Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
199/17.7GAPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: NULIDADES
QUESTÕES PRÉVIAS E INCIDENTAIS APRECIADAS NA DECISÃO INSTRUTÓRIA
INVALIDADES IMPUTADAS À DECISÃO INSTRUTÓRIA
RECURSO
Data do Acordão: 06/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO INST. CRIMINAL – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 308.º, N.º 1, 310.º, N.º 1, E 399.º, DO CPP
Sumário: I – Para além da irrecorribilidade da decisão instrutória de pronúncia do arguido com fundamento em razões de natureza substantiva, como a inexistência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (artigo 308.º, n.º 1, do CPP), também as nulidades, questões prévias ou incidentais, apreciadas na dita decisão, são agora, e desde a alteração do n.º 1 do artigo 310.º do mesmo diploma pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, quando verificado o condicionalismo previsto no último dos normativos referidos, insusceptíveis de sindicância através de recurso.

II – Contudo, à luz das regras da recorribilidade das decisões judiciais (cfr. artigo 399.º do CPP), podem ser sindicadas, por via de recurso, as invalidades imputadas à própria decisão instrutória.
Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 199/17.7GAPCV do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Coimbra – Juízo Inst. Criminal – Juiz 1, a assistente A. deduziu acusação particular contra o arguido B., imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal.

Acusação que, conforme decorre de fls. 69/70 dos autos, foi acompanhada pelo Ministério Público.

2. Pelo arguido foi requerida a abertura da instrução.

3. Realizadas as diligências de instrução, seguida do debate instrutório, foi o arguido pronunciado “pelos factos, pelo crime e norma legal constantes da acusação particular de fls. 62 e seguintes”, cujos termos foram dados por integralmente reproduzidos [cf. fls. 122 a 130].

4. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

A) Não se olvidando a norma legal do art. 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, prescrevendo que «A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes do Ministério Público, formulada nos termos do art. 283.º ou do n.º 4 do art. 285.º, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para julgamento», A verdade é que,

B) Como se diz no Assento 6/2000, publicado no DR, I Série A de 7-03-2000: «A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais», ou, como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência, n.º 7/2004, publicado no DR, I Série A de 2-12-2004, pressupondo essa mesma recorribilidade: «Sobe imediatamente o recurso da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público».

C) Neste caso, as nulidades em causa não foram arguidas no decurso do inquérito ou, até agora, da instrução, mas foram recobertas pelo próprio despacho de pronúncia, são insanáveis e suscetíveis de arguição a todo o tempo, e, logo, arguíveis também em recurso de tal despacho, pois a regra da irrecorribilidade da decisão de pronúncia pelos mesmos factos da acusação do Ministério Público prevista no art. 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, vale apenas para as questões de fundo substantivas e não para as questões formais e procedimentais, nestas incluindo as incidentais e assim a ocorrência de nulidades na decisão de pronúncia, para as quais vale a regra geral da recorribilidade prevista no art. 399º do Código de Processo Penal, o que ademais e aliás, é imposto pelos direitos de defesa do arguido, incluindo o direito ao recurso, consagrados no art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, que de outra forma restariam violados.

Ora,

D) O Meritíssimo Tribunal de Instrução Criminal a quo já tinha a sua convicção previamente formada e o despacho de pronúncia de que se recorre já elaborado antes da produção das diligências ocorridas em fase de instrução no dia 06/04/2018, antes da inquirição das testemunhas e das declarações do arguido produzidas em fase de instrução e do próprio debate instrutório. Aliás,

E) Tanto assim foi que, seguindo-se aquelas diligências umas às outras por aquela ordem, findas as mesmas, o Meritíssimo Tribunal de Instrução Criminal a quo, logo de imediato, passou a ler a decisão previamente tomada, com exceção dos parágrafos que vão de «A testemunha (…) …» até «(…) disse que o arguido foi para o rio por volta das 16H00 ou 16H30 e regressou pelas 19H00 ou 19H30» - aqueles que só podiam ser conhecidos após a inquirição das testemunhas na fase da instrução – e não a ditá-la para a ata como a lei permite no art. 307.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sendo que aqueles referidos parágrafos só podiam ser conhecidos após a inquirição das testemunhas no dia 06/04/2018 – só foram conhecidos pelos sujeitos processuais posteriormente à diligência do dia 06 e à decisão de pronúncia produzida então anteriormente, de tal forma que o despacho de pronúncia já completo, com a introdução daqueles parágrafos, só foi disponibilizada no dia 07-04-2018 (cfr. documento que se junta e cuja junção é admissível quer por se estar ainda em fase de instrução e ser a junção admissível até ao encerramento da audiência de julgamento nos termos do n.º 1 do art. 165.º do CPP quer pela necessidade da sua junção com vista a demonstrar o invocado vício da decisão instrutória supostamente fundada nos testemunhos produzidos só ter surgido após as diligências instrutórias e a própria decisão de pronúncia já antes tomada). Como assim,

F) Tal não constitui senão violação dos princípios da imparcialidade, das garantias de defesa do arguido e da presunção de inocência e do direito a um processo equitativo, do fair trial e do due processo of law, consagrados no art. 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como do próprio princípio da instrução contraditória consagrado no art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, tendo os atos instrutórios ocorridos sido aproveitados apenas para secundar a fundamentação de uma decisão de pronúncia e de confirmação das conclusões do inquérito já previamente tomada, em violação também daqueles princípios e normas legais referidos anteriormente. Aliás,

G) Tal partis pris e falta de imparcialidade e da equitatividade do processo encontram-se bem espelhados no texto da decisão instrutória de pronúncia que adjetiva e qualifica de pormenorizado o depoimento no inquérito do marido da assistente, (…), louva a junção de umas fotografias por esta testemunha, as quais, todavia, relativamente aos factos em causa, não se vê o que possam provar ou sequer indiciar, e, em violação também do referido princípio da instrução contraditória, como se a prova do arguido do não cometimento dos factos não pudesse ser, em contraditoriedade, produzida em sede de instrução, refere que «esta questão da ida ao rio foi uma questão nova surgida em sede de instrução, não referida no inquérito e as testemunhas ouvidas nesta sede vieram em defesa do arguido» e «não conseguem convencer nem infirmar a prova já anteriormente recolhida e supra analisada» (a do inquérito). Acresce que

H)Do testemunho de (…), produzido em 06-04-2018, entre as 11h28m03s e as 11h42m07, e gravado no Sistema Habilus Media Studio, não resulta a versão factológica contra reo que consta da recorrida decisão de pronúncia, alicerçada apenas na versão da assistente M (...) e seu marido (…), quando, aliás, a Meritíssima Juíza a quo chegou a dizer na inquirição do dia 06-04-2018, à testemunha Srs. D.ª (…), entre os minutos 12:50 e 12:54 dos 14 minutos e 14 segundos de tal inquirição e correspondente gravação no Sistema Habilus Media Studio, que «É difícil lembrar-se lá para trás, não é? Tá com dificuldade em se lembrar das coisas».

I) Não é, pois, verdade, contrariamente ao que se diz na decisão instrutória, que a testemunha Sra. D.ª (…) tenha dito que o arguido regressou ao lugar do suposto facto «pelas 17H30 ou um pouco depois desta hora» e que «Assim, pelo depoimento desta testemunha, o arguido poderia ter ido ao rio e isso não o impediu de estar no local dos factos à hora indicada e de ter praticado os mesmos» e de modo que não existe, pois e assim, contrariamente ao que se diz na versão final do despacho de pronúncia, qualquer contradição entre os testemunhos de (…) e os testemunhos de (…) e (…) resumidamente constantes da versão final do despacho de