Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0341/15
Data do Acordão:05/14/2015
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA
MORATÓRIA
PAGAMENTO
Sumário:I - A Administração Tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei.
II - O processo especial de revitalização instituído pelos arts. 17º-A a 17º-I, aditados ao CIRE pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, não autoriza a Administração Tributária a conceder qualquer moratória na cobrança das dívidas tributárias para além das já previstas na lei.
Nº Convencional:JSTA000P18997
Nº do Documento:SA2201505140341
Data de Entrada:03/23/2015
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A FAZENDA PÚBLICA recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que julgou procedente a reclamação judicial que a sociedade A……………….., LDA, deduziu contra a decisão do órgão de execução fiscal que ordenou a penhora de bens desta sociedade na execução fiscal que contra si corre para cobrança de dívida tributária.
Terminou a sua alegação enunciando as seguintes conclusões:

a) Incide o presente recurso sobre a douta sentença que julgou procedente a reclamação apresentada nos autos com a consequente revogação do despacho reclamado, cumprindo indagar da sua legalidade;

b) Está em causa decisão proferida pelo Órgão de Execução Fiscal que ordenou a penhora de um bem imóvel, no caso as instalações da reclamante;

c) Segundo o douto entendimento do Tribunal a quo, não pode ser instaurado qualquer processo de execução e suspendendo-se os existentes, enquanto pender o plano especial de revitalização da empresa reclamante, ao abrigo do art. 17º-E, nº 1 do CIRE;

d) Atentos à factualidade cronológica dos acontecimentos, podemos facilmente depreender que a AT agiu em conformidade com os princípios básicos da legalidade fiscal, tendo em atenção a intangibilidade dos créditos tributários e a sua prevalência sobre qualquer legislação especial.

e) A reclamante devedora requereu um plano de recuperação (PER) em 15/11/2013. De acordo com o legalmente previsto, existindo dívidas fiscais à data, no montante de € 23,50, foram as mesmas reclamadas, tendo a AT, através da Direcção de Serviços de Gestão dos Créditos Tributários, manifestado intenção em participar nas negociações do PER, de acordo com o Ofício 8950 de 28/11/2013. Não obstante esta disponibilidade, o certo é que nunca foi contactada para fazer parte das negociações, embora esta fosse uma diligência obrigatória por lei, nem da lista provisória publicada no “Portal Citius”, nem da listagem oficial da homologação, consta a AT como credora;

f) O PER foi homologado em 10/03/2014 e afixado por edital em 13/03/2014 (Processo n.º 3523/13.8TBVIS). A instauração do processo executivo onde ocorreu a penhora objecto de reclamação, reporta-se à data de 04/04/2014, não tendo sido realizado qualquer acto conducente à cobrança da dívida até à data de 18/07/2014, data da penhora, muito portanto, após a conclusão das negociações;

g) Tenha-se presente que as normas insertas nos artigos 17-A a 17-I do CIRE não se sobrepõem às normas fiscais, conforme dispõe o TCA Sul, no seu douto Acórdão de 08/02/11, no Processo n.º 4497/11: “1. Do principio da indisponibilidade dos créditos tributários, enunciado no art. 30º nº 2 da LGT, decorre a inadmissibilidade, em execuções fiscais em que esteja em causa a sua cobrança, de causas de extinção da execução não previstas nas leis tributárias”, atentos ainda ao facto de que a própria concessão de moratórias se encontra vedada, a não ser nos casos e condições expressamente previstos na lei (vide artigos 36º, nº 3 da LGT e 85º, nº 3 do CPPT);

h) Mesmo admitindo-se a aplicação das normas dos artigos 17º-A a 17.º-I do CIRE, verifica-se, ainda assim, que não foram efectuadas diligências que afectassem patrimonialmente a situação da devedora durante as negociações, como refere o art. 17º-E, nº 1 do CIRE, pois a instauração do processo executivo e a penhora ocorreram muito tempo depois do terminus das negociações;

i) Assenta a posição da AT no facto de que, sendo a penhora praticada em sede executiva posterior ao desenlace das negociações do PER, não estava a elas vinculada;

j) Não foi a AT tida nem achada nas negociações do PER, embora, de acordo com o legalmente previsto, cfr. art. 17º-I do CIRE, devesse a devedora ter notificado todos os credores, mesmo os que não participaram nas negociações, ficando a elas subjugados, mau grado a AT ter realizado todas as diligências ao seu alcance para participar nas mesmas negociações;

k) Como dever obrigatório da defesa da causa pública que impende sobre a AT, acautelando os seus créditos, mal andaria a Fazenda Pública se concedesse alguma excepção, que não é coberta, no nosso entendimento, por qualquer preceito legal;

l) Ao admitir-se a aplicação aos tributos fiscais das normas dos artigos 17º-A a 17º-I do CIRE, esclarece-se que as mesmas só se aplicam ao período em que decorreram as negociações (cfr. nº 1 do art. 17º-E do CIRE) para o efeito de obstar à instauração de nova execução ou suspensão das que estejam em curso, extinguindo-se imediatamente a seguir à homologação do plano especial de revitalização;

m) De facto, em face do exposto, tem que ser mantida na ordem jurídica a penhora, por terem sido observados, na íntegra, os preceitos legais;

n) Nestes termos, somos de parecer que o despacho reclamado que ordenou a penhora do bem imóvel, não padece de qualquer vício, devendo o processo executivo prosseguir os seus trâmites legais.



1.2. A Reclamante, ora Recorrida, não apresentou contra-alegações.


1.3. O Exm.º Procurador-Geral Adjunto junto do Supremo Tribunal Administrativo emitiu douto parecer no sentido de que o STA era incompetente, em razão da hierarquia, para o conhecimento do recurso, porquanto a questão a dirimir não seria exclusivamente de direito, na medida em que nas alíneas e) e f) das conclusões do recurso foram «invocados factos que não foram considerados na sentença recorrida, como os relativos aos créditos reclamados pela F.P. não terem sido incluídos na lista provisória publicada no “Portal Citius”, nem a A.T. incluída na listagem oficial de homologação, bem como ainda ter o PER sido afixado por edital em 13/3/14. Ora, tal não consta da decisão proferida em que dos factos provados, embora da mesma se tenha feito constar não terem os referidos créditos sido admitidos e o deliberado ter sido homologado, o que foi mantido em recurso interposto por outros credores.».
Notificadas ambas as partes deste parecer, nada disseram.

1.4. Com dispensa dos vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, dada a natureza urgente do processo, cumpre decidir em conferência.


2. Na sentença recorrida deu-se como provada a seguinte matéria de facto:

a) A Reclamante A………………. LDA, requereu, em 15 de novembro de 2013, processo especial de revitalização (PER) que deu origem ao processo nº 3523/13.8TBVJS do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu no qual, depois de concluídas as negociações, se apresentou plano de recuperação aprovado pela “maioria prevista no art. 17ºF do CIRE, plano que foi homologado judicialmente em 11 de março de 2014, “vinculando os credores que não haviam participado na negociação” – cfr. docs. de fls. 2 a 5, 132 a 182, cujo teor aqui se da por integralmente reproduzido, o mesmo se dizendo dos demais documentos infra referidos;

b) Três credores inconformados com a sentença homologatória do plano de recuperação interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, que finalizou com Acórdão proferido em 21 de Outubro de 2014 a julgar improcedentes os recurso e a manter a decisão recorrida - vide doc. de fls. 65;

c) A AT reclamou créditos e manifestou junto da Reclamante a disposição de participar nas negociações a realizar no âmbito do PER referido em A), definindo os limites de regularização dos créditos tributários – cfr. docs de fls. 25 a 28;

d) Os créditos reclamados pela AT no montante de 23,50€ não foram homologados nem aquela foi convidada a participar nas negociações - idem anterior e 30 a 33 e 36;

e) A Reclamante, posteriormente à instauração do PER, entrou em incumprimento das suas obrigações fiscais, nomeadamente no que diz respeito ao pagamento do IRS/Retenção na fonte, IMI e IVA, originando a instauração de diversos processos de execução fiscal que atingiram um valor total de € 72.159,36 – cfr. docs. de fls. 28, 38 e 39;

