Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
464/07.1 TBSJM-L.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITO FISCAL
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :

I- Não se verifica impedimento na homologação judicial do plano de insolvência, apresentado pelo administrador da Insolvência e aprovado pela assembleia de credores da empresa insolvente, se no mesmo plano estiver prevista redução ou perdão de dividas do insolvente ao Estado, de natureza fiscal (capital ou juros) e, muito menos, que a sentença homologatória de tal plano padeça dos vícios de violação do princípio de legalidade, de igualdade e de inconstitucionalidade por derrogação de normas imperativas por vontade das partes.

II- Não ocorre, nesta situação, qualquer derrogação de normas legais imperativas (fiscais ou outras) por vontade dos credores ou partes, como vem afirmado (até porque os particulares não têm poder para «derrogar» normas emanadas do poder legislativo) sendo que a derrogação é operada pela própria lei da insolvência que estabelece um regime especial e, nessa medida, afasta, do seu âmbito de aplicação, o regime normativo geral (lex specialis derogat legi generali), fruto da opção político-legislativa que, tendo em conta a relevância do tecido empresarial na estrutura económica da sociedade e, do mesmo passo, a necessidade de obviar, na medida do possível, ao prejuízo da insatisfação dos créditos concedidos à insolvente, cujo ressarcimento se frustra frequentemente nestas situações, gizou um esquema legal que contribuísse para atenuar a tensão dialéctica, reconhecidamente existente, entre estas duas realidades contrapostas.

III- Tal não significa que os créditos fiscais deixem de ser privilegiados ou que percam as suas garantias, pois o artº 47º do CIRE prevê justamente a existência de créditos privilegiados e garantidos e, em vários outros preceitos do mesmo Código, se faz referência a créditos desta natureza, em contraposição com os créditos comuns, como se colhe, v.g., dos artºs 174º e 175º do aludido diploma legal.

IV- Não obstante o carácter privilegiado desses créditos, a própria lei afirma, no artº 192º do dito compêndio normativo, que o pagamento dos créditos sobre a insolvência... «pode ser regulado num plano de insolvência em derrogação das normas do presente código» e nem o disposto no nº 2 do citado preceito legal, obsta a que proceda ao perdão ou redução do valor dos créditos, por isso que estas são, justamente, duas das amplas providências legais com incidência no passivo que estão expressamente previstas, como se viu, na alínea a) do nº 1 do artº 196º do CIRE, não se criando qualquer regime de excepção para os créditos privilegiados ou garantidos ou cujos titulares sejam pessoas colectivas de direito público, designadamente o próprio Estado, salvo o que se encontra previsto no nº 2 do mesmo preceito legal.

Decisão Texto Integral:

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

No Processo de Insolvência nº 464/07.1TBSJM do 4° Juízo do Tribunal da comarca de S. João da Madeira foi, por sentença transitada em julgado, declarada a insolvência da sociedade anónima AA, S.A., melhor identificada nos autos.
No decurso do processo, em 23.05.2008 foi proferida a sentença a que alude o art.º. 214° do C.I.R.E., sentença essa, na parte que ora interessa, do seguinte teor:
«... O Tribunal apenas pode recusar oficiosamente a homologação do plano de insolvência no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação (art. 215° do C.I.R.E.).
Visto e ponderado o teor do plano em questão, afiguram-se-nos observados os princípios e regras essenciais que presidem à elaboração do mesmo e à consideração dos interesses dos credores!
Face ao exposto, decidimos homologar o plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores, condenando-se todos os interessados a observarem o nele estabelecido.
Registe e notifique com cópia ao Sr., Administrador da Insolvência, a quem oportunamente deverá ser dada conta do trânsito da presente decisão».
Inconformado com a sentença proferida que homologou o plano apresentado pelo Administrador da Insolvência e aprovado pela Assembleia de Credores, o M°P° interpôs recurso de apelação do mesmo para o Tribunal da Relação do Porto, que, dando provimento ao recurso interposto, revogou a sentença homologatória do citado plano de insolvência, proferida ao abrigo do art.º 214º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas), determinando que na 1ª Instância fosse proferida nova decisão que recusasse a sua homologação, no que tange aos créditos fiscais reclamados pela Administração Tributária (Fazenda Nacional).
Foi a vez de a sociedade insolvente AA, SA, inconformada com tal decisão da 2ª Instância, recorrer da mesma para este Supremo Tribunal, rematando as suas alegações, com as seguintes:

CONCLUSÕES

1. O acórdão da Relação do Porto de que ora se recorre está em clara oposição com outros arestos proferidos, quer pela Relação do Porto (cf. acórdão de 26-05-2008, relatado Maria de Deus, processo 0852239 e de 01-07-2008, relatado por Guerra Banha, processo 0822193, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt), quer pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr. acórdão de 13-01-09, relatado por Fonseca Ramos, processo 08A3763, disponível para consulta em www.dgsi.pt), os quais conheceram da mesma questão fundamental de direito da dos autos de recurso apresentados, no domínio da mesma legislação, decidiram de forma divergente da Relação do Porto, que negou provimento ao recurso em causa, encontrando-se, assim, preenchido o prescrito no artº 14º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - CIRE.

2. O objectivo do processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores (públicos ou privados), pelo que importa dotá-los dos meios idóneos para fazer face à insolvência dos seus devedores e, sendo o património do devedor a garantia dos seus credores, é a estes que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia e é por essa via que, seguramente melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado.

3. No que respeita à aprovação do plano, a dispensa da concordância do credor para que o plano o vincule, é um importante meio de facilitação da aprovação dos planos de insolvência que, de outro modo, poderiam ser frequentemente bloqueados, mesmo por razões não ponderosas e egoístas.

4. Ao ignorar que com a declaração de insolvência o Estado deixa de pertencer ao número de credores privilegiados e passa a ser considerado um credor comum, como todos os restantes, o Acórdão recorrido violou os artigos 194º e 97 º do CIRE.

5. Tendo tido o Estado legislador a finalidade de, através das normas constantes do CIRE, satisfazer o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado, não faria sentido que o mesmo Estado, na sua vertente de Administração Fiscal, pudesse inviabilizar essa mesma finalidade (bloqueando planos de recuperação), impondo que lhe fosse aplicado um regime jurídico diferente dos restantes credores, pondo também em causa o mencionado princípio da igualdade entre todos os credores da insolvência.

6. A fazer escola o entendimento propugnado no Acórdão recorrido, de nada valeria o regime do CIRE se, efectivamente, o Estado e outras entidades públicas como a Segurança Social, em muitos casos os principais credores, não fossem considerados juridicamente como credores absolutamente iguais entre si.

7. Através do CIRE, criou-se um mecanismo especial, para uma situação peculiar e para uma específica categoria de devedores: os insolventes, razão pela qual o Código de Procedimento e Processo Tributário não tem campo de aplicação nestes casos, já que o mesmo aplica-se à relação Estado - Contribuinte, enquanto o Estado assume uma posição de supremacia, legitimada pelos fins de interesse público inerentes à cobrança dos impostos e o contribuinte pretende-se que esteja numa situação de igualdade com os demais, situação que não ocorre na insolvência já que aqui o Estado passa a ser um credor em pé de igualdade com os demais e o contribuinte transmutou-se no insolvente, tornando-se único, em função de um plano de insolvência estabelecido especialmente para si.
8. Não existe na decisão do Tribunal de 1ª instância qualquer violação do princípio da legalidade previsto no n. °2 do art.º 266.9 da C.R.P., e que se caracteriza pela vinculação da Administração à lei, significando que ela só pode actuar com base na lei, não havendo qualquer espaço livre da lei onde a Administração possa actuar, como um poder jurídico livre, já que na situação específica da insolvência é ainda a lei que, prosseguindo claramente fins de interesse público, excepcionalmente, coloca a Administração em pé de igualdade com os demais credores.

9. Também não há violação do princípio da igualdade na sua dimensão da proibição do arbítrio, pois que a não aplicabilidade das normas do Código de Procedimento e Processo Tributário tem em consideração a natureza e a especificidade da situação em causa, sempre sob critérios de estrita legalidade e objectividade.

