus termos.
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Sem custas, uma vez que a Fazenda Pública não contra alegou o recurso.
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Lisboa, 12 de Outubro de 2011. - Francisco Rothes (relator) – António CalhauValente Torrão.