f) A AT, face ao avolumar das quantias em dívida e ao facto de os seus créditos não terem sido incluídos no plano de recuperação, diligenciou pela penhora do único bem imóvel conhecido à devedora/ora reclamante - vide docs. de fls. 34, 35, 38, 39 e 56;

g) A Reclamante solicitou, no dia 27 de agosto de 2014, o pagamento da dívida exequenda e outras em prestações, pedido que foi deferido mas condicionado à prestação de garantia, não tendo a penhora, referida em F), sido considerada suficiente, nem idónea, para o efeito, dados os ónus que sobre ela incidem – cfr. informação de fls. 38, 39 e docs. de fls. 49 e 50;

h) A Reclamante foi citada da penhora referida em F) no dia 3/09/2014, e no dia 12/09/2014 apresentou a reclamação que agora se aprecia - vide fls. 37 e 4.

3. Em causa no presente recurso está a sentença que julgou procedente a reclamação deduzida pela executada A……………………….., LDA e que, consequentemente, anulou o acto de penhora realizado na execução fiscal que contra esta sociedade foi instaurada por diversas dívidas tributárias, com base no entendimento de que essa execução fiscal prosseguira ilegalmente, na medida em que fora aprovado e se encontrava pendente um plano de revitalização para esta sociedade.

Pelo que a questão colocada e que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença incorreu em erro de julgamento quando considerou ilegal a penhora, por ter sido ordenada no âmbito de um processo de execução fiscal que não deveria ter prosseguido atenta a pendência de um processo especial de revitalização instituído pelos arts. 17º-A a 17º-I, aditados pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Maio.

Importa, contudo, decidir previamente a questão suscitada pelo Exmº PGA junto deste Tribunal, pois que o seu conhecimento precede o de qualquer outra, prejudicando, se procedente, a apreciação e julgamento das demais questões suscitadas no recurso.

3.1. O Ilustre Magistrado do Ministério Público entende que o STA é incompetente em razão da hierarquia para o conhecimento do recurso porquanto nas alíneas e) e f) das conclusões foram «invocados factos que não foram considerados na sentença recorrida, como os relativos aos créditos reclamados pela F.P. não terem sido incluídos na lista provisória publicada no “Portal Citius”, nem a A.T. incluída na listagem oficial de homologação, bem como ainda ter o PER sido afixado por edital em 13/3/14. Ora, tal não consta da decisão proferida em que dos factos provados, embora da mesma se tenha feito constar não terem os referidos créditos sido admitidos e o deliberado ter sido homologado, o que foi mantido em recurso interposto por outros credores.». Neste contexto, o recurso não teria por exclusivo fundamento matéria de direito, sendo, por isso, o STA incompetente para o seu conhecimento, e competente o TCA Norte.

Vejamos.

Como é sabido, das decisões de 1ª instância apenas cabe recurso para o STA “quando a matéria for exclusivamente de direito”, cabendo recurso para o TCA das restantes decisões judiciais que o admitam (arts. 280º nº 1 do CPPT e 26º al. b) e 38º al. a) do ETAF).

Deste modo, e segundo a actual jurisprudência do STA, perante as conclusões da alegação de recurso que não estejam suportadas em factos estabelecidos no probatório fixado na sentença, haverá que ponderar se tais conclusões se traduzem efectivamente em novos factos que contrariam os fixados ou em novas ilações de facto deles retiradas – caso em que se verifica excepção dilatória de incompetência deste Tribunal para conhecimento do recurso (arts. 101º, 494º alínea a), e 493º nº 2 do CPC) -, ou se, pelo contrário, estão em causa factos que em abstracto são irrelevantes para a decisão da questão decidenda ou meras ilações jurídicas retiradas dos factos fixados – caso em que o STA será ainda competente para conhecer do recurso.

Ora, no caso dos autos, e com o devido respeito por contrária opinião, a factualidade referida nas alíneas e) e f) das conclusões do recurso não releva, em abstracto, para a apreciação da questão de saber se a sentença incorreu em erro de julgamento quando considerou ilegal a penhora por ter sido ordenada no âmbito de um processo de execução fiscal quando já se encontrava pendente processo especial de revitalização para a sociedade executada.

Razão por que, sem mais, improcede a questão prévia suscitada, declarando-se este Tribunal competente para conhecer de recurso que versa exclusivamente matéria de direito.

3.2. A questão colocada neste recurso não é nova, pois sobre questão similar – tanto em termos de conteúdo da sentença recorrida e factualidade nela fixada, como da matéria apreciada e decidida e que é questionada em sede de recurso jurisdicional – se pronunciou já o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão prolatado em 25/03/2015, no proc. nº 0278/15, a que se seguiram os acórdãos prolatados em 22/04/2015, no proc. nº 0371/15, em 15/04/2015, no proc. nº 0302/15, em 15/04/2015, no proc. nº 0331/15, e em 29/04/2015, no proc. nº 0320/15, todos com idêntica motivação jurídica e igual decisão de reconhecimento do erro de julgamento que a recorrente imputa à sentença recorrida.

Trata-se de jurisprudência que também aqui se acolhe, por com ela concordarmos plenamente, pelo que nos limitaremos a reproduzir o que sobre a questão ficou dito no referido acórdão proferido no processo nº 0278/15.

«Acompanhamos a sentença no segmento em que dá conta da evolução histórica do designado, hoje talvez algo impropriamente, direito falimentar, cujas soluções, umas vezes privilegiam a recuperação das empresas e, outras, manifestam preferência pela liquidação delas, bem como quanto aos pertinentes considerandos que teceu em torno dos motivos e dos fins prosseguidos pelo PER.

No que respeita às alterações introduzidas pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril – que institui o PER, aditando ao CIRE os arts. 17º-A a 17º-I –, a opção foi claramente no sentido de privilegiar e fomentar a recuperação (…).

Mas, a nosso ver, as alterações introduzidas pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, no CIRE, prosseguindo como principal objectivo o de «reorientar o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação» (Cfr. o segundo parágrafo da referida exposição de motivos), não permitem concluir que o legislador tenha querido ou admitido restrição alguma ao princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ou sequer que a sua cobrança pudesse sofrer restrições outras para além das consagradas na legislação aplicável, maxime na Lei Geral Tributária (LGT), que, não constituindo lei de valor reforçado, assume a natureza de lei que fixa os princípios e fundamentos do sistema tributário (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 4.ª edição, anotações 1 e 3 ao art. 2º, págs. 64 a 66: «A LGT não é uma lei constitucional nem sequer uma lei reforçada. […] Contudo, foi intenção do legislador que a LGT fosse uma lei de “cúpula” do sistema tributário, fixando os seus princípios estruturantes e fundamentantes em matéria axiológica», visando «como regra, regular exaustivamente as matérias de que trata […] [d]e modo que, qualquer futura alteração nestas matérias, ou deve ser introduzida na própria lei geral ou deve ser vista pelo legislador como uma verdadeira derrogação a esta e, como tal, devidamente ponderada e assinalada»; consequentemente, «o art. 2º revela a intenção do legislador de sobrepor, nas matérias de que esta trata, a Lei Geral Tributária às restantes leis ordinárias».), e no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Nesse sentido, da transcrição feita na sentença da referida exposição de motivos permitimo-nos salientar a seguinte passagem, respeitante ao PER: «[…] Este processo especial permite ainda a rápida homologação de acordos conducentes à recuperação de devedores em situação económica difícil celebrados extrajudicialmente, num momento de pré-insolvência, de tal modo que os referidos acordos passem a vincular também os credores que aos mesmos não se vincularam, desde que seja respeitada a legislação aplicável à regularização de dívidas à administração fiscal e à segurança social e observadas determinadas condições que asseguram a salvaguarda dos interesses dos credores minoritários» (sublinhado nosso).

Aponta também nesse sentido o terceiro parágrafo da mesma exposição de motivos, que a sentença não transcreveu, mas que se nos afigura também relevar para o correcto enquadramento da questão a dirimir; por isso, transcrevemo-lo agora: «As alterações que se propõem ao artigo 1.º visam, por um lado, sublinhar que a recuperação dos devedores é, sempre que possível, primacial face à sua liquidação, desde que, obviamente, tal não prejudique a satisfação tão completa quanto possível dos credores do devedor insolvente, designadamente a administração fiscal e a segurança social» (sublinhado nosso).

Afigura-se-nos, pois, que, como resulta da referida exposição de motivos, o legislador não quis de modo algum que o propósito assumido de promover a recuperação dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, em ordem a possibilitar a manutenção do devedor no giro comercial, o tenha determinado a alijar a natureza indisponível dos créditos tributários.

A indisponibilidade dos créditos tributários está expressamente prevista no nº 2 do art. 30º da LGT, que dispõe: «O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária» (Aplicando este princípio, vide o recente acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de Junho de 2012, proferido no processo nº 816/11, publicado no Apêndice ao Diário da República de 8 de Outubro de 2013 (http://dre.pt/pdfgratisac/2012/32220.pdf), págs. 1891 a 1895, também disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/719aa594c06ff0c080257a2b003ac5a3?OpenDocument.

Neste acórdão acolheu-se a tese de que «a lei fiscal determina a indisponibilidade do crédito tributário, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributárias, prevalecendo esta disposição sobre qualquer legislação especial – artigo 30º/2 e 3 da LGT, na redacção dada pelo art. 123º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro», motivo por que «[…] a indisponibilidade dos créditos tributários impõe-se à própria AT e a todos os particulares e não pode ser afastada por vontade das partes ou de terceiros, sendo decorrência directa dos fundamentais princípios da legalidade e igualdade tributárias, os quais encontram guarida nos artigos 266º, 13º, 103º e 104º, todos da CRP».).

A indisponibilidade dos créditos tributários – que significa que AT não pode discricionariamente alterar a relação jurídica tributária e, assim, dispor livre e autonomamente dos seus créditos – decorre, em última análise, do princípio da legalidade tributária (O princípio da legalidade, consagrado no art. 266º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) – «Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei […]» – impõe aos órgãos da AT que actuem no sentido da obtenção das prestações devidas nos termos da lei fiscal, certificando-se que os cidadãos cumprem a obrigação decorrente, desde logo, do n.º 3 do art. 103º, nº 3, da CRP, de pagar os impostos que «tenham sido criados nos termos da lei e cuja liquidação e cobrança» se façam nas formas «prescritas pela lei».), que impõe à AT que actue com vista à obtenção da prestação efectivamente devida nos termos da lei fiscal [cfr. arts. 103º, nº 3, e 266º, nº 2, da CRP e art. 3º, nº 1 («Os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos».), do Código do Procedimento Administrativo (Referimo-nos, aqui como adiante, ao CPA na versão do Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro.) (CPA)], e do princípio da igualdade [cfr. arts. 13º e 266º, nº 2, da CRP e art. 5º, nº 1 («Nas suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever nenhum administrado em razão de ascendência sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social»), do CPA], que lhe impõe a obrigação de prosseguir o objectivo de tratar igual e uniformemente todos os contribuintes, maxime na exigência, modificação ou extinção das obrigações tributárias deles. Ambos os princípios estão também consagrados no art. 55º da LGT, que enumera os princípios a observar pela AT na sua actividade («A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários».).

Por outro lado, o art. 36º da LGT, no seu nº 2, é inequívoco: «Os elementos essenciais da relação jurídica não podem ser alterados por vontade das partes» (Como dizem DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., anotação 8 ao art. 36º, pág. 297, «nenhum elemento da relação tributária pode ser alterado por vontade das partes: nem o objecto da obrigação; nem os juros; nem o prazo de pagamento, etc.» pois «[a] isto se opõe o princípio da legalidade dos impostos e o princípio da legalidade da actividade administrativa».); concretizando, no campo das moratórias, o princípio do citado nº 2, o nº 3 do mesmo artigo afirma: «A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei». Em sintonia com o nº 3 do art. 36º da LGT, o art. 85º, nº 3, do CPPT («A concessão da moratória ou a suspensão da execução fiscal fora dos casos previstos na lei, quando dolosas, são fundamento de responsabilidade tributária subsidiária».), prevê que possam ser responsabilizados subsidiariamente os que, dolosamente, concederem moratórias fora dos casos previstos na lei.

Tendo presente o que vimos de dizer, podemos avançar no sentido de que a indisponibilidade do crédito tributário e a impossibilidade de a AT conceder moratórias não previstas na lei (Uma eventual excepção a esse princípio sempre exigiria uma inequívoca manifestação de vontade nesse sentido, concretizada em lei formal da Assembleia da República ou Decreto-Lei do Governo, na sequência de uma Lei de Autorização Legislativa emitida pelo Parlamento para esse efeito, sob pena de violação do princípio da legalidade e da tipicidade tributária.) não foram de modo algum postas em causa pelo CIRE (Para maior desenvolvimento sobre a temática da relação entre os créditos tributários e os processos previstos no CIRE, vide - SARA LUÍS DA SILVA VEIGA DIAS, O Crédito Tributário e as Obrigações Fiscais no Processo de Insolvência, Universidade do Minho, Escola de Direito, Abril de 2012, disponível em http://hdl.handle.net/1822/21395 e - SUZANA TAVARES DA SILVA e MARTA COSTA SANTOS, Os créditos fiscais nos processos de insolvência: reflexões críticas e revisão da jurisprudência, disponível em http://hdl.handle.net/10316/24784, em cuja doutrina nos apoiámos na elaboração do presente acórdão), mesmo após as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril (que veio dar prevalência à recuperação do devedor). Os princípios que enformam o nosso sistema tributário não permitem a extinção, a redução ou a moratória (Há numerosa jurisprudência no sentido da impossibilidade de suspender a execução fiscal fora das situações previstas na lei. Entre muitos outros, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- de 12 de Abril de 2012, proferido no processo n.º 322/12, publicado no Apêndice ao Diário da República de 8 de Outubro de 2013 (http://dre.pt/pdfgratisac/2012/32220.pdf), págs. 974 a 984, também disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6c667b67e42a12df802579f000568b29?OpenDocument;

- de 25 de Setembro de 2013, proferido no processo n.º 1377/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 26 de Maio de 2014 (http://dre.pt/pdfgratisac/2013/32230.pdf), págs. 3654 a 3663, também disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/889a633df5ace4c980257bf9004709d9?OpenDocument.) dos créditos fiscais a não ser nos casos previstos expressa e inequivocamente na lei.

Assim, a alteração do conteúdo da obrigação fiscal nunca poderia ocorrer por vontade da maioria dos credores, sob pena de se violar de forma grave o princípio da legalidade e da tipicidade tributária, previsto no art. 8.º da LGT e no art. 103.º da CRP, nos termos do qual todos os elementos da relação jurídico tributária têm de estar tipificados na lei (RUI DUARTE MORAIS, ob. cit., 2.ª ed., p. 220, «Um perdão ou moratória relativos a dívidas fiscais decididas em assembleia de credores constituiriam um autêntico benefício fiscal, uma medida excepcional a determinar a não cobrança do imposto ditada por interesses económicos e sociais que se entenderia deverem prevalecer no caso concreto. Por exigência constitucional, nem a administração fiscal, nem, muito menos, uma assembleia de credores podem conceder benefícios fiscais». A concessão de benefícios fiscais tem de estar, nos termos do supra citado n.º 2 do artigo 103.º da CRP, legalmente prevista).

É certo que alguma jurisprudência dos tribunais comuns assim o não entendeu, pelo menos até determinado momento (É exemplo paradigmático dessa jurisprudência o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Junho de 2009, proferido no processo n.º 464/07.1TBSJM-L.S1, disponível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bff8cf2426fedad6802575d6002e6e8a?OpenDocument.).

Independentemente de saber se essa jurisprudência fez ou não a melhor interpretação das normas legais em confronto – e afigura-se-nos que não –, a mesma deixou, de todo, de ser sustentável após o art. 123º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2011), ter aditado ao art. 30º da LGT um nº 3, que, reafirmando o princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais, estipula: «O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial». Ademais, o art. 125.º da mesma Lei estabeleceu que «[o] disposto no n.º 3 do Artigo 30º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos».

Na sequência desse aditamento à lei (É discutível se se trata de uma verdadeira alteração legislativa ou se, pelo contrário, o n.º 3 do art. 30.º da LGT não será uma norma com carácter interpretativo e, como tal, sujeita ao regime do art. 13.º do Código Civil, como sustentam SUZANA TAVARES DA SILVA e MARTA COSTA SANTOS, ob. cit., que referem que «a solução nele vertida defluía já dos princípios jurídicos fundamentais ordenadores no nosso sistema jurídico e dos princípios constitucionais que conformam o Estado fiscal».), a jurisprudência dos tribunais comuns acabou por inflectir o rumo (Cfr., por mais antigo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2011, proferido no processo n.º 467/09.1TYVNG-Q.P1.S1, disponível em

http://www.dgsi.pt/jstjf.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/41a380a845ca0e7380257b900033ee4f?OpenDocument.).

A sentença recorrida, que aderiu à referida jurisprudência dos tribunais comuns na sua primitiva versão, não pode manter-se.

Pese embora o disposto no art. 17º-E, nº 3, do CIRE – «A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor […]» –, a AT está obrigada a instaurar e fazer prosseguir contra o devedor execução fiscal para cobrança de dívida fiscal, a menos que tenha sido deferido o pagamento da mesma em prestações ao abrigo da legislação fiscal (e a dívida exequenda e o acrescido estejam garantidos ou tenha sido efectuada penhora que os garanta ou tenha havido dispensa da prestação de garantia, tudo nos termos do disposto nos arts. 196º e 199º, do CPPT, e do art. 52º da LGT), no âmbito do plano de revitalização judicialmente homologado ou fora dele.

Note-se, finalmente, que isto não significa que o Estado se ponha à margem do escopo de recuperação do devedor (Apesar de admitirmos que, de lege ferenda, pudesse optar-se por uma solução mais maleável, em que o legislador – numa ponderação entre os interesses públicos na cobrança dos impostos, por um lado, e na revitalização e continuidade das empresas que demonstrem possibilidade de se recuperarem, por outro – admitisse perdoar ou reduzir, em alguma medida, os créditos do Estado por tributos), ou que, com a intransigência na cobrança das dívidas tributárias (e parafraseando a sentença recorrida) inviabilize na prática a boa concretização do plano de revitalização.

Na verdade, o CPPT prevê o alargamento do número de prestações mensais até 5 anos quando for notória a dificuldade financeira e sejam previsíveis consequências económicas para os devedores, se a dívida exequenda exceder 500 unidades de conta (UC) no momento da autorização, desde que nenhuma delas seja inferior a 10 UC (nº 6 do art. 196º, na redacção da Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro); o número de prestações pode mesmo ser alargado até ao dobro (10 anos), se, no âmbito de processo de recuperação económica se demonstrar a indispensabilidade da medida e, ainda, quando os riscos inerentes à recuperação dos créditos o tornem recomendável (nº 7 do mesmo art. 196º do CPPT, na redacção da Lei nº 3-B/2010, de 18 de Abril).

Tudo visto, concluímos que a sentença, pese embora tenha seguido corrente jurisprudencial que, em dado momento, vingou no Supremo Tribunal de Justiça, não fez a melhor interpretação e aplicação das normas e princípios legais aplicáveis.

Pelo que ficou dito, revogaremos a sentença recorrida e, porque a mesma considerou prejudicado «o conhecimento da ilegalidade da penhora face ao deferimento do pedido de pagamento da dívida exequenda em prestações» – segmento que não foi incluído no objecto do recurso –, ordenaremos que os autos regressem ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu para conhecimento dessa questão, tanto mais que, se bem interpretamos a sentença, o referido pedido de pagamento em prestações não foi deferido [cfr. alínea M) dos factos provados], o que nos suscita algumas dúvidas, que só aquele tribunal da 1.ª instância, que tem competência em matéria de facto (A Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, nos recursos interpostos directamente das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância, apenas tem competência para conhecer de matéria de direito (cfr. arts. 12º, nº 5, 26º, alínea b) e 38º, alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, e art. 280º, nº 1, do CPPT), poderá dirimir.».

Razão por que se impõe revogar a sentença recorrida e determinar a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para apreciação das demais questões colocadas.


4. Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida, julgando-se improcedente a reclamação quanto ao fundamento que nela foi conhecido, e determinando-se a baixa dos autos à 1.ª instância para apreciação das demais questões colocadas.

Sem custas.

Lisboa, 14 de Maio de 2015. – Dulce Neto (relatora) – Ascensão Lopes – Ana Paula Lobo.