Foram apresentadas contra-alegações, não tendo o Exmº Procurador-Geral Adjunto na Relação acompanhado a posição do Magistrado do MP na 1ª Instância, antes reconhecendo que segundo a tese perfilhada no acórdão deste Supremo Tribunal de 2009.01.13, merecedora da sua anuência, assistirá razão à ora Recorrente.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do art.º 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

A matéria de facto com relevo para a decisão do presente recurso, que vem delineada pelas instâncias, é a seguinte:

1) – Nos identificados autos de insolvência, o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, reclamou créditos fiscais relativos a IRC, IRS., IVA, Imposto de Selo, Coimas, Taxas e Encargos de processos de contra-ordenação, créditos esses que foram reconhecidos e incluídos na respectiva lista de créditos.

2) – Na assembleia de credores realizada em 09 de Outubro de 2007, foi deliberado, pelos credores, incumbir o Sr. Administrador de elaborar um plano de insolvência no prazo de 30 dias.

3) – O Senhor Administrador apresentou um plano de insolvência, entretanto modificado, nos termos do qual, além do mais, se encontra previsto que:

a) – “… a execução do plano de insolvência pelo devedor, sob a administração de um gerente único, o Sr. BB, durante todo o período de execução do plano”;

b) – “… perdão de 80% dos juros de mora e dos juros vencidos, devidos ao Estado, até à homologação do plano”;

c) – “… o pagamento em 60 mensalidades postecipadas de termos de capital constante, com seis meses de carência, vencendo-se o primeiro pagamento seis meses após a homologação do plano de insolvência;


4) - Ou seja, os créditos do Estado reclamados e reconhecidos, serem reembolsados em 100% do valor do capital em dívida, em 60 prestações mensais de capital e 20% dos juros vencidos, vencendo-se o primeiro pagamento seis meses após a homologação da sentença, acrescido de juros à taxa fixa de 4% ao ano.

5) – Posteriormente, na assembleia de credores realizada em 27 de Fevereiro de 2008, esse Plano de Insolvência foi alterado, no que aos créditos do Estado e Segurança Social concerne, dele ficando a constar que o início do vencimento do primeiro pagamento ocorreria um mês após a homologação do plano, e foi ainda decidido, na referida assembleia, dar a faculdade ao Estado, e a outros credores, de votarem por escrito ao abrigo do disposto no art.º 211° do CIRE.

6) - O Ministério Público, conforme instruções recebidas da DGI, em 05 de Março de 2008 votou contra o plano de insolvência, manifestando oposição ao mesmo, na medida em que este consubstanciava uma redução, por juros, dos créditos fiscais, contemplava um regime de moratória, não oferecia garantias idóneas e suficientes para pagamento destes, previa um regime prestacional não aplicável aos créditos fiscais e era omisso quanto à manutenção da administração.

7) - Apesar dessa oposição, veio a ser proferida em 09 de Maio de 2008 a sentença de homologação do plano de insolvência acima transcrita e objecto do presente recurso.

A sentença homologatória, proferida pela 1ª instância, era, na parte que ora interessa, do seguinte teor:
«… O Tribunal apenas pode recusar oficiosamente a homologação do plano de insolvência no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação (art. 215° do C.I.R.E.).

Visto e ponderado o teor do plano em questão, afiguram-se-nos observados os princípios e regras essenciais que presidem à elaboração do mesmo e à consideração dos interesses dos credores.

Face ao exposto, decidimos homologar o plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores, condenando-se todos os interessados a observarem o nele estabelecido...».
A Relação revogou a referida sentença, além do mais, com a seguinte argumentação, aqui apresentada de forma necessariamente sintética:
Havendo duas posições opostas sobre a questão de se saber, se no âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) pode ou não ser homologado o plano de insolvência quanto aos créditos fiscais, mesmo tendo havido oposição expressa do Estado na assembleia de credores, optou-se por aquela que considera que, no âmbito do referido diploma legal, tal plano não pode ser homologado quanto aos ditos créditos, quando houver redução dos mesmos (capital e/ou juros), por haver violação de normas legais imperativas (desde logo da Lei Geral Tributária e do Código de Procedimento e de Processo Tributário), normas que não podem ser derrogadas por vontade de outros credores intervenientes, nem mesmo pela Administração Fiscal, que não pode atribuir o regime de excepção a nenhum contribuinte, nem mesmo ao insolvente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
Estriba-se, a decisão recorrida, no disposto no art.º 215º do CIRE, segundo o qual o Juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.
Acrescenta que, sem prejuízo do disposto no direito comunitário e noutras normas de direito internacional que vigorem directamente na ordem interna ou em legislação especial, as relações jurídico-tributárias são reguladas, entre nós, pela LGT (DL 398/1998, de 17/12), considerando-se relações jurídico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas, conforme o art.º 1º, nº 2 do referido diploma legal.
Anota que «nos termos do disposto nos nºs 1, 2, 3 e 5 do art.º 36º da mesma Lei (LGT) a relação jurídica constitui-se com o facto tributário; os elementos essenciais da relação jurídica não podem ser alterados pela vontade das partes; a administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei; podendo a administração tributária subordinar a atribuição de benefícios fiscais ou a aplicação de regimes fiscais de natureza especial, que não sejam de concessão inteiramente vinculada, ao cumprimento de condições por parte do sujeito passivo, inclusivamente, nos casos previstos na lei, por meio de contratos fiscais».
Considerando, assim, ser inequívoco que as normas legais referidas (da Lei Geral Tributária e do Código de Procedimento e de Processo Tributário) têm natureza pública e são normas imperativas, não podendo, destarte, ser afastadas pela vontade das partes, e, ainda, que a Administração Tributária está vinculada aos princípios da legalidade e da igualdade, enunciados nos artºs 13º, 103º e 104º da Constituição da República Portuguesa, afirma que só por previsão expressa na lei e segundo os procedimentos também nela expressamente previstos, o crédito tributário pode ser reduzido ou extinto.
Procura reforçar a sua posição, argumentando que «não se compreenderia que o princípio da indisponibilidade do imposto vinculasse a administração tributária e o próprio legislador fiscal e não vinculasse, da mesma forma, o administrador da insolvência e a assembleia dos credores, em processo de insolvência, pois de outro modo estaríamos perante a faculdade concedida a uma maioria de credores num processo de insolvência, de alterar a obrigação contributiva através do perdão fiscal, fazendo letra morta do referido regime fiscal».
Em abono do decidido, o acórdão recorrido invoca os arestos da mesma Relação de 8.10.2007 (Pº 4484/2007) e de 30.06.2008 (Pº 3595/2008), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, sendo o último, assim sumariado:

«I- Não pode ser homologado o plano de insolvência quanto aos créditos fiscais se existir violação de normas legais imperativas, não derrogáveis por vontade dos intervenientes, designadamente dos credores.
II- Nem a Administração Tributária, motu proprio, pode atribuir um regime de excepção a determinado contribuinte, a não ser nos casos especialmente previstos na lei» (Rel. Caimoto Jácome).

Exposta, assim, a posição sufragada pelo acórdão recorrido, cumpre agora apreciar e decidir!
Antes do mais, a esta posição contrapõe-se outra, de sentido oposto, que foi a perfilhada por este Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 13 de Janeiro de 2009, de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Fonseca Ramos, sumariado nos termos indicados em nota de rodapé.(1)

No referido aresto ponderou-se sobre o carácter imperativo das normas do ordenamento jurídico-fiscal referido na decisão, ora em crise, (LGT e CPTT), afirmando-se que «os artigos 30º, nº 2 e 36, nº 3, da LGT, e artº 85º do CPPT, têm o seu campo de aplicação na relação tributária, em sentido estrito, não encontrando apoio no contexto do processo especial como é o processo de insolvência, onde o Estado deve intervir também com o fito de contribuir para uma solução, diríamos, de olhos postos na insolvência, se essa for a vontade dos credores, numa perspectiva ampla de auto-regulação de que a desjudicialização do regime consagrado no CIRE é uma das essenciais características».
A mesma decisão deste Supremo Tribunal reflectiu no seguinte aspecto, em abono da posição perfilhada, que é o de que «a invocação das normas tributárias atrás referidas e do seu carácter indisponível encontram o seu fundamento no princípio da legalidade da administração tributária, nas suas relações com os devedores», mas do que se trata «é de saber se, atenta a especificidade do processo de insolvência e a tendencial igualdade dos credores do insolvente, devem ser invocados de modo a postergar a auto-regulação dos credores, plasmada na faculdade de aprovação maioritária do plano de insolvência, mesmo derrogando aquelas prerrogativas do Estado enquanto credor privilegiado», concluindo, como se viu dos excertos transcritos, pela não invocabilidade do carácter de indisponibilidade de tais normativos, perante o carácter especial do processo de insolvência e dos fundamentos que estão na base do CIRE.
Com efeito, o preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), refere-se nos items 5 e 6 aos seguintes aspectos fundamentais, com destaque nosso:

«Fugindo da errónea ideia afirmada na actual lei, quanto à suposta prevalência da via da recuperação da empresa, o modelo adoptado pelo novo Código explicita, assim, desde o seu início, que é sempre a vontade dos credores a que comanda todo o processo. A opção que a lei lhes dá é a de se acolherem ao abrigo do regime supletivamente disposto no Código — o qual não poderia deixar de ser o do imediato ressarcimento dos credores mediante a liquidação do património do insolvente ou de se afastarem dele, provendo por sua iniciativa a um diferente tratamento do pagamento dos seus créditos. Aos credores compete decidir se o pagamento se obterá por meio de liquidação integral do património do devedor, nos termos do regime disposto no Código ou nos de que constem de um plano de insolvência que venham a aprovar, ou através da manutenção em actividade e reestruturação da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiros, nos moldes também constantes de um plano.
Há que advertir, todavia, que nem a não aprovação de um plano de insolvência significa necessariamente a extinção da empresa, por isso que, iniciando-se a liquidação, deve o administrador da insolvência, antes de mais, diligenciar preferencialmente pela sua alienação como um todo, nem a aprovação de um plano de insolvência implica a manutenção da empresa, pois que ele pode tão-somente regular, em termos diversos dos legais, a liquidação do património do devedor.
Não valerá, portanto, afirmar que no novo Código é dada primazia à liquidação do património do insolvente. A primazia que efectivamente existe, não é demais reiterá-lo, é a da vontade dos credores, enquanto titulares do principal interesse que o direito concursal visa acautelar: o pagamento dos respectivos créditos, em condições de igualdade quanto ao prejuízo decorrente de o património do devedor não ser, à partida e na generalidade dos casos, suficiente para satisfazer os seus direitos de forma integral» (negrito nosso).

No artigo 196º do aludido Código prevê-se expressis et apertis verbis que o plano de insolvência pode conter, entre outras providências sobre o passivo do devedor, «o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula «salvo regresso de melhor fortuna» (negrito nosso), pelo que se confere aos credores a faculdade de perdoar ou reduzir os créditos sobre o património do devedor, seja quanto ao capital, seja quanto aos juros, não se encontrando estabelecida qualquer excepção para o Estado ou outra pessoa colectiva de direito público.
Logo no artigo seguinte – o artº 197º – se estabelece que «na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência, os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios não são afectados pelo plano» e que «os créditos subordinados consideram-se objecto de perdão total» e ainda que «o cumprimento do plano exonera o devedor e os responsáveis legais da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes».
Como se sentenciou no acórdão deste Alto Tribunal a que nos temos vindo a referir, «este normativo é de crucial importância para a apreciação da questão que o recurso coloca.Com efeito, a expressão ínsita no art. 197º do CIRE, «na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência», atribui cariz supletivo ao preceito, o que implicita que pode haver regulação diversa, contendendo com os créditos previstos nas als. a) e b) o que deve ser entendido como afloração do princípio da igualdade e reconhecimento que, dentro da legalidade exigível, o plano pode regular a forma como os credores estruturam o plano de insolvência. Só assim não será se não houver expressa adopção de um regime diferente»
Não se vê razão válida para uma inflexão no trilho jurisprudencial deste Supremo Tribunal, traçado pelo aresto a que nos estamos a referir, pois não se descortina nenhuma violação do princípio da legalidade, nem da igualdade, (princípios estes legal e constitucionalmente consagrados), na sentença homologatória de que tratam os presentes autos.

Inexiste violação do princípio da legalidade, por isso que ao contrário do que vem afirmado no acórdão da Relação, não ocorre aqui qualquer derrogação de normas fiscais imperativas, pela vontade das partes ou dos credores, mas antes um regime especial estabelecido pela própria lei, plasmado no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pelas sobreditas razões, estando mesmo prevista, no artº 196º do citado diploma legal, a possibilidade de o plano contemplar o perdão ou redução dos créditos sobre a massa insolvente, sendo certo que para a aprovação de tal plano, não se exige a unanimidade, mas o quorum a que se refere o artº 212º do CIRE.

Não ocorre qualquer violação do princípio de igualdade, posto que a interpretação de tal princípio não pode deixar de assentar no entendimento de que, como bem se proclamou no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 231/94, «a prevalência da igualdade como valor supremo do ordenamento tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica», tendo o legislador, em matéria de insolvência, tomado as opções atrás referidas, sempre tendo no horizonte o tratamento igualitário de todos os credores do devedor (par conditio creditorum), dado que, como lucidamente aponta Menezes Leitão, «a crise económica do devedor torna previsível que nem todos os credores vejam satisfeitos os seus créditos». (2).
Se é verdade que o processo de insolvência constitui uma acção executiva especial, como ensinava o saudoso Prof. Castro Mendes, menos verdade não é que se trata de uma execução genérica ou total e não individual ou singular, uma execução colectiva instaurada, precisamente, para que todos os credores possam ver os seus créditos satisfeitos pelas forças do património remanescente do devedor, evitando-se, destarte, os resultados aleatórios e injustos que a execução singular ou individual não logra evitar. (3)
Por isso, é de recordar também, aqui e agora, a doutrina contida no acórdão da Relação do Porto, de 13 de Julho de 2006 (Relator, Des. José Ferraz) segundo o qual, «perante o novo regime das insolvências, introduzido pelo CIRE, as medidas aprovadas no Plano de Insolvência, que constitui uma auto-regulação de interesses e visa exclusivamente a satisfação dos interesses dos credores, vinculam os credores privilegiados públicos, os créditos das Segurança Social (e outras entidades mencionadas no artigo 97º/1 do CIRE» (disponível em www.dgsi.pt (JTRP00039410).

Cremos poder concluir, com suficiente segurança, que não se verifica qualquer impedimento na homologação do plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores da insolvente AA, S.A., aqui recorrente e, muito menos, que a sentença homologatória de tal plano padeça dos vícios de violação do princípio de legalidade, de igualdade e de inconstitucionalidade que lhe foram imputados, pois, na feliz expressão do acórdão deste Supremo Tribunal, de 13.01.2009, atrás amplamente referido, «numa perspectiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam, seria desproporcional que o processo de insolvência fosse colocado em pé de igualdade com uma mera execução fiscal, servindo apenas para a Fazenda Nacional actuar na mera posição de reclamante dos seus créditos, mais a mais privilegiados, sem atender à particular condição dos demais credores e da insolvência».
Também, após o que dito fica, cremos ter devidamente vincado, que não ocorre, nesta situação, qualquer derrogação de normas legais imperativas (fiscais ou outras) por vontade dos credores ou partes, pois a derrogação é operada pela própria lei da insolvência que estabelece um regime especial e, na medida em que se trata de uma lei especial, derroga o regime normativo geral (lex specialis derogat legi generali), fruto da opção político-legislativa que, tendo em conta a relevância do tecido empresarial na estrutura económica da sociedade e, do mesmo passo, a necessidade de obviar, na medida do possível, ao prejuízo da insatisfação dos créditos concedidos à insolvente, cujo ressarcimento se frustra frequentemente nestas situações, gizou um esquema legal que contribuísse para atenuar a tensão dialéctica, reconhecidamente existente, entre estas duas realidades contrapostas.
Como acertadamente refere a Recorrente na conclusão 5ª da sua alegação, «tendo tido o Estado legislador a finalidade de, através das normas constantes do CIRE, satisfazer o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado, não faria sentido que o mesmo Estado, na sua vertente de Administração Fiscal, pudesse inviabilizar essa mesma finalidade (bloqueando planos de recuperação), impondo que lhe fosse aplicado um regime jurídico diferente dos restantes credores, pondo também em causa o mencionado princípio da igualdade entre todos os credores da insolvência».
Tal não significa que os créditos fiscais deixem de ser privilegiados ou que percam as suas garantias, pois o artº 47º do CIRE prevê justamente a existência de créditos privilegiados e garantidos e, em vários outros preceitos do mesmo Código, se faz referência a créditos desta natureza, em contraposição com os créditos comuns, como se colhe, v.g., dos artºs 174º e 175º do aludido diploma legal.
O que se passa é que, não obstante o carácter privilegiado desses créditos, a própria lei afirma, no artº 192º do dito compêndio normativo, que o pagamento dos créditos sobre a insolvência... «pode ser regulado num plano de insolvência em derrogação das normas do presente código» e nem o disposto no nº 2 do citado preceito legal, obsta a que proceda ao perdão ou redução do valor dos créditos, por isso que estas são, justamente, duas das amplas providências legais com incidência no passivo e que estão expressamente previstas, como se viu, na alínea a) do nº 1 do artº 196º do CIRE, não se criando qualquer regime de excepção para os créditos privilegiados ou garantidos ou cujos titulares sejam pessoas colectivas de direito público, designadamente o próprio Estado, salvo o que se encontra previsto no nº 2 do mesmo preceito legal.
Este entendimento foi também perfilhado, inter alia, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no seu acórdão de 26 de Outubro de 2006, onde se sentenciou no sentido de que «no contexto do processo de insolvência está acolhido o princípio da igualdade dos credores e, destarte, tanto o «perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros» como a «modificação dos prazos de vencimento ou as taxas de juros dos créditos, sejam créditos comuns, garantidos ou privilegiados», podem ser aprovados no âmbito de um plano de insolvência» (Relator, Des. António Gonçalves) (4).

Sem necessidade de mais considerações, procedem inteiramente as conclusões da alegação da Recorrente, o que determina linearmente a procedência do recurso interposto.

DECISÃO

Tudo visto e ponderado, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em, concedendo a revista, revogar o acórdão recorrido e, consequentemente, em manter a decisão da 1ª Instância que havia homologado o plano de insolvência em causa.

Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 4 de Junho 2009


Álvaro Rodrigues (Relator)
Santos Bernardino
Bettencourt de Faria

___________________________________
(1) -É o seguinte o sumário do Acórdão deste STJ, de 13-01-2009, referido no texto:
«I- O art. 194. ° do CIRE consagra de forma mitigada a igualdade dos credores da empresa em estado de insolvência.
II - A expressão ínsita no art. 197. ° do CIRE, na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência, atribui cariz supletivo ao preceito, o que implícita que pode haver regulação diversa, contendendo com os créditos previstos nas als. a) e b) o que deve ser entendido como afloração do princípio da igualdade e reconhecimento que, dentro da legalidade exigível, o plano pode regular a forma como os credores estruturam o plano de insolvência. Só assim não será se não houver expressa adopção de um regime diferente.

III - Ora, no caso em apreço, a assembleia de credores aprovou, maioritariamente, com o quorum legalmente exigível — art. 212. °do CIRE - um plano de insolvência por si moldado, pelo que não se aplica a regra supletiva do artigo 197°

IV - Decorrendo do art. 197. ° do CIRE, não ser necessária a unanimidade do voto dos credores, incluindo os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos e inerentes garantias, sendo privilegiados, não se antevê que a homologação do plano de insolvência esteja ferida de ilegalidade.

V - Os artºs. 30.°, n.º 2, e 36.°, n.º 3, da LGT, e art. 85.° do CPPT, têm o seu campo de aplicação na relação tributária, em sentido estrito, não encontrando apoio no contexto do processo especial como é o processo de insolvência, onde o Estado deve intervir também com o fito de contribuir para uma solução, diríamos, de olhos postos na insolvência, se essa for a vontade dos credores, numa perspectiva ampla de auto-regulação de que a desjudicialização do regime consagrado no CIRE é uma das essenciais características.

VI - Numa perspectiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam, seria desproporcional que o processo de insolvência fosse colocado em pé de igualdade com uma mera execução fiscal, servindo apenas para a Fazenda Nacional actuar na mera posição de reclamante dos seus créditos, mais a mais privilegiados, sem atender à particular condição dos demais credores e da insolvência.

VII - Assim, porque cabe na competência da assembleia de credores ao abrigo do art. 196.°, n° l, ais. a) e c) do CIRE, o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou as taxas de juro, sejam os créditos comuns, garantidos ou privilegiados, aprovado o plano que respeitou o quorum estabelecido no artigo 212°, e não tendo sido pedida a não homologação pela Fazenda Nacional, com fundamento no art. 216°, n°l, a) daquele diploma, homologado o plano de insolvência este vincula todos os credores, sejam comuns, sejam privilegiados.

VIII - Esta interpretação da lei não viola o art. 103.°, n° 2, da Constituição da República».
(2)- MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, Almedina, 2009, pg. 19.
(3)- Ibidem.
(4)- Disponível em www.dgsi.pt (Pº 1930/06-2)