Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0954/16
Data do Acordão:11/16/2016
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:I - Ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia se nesta se deixaram de conhecer questões suscitadas na petição inicial cujo conhecimento não deva ter-se como prejudicado em face da solução dada ao litígio (cfr. art. 125.º do CPPT).
II - Os actos tributários estão sujeitos a fundamentação (art. 268.º, n.º 3, da CRP e art. 77.º da LGT), a qual deve permitir aos seus destinatários ficar a conhecer os motivos por que a Administração os praticou e habilitá-los a optar conscientemente entre conformarem-se com os mesmos ou contra eles reagirem.
III - Não pode ter-se como fundamentada a liquidação de juros compensatórios da qual, com referência à mesma liquidação de IRS, constam dois valores base sem que se justifique o porquê, e não se faz alusão alguma ao motivo por que os valores das taxas de juros são os aí referidos, designadamente indicando as disposições legais que os suportam e prevêem.
Nº Convencional:JSTA000P21164
Nº do Documento:SA2201611160954
Data de Entrada:07/28/2016
Recorrente:A... E OUTRA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 2944/06.7BEPRT

1. RELATÓRIO

1.1 A………….. e mulher, B……………. (doravante Impugnantes ou Recorrentes), recorrem para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a impugnação judicial por eles deduzida contra as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e respectivos juros compensatórios.

1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e os Recorrentes apresentaram as alegações de recurso, que resumiram em conclusões do seguinte teor:

«1. Na verdade, os Recorrentes não se podem conformar com a douta sentença impugnada.

2. Em primeiro lugar, deve dizer-se que a sentença enferma de nulidade, porquanto não se pronunciou sobre a totalidade dos vícios invocados pelos Recorrentes, deduzidos na impugnação apresentada.

3. E, caso estes vícios tivessem sido ajuizados, a decisão teria sido distinta.

4. Concluindo-se pela procedência da impugnação.

5. Por outro lado, o acto de liquidação em causa carece da devida e necessária fundamentação.

6. O mesmo sucedendo com a liquidação dos juros compensatórios.

7. Por último, diga-se que a douta sentença violou os arts. 77.º da LGT, 124.º do CPA, 125.º, n.º 1, do CPPT, 124.º e 133.º do CPA, e 13.º e 104.º, n.º 2 e 268.º, n.º 3, da CRP.

Nestes termos, dando-se provimento ao presente recurso, V. Ex.as farão justiça».

1.3 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto proferiu despacho – ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. do Código de Processo Civil (CPC) – no qual, apreciando a invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia, considerou «a mesma não ocorre e que os vícios apontados foram conhecidos pelo tribunal».

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja concedido parcial provimento ao recurso, anulada a liquidação dos juros compensatórios e ordenada a baixa dos autos à 1.ª instância para prolação de nova sentença que conheça das questões omitidas, com a seguinte fundamentação (Porque usamos o itálico nas transcrições, os excertos que estavam em itálico no original surgirão, aqui como adiante, em tipo normal.):

«[…] Para além de questionarem o acerto da decisão quanto à questão da fundamentação do acto de liquidação do imposto e do acto de liquidação dos juros compensatórios, sustentam ainda os Recorrentes que a sentença é nula, por não ter conhecido do invocado “erro na tributação” (IRC em vez de IRS) que em concreto traduzem na alegação de que “inexiste facto tributário que sustente a presente liquidação em sede de IRS” (art. 27.º da pi) e da questão da dupla tributação (arts. 28.º a 30.º da p.i.).
Começando pela arguida nulidade da sentença.
A omissão de pronúncia consiste no incumprimento do dever que a lei impõe ao juiz de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, sendo geradora de nulidade, nos termos do disposto no art. 125.º, n.º 1 do CPPT e art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, quando o conhecimento da questão (ou questões) omitida(s) não esteja prejudicado pela solução dada às demais questões suscitadas. No entanto, tal nulidade só se verifica quando o Tribunal não se pronuncie sobre questão(ões) que lhe tenha(m) sido suscitada(s) e não sobre o conjunto de argumentos que tenham sido invocados pelas partes.
No caso vertente, inexiste qualquer pronúncia sobre as questões enunciadas, não obstante no “relatório da sentença” exista expressa alusão a essas questões, como tendo sido suscitadas na impugnação.
Assim, salvo melhor entendimento, independentemente da pertinência e do mérito dessas questões, cujo conhecimento não está prejudicado pela solução dada às demais questões suscitadas, não poderá deixar de ser julgada procedente a arguida nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos dos apontados arts. 125.º do CPPT e 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
O mesmo não se dirá quanto à questão da falta de fundamentação da sindicada liquidação do imposto.
Resulta do probatório [alíneas b) a d) dos factos provados] que em consequência dos factos apurados na acção inspectiva foram efectuadas correcções de natureza meramente aritmética.
Resulta ainda do probatório que no âmbito dessa acção inspectiva foi cumprida e efectivada a formalidade da audição prévia, tendo o impugnante sido notificado do relatório de inspecção, na pessoa do seu representante legal [alíneas e) e f) dos factos provados].
Resulta finalmente do probatório que, na sequência do apurado na acção inspectiva, foram emitidas as liquidações impugnadas [alínea g) dos factos provados].
A exigência da fundamentação dos actos administrativos tem em vista, além do mais, levar ao conhecimento dos interessados as concretas razões que os motivaram, de modo a possibilitar o seu acatamento informado ou a respectiva reacção administrativa ou contenciosa.
Ora os Recorrentes, como expressamente o reconhecem na sua Alegação (a fls. 85), sabem que as liquidações impugnadas assentam no resultado da aludida acção inspectiva e que é no relatório dessa inspecção que as mesmas se fundamentam, sendo certo que não ignoram o conteúdo desse relatório, pois que o mesmo lhes foi notificado, como acima se referiu, não lhe apontando qualquer insuficiência, incongruência ou falta de clareza.
Não podem pois invocar nem a inexistência nem o desconhecimento da fundamentação do sindicado acto de liquidação do IRS. O que eventualmente poderão alegar, admite-se, é a irregular notificação do acto de liquidação, por não conter os respectivos fundamentos. Porém, a falta de notificação da fundamentação não origina a invalidade do acto notificado, apenas possibilitando o recurso ao meio previsto no art. 37.º do CPPT.
No que concerne à específica fundamentação dos juros compensatórios o que dispõe o art. 35.º, n.º 9 da LGT é que a liquidação deve sempre evidenciar claramente o montante principal da prestação e os juros compensatórios, explicando com clareza o respectivo cálculo e distinguindo-os de outras prestações devidas.
A propósito desta temática vem a jurisprudência deste STA considerando que a fundamentação mínima exigível dos actos de liquidação de juros compensatórios deverá indicar a quantia sobre a qual os mesmos incidem, o período de tempo considerado para a liquidação e a taxa ou taxas aplicadas, para além da indicação dos diplomas legais em que assenta a liquidação desses juros e que esses elementos devem ser indicados na liquidação, directamente ou por remissão para algum documento anexo (cfr., entre outros, os doutos Acórdãos de 11.02.2009 – P. 01002/08 e de 09.03.2016 – P. 0805/15 e a demais jurisprudência neste citada; cfr ainda Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e comentada, 4.ª edição, 2012, pgs. 284 e 285).
A fundamentação exigível da liquidação dos juros compensatórios “deverá permitir conhecer integralmente o itinerário seguido pela entidade liquidadora para calcular os juros” (Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit.).
Ora, no caso em apreço, como referem os ora Recorrentes, a nota de liquidação que inclui a demonstração do cálculo dos juros compensatórios não esclarece a razão de ser dos distintos valores de base considerados (€ 4.032,64 e € 2.298,09) e as diversas taxas de juro aplicadas (7% e 4%), não indicando ainda quais os preceitos ou diplomas legais que as prevêem nem remetendo para qualquer documento anexo.
Não cumpre, pois, a liquidação dos juros compensatórios, salvo melhor entendimento, os requisitos específicos da fundamentação dos juros compensatórios».

1.6 Colheram-se os vistos dos Conselheiros adjuntos.

1.7 Cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

«a) No seguimento das ordens de serviço n.º OI200405288 (ano de 2000 – âmbito parcial: SISA) e OI200405289 (ano de 2001 – âmbito parcial: IRS e SISA), os impugnantes foram alvo de uma acção inspectiva (cf. fls. 23 a 42 e 49/72 do processo administrativo apenso aos autos, doravante, apenas PA).

b) No relatório elaborado vem referido que “Foi remetida pela Direcção de Finanças de Aveiro uma Procuração, com data de 24-05-2005, em que o Eng. A…………….., contribuinte nº ……………, constitui como seus Procuradores o Dr. C…………. e o Dr. D…………., advogados, com escritório na Rua ……….., ………. 4000-… Porto para o representarem, em conformidade com o art. 52.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária” (cf. fls. 27 do PA e 50 dos autos).

c) Apuraram os SIT que “Conforme os factos relatados no ponto II - C) deste relatório, verificou-se que: * a fracção I do Lote 24 foi objecto de escritura de venda celebrada entre o “promitente vendedor” (empresa “……”) e ……….. (“terceiro”), com quem os “promitentes-compradores” ajustaram a revenda: * as restantes fracções constantes dos contratos promessa de compra e venda estabelecidos entre o “promitente vendedor” e os “promitentes-compradores” foram outorgadas através de escrituras públicas de venda entre o “promitente vendedor” e terceiros, com quem ocorreu posterior ajuste de revenda feito pelos “promitentes-compradores- ver anexo 6” (cf. fls. 34/35 do PA).

d) Na sequência nos factos ali apurados foram efectuadas correcções de natureza meramente aritmética, relativamente à matéria tributável de IRS do ano de 2001, tendo sido apurada uma mais-valia no montante de € 12.469,95, bem como o apuramento de sisa, em falta de liquidação, nos montantes de € 4.015,32 e € 13.561,32 respectivamente, em 2000 e 2001, donde resultou a liquidação impugnada (cf. fls. 60 do processo de reclamação apenso aos autos).

e) Resulta do relatório inspectivo que o impugnante foi notificado para efeitos de audição prévia, na pessoa do seu representante, Dr. C……….., pronunciando-se aquele nos moldes que constam do dito relatório (cf. fls. 41/43 do PA).

f) O Impugnante foi ainda notificado do relatório inspectivo através do ofício n.º 66791/0505 de 07/12/2005, mediante termo de notificação pessoal da mesma data, na pessoa do seu representante legal – Dr. C……….. (cf. fls. 44/48 do PA).

g) Na sequência do apurado em sede inspectiva foi emitida a liquidação de IRS n.º 20055004480340 no montante de € 4.496,55 e a demonstração da liquidação de juros compensatórios n.º 200500013202673 no montante de € 463,91, resultando, após a demonstração de acerto de contas, o montante a pagar de € 2.762,00 (cf. fls. 9/11 dos autos).

h) Inconformados com tal liquidação, os impugnantes deduziram em 28/03/2006, reclamação graciosa (cf. processo de reclamação graciosa apenso aos autos).

i) Sobre a reclamação foi elaborada em 02/06/2006 uma informação onde se pugnava pelo indeferimento da reclamação e sobre a qual, após o exercício do direito de audição, recaiu o Despacho de 10/10/2006 de “Concordo” (cf. fls. 98/107 do processo de reclamação graciosa).

j) Pelo ofício n.º 10221 de 06/11/2006, o representante do impugnante, Dr. C……….., foi notificado da decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa (cf. fls. 106/107 do processo de reclamação graciosa).

k) A presente impugnação foi intentada em 17/11/2006 (cf. fls. 2 dos autos)».


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

Na sequência de uma acção de inspecção, a AT liquidou adicionalmente aos ora Recorrentes IRS e respectivos juros compensatórios.
Os ora Recorrentes impugnaram essas liquidações, pedindo ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto a anulação daqueles actos, com os seguintes fundamentos: i) falta de notificação do relatório da acção inspectiva que deu origem às liquidações impugnadas, ii) falta de fundamentação destes actos, quer quanto à liquidação do imposto, quer quanto à liquidação dos juros compensatórios, iii) “inexistência de facto tributário em sede de IRS”, sendo que a tributação deveria ser feita em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), uma vez que se trata de rendimento auferido no exercício da actividade de uma sociedade, posto que irregular e iv) os rendimentos em causa, resultantes da «mesma operação economicamente relevante» estão a ser duplamente tributados, quer em sede de Sisa, quer em sede de IRS, em violação dos princípios da capacidade contributiva, da igualdade e da proporcionalidade, todos com consagração constitucional.
A sentença julgou improcedente a impugnação judicial. Para tanto, começou por apreciar o invocado vício de preterição de formalidade legal decorrente da falta de notificação do relatório da inspecção, para concluir pela não verificação do mesmo. Depois, apreciando a invocada falta de fundamentação, quer relativamente à liquidação de imposto, quer à liquidação dos juros compensatórios, considerou que a mesma se não verificava.
Relativamente à fundamentação da liquidação dos juros compensatórios – que ora nos interessa considerar porque os Recorrentes discordaram do julgamento – entendeu a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que «o impugnante foi notificado da respectiva demonstração de cálculo, dali resultando de forma expressa os períodos de tributação, o valor base, o período de cálculo, a taxa aplicável e os montantes apurados».
Inconformados com a sentença, os Impugnantes dela recorrem para este Supremo Tribunal Administrativo. Alegam, em síntese, que a sentença não se pronunciou sobre todas as questões suscitadas na petição inicial, cuja apreciação não ficou prejudicada pela decisão encontrada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, motivo por que a sentença incorreu em nulidade por omissão de pronúncia, como resulta do disposto no art. 125.º, n.º 1, do CPPT. Mais alegam que a sentença fez errado julgamento ao considerar que as liquidações de IRS e dos respectivos juros compensatórios estão devidamente fundamentadas.
Assim, as questões a apreciar e decidir são as de saber se a sentença recorrida i) enferma de nulidade por omissão de pronúncia (cfr. conclusões com os n.ºs 2 a 4) e ii) incorreu em erro de julgamento ao considerar que as liquidações estão devidamente fundamentadas (cfr. conclusões com os n.ºs 5 a 7).

2.2.2 DA NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA

Esta nulidade, prevista no art. 125.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil (CPC), está directamente relacionada com o comando constante do n.º 2 do art. 608.º deste último diploma, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Tendo presentes os fundamentos invocados pelos Impugnantes na petição inicial – e que acima deixámos resumidamente enunciados – é fácil concluir que ficaram por conhecer alguns deles, designadamente o respeitante à tributação dos rendimentos em causa em IRS, porque os Impugnantes sustentam que a tributação deveria ser feita em sede de IRS e à sociedade irregular constituída entre os eles e o seu genro e o respeitante à violação dos princípios da capacidade contributiva, da igualdade e da proporcionalidade, que invocam porque consideram que os rendimentos em causa, resultantes da «mesma operação economicamente relevante», estão a ser duplamente tributados, quer em sede de Sisa, quer em sede de IRS.
Compulsada a sentença, verifica-se que estas questões não foram conhecidas nem pode considerar-se que o seu conhecimento tenha ficado prejudicado pela solução dada à causa, uma vez que a impugnação judicial foi julgada improcedente. Aliás, atenta a ordem de conhecimento dos vícios na sentença imposta pelo art. 124.º, n.º 2, alínea b), in fine, do CPPT, impunha-se até que se tivesse iniciado a apreciação pelos vícios que ficaram por apreciar, pois a procedência destes, na medida em que obviaria à renovação do acto impugnado – ao invés do que sucede com o vício de falta de fundamentação –, conferiria uma tutela mais eficaz dos direitos dos Impugnantes (Neste sentido, JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, II volume, anotações 17 e 19 ao art. 124.º, págs. 340 e 342, respectivamente.).
Impõe-se, pois, a anulação da sentença por omissão de pronúncia, na parte viciada, e o regresso dos autos à 1.ª instância para conhecimento das referidas questões.

2.2.3 DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

Sem prejuízo do que ficou dito, impõe-se sindicar a sentença na parte em que não está afectada pela nulidade, ou seja, impõe-se conhecer do invocado erro de julgamento relativamente ao vício de falta de fundamentação da liquidação de IRS e da liquidação de juros compensatórios.
A sentença, após tecer pertinentes considerandos em torno do dever de fundamentação dos actos tributários, entendeu que «a simples leitura do relatório inspectivo que sustenta a liquidação permite facilmente identificar o iter cognoscitivo que presidiu e sustentou a liquidação».
Os Recorrentes não discutem que as liquidações tiveram origem no relatório da acção inspectiva; aliás, como judiciosamente observou o Procurador-Geral Adjunto, afirmam expressamente que «a liquidação em apreço assentou no resultado de uma acção inspectiva realizada na Direcção Distrital de Finanças do Porto». No entanto, sustentam que a liquidação não está fundamentada, nem sequer por remissão para esse relatório.
Se bem alcançamos a alegação dos Recorrentes, estes parecem reduzir o acto de liquidação à nota de liquidação que lhes foi enviada: nesta, na verdade, não se refere qualquer fundamentação do acto. Mas o acto de liquidação não se confunde com a notificação do mesmo, concretizada pelo envio da nota de liquidação.
Como este Supremo Tribunal tem vindo a dizer, uma coisa é a fundamentação do acto e outra é a comunicação desses fundamentos ao interessado: enquanto aquela constitui um vício susceptível de determinar a anulação do acto que dela padeça, o incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de comunicação dos fundamentos não se podem reflectir na validade do acto comunicando (Vide, entre muitos outros, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 3 de Maio de 2006, proferido no processo n.º 154/06, publicado no Apêndice ao Diário da República de 26 de Outubro de 2006 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2006/32220.pdf), págs. 692 a 695, também disponível em
- de 15 de Fevereiro de 2012, proferido no processo n.º 872/11, publicado no Apêndice ao Diário da República de 18 de Abril de 2013 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2012/32210.pdf), págs. 412 a 419, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1bbaeac622479cd0802579b90042a6f9.). O dever de comunicação dos fundamentos não se identifica ou confunde com o dever de fundamentação. Como refere VIEIRA DE ANDRADE, «uma coisa será permitir que do exterior se conheçam as razões da decisão, outra coisa será levar ao exterior o conhecimento delas» (O Dever de fundamentação expressa dos actos administrativos, Almedina, 1991, pág. 47.). É por isso que os problemas existentes quanto ao incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de comunicação dos fundamentos não se podem reflectir na validade do acto comunicando. No nosso sistema, as eventuais deficiências que a notificação apresente apenas atingem a eficácia do acto notificando e não a sua perfeição ou validade, pois, como resulta do n.º 6 do art. 77.º da LGT, a comunicação do acto constitutivo de deveres e encargos é apenas uma condição de eficácia (Para maior desenvolvimento sobre a distinção entre acto de notificação e acto notificado, vide JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume I, anotação 3 a) ao art. 37.º, págs. 349 a 351.).
Ora, sendo certo que da nota de notificação nada consta como fundamentação da liquidação, certo é que, como os Recorrentes admitem, este acto, ora impugnado, assenta no relatório da inspecção que lhes foi efectuada. Aliás, quando da notificação do mesmo, logo foram advertidos de que seriam notificados da consequente liquidação de imposto e juros compensatórios.
Assim, e porque não vem posta em causa a conclusão a que chegou a sentença recorrida, de que os fundamentos constantes desse relatório permitem a um destinatário médio conhecer as razões de facto e de direito que levaram à liquidação do imposto, inexiste qualquer erro de julgamento no que respeita à fundamentação deste acto.
Já no que respeita à liquidação dos juros compensatórios, a situação é diversa.
É inquestionável que a liquidação de juros compensatórios, como acto tributário que é, está também sujeita a fundamentação (cfr. art. 77.º da LGT e art. 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa).
Segundo a sentença, «no que tange à liquidação dos juros compensatórios cumpre referir que o impugnante foi notificado da respectiva demonstração de cálculo, dali resultando de forma expressa os períodos de tributação, o valor base, o período de cálculo, a taxa aplicável e os montantes apurados (fls. 10 dos autos)».
Os Recorrentes sustentam que a fundamentação externada não explica «o facto dos valores base serem distintos (4.032,64 € e 2.298,09 €) e sobre tais valores, as taxas de juro aplicadas, serem, assim, diversas (7% e 4%)» e não indica, designadamente, quais os diplomas legais em que estão previstas essas taxas de juro.
Tendo isto presente, cumpre então verificar se a sentença fez correcto julgamento ao considerar o acto de liquidação dos juros compensatórios suficientemente fundamentado.
Antes do mais, recordemos as disposições legais que regulam os juros compensatórios em sede de IRS, ou seja, o art. 91.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e o art. 35.º da LGT.
Diz o primeiro daqueles preceitos: «Sempre que, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária, acrescem ao montante do imposto juros compensatórios nos termos do artigo 35.º da Lei Geral Tributária».
Por seu turno, o art. 35.º da LGT dispõe, nos números que ora nos interessa considerar, o seguinte:
«1- São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.
[…]
9- A liquidação deve sempre evidenciar claramente o montante principal da prestação e os juros compensatórios, explicando com clareza o respectivo cálculo e distinguindo-os de outras prestações devidas.
10- A taxa dos juros compensatórios é equivalente à taxa dos juros legais fixados nos termos do n.º 1 do artigo 559.º do Código Civil.».
Como é sabido, as exigências de fundamentação variam conforme as circunstâncias concretas, designadamente o tipo de acto, a não participação do interessado no procedimento anterior ao acto ou, no caso da participação, a extensão desta. No que respeita aos juros compensatórios, admitimos que as exigências de fundamentação sejam reduzidas ao mínimo. Eventualmente, ainda que com algumas reservas, admitimos que nem sequer se exija a referência à norma legal ao abrigo do qual os juros foram liquidados, pois é do conhecimento geral que se o atraso na liquidação do imposto devido for imputável ao contribuinte há lugar à liquidação de juros compensatórios.
Admitimos ainda que se considere que a fundamentação do “atraso na liquidação por motivo imputável ao contribuinte” se baste com a mera referência à liquidação adicional que o originou.
Também no que se refere à culpa, aceitamos que a fundamentação se baste com a descrição da conduta quando, como no caso, esta assuma a natureza de ilícito. Na verdade, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a defender a tese de que quando uma determinada conduta constitui um facto qualificado por lei como ilícito se deve fazer decorrer dessa conduta – por ilação lógica – a existência de culpa (não porque a culpa se presuma, mas por ser algo que, em regra, se liga ao carácter ilícito-típico do facto praticado) e que, por essa via, se deve partir do pressuposto de que existe culpa sempre que a actuação do contribuinte integra a hipótese de qualquer infracção tributária (A este propósito, vide o acórdão desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Dezembro de 2010, proferido no processo com o n.º 578/10, publicado no Apêndice ao Diário da República de 26 de Maio de 2011 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2010/32240.pdf), págs. 1931 a 1936, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d00ec90cb602b52e8025780f0051a7b4?. ).
No entanto, há ainda uma declaração mínima que se nos afigura indispensável para que se cumpram as exigências legais de fundamentação que visam, afinal, que o contribuinte possa optar conscientemente entre o conformar-se com o acto, aceitando a sua legalidade, ou contra ele reagir administrativa ou contenciosamente. Nesse conteúdo mínimo da declaração fundamentadora deverá conter-se a referência ao montante de imposto sobre o qual foram liquidados os juros compensatórios, à taxa ou taxas aplicáveis, ao período de tempo em que tais juros são exigíveis, com indicação dos termos iniciais e finais da contagem e a indicação das disposições legais que prevêem a responsabilidade por juros compensatórios e as que prevêem as taxas aplicadas (Cfr. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 4.ª edição, anotação 9 ao art. 35.º, págs. 284/285. ).
É certo que, como diz a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, da demonstração de liquidação dos juros compensatórios resultam expressamente «os períodos de tributação, o valor base, o período de cálculo, a taxa aplicável e os montantes apurados». O que, prima facie, levaria a considerar – como considerou a sentença – que estavam observados os requisitos mínimos de fundamentação.
Sucede, no entanto, que na referência ao valor base são considerados dois valores diferentes: € 4.032,64 e € 2.298,09; e, no que respeita, às taxas de juros aplicadas sucessivamente, também são indicadas duas diferentes: 7% e 4%. Ora, nem nesse documento nem em qualquer outro para o qual se remeta, consta a explicação dos motivos por que foram usados dois valores base diferentes com referência à mesma liquidação de IRS e duas taxas de juros diferentes, sendo que, em relação a estas, deveria indicar-se as disposições legais que as suportam e onde estão previstas.
Só perante esses elementos o contribuinte poderá verificar se a liquidação foi ou não efectuada de acordo com a lei e o tribunal, se tal lhe for solicitado, poderá desempenhar a sua tarefa de sindicância dessa legalidade. É certo que o tribunal está habilitado a compreender os motivos subjacentes a tais indicações, mas, sem que a Administração os tenha exteriorizado, não pode servir-se deles para considerar a liquidação como fundamentada. Tenha-se sempre presente que a finalidade última da fundamentação é a de habilitar o destinatário do acto a optar de forma informada entre conformar-se com o acto ou reagir contra ele.
Assim, como bem salientou o Procurador-Geral Adjunto e tal como tem vindo a decidir este Supremo Tribunal (Vide, entre outros, os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 11 de Fevereiro de 2009, proferido no processo n.º 1002/08, publicado no Apêndice ao Diário da República de 30 de Abril de 2009 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2009/32210.pdf), págs. 241 a 244, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/afda64de2d8db9438025755f0041b823?;
- de 21 de Abril de 2010, proferido no processo n.º 743/09, publicado no Apêndice ao Diário da República de 30 de Março de 2011 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2010/32220.pdf), págs. 680 a 684, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3a7be81163b383188025771100541a2c;
- de 14 de Fevereiro de 2013, proferido no processo n.º 645/12, publicado no Apêndice ao Diário da República de 11 de Março de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2013/32210.pdf), págs 790 a 793, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8b3c9ee063d5daef80257b26005120cc;
- de 9 de Março de 2016, proferido no processo n.º 805/15, ainda não publicado no jornal oficial, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8b8a54a2bf621e8380257f77005a1ff0.), não podemos ter a fundamentação da liquidação dos juros compensatórios como suficiente.
A sentença recorrida, porque decidiu em sentido diverso, será revogada nessa parte e os autos deverão regressar à 1.ª instância, a fim de aí e após fixação da matéria de facto pertinente, serem conhecidos os fundamentos de impugnação judicial que a sentença não conheceu.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia se nesta se deixaram de conhecer questões suscitadas na petição inicial cujo conhecimento não deva ter-se como prejudicado em face da solução dada ao litígio (cfr. art. 125.º do CPPT).
II - Os actos tributários estão sujeitos a fundamentação (art. 268.º, n.º 3, da CRP e art. 77.º da LGT), a qual deve permitir aos seus destinatários ficar a conhecer os motivos por que a Administração os praticou e habilitá-los a optar conscientemente entre conformarem-se com os mesmos ou contra eles reagirem.
III - Não pode ter-se como fundamentada a liquidação de juros compensatórios da qual, com referência à mesma liquidação de IRS, constam dois valores base sem que se justifique o porquê, e não se faz alusão alguma ao motivo por que os valores das taxas de juros são os aí referidos, designadamente indicando as disposições legais que os suportam e prevêem.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência,

a) julgar verificada a nulidade (parcial) da sentença por omissão de pronúncia e ordenar que os autos regressem a 1.ª instância para conhecimento das questões acima referidas, mantendo-se a sentença no demais (sem prejuízo do ponto seguinte);

b) sem prejuízo do ponto anterior, revogar a sentença recorrida na parte em que julgou improcedente a impugnação judicial relativamente à liquidação dos juros compensatórios e, julgando a impugnação judicial procedente nessa parte, anular essa liquidação.

Sem custas.

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Lisboa, 16 de Novembro de 2016. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Casimiro Gonçalves.