Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4719/16.6T9AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
RECORRIBILIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP202204044719/16.6T9AVR-A.P1
Data do Acordão: 04/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A irrecorribilidade da 1ª parte do n.º 1 do artigo 310º busca o seu fundamento na “dupla conforme” que colhe sentido diante do estatuto do MP no nosso ordenamento jurídico, em especial a sua sujeição a estritos critérios de legalidade e objetividade no processo penal (arts. 219º/1/2CRP e arts. 2º e 3º/2 EMP).
II - Relativamente ao fundamento da irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público na parte em que aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais (segunda parte do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto) pronuncia-se Nuno Brandão no sentido de que não só a lei salvaguarda a possibilidade de o tribunal de julgamento excluir provas proibidas (art. 310º, n.º2); como a decisão instrutória não forma caso julgado sobre questões que possam contender com a afirmação da responsabilidade penal do arguido em julgamento, como a amnistia do crime ou a prescrição do procedimento criminal, não só porque a decisão do juiz de instrução que se debruce sobre estas questões é irrecorrível e como tal não pode assumir caráter definitivo, como ainda porque a última palavra sobre essas questões, atenta a sua natureza, deve caber sempre ao juiz de julgamento. E concluiu que não há aqui uma restrição constitucionalmente intolerável nem do princípio da plenitude dos direitos de defesa, nem especificamente do direito ao recurso.
III - No mesmo sentido se pronuncia o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 482/2014, onde se escreve: “pressuposto essencial desse entendimento [da irrecorribilidade] foi sempre a consideração da subsistência da possibilidade de reapreciação da questão pelo tribunal de julgamento em decisão, esta sim, suscetível de reapreciação por um tribunal superior, porquanto passível de recurso”. Os tribunais da Relação vêm entendendo que não é admissível recurso da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação pública, mesmo na parte em que conhecer de nulidades e questões prévias ou incidentais.
O Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 235/2010, não julgou inconstitucional a interpretação das disposições conjugadas dos artigos 281.º, n.º 5, 307.º, n.º 2, 310.º, n.º 1, e 399.º do Código de Processo Penal no sentido de que é irrecorrível a decisão de denegação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo quando inserta na decisão instrutória de pronúncia.
IV - No mesmo sentido de pronunciou o acórdão deste TRP de 15.05.2019 com o entendimento de que: “É irrecorrível a decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo na parte em que denega a suspensão provisória do processo.”
V - O Tribunal Constitucional já decidiu que a norma constante do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no segmento em que declara irrecorrível a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do MP, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, não fere qualquer parâmetro constitucional. Assim o fizeram os Acórdãos n.º 216/99, 387/99, e já na atual redação do artigo 310.º, do Código de Processo Penal, os Acórdãos n.º 146/12 e 265/12, 690/13, 708/14, 237/15.
Reclamações: Reclamação n.º 4719/16.6T9AVR-A.P1
Comarca de Aveiro
Juízo de Instrução Criminal de Aveiro

I.
1.- Nos autos de Instrução Criminal n.º 4719/16.6T9AVR a correr termos no Juízo de Instrução criminal de Aveiro, Juiz 2, foi deduzida acusação contra os arguidos AA, BB, CC e DD, imputando-lhes a prática em co-autoria, na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227º, n.º 1 al. b) e n.º 3 e 229º A ambos do Código Penal.
2.- Após notificação da acusação, os arguidos CC e DD vieram requerer a abertura de instrução pugnando pela sua não pronúncia e, subsidiariamente, pela aplicação, do instituto da suspensão provisória do processo.
3.- O requerimento de abertura de instrução foi admitido e esta declarada aberta, não tendo sido realizadas quaisquer diligências instrutórias. Foi realizado o debate instrutório.
4.- Foi proferida decisão instrutória onde se debateram os indícios existente e se indeferiu a suspensão provisória do processo e se pronunciara a final todos os arguidos [incluindo os que não requereram a instrução] “[P]ela pratica dos factos constantes da acusação pública de fls. 617 a 620 verso, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos, e que integram a prática em co-autoria, na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227º, n.º1 al. b) re n.º3 e 229º A. ambos do Código Penal.”
5.- Os reclamantes interpuseram recurso da decisão instrutória.
6.- O recurso não foi admitido conforme o seguinte despacho, datado de 03.03.2022:
«A decisão instrutória proferida nos autos pronunciou os arguidos pelos factos constantes da acusação do Ministério Público e, como tal e na convocação do estabelecido no art. 310.º, n.º 1, do cód. proc. penal, é irrecorrível.
Atenta a sua inadmissibilidade legal, não se admite o recurso apresentado a fls. 706 e seguintes.
(…)»
7.- Deste despacho trazem os reclamantes a presente reclamação com os seguintes fundamentos:
- O recurso em causa deveria, s. m. o., e para além do mais, ter sido admitido, por ser legal e tempestivo.
- E, outrossim, subido imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
- (…)
- Com efeito, tendo em conta o suscitado no recurso interposto, concernente com a aplicabilidade aos Arguidos, ora Reclamantes, do instituto da suspensão provisória do processo que tinham oportunamente requerido (assim como, diga-se, todas as questões conexas com esta e que levantam na sua peça recursiva —, e independentemente da douta decisão instrutória ter pronunciado pelos mesmos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público, preconiza-se o entendimento (salvaguardando, sempre, e como óbvio é, melhor juízo) de que, se o recurso em apreço não for admitido, a apreciação dessas mesmas questões em ulterior momento torná-las-ia absolutamente inúteis e sem a desejada influência na presente lide (como os impetrantes legitimamente esperavam — e, de resto, ainda esperam).
- Na verdade, os Arguidos, ora, reclamantes, pretendem a apreciação das questões por si suscitadas em sede recursiva, tendo em vista melhor poderem exercer os seus direitos de defesa neste processo, pelos motivos que constam do recurso interposto.
- Sobretudo porque quaisquer, ainda que eventuais, “vantagens” ao nível da celeridade processual, jamais dever-se-ão sobrepor à ultrapassagem de questões de primordial importância como aquelas que foram suscitadas no recurso interposto, que são essenciais e necessárias para a decisão sobre se o processo deve prosseguir, ou não, e em que termos, para a fase seguinte: a do Julgamento.
- De resto, in casu, o douto despacho reclamado, ao não admitir o recurso interposto, viola (entre outros mencionados na interposição do recurso) também o disposto nos artigos 309 e 310, ambos do Código de Processo Penal, quer na sua interpretação, quer na sua aplicação, padecendo, como tal, de manifesta inconstitucionalidade, atenta a violação do princípio constitucional da legalidade, da segurança e das garantias do processo criminal, mormente previstos nos artigos 20 e 32º da Constituição da República Portuguesa.
- Estamos, pois, com o devido respeito — e, obviamente, salvo melhor juízo —, perante uma flagrante situação que, no modesto entender dos Arguidos, ora Reclamantes, justifica a admissibilidade e subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, do recurso, nos termos legais e que os mesmos requereram.
- O que, então, e desde já, se invoca, reclama e requer, para todos os devidos e legais efeitos e, outrossim, com todas as consequências legais.
*
II. Apreciação.
Está em causa saber se é admissível recurso do despacho de pronúncia, que apreciou questões prévias, entre as quais o indeferimento da suspensão provisória do processo.
A decisão instrutória sobre a qual incide o recurso interposto e não admitido pronunciou os arguidos, pelos factos constante da acusação pública de fls. 617 a 620 e pela mesma imputação jurídica constante da acusação.
Dispõe o artigo 310º do CPP:
1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.
3 - É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior.
O artigo 310.º, n.º 1, do CPP consagra em relação à decisão de pronuncia nos termos aqui previstos, um princípio especial de irrecorribilidade, contrário ao princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais estabelecida no artigo 399[1] do mesmo Código.
O nº 1 da disposição transcrita é claríssimo sobre a irrecorribilidade.
A irrecorribilidade da 1ª parte do n.º 1 do artigo 310º busca o seu fundamento na “dupla conforme” que colhe sentido diante do estatuto do MP no nosso ordenamento jurídico, em especial a sua sujeição a estritos critérios de legalidade e objetividade no processo penal (arts. 219º/1/2CRP e arts. 2º e 3º/2 EMP)[2].
Relativamente ao fundamento da irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público na parte em que aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais (segunda parte do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto) pronuncia-se Nuno Brandão[3] no sentido de que não só a lei salvaguarda a possibilidade de o tribunal de julgamento excluir provas proibidas (art. 310º, n.º2); como a decisão instrutória não forma caso julgado sobre questões que possam contender com a afirmação da responsabilidade penal do arguido em julgamento, como a amnistia do crime ou a prescrição do procedimento criminal, não só porque a decisão do juiz de instrução que se debruce sobre estas questões é irrecorrível e como tal não pode assumir caráter definitivo, como ainda porque a última palavra sobre essas questões, atenta a sua natureza, deve caber sempre ao juiz de julgamento. E concluiu que não há aqui uma restrição constitucionalmente intolerável nem do princípio da plenitude dos direitos de defesa, nem especificamente do direito ao recurso.
No mesmo sentido se pronuncia o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 482/2014[4], onde se escreve: “pressuposto essencial desse entendimento [da irrecorribilidade] foi sempre a consideração da subsistência da possibilidade de reapreciação da questão pelo tribunal de julgamento em decisão, esta sim, suscetível de reapreciação por um tribunal superior, porquanto passível de recurso”.
Os tribunais da Relação vêm entendendo que não é admissível recurso da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação pública, mesmo na parte em que conhecer de nulidades e questões prévias ou incidentais.[5]
O Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 235/2010[6], não julgou inconstitucional a interpretação das disposições conjugadas dos artigos 281.º, n.º 5, 307.º, n.º 2, 310.º, n.º 1, e 399.º do Código de Processo Penal no sentido de que é irrecorrível a decisão de denegação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo quando inserta na decisão instrutória de pronúncia.
No mesmo sentido de pronunciou o acórdão deste TRP de 15.05.2019[7] com o entendimento de que: “É irrecorrível a decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo na parte em que denega a suspensão provisória do processo.”
Os reclamantes alegam ainda que o despacho reclamado, ao não admitir o recurso interposto, viola (entre outros mencionados na interposição do recurso) também o disposto nos artigos 309 e 310, ambos do Código de Processo Penal, quer na sua interpretação, quer na sua aplicação, padecendo, como tal, de manifesta inconstitucionalidade, atenta a violação do princípio constitucional da legalidade, da segurança e das garantias do processo criminal, mormente previstos nos artigos 20 e 32º da Constituição da República Portuguesa.
É claro que não se aprecia a inconstitucionalidade de decisões, mas de dimensões normativas [concretas] resultantes da interpretação de uma norma ou de uma conjugação de normas, por violadoras de preceitos constitucionais concretos.
O Tribunal Constitucional já decidiu que a norma constante do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no segmento em que declara irrecorrível a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do MP, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, não fere qualquer parâmetro constitucional. Assim o fizeram os Acórdãos n.º 216/99, 387/99, e já na atual redação do artigo 310.º, do Código de Processo Penal, os Acórdãos n.º 146/12 e 265/12, 690/13, 708/14, 237/15[8].
Nenhuma argumentação foi produzida que possa contrapor-se ao exposto.
A questão da inconstitucionalidade invocada não tem qualquer fundamento válido.
Pelas razões referidas a Reclamação é para indeferir.
O Reclamante pagará custas nos termos do art. 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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III. Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pelos arguidos/reclamantes.
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Custas pelos Reclamantes nos termos do art. 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, por cada um.
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Notifique.
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Porto, 04 de Abril 2022.
Maria Dolores da Silva e Sousa
[Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto]
________________
[1] «É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.»
[2] Comentário Judiciário, Tomo III, p. 1303.
[3] Nuno Brandão, “A nova face da instrução”, ponto 3.2, “Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2 e 3 2008, p. 227-255. Acedido aqui: https://apps.uc.pt/mypage/files/nbrandao/455
[4] Acedido aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140482.html
[5] Decisão do Vice-presidente do TRP de 10.12.2004, acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/D05D80DB60D136AA80257DB60037BA92
Decisão do Vice-presidente do TRE de 02.04.2013, acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/62621D151DDD043880257DE10056FB7A
Acórdão do TRC de 05.06.2019, acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/d5e768af79bded5b802584120035f735?OpenDocument
Decisão do Vice-presidente do TRG de 20.02.2007, acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/7c87c3e642c493ce802580dc005a6ad7?OpenDocument
Decisão do Presidente do TRG de 14.05.2013, acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/eef339d55f6b824280257b6d0045e360?OpenDocument
Acórdão do TRP de 15.05.2019, acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/786cd896c5d983f88025842a003b0e8f?OpenDocument
[6] Acedido aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100235.html
[7] Acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/786cd896c5d983f88025842a003b0e8f?OpenDocument
[8] Todos acessíveis aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/
Decisão Texto Integral: