Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PEDRO AFONSO LUCAS | ||
Descritores: | REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO REJEIÇÃO DE REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP202309272984/16.8T9VNG.P1 | ||
Data do Acordão: | 09/27/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA ASSISTENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - Não se descortina do regime previsto nos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, b) e d,) do Código de Processo Penal, que a avaliação do preenchimento dos pressupostos necessários à admissibilidade de instrução requerida pelo assistente em caso de decisão de arquivamento do inquérito, deva processar–se por referência apenas a um segmento específico do requerimento de abertura de instrução. II - Assim, para que se tenham em tal caso por satisfeitas as exigências formais e substanciais impostas como condição de eficácia processual do requerimento de abertura de instrução, o que há que ponderar é se os elementos essenciais que as preenchem resultam desse requerimento globalmente considerado, e não apenas de um segmento particular do mesmo, ainda que neste último se ensaie o elenco de uma acusação alternativa sob a forma habitual de tal peça processual. III - Só a ausência no requerimento de abertura de instrução (globalmente considerado) deduzido pelo assistente, por absoluta omissão narrativa, de factos fundamentadores da aplicação ao sujeito-arguido duma pena ou duma medida de segurança, gera uma verdadeira ineptidão e nulidade do requerimento de instrução – por só uma tal omissão tornar juridicamente impossível a realização da fase instrutória por falta de objeto, e inúteis, e como tal proibidos, quaisquer atos instrutórios que ainda assim se viessem a realizar. | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. nº 2984/16.8T9VNG.P1 Tribunal de origem: Juízo de Instrução Criminal do Porto, Juiz 3 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto: I. RELATÓRIO No âmbito do processo nº 2984/16.8T9VNG foi oportunamente pelo Ministério Público proferido despacho de encerramento de Inquérito, em que, nos termos do disposto no art. 277º/2 do Cód. de Processo Penal, foi pelo Ministério Público decidido pelo arquivamento do inquérito. Nessa sequência, e inconformada com tal arquivamento, veio a ora assistente AA apresentar requerimento de abertura de instrução (RAI), nos termos do artigo 287º/1/b) do Cód. de Processo Penal, requerer a abertura de instrução por considerar que existem indícios suficientes da prática: – pelos arguidos BB, “A... Unipessoal, Lda.” e CC, de um crime de burla qualificada p. p. pelas disposições conjugadas dos arts. 217º e 218º/2/a)/b)/c)/d) do Cód. Penal, – e ainda o arguido BB de mais um crime de falsificação de documento p. p. pelo art.º 256º/1/a)/b)/c) do Cód. Penal. Remetidos os autos ao Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz 7, veio ali a ser, em 16/01/2023, proferida pela Juiz de Instrução decisão de rejeição do RAI através de despacho que, na sua parte decisória, é nos seguintes termos: «Pelo exposto, e em conformidade com o disposto no artº 287º nº1 al.b), nº2 e 3 do C.P.P. decide-se rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução. * Custas do incidente a cargo do assistente, que se fixa em 2UC., sem prejuízo da decisão sobre o apoio judiciário.* Notifique.»É inconformado com esta decisão que dela ora recorre, por requerimento apresentado em 22/02/2023, a assistente AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões: 1. O presente recurso vem interposto do despacho que indeferiu a abertura da instrução requerida pela Assistente, por «inadmissibilidade legal de instrução»; 2. O MP arquivou o inquérito por entender que os factos denunciados não consubstanciavam qualquer crime, designadamente os crimes de burla qualificada e falsificação de documentos previstos e punidos pelos arts. 217º e 218º nº 2 bem como 256º, todos do CP. 3. Não concordando com esse entendimento, a Assistente requereu a abertura da instrução visando a «comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (art. 286.°, n.º 1, do CPP). 4. O despacho recorrido, sufragando a decisão do MP, entendendo que aqueles factos não consubstanciavam qualquer crime e para evitar a prática de actos inúteis - invocando o art. 130.° do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do art. 4.° do CPP - rejeitou a abertura da instrução por inadmissibilidade legal da mesma. 5. O despacho recorrido invocou alguns acórdãos do STJ em defesa da sua tese, arestos esses que, todavia, tratam de questões que em nada se assemelham à dos presentes autos, pois pressupõem requerimentos de abertura da instrução com graves deficiências formais processuais. 6. Ora, a decisão recorrida impede que a atividade do MP seja controlada judicialmente pelo juiz de instrução ao rejeitar a abertura da mesma e coarta, deste modo, o princípio constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva. 7. Assim, não podemos de todo concordar com o entendimento sufragado na douta decisão recorrida de acordo com a doutrina (Germano Marques da Silva; Maia Gonçalves: Vinício Ribeiro; Simas Santos e Leal Henriques, Paulo Pinto de Albuquerque) e jurisprudência dominante (Ac. TRE de 05.02.2013 in dgsi Proc. 129/11.0GBLGS-A.E1; Ac. TRC de 28.02.2018 in dgsi Proc. 4856/15.4TDLSB.C1; Ac. do STJ de 16/6/2020, Proc. 37/19.6YGLSB da 5ª Sec.; Ac. TRL de 04.05.2021 in dgsi Proc. 471/19.1T9LNH-A.L1-5 e o Ac. do TRP de 26.04.2017, Proc. nº 8473/16.3T9PRT.P1, que numa situação idêntica à destes autos estabelece que: Não existindo qualquer causa extraordinária que exclua esse conhecimento, é óbvio que qualquer pessoa sabe que burlar outra é ilícito e proibido. A culpa não faz parte do tipo subjectivo de ilícito). 8. Ora, a Assistente, aqui Recorrente, invocou os factos, objetivos e subjetivos, que imputa aos arguidos, o que fez de forma circunstanciada. 9. No requerimento de abertura da instrução da Assistente estão cumpridos todos os formalismos legais, sendo que exclusivamente teve por finalidade sindicar, em fase de instrução, a decisão do MP, o que pretende seja decidido após, pelo menos, debate oral e contraditório (art. 289.º, n.º 1, do CPP) 10. Na versão factual da denúncia e do RAI, os factos imputados aos denunciados constituem crimes de burla qualificada e falsificação de documentos, sendo que neste RAI se encontram elencados todos os elementos objetivos e subjetivos que integram os tipos legais dos crimes em causa, designadamente consciência dos actos enganosos e atuação conformada com eles, intenção prévia de não pagar, consciência de que causaria prejuízos e das consequências dos seus actos e atuação conformada com eles, provocação deliberada de prejuízo e de enriquecimento injustificado, atuação deliberada e consciente de que com os seus actos causava prejuízo e conformação com o resultado dos seus actos – cfr. Assim sendo, o arguido teve desde o início o propósito e a vontade prévia de enganar a ofendida, antes da celebração do contrato, porque foi este e não a ofendida quem sugeriu utilizar a sua empresa para evitar o pagamento de impostos (fls. 151 e 781), já que os imoveis se destinavam a revenda, agindo com a exclusiva intenção de fazer a ofendida dispor do seu património ou de terceiro, para ficar com os preços da revenda dos imóveis. O arguido BB engendrou um plano com recurso a artifícios fraudulentos, aproveitando-se da relação de confiança e amizade com a ofendida, com a intenção prévia de a ludibriar e não lhe entregar o valor da revenda dos imóveis (vide fls. 150 dos autos). Pois, foi todo esse circunstancialismo ardiloso criado pelo arguido que levou a vitima a atuar contra o seu património ou contra o património de outrem (caso houvesse um terceiro investidor), apenas porque teve um falso convencimento da realidade, porque atuou com base num erro/engano de que o arguido iria revender os imóveis através da sua empresa, mas com intervenção da ofendida, motivo pelo qual tinha procuração para comprar, vender e receber os preços, limitando-se o arguido a receber uma comissão, como já o vinha fazendo antes com a B... -para tal basta atender a fls. 176 a 178 dos autos. Cheque esse, que de imediato anulou, o que mais uma vez demonstra o seu propósito prévio de enriquecimento ilegítimo. A arguida CC teve uma intervenção direta no negócio, em comunhão de esforços e intentos com o arguido BB, com vista a locupletar-se com o dinheiro da Ofendida, tendo inclusive ajudado a sonegá-lo em contas pessoais desta, de onde o mesmo desapareceu, pois em 03.04.2017 não existia saldo penhorável na aludida conta do Banco 1..., nem em qualquer outro banco, conforme consta do procedimento cautelar de arresto (fls. 578 a 579 verso e 874 verso a 876 dos autos). 11. Ora, o que deve constar da acusação alternativa da Assistente é o elemento cognitivo os arguidos agiram com o propósito de enganar a Assistente, bem conhecendo as características da sua conduta e a natureza ilícita da mesma e o elemento volitivo tendo querido, não obstante, atuar da forma como o fizeram. 12. Assim, a Assistente imputou, no RAI, factos concretos aos arguidos, descrevendo os elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais de crimes que imputou aos mesmos, enquadrando-os legalmente. 13. Pelo que, a Assistente cumpriu, no RAI que formulou, as exigências contidas no artº 283º, nº 3, als. b) e c), ex vi do artº 287º, nº 2, ambos do CPP. Dito de outro modo: não falta ao RAI formulado nestes autos a delimitação factual sobre a qual há-de incidir a instrução, uma verdadeira “acusação alternativa”, com o mesmo rigor e precisão que é exigível ao libelo acusatório (público ou particular). 14. Sucedendo que, perante os mesmos factos, são plausíveis soluções jurídicas diversas e antagónicas e porque o que se discute é justamente saber se os factos em causa consubstanciam ou não os crimes mencionados, deve ser analisada a questão da tipicidade dos factos denunciados, sob pena de violação dos princípios constitucionais de acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva. 15. Não pode o Tribunal recorrido, pretender antecipar a decisão instrutória, que só poderia ter proferido depois de declarada aberta a instrução e cumpridos todos os rituais processuais respetivos, nomeadamente o obrigatório debate instrutório, onde se cumpre o princípio do contraditório (art. 289.°, n.º 1, CPP). 16. Não pode o Tribunal recorrido pretender integrar no conceito de «inadmissibilidade legal da instrução» (art. 287.°, n.º 3, parte final) a sua própria posição jurídica, coincidente com a anterior do MP, segundo a qual os factos não constituem crime, para assim rejeitar a abertura de instrução. 17. Isso porque o Código de Processo Penal não prevê em nenhuma das suas normas essa causa de inadmissibilidade da instrução. 18. Sendo que, saber se um facto consubstancia ou não crime, e quando tal se pretende ver transferido para a fase da instrução como seu cerne crucial, não pode constituir causa de inadmissibilidade legal da mesma instrução. 19. Ao decidir como decidiu, conhecendo antecipadamente da questão fulcral suscitada no RAI, sem que o tivesse feito, como a lei impõe, na fase de instrução, o despacho recorrido como que «inventou» uma nova fase processual não prevista na lei: a fase do pós-inquérito ou da préinstrução. E, pretextando que a sua perspetiva jurídica não merece discussão, antecipando a decisão instrutória que adotaria se houvesse instrução, declarou a instrução um ato inútil. Precipitadamente, porque lhe competia ouvir os intervenientes processuais, pelo menos, no debate instrutório, a ter lugar em sede de instrução. 20. Estaria assim encontrada a forma de o JIC não declarar aberta a instrução: os factos não consubstanciam crime, logo rejeito a abertura de instrução. Ainda que esse seja o cerne da questão, isto é, a causa do requerimento da abertura da instrução. E, fazendo valer a sua perspetiva jurídica como a única válida, bastaria declarar a instrução como «ato inútil» para a rejeitar por inadmissibilidade «legal». 21. O despacho recorrido violou assim, além do mais, o princípio do contraditório, já que não consentiu que, em fase da instrução, perante si, os intervenientes processuais pudessem discutir e esgrimir de viva-voz a questão, quanto mais não fosse em debate instrutório (oral e contraditório art. 289.°, n.º 1, do CPP); 22. Não tendo declarado aberta a instrução, o despacho recorrido está ferido de nulidade insanável prevista no art. 119.°, al. d), do CPP, por falta de instrução que, no caso, porque requerida por quem tem legitimidade, em tempo e perante o juiz competente, é obrigatória por lei (arts. 286.°, n.º 1, 287.º, n.º 1 al. b), do CPP); 23. Em consequência, declarando a referida nulidade, deverá revogar- se o despacho recorrido e ordenar-se a prolação de outro que ordene a abertura da instrução com todas as consequências legais. 24. Acaso assim não se entenda, e perante a «decisão - surpresa» que constitui a tese do despacho recorrido, vai invocada a inconstitucionalidade da interpretação normativa conjugada dos arts. 286º n.º 1 e 287.°, n.º 1, al. b) e n.º 3, do CPP e art° 130° do CPC aqui aplicável «ex vi» art° 4° do CPP, segundo a qual integra o conceito de «inadmissibilidade legal da instrução» a conclusão prévia pelo JIC de que os factos pelos quais o MP não deduziu acusação no final do inquérito não consubstanciam a prática de qualquer crime, tal como ali considerara o MP, o que, por configurar ato inútil, legitima a rejeição da abertura da instrução por inadmissibilidade legal, não obstante posição contrária defendida no RAI pela assistente; tudo por violação do princípio do Estado de Direito (art. 2º da CRP) e dos diversos subprincípios constitucionais daí decorrentes, nomeadamente o principio do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva previstos nos arts. 3.°, 20.° e 205.°, da CRP. 25. O despacho recorrido, pelos motivos expostos, violou o disposto nos artigos 286.°, n.º 1, e 287.°, n.º 1, al. b) e n.º 3, do CPP, e o art. 130° do CPC aplicável ao processo penal "ex vi" art° 4° do CPP, o que traduz nulidade insanável (art. 119.°, aI. d), CPP). O recurso foi admitido. A este recurso respondeu apenas o Ministério Público, defendendo a improcedência do mesmo. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, propugnando também pela improcedência do recurso. Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir. * II. APRECIAÇÃO DO RECURSOO objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito. À luz das considerações que acabam de se enunciar, cumpre referir que, em face da forma como o recorrente suscita quanto pretende ver decidido no seu recurso, em bom rigor a questão basilar que o mesmo coloca se reconduz à de saber se devia ter sido rejeitado o requerimento de abertura de instrução (RAI), no que tange à imputada prática pelos arguidos dos crimes de burla qualificada e de falsificação de documentos, por inadmissibilidade legal desta última, nos termos do art. 287º/3 do Cód. de Processo Penal. Comecemos, antes de mais, por fazer presente o teor da decisão de rejeição do RAI, da qual ora se recorre, e que é o seguinte: «A Assistente AA reagindo ao despacho de arquivamento do M.P. veio requerer a abertura de instrução por considerar que existem indícios suficientes da prática pelos arguidos BB, A... Unipessoal Lda. e CC, de um crime de burla qualificada p. p. pelo art.º 217 e 218 nº2 als.a), b) c) e d) e ainda o arguido BB de um crime de falsificação de documento p. p. pelo art.º 256/ als .a) b) e c) do Código Penal, pelos factos descritos nas acusações alternativas sob os art.s 220 a 221 (respeitante ao crime de burla ) e 230 (respeitante ao crime de falsificação) que constam do RAI . Cumpre desde já conhecer da seguinte questão prévia da inadmissibilidade legal da instrução Conforme resulta da lei processual penal, a instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento, «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» – artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Finda a instrução, o juiz deverá proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia, sendo certo que a opção por um ou por outro se relaciona com o facto de até ao encerramento da instrução se haver logrado ou não recolher indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança – artigos 308.º, n.º 1, e 283.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal. Efectivamente, nesta fase não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas tão-só indícios de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido, sendo certo que a decisão a proferir no final desta fase não é uma decisão jurisdicional de mérito, mas sim uma decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase do julgamento. Deve, assim, o juiz de instrução compulsar e ponderar toda a prova recolhida e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento. No fundo, a fase de instrução permite que a actividade levada a cabo pelo Ministério Público durante a fase do inquérito possa ser controlada através de uma comprovação, por via judicial, traduzindo-se essa possibilidade na consagração, no nosso sistema, da estrutura acusatória do processo penal, a qual encontra assento legal no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa. Por isso, a actividade processual desenvolvida na instrução é materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações – Acórdão da Relação de Lisboa de 12/07/1995, CJ, XX, 4.º, pág. 140 e Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 128. Nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, podem requerer a abertura de instrução o arguido e o assistente, esclarecendo a lei quem pode constituir-se como assistente em processo penal. Estatui o artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/98, de 25/08, referindo-se ao requerimento de abertura de instrução, que o mesmo deve conter “em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for o caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar”, sendo certo que a tal requerimento, quando formulado pelo assistente, é aplicável “o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...)”. Quer isto dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe (vide Acórdão da Relação de Lisboa de 12/05/1998, BMJ n.º 477.º, pág. 555; da Relação do Porto de 15/04/1998, BMJ n.º 476.º, pág. 487; da Relação de Lisboa de 2/12/1998, BMJ n.º 482.º, pág. 294; da Relação de Lisboa de 21/10/1999, CJ, XXII pág. 158; Relação de Lisboa de 9/02/2000, CJ, XXIII, 1.º, 153. Se assim é podemos então concluir que, por força da conjugação do artigo 287.º, n.º 2, com o artigo 309.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, a instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público – aquele que aqui importa ter em conta –, não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho, sendo certo que tal exigência, formalismo e equiparação não se pode afirmar ou exigir ao requerimento formulado pelo arguido (cfr. artigo 287.º, n.º 2, in fine, a contrario sensu). Pelas razões acima aludidas, no requerimento para abertura de instrução o assistente tem de indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida. O juiz, por seu turno, irá apurar se esses factos se indiciam ou não, proferindo ou não, em consonância, despacho de pronúncia (cfr., neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 05/05/1993, CJ, XVIII, 3.º, pág. 243 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/11/1993, CJ, XVIII, 5.º, pág. 61). Isto significa, portanto, que o requerimento de abertura de instrução equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objeto do processo a partir da sua apresentação; ele constitui, pois, substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo Ministério Público. Só assim se respeitará a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que “o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto da acusação do Ministério Público.” – Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, pág. 264. O assistente, já se referiu, tem a faculdade de requerer a abertura da instrução. Tal faculdade, no caso concreto, foi exercida na sequência da prolação do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público. Esse requerimento consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal. A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução. Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa. Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis. Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução. Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada. No caso em concreto a Assistente reagindo ao despacho de arquivamento do M.P. veio requerer a abertura de instrução por considerar que inexistem indícios suficientes da prática pelos arguidos de um crime de burla qualificada p. p. pelo art.º 217 e 218 nº2 e ainda reportando-se ao arguido BB de um crime de falsificação de documento p.p. pelo art.º 256, com base nos factos que constituem as acusações alternativas descritos sob os art.º 220 a 221 e 231 do RAI que aqui damos por reproduzidos. Sendo estes os factos pelos quais a assistente requerer que os arguidos sejam pronunciados, são eles que equivalem a acusação alternativa que impõe o artigo 287º, nº 2, do CPP. Da leitura dessas acusações alternativas, verifica-se que não consta o elemento subjetivo das infrações, que a assistente imputa aos arguidos E, são precisamente os elementos subjetivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do caráter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Nos crimes em apreço (burla e falsificação), doloso, da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao gente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo) e conscientemente (imputabilidade) bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Neste sentido vid. entre outros AC. Rel.Coimbra 30.09.2009, disponível em www.dgsi.pt; Ac. Rel. Guimarães de 6.12.2010, disponível em www.dgsi.pt. No caso dos autos, nos art.º 220 a 221 e 231 a assistente e descreve os factos que preenchem os elementos objectivos de tais crimes, no entanto omite a descrição fática referente aos elementos subjectivos dos mesmos. Como resulta do supra exposto, o requerimento de abertura de instrução da assistente contraria o disposto nos citados artsº 287º nº2 e 283º al.b) do C.P.P., pois não contém a narração de factos integradores dos elementos subjetivos do tipos legais cuja pronuncia requer e que possam fundamentar a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança, limitando-se a pôr em causa a análise da prova feita pelo Ministério Público em fase de inquérito, discordando dessa apreciação e requerendo a realização de diligências a realizar em fase de instrução, requerendo até a reabertura de inquérito – o que só pode ser efetuado através de reclamação hierárquica, relativamente a crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitaise extorsão(art 154 do RAI) O juiz encontra-se substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido anteriormente deduzida acusação nos autos ou que tenham sido descritos no acusação alternativa do assistente, cominando a lei no artº 309º do C.P.P. com a sanção da nulidade, a decisão instrutória, na parte em que pronuncie o arguido por factos que constituem alteração substancial dos descritos na acusação ou no requerimento de abertura de instrução. Como tal, constituí ónus do assistente alegar expressamente todos os factos concretos susceptíveis de integrar o tipo legal de crime que entende ter a conduta do arguido preenchido, nomeadamente todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime como vem entendendo a generalidade da jurisprudência (Cfr. entre outros, Ac.R.P. de 21/06/06 proc.611176, de 07/01/09, proc.0846210, de 11/10/06 proc.0416501 e 03/10/10 proc.972/07.4GCSTS e Ac. R.C. de06/07/11 proc.212/10.9TAFND e de 06/07/11 proc.2184/06.5JFLSB www.dgsi.pt). Não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor (Cfr. neste sentido, Ac. R.L. de 20/05/97 C.J. ano XXII T.3, pag. 143). A liberdade de investigação conferida ao juiz de instrução pelo artº 289º como decorrência do princípio da verdade material que enforma o processo penal e que lhe permite levar a cabo, autonomamente, diligências de investigação e recolha de provas, não é absoluta, porque está condicionada pelo objecto da acusação. A actividade processual desenvolvida na instrução é uma actividade “materialmente judicial e não materialmente policial ou de investigação” –cfr. Figueiredo Dias “Sobre os sujeitos Processuais no novo Código de Processo Penal” Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal, pag. 16. Devendo a pronúncia descrever os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (Cfr. nº1 do artº 308º do C.P.P.) se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente não contiver tais factos – e sendo nula a pronúncia que os viesse a incluir a despeito de tal omissão - então temos que, em tais casos, a instrução é inútil, porque não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido. Ora, não admitindo a lei a prática de actos inúteis (Cfr. artº 137º do C.P.C. ex vi artº 4º do C.P.P.), será “legalmente inadmissível a instrução quando seja requerida pelo assistente e este não descreva no seu requerimento os epelo qual pretende a pronúncia do arguido. Analisando o requerimento de abertura de instrução vemos que as acusações alternativas deduzidas pela assistente a nos art.ºs 220 a 221 e 231 não contém uma descrição fáctica clara e concreta legalmente exigível, no que aos elementos subjectivos dos ilícitos de burla e de falsificação. O seu conteúdo de modo algum permitiria a prolação de um despacho de pronúncia contra os arguidos, sendo o elenco de factos que contém insuficiente para a imputação de responsabilidade criminal por um qualquer ilícito. Finalmente cabe ainda referir que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar a requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artº 287º nº2 do C.P.P., quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, uma vez que o Ac. STJ nº7/2005 de 12/05/05 publicado no D.R.I-A de 04/11/05 fixou jurisprudência nesses termos. Pelo exposto, e em conformidade com o disposto no artº 287º nº1 al.b), nº2 e 3 do C.P.P. decide-se rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução. * Custas do incidente a cargo do assistente, que se fixa em 2UC., sem prejuízo da decisão sobre o apoio judiciário.* Notifique.».Analisemos então a questão suscitada em sede de recurso – a qual, como de início se disse, se reconduz a saber se devia ter sido rejeitado o requerimento de abertura de instrução (RAI), no que tange à imputada prática pelos arguidos dos crimes de burla qualificada e de falsificação de documentos, por inadmissibilidade legal desta última, nos termos do art. 287º/3 do Cód. de Processo Penal. É certo que, formalmente, o que o assistente vem suscitar em primeira linha é a nulidade da decisão em causa, por violação do disposto no art. 119º/d) do Cód. de Processo Penal, onde se prevê que consubstancia nulidade insanável, a declarar oficiosamente em qualquer fase do procedimento, «A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade». A expressão legal assim utilizada para consubstanciar o vício processual em causa não é absolutamente escrupulosa, pois que, como bem assinala João Conde Correia (em “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal – Tomo I”, ed. 2021, pág. 1240), não há em rigor nenhum caso de obrigatoriedade processual de que seja realizada a fase de Instrução, a qual, no direito processual penal português, assume sempre carácter facultativo (cfr. art. 286º/2 do Cód. de Processo Penal), dependendo sempre de requerimento do arguido (em caso de acusação) ou do assistente (em caso de arquivamento ou não acusação por alguns factos) – cfr. art. 287º/1 do Cód. de Processo Penal. Donde, muito claramente, o apelo á noção de «obrigatoriedade» de Instrução deve ser entendido à imposição de realização de tal fase processual sempre que para o efeito estejam reunidos os necessários pressupostos. Pressupostos estes que, assim, passam pelo respeito de critérios de legitimidade do requerente, de tempestividade, de competência do tribunal e de admissibilidade, nos termos prevenidos nos nºs 2 e 3 do art. 287º do Cód. de Processo Penal, onde se prevê que: «2 - O requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas. 3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.» Ou seja, mostrando–se reunidos e respeitados todos os requisitos assim impostos, o requerimento de abertura de instrução será processualmente eficaz e a realização de tal fase não pode ser rejeitada. Neste sentido se pronuncia o mesmo João Conde Correia (ob. e loc. citados) – citando, em favor do mesmo entendimento, jurisprudência (Acórdão do S.T.J. de 02/02/1994)[1] e doutrina (Paulo Pinto de Albuquerque, Maia Gonçalves, Souto Moura e José da Costa Pimenta) referindo que «caso não seja inadmissível (art. 287.º/3) ela [a instrução] torna–se obrigatória se e quando devidamente requerida pelas partes», logo concluindo que «Nesse caso, a sua omissão consubstancia uma nulidade insanável». Ou seja, e em resumo, é pressuposto da verificação da nulidade insanável de falta de instrução que esta última, tal como vem requerida, seja admissível à luz dos critérios do art. 287º/1/2/3 do Cód. de Processo Penal. Significa isto, portanto, que tudo afinal volta a reconduzir–se prima facie à apreciação e decisão sobre se a instrução requerida no caso dos autos é processualmente admissível, pois que apenas e só se o for, a sua realização é imperativa e poderá assim estar convocada a nulidade processual suscitada pelo recorrente. Assim devidamente alicerçado este primeiro patamar da presente análise, passemos à determinação do seguinte, qual seja o de definir, afinal, em pode traduzir–se a inadmissibilidade da instrução nos termos e para os efeitos do nº3 do art. 287º do Cód. de Processo Penal-. É, portanto, certo – como a determinado passo relembra a recorrente – que os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura de instrução estão previstos de forma taxativa neste nº3 do art. 287º do Cód. de Processo Penal, reconduzindo–se à respectiva extemporaneidade, à incompetência do juiz ou a inadmissibilidade legal da instrução. E se os dois primeiros fundamentos não suscitam debate no presente caso (nem, diga–se, se afigura que sejam susceptíveis de grande controvérsia na respectiva integração), é já quanto ao terceiro dos fundamentos de rejeição do RAI que maiores questões podem suscitar–se. Como de forma expressiva refere Pedro Soares Albergaria – em “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal – Tomo III”, ed. 2021, pág. 1207 –, «O fundamento por assim dizer mais "diversificado" de rejeição é o da inadmissibilidade legal da instrução», logo aditando que «Debalde se tentaria esgotar o conteúdo dessa cláusula geral, importando sobretudo reter que nem sempre essa inadmissibilidade resulta direta e obviamente de norma expressa (cf. art. 286.º/3), mas mais frequentemente até da consideração do desenho e lugar da fase de instrução na estrutura (acusatória) jurídico-constitucionalmente sancionada do processo penal português (…) - é dizer, não raro a inadmissibilidade legal da instrução resulta não propriamente de uma norma-regra (ainda o art. 286.º/3), mas da correta compreensão e otimização dos princípios que caraterizam o processo penal pátrio.». E prossegue o mesmo autor, em quanto para a presente situação releva, referindo que «Seja como for, por razões de arrumação sistemática talvez se possa, sempre sem pretensão de exaustividade e sem prejuízo de zonas mais ou menos cinzentas, destrinçar entre razões atinentes ao objeto da instrução e razões atinentes às "partes", suscetíveis de fundarem a rejeição do requerimento por inadmissibilidade legal da instrução: (…) ali [cabem], a circunstância de (…) quando o requerimento do assistente não seja autossuficiente quanto aos factos pertinentes ao tipo de crime imputado ». Efectivamente, e ponderando naqueles que são os fins e os objectivos da fase de instrução em processo penal, temos que a mesma se orienta desde logo a partir dos termos consignados no art. 286º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se dispõe que “A instrução visa a comprovação da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem em submeter ou não a causa a julgamento”. Assim, enquanto fase jurisdicional, e citando Paulo Pinto de Albuquerque (in ‘Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem’, 2ª ed., pág. 737) «A instrução consiste na fase de discussão da decisão de arquivamento ou de acusação tomada pelo MP no final do inquérito. Mas o âmbito desta discussão é limitado pela lei, ou melhor, pelo objectivo que a lei estabelece para aquela discussão. Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (artigo 308, n.º 1). Portanto, a instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes e discutir a decisão de acusação apenas no que respeita ao juízo do MP de existência de indícios suficientes». Não se configurando como um complemento da investigação feita em inquérito, mas antes contemplando a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento, tal significa que em sede de fase instrutória caberá ao juiz investigar o caso submetido a instrução, de forma autónoma, e sempre “tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução” a que se refere o art. 287º/2 do Cód. de Processo Penal, conforme expressamente exigido no art. 288º/4 do Cód. de Processo Penal. Nesta perspectiva, é fora de dúvida, como assinala a decisão recorrida, que o RAI apresentado pelo assistente (em reacção maxime a uma decisão de arquivamento do Ministério Público, como sucede no presente caso), equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objecto do processo a partir da sua apresentação, constituindo, «substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo Ministério Público». Isso mesmo decorre expressamente do disposto no art. 287º/2 do Cód. de Processo Penal, onde se estatui que o RAI «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar», sendo certo que a tal requerimento, quando formulado pelo assistente, é aplicável “o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º» – ou seja, o mesmo deve conter “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “A indicação das disposições legais aplicáveis” O assistente tem, pois, que indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida, viabilizando a jusante a sindicância instrutória em que o juiz de instrução apura se esses factos se indiciam (ou não), e a final profere (ou não) despacho de pronúncia. Como, por todos, se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/04/2020 (proc. 1016/14.5T3AVR.P1)[2], “I - O requerimento para abertura de instrução (RAI), apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público deve equivaler em tudo a uma acusação, condicionando e delimitando a atividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objeto da decisão instrutória, nos exatos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz. II - Daí que, não constando do RAI uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime se torne inviável a realização desta fase processual de instrução por falta de delimitação do seu objecto. III - E isto porque é manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos suscetíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objetivos e subjetivos do crime pelo qual se pretende essa pronúncia. IV - Quando não contém os elementos supra referidos em II, o RAI é nulo por falta de objecto, o que implica a inexequibilidade da instrução e, por via disso, a sua rejeição”. Só assim se respeitará a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que «o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objeto da acusação do Ministério Público» – Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, pág. 264. Por isso, como – também por todos – se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/11/2016 (proc. 37/09.4TAPNC.C1)[3], “a exigência legal de que o requerimento de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos. A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução do assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Penal. Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa (cfr. Prof. Germano Marques, Curso de Processo Penal III, pag. 141). Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da CRP). O disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição. Porque assim é, tem sido entendido que o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, deve ser objecto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287º, nº 2 e nº 3 e 283º, nº 3, b) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da instrução”. Ou seja, e revertendo a quanto releva no presente caso concreto, estando em causa a pretendida (pelo assistente) imputação aos arguidos de crimes de natureza dolosa (como, consabidamente, o são a burla e a falsificação de documentos – cfr. arts. 217º e 218º, e art. 256º do Cód. Penal), o RAI deve conter a referência aos factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja, o elemento intelectual (que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo, visando que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito) e o elemento volitivo (supõe uma decisão de vontade do agente para a realização de um ilícito-típico, por via de uma acção ou omissão, sendo que é, especialmente, através do grau de intensidade desta relação de vontade que se diferenciam as várias formas de dolo), precisando a modalidade em que se exprime essa vontade intenção directa de praticar o facto, previsão do resultado como consequência necessária ou possível da conduta e aceitação do resultado. A falta destes elementos não pode ser suprida em julgamento com recurso ao disposto no art. 358º do Cód. de Processo Penal, de acordo com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ nº 1/2015 («A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»)[4] ; e também, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ nº 7/2005 («Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.»)[5] não permite formular convite ao aperfeiçoamento do RAI quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido – pelo que o RAI apresentado terá de, em tal circunstância, ser rejeitado. Foi precisamente a ali considerada falta de indicação de tais elementos constitutivos dos ilícitos criminais imputados pela assistente aos arguidos que sustentou a decisão ora recorrida, ali se consignando em especial quo seguinte, com sublinhados agora apostos: «No caso em concreto a Assistente reagindo ao despacho de arquivamento do M.P. veio requerer a abertura de instrução por considerar que inexistem indícios suficientes da prática pelos arguidos de um crime de burla qualificada p. p. pelo art.º 217 e 218 nº2 e ainda reportando-se ao arguido BB de um crime de falsificação de documento p.p. pelo art.º 256, com base nos factos que constituem as acusações alternativas descritos sob os art.º 220 a 221 e 231 do RAI que aqui damos por reproduzidos. Sendo estes os factos pelos quais a assistente requerer que os arguidos sejam pronunciados, são eles que equivalem a acusação alternativa que impõe o artigo 287º, nº 2, do CPP. Da leitura dessas acusações alternativas, verifica-se que não consta o elemento subjetivo das infrações, que a assistente imputa aos arguidos E, são precisamente os elementos subjetivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do caráter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Nos crimes em apreço (burla e falsificação), doloso, da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao gente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo) e conscientemente (imputabilidade) bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. (…) No caso dos autos, nos art.º 220 a 221 e 231 a assistente e descreve os factos que preenchem os elementos objectivos de tais crimes, no entanto omite a descrição fática referente aos elementos subjectivos dos mesmos. (…) Analisando o requerimento de abertura de instrução vemos que as acusações alternativas deduzidas pela assistente a nos art.ºs 220 a 221 e 231 não contém uma descrição fáctica clara e concreta legalmente exigível, no que aos elementos subjectivos dos ilícitos de burla e de falsificação. O seu conteúdo de modo algum permitiria a prolação de um despacho de pronúncia contra os arguidos, sendo o elenco de factos que contém insuficiente para a imputação de responsabilidade criminal por um qualquer ilícito.». Ou seja, claramente se constata que, em face do RAI apresentado pela assistente, o tribunal a quo vem a cindi–lo entre a parte substancial do mesmo em que a mesma assistente relata todas as circunstâncias e historial que, no seu entender, relevam para enformar a actuação criminalmente censurável dos arguidos, dos segmentos de tal RAI consubstanciados nos seus pontos 220. e 230. – e não “231” como, certamente por lapso, vem referenciado na decisão recorrida –, considerando que o elenco dos factos relevantes para a ponderação sobre da admissibilidade da realização da requerida Instrução, à luz dos pressupostos que se mostram exigíveis nos termos dos citados arts. 287º/2 e 283º/3/b)d) do Cód. de Processo Penal, se reconduzem e circunscrevem àqueles ali concretamente vertidos. Ora, é certo que a assistente, inicia o ponto 220. do RAI consignando que «Assim, de toda a prova documental e testemunhal carreada para os autos, devidamente concatenada, e ainda segundo as regras de experiência comum, decorre que os arguidos devem ser pronunciados nos seguintes termos: (…)», elencando depois uma série de factos que, no seu entender, consubstanciam a prática do crime de burla qualificada pelos arguidos ; e (depois de no ponto 221. do RAI referir que «Ademais, o digno magistrado do MP não se pronunciou quanto aos crimes de falsificação de documentos, fraude fiscal, branqueamento de capitais e extorsão, também denunciados pela ofendida»), vem a aditar, no ponto 230. (e não, repete–se, no 231.) que «Face ao exposto deve o arguido BB ser pronunciado nos seguintes termos: (…)», descrevendo depois factos que, no seu entender, consubstanciam a prática por este arguido de um crime de falsificação de documentos. Considerando que é exclusivamente quanto se mostra elencado nos aludidos pontos 220. e 231. do RAI que consubstancia as «acusações alternativas» propugnadas pela assistente, entende a decisão recorrida que as mesmas são omissas quanto a adequada indicação dos factos relativos aos elementos subjectivo dos tipos criminais de burla e falsificação, respectivamente. Considera–se, porém, e em face do teor do RAI apresentado pela assistente, que tal traduz uma visão demasiado restritiva daquilo que se mostra efectivamente exigível nos termos dos aludidos arts. 287º/2 e 283º/3/b) d) do Cód. de Processo Penal. Assim, cumpre desde logo realçar que o nº2 do art. 287º do Cód. de Processo Penal estipula que «o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais» – estatuição base aplicável a qualquer RAI (isto é, também ao que seja apresentado por quem tenha a qualidade de assistente nos autos) –, aditando depois quais os aspectos e elementos que, não obstante essa inexigência de formalismo estrito, devem constar do RAI, em especial do apresentado pelo assistente nos autos. Ora, não se descortina deste regime legal a imposição de que a avaliação da completude do preenchimento de tais pressupostos – e, assim, da presença dos elementos do requerimento que sejam materialmente exigidos –, deva processar–se por referência apenas a um segmento específico do RAI, e não por reporte àquela que seja a globalidade do teor do mesmo RAI. Ou seja, para que se tenham por satisfeitas as exigências formais e substanciais impostas como condição de eficácia processual do RAI, o que há que ponderar é se os elementos essenciais que as preenchem resultem do RAI globalmente considerado, e não apenas de um segmento particular do mesmo, ainda que no mesmo se ensaie o elenco de uma acusação alternativa sob a forma habitual de tal peça processual. Pois bem, no caso dos autos, concede–se sem qualquer hesitação que a prolixidade patente ao longo de parte substancial do RAI apresentado pela assistente, por contraponto a alguma inabilidade descritiva nos segmentos em que ensaia a aludida elaboração de uma proposta de acusação alternativa (recorde–se, os pontos 220. e 230. do RAI) não militam em abono da clareza que seria desejável e formalmente adequada – sendo claro que, nesses específicos segmentos em concreto, a descrição dos elementos típicos subjectivos dos crimes que se querem imputados é, na verdade, manifestamente deficiente. Sucede que tais segmentos são isso mesmo, ou seja, apenas uma parcela do RAI apresentado. Ora, a verdade é que, percorrido na sua (assinalável) extensão todo o demais conteúdo do RAI apresentado, o mesmo, ao contrário daquilo que refere a decisão recorrida, não é apenas um mero exercício em que a assistente se «limita[ndo-se] a pôr em causa a análise da prova feita pelo Ministério Público em fase de inquérito, discordando dessa apreciação e requerendo a realização de diligências a realizar em fase de instrução». Sendo indiscutível que reiteradamente ao longo do RAI a assistente procede a um tal exercício de critica e análise probatória alternativa, a verdade é que igualmente procede a um (exaustivo) elenco de circunstâncias de facto históricas que alega haverem–se verificado, e que traduzem a actuação típica e ilícita dos arguidos. E constata–se nessa sua reconstituição, que o RAI apresentado pela assistente (pese embora pecando, repete–se, por acentuada prolixidade) elenca e alude, de forma reiterada, a circunstâncias de facto que permitem a averiguação probatória indiciária, não apenas dos elementos do tipo objectivo, mas também no que respeita ao tipo subjectivo dos ilícitos que a assistente lhes imputa (isto é, susceptíveis de demonstrar terem os mesmos arguidos actuado voluntariamente, representando e querendo a realização daqueles elementos objectivos, por alguma das formas previstas no art. 14º do Cód. Penal) – assim como, adita–se, igualmente elenca, de forma que se tem por suficiente, circunstâncias das quais se extrai estarmos perante a imputação de actuação consciente da ilicitude daqueles –, sendo que, muito naturalmente, se tais elementos se podem, ou não, ter por indiciariamente demonstrados, essa é questão muito diversa da sua alegação em sede de RAI, e que aqui não releva de todo. A assistente, aliás, faz questão de precisamente recordar na sua alegação recursória muitas dessas passagens. Assim sucede, nomeadamente, nos seguintes pontos do RAI apresentado: - ponto 8.: «[o arguido BB], este sempre soube que o dinheiro provinha de uma conta da Ofendida, pelo que sempre pretendeu enganar esta no sentido de dispor do seu património ou do património de terceiro»; - ponto 9.: «o arguido BB, em nome individual e enquanto representante da arguida»; - pontos 11. e 12.: «o arguido BB e a sua sociedade A... tinham perfeito conhecimento de que era a ofendida que estava a comprar e a pagar os referidos imóveis, com dinheiro de uma conta sua» . - pontos 16 e 18.: «quando a ofendida descobriu que este já tinha vendido três frações da sua propriedade, sem o seu conhecimento nem consentimento»; - pontos 19. a 26.: «intenção ab initio do arguido de enganar a ofendida»; «mentindo à Ofendida com intuito de ficar com o preço da venda» ; «E ainda outorgou a escritura da fração 4 dias depois, sem também avisar a Ofendida, induzindo-a assim em erro e engano, ardilosamente provocado, para que a Ofendida não comparecesse às escrituras para receber o preço da sua venda, locupletando-se assim à custa da mesma» ; «o arguido teve desde o início o propósito e a vontade prévia de enganar a ofendida, antes da celebração do contrato (…) agindo com a exclusiva intenção de fazer a ofendida dispor do seu património ou de terceiro, para ficar com os preços da revenda dos imóveis»; «o arguido BB engendrou um plano com recurso a artifícios fraudulentos, aproveitando-se da relação de confiança e amizade com a ofendida, com a intenção prévia de a ludibriar e não lhe entregar o valor da revenda dos imóveis (…) causando à ofendida um grave prejuízo económico, ao induzi-la em erro quanto às premissas do negócio»; - ponto 31.: «foi todo esse circunstancialismo ardiloso criado pelo arguido que levou a vitima a atuar contra o seu património ou contra o património de outrem (caso houvesse um terceiro investidor), apenas porque teve um falso convencimento da realidade, porque atuou com base num erro/engano de que o arguido iria revender os imóveis através da sua empresa, mas com intervenção da ofendida»; - ponto 35.: «o Sr. BB sempre mentiu a todos os intervenientes no negócio, nomeadamente referiu ao Sr. DD e mulher que, por parte da empresa vendedora (A...), seria outra pessoa a assinar e falsificou a assinatura da ofendida» ; - pontos 41. a 44.: «a sua [do arguido] intenção ab initio de se locupletar à custa do património da ofendida ou do terceiro investidor»; «Cheque esse, que de imediato anulou, o que mais uma vez demonstra o seu propósito prévio de enriquecimento ilegítimo»; - pontos 61. e 62.: «demonstra o propósito inicial dos arguidos obterem um enriquecimento ilícito, já que nunca foi sua intenção devolver nem os preços nem frações, como o têm feito até à presente data» - ponto 80. : «Tais movimentos bancários efetuados, quer pelo arguido BB, enquanto representante da arguida A..., quer pela arguida CC, denotam o seu propósito ab initio de se locupletar com dinheiro que sabiam não ser seu, retirando-o da conta da A... para contas pessoais suas, com o único intuito de a A... não ter liquidez para devolver à ofendida os preços das vendas das frações, ameaçando inclusive abrir insolvência da mesma» ; - ponto 101.: «o arguido não mencionou que a A... tinha outras dívidas, nomeadamente ao Fisco, que não pretendia pagar, assim como nunca pretendeu pagar à ofendida, motivo pelo qual retirou de imediato os valores recebidos da conta da A... e os colocou na conta da sua companheira, da qual posteriormente desapareceram»; - pontos 129. e 130.: «havia intenção prévia dos arguidos de causar erro ou engano na ofendida, mediante um plano ardiloso e fraudulento, aproveitando-se da relação de confiança e amizade com a ofendia, para a levar a cometer actos contra o seu património ou de terceiro, para obter um benefício ilegítimo» ; «os arguidos sabiam que a transferência bancária e o cheque bancário eram oriundos de uma conta da ofendida, portanto a sua intenção prévia era de enganar esta, levando a dispor do dinheiro, seu ou de outrem, para indevidamente se locupletarem»; - ponto 136.: «alegada vontade de pagar o que quer que seja, a que título for, o que até à presente data não fez nem pretende fazer»; - ponto 139.: «a arguida CC teve uma intervenção direta no negócio, em comunhão de esforços e intentos com o arguido BB, com vista a locupletar-se com o dinheiro da Ofendida, tendo inclusive ajudado a sonegá-lo em contas pessoais desta, de onde o mesmo desapareceu»; - pontos 148.: «o propósito inicial dos arguidos de enganarem a ofendida, fazendo-a dispor do seu património, para se locupletarem indevidamente, obtendo um benefício ilegítimo»; – ponto 220.: «embolsando os referidos preços sem o conhecimento nem consentimento da ofendida, fazendo-os seus com o intuito de obter um proveito económico ilícito e consideravelmente elevado, causando igual prejuízo económico à Ofendida, quantia essa que nunca entregou até à presente data» ; «quando nunca tiveram intenção de proceder a qualquer entrega, mas antes o propósito ab initio de obter um enriquecimento ilícito à custa do património da ofendida, de valor correspondente ao preço das frações vendidas e ainda se locupletaram com as duas frações, V e Z, que não lograram vender». Daqui não pode deixar de resultar que a assistente imputa aos arguidos uma actuação dolosa – é este o significado daquelas imputações e não pode ser outra a interpretação que lhe é dada. Mais se aditará, já agora e para que dúvidas se não suscitem – embora, diga–se, em bom rigor não seja esse também o sustento da decisão recorrida –, e particularmente no que respeita à enunciação do circunstancialismo em concreto tradutor da consciência do agente dos factos do desvalor e reprovabilidade criminalmente relevante das suas condutas, que não deixa de se subscrever quanto se referencia no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/04/2017 (proc. 8473/16.3T9PRT.P1)[6] – citado, aliás, com a–propósito pela assistente no seu requerimento de recurso –, considerando–se, em situação em grande parte similar à dos presentes autos, que «A questão controversa que deu origem à rejeição do requerimento da assistente tem a ver com a falta da imputação ao arguido do facto de ter atuado com consciência da ilicitude. Quer dizer, se em tal requerimento consta perguntamos agora nós se a imputação de tal facto é essencial e se dessa essencialidade resulta que a atividade probatória em julgamento tem de incluir especificamente esse facto, o que é que o Ministério Público terá de provar em julgamento aditando-se essa imputação que não tivesse já de o fazer sem ela? É que estamos claramente num daqueles casos em que o próprio acórdão de fixação de jurisprudência [Acórdão do STJ nº 1/2015] reconhece que o conhecimento da ilicitude promana da realização do próprio facto, dada a relevância axiológica do ato ser significativa e estar enraizada nas práticas sociais, sendo desnecessária a prova do conhecimento da proibição para se saber que o ato é ilícito. Não existindo qualquer causa extraordinária que exclua esse conhecimento, é óbvio que qualquer pessoa sabe que burlar outra é ilícito e proibido. Para nós, não é totalmente claro que a jurisprudência fixada no referido acórdão se refira também ao conhecimento da ilicitude. (…) Parece-nos que em bom rigor a demonstração positiva da consciência da ilicitude, para ter conteúdo substancial e não ser apenas um formalismo destituído de utilidade, só será relevante como objeto autónomo de prova em julgamento quando se tratar de um caso em que a proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente e o seu conhecimento seja essencial para que se possa dizer que o agente sabia que praticava um crime; ou quando existam indícios de inimputabilidade ou de verificação de quaisquer causas de exclusão da culpa que a acusação deva afastar com prova positiva.». Esta posição tem vindo a ser defendida pela maioria da jurisprudência, podendo citar–se, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 12/07/2017 (proc. 833/15.3SMPRT.P1), de 13/06/2018 (proc. 333/16.4T9VFR.P2)[7], de 21/06/2023 (proc. 82/22.4GCVFR-A.P1)[8], do Tribunal da Relação de Évora de 10/01/2017 (proc. 20/16.3PTFAR.E1) e de 26/06/2018 (proc. 8001/15.8TDLSB.E1)[9], de 12/03/2019 (proc. 251/15.3GESTB.E1)[10], de 19/12/2019 (proc. 219/18.8GCSLV.E1)[11], e de 28/02/2023 (proc. 630/18.4GFSTB.E1)[12]. Em sentido similar, pode ainda citar–se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/11/2016 (proc. 557/12.3TACVL.C1)[13], onde se sintetiza que «Sendo possível concluir, dos factos alegados pelas assistentes no RAI e das regras de experiência, que a arguida quis a conduta, que agiu de forma voluntária, que ao assim agir sabia que estava a provocar engano e que não ignorava que a sua conduta era proibida por lei não deverá aquele requerimento ser rejeitado por inadmissibilidade legal, ainda que deficientemente sistematizado ou que não contenha a fórmula estereotipada “o agente (do crime) agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei”». Seja como for, e prosseguindo, aqui chegados será ajustado dizer–se que o RAI apresentado nos autos pela assistente não constitui processualmente um exemplo modelar de objectividade e clareza no cumprimento do art. 287º/2 e 283º/3/b)d) do Cód. de Processo Penal, nomeadamente no que tange à narração dos factos indiciários consubstanciadores do tipo subjectivo reportado aos ilícitos criminais imputados. Contudo, julga–se que só a ausência, por absoluta omissão narrativa, de factos fundamentadores da aplicação ao sujeito-arguido duma pena ou duma medida de segurança, gera uma verdadeira ineptidão e nulidade do requerimento de instrução – por só uma tal omissão tornar juridicamente impossível a realização da fase instrutória por falta de objecto, e inúteis, e como tal proibidos, quaisquer actos instrutórios que ainda assim se viessem a realizar. Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de b)d 07/03/2012 (proc. 903/09.7PBVIS.C1)[14], «Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente que seja totalmente omisso quanto a elementos subjetivos dos crimes imputados e que não contém uma descrição minimamente inteligível dos factos praticados pelos arguidos que possam integrar os seus elementos objetivos» – sublinhado agora aposto. Ora, se é certo que no caso dos autos não se pode dizer que a supra indicada imposição legal tenha sido cumprida na perfeição no RAI apresentado, mormente nos recortados segmentos do mesmo que a decisão recorrida exclusivamente considerou como acusações alternativas, também não é menos certo que, percorrida a globalidade do mesmo requerimento, impõe-se reconhecer que o objectivo visado pela lei foi, ainda que no seu limite, alcançado – pois que do mesmo é possível extrair a exigida a narração dos factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança. Como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06/12/2011 (proc. 231/10.5TACTX.E1)[15], «haverá de ter-se em conta que, reportando-se a exigência à narração de factos, esta tem de ser apreciada de modo consentâneo com o de traduzir narração de acontecimentos da vida, ainda que, necessariamente, susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, pelo que não estará propriamente em causa a forma pela qual se relatam, desde que esta, eventualmente deficiente, não desencadeie, ela própria, a incompreensão desses acontecimentos». Nesta perspectiva, propendemos, tal como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/11/2010 (proc. 83/08.5TAMTR.P1)[16], a considerar que «Não deve ser rejeitado o requerimento para abertura da instrução [RAI] que, embora desajeitado, prolixo e confuso, mencione todos os factos que integram o tipo do crime imputado ao arguido, cabendo ao juiz de instrução, em eventual despacho de pronúncia, ordenar, sintetizar e clarificar os mesmos». Em suma, a matéria de facto enunciada no RAI apresentado, se indiciada suficientemente em instrução, é bastante para permitir uma pronúncia com um tema viável que permite chegar a uma condenação em julgamento. Como se escreveu no supra aludido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/04/2017 (proc. 8473/16.3T9PRT.P1), «Não há qualquer violação da estrutura acusatória do processo – quem acusa é a assistente e quem tem de provar é a acusação – nem dos direitos de defesa do arguido – o facto é suficientemente claro para permitir o exercício de um contraditório efectivo». Pelo que não se verifica a nulidade que fundamentou a rejeição do RAI, e o recurso da assistente deve assim proceder. * III. DECISÃONestes termos, e em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar o despacho de rejeição do requerimento da abertura de instrução apresentado pela assistente AA, que deve ser substituído por outro que autorize o prosseguimento do processo nos termos julgados adequados, nomeadamente declarando aberta a instrução no que tange à imputada prática pelos arguidos dos crimes de burla qualificada e falsificação de documentos. Sem custas. * Porto, 27 de Setembro de 2023Pedro Afonso Lucas Maria do Rosário Martins, Eduarda Lobo (Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente – sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página) ___________________ [1] Relatado por José Sarmento da Silva Reis, disponível em BMJ 424º, pág. 423. [2] Relatado por Maria Joana Grácio, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [3] Relatado por Maria Pilar de Oliveira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf [4] Relatado por Rodrigues da Costa, pub. no DR 18 SÉRIE I de 27/01/2015 [5] Relatado por Armindo dos Santos Monteiro, pub. no DR 212 SÉRIE I-A, de 04/11/2005 [6] Relatado por Manuel Soares, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [7] Ambos relatados por Maria Dolores da Silva e Sousa, acedidos em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [8] Relatado por Maria do Rosário Martins, não publicado. [9] Ambos relatados por Sérgio Corvacho, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf [10] Relatado por António Latas, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf [11] Relatado por Renato Barroso, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf [12] Relatado por Maria Clara Figueiredo, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf [13] Relatado por Luís Teixeira, disponível em Col. Jur., Ano XLI, tomo 5, pg. 41. [14] Relatado por Luís Ramos, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf [15] Relatado por Carlos Berguete Coelho, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf [16] Relatado por José Manuel Araújo Barros, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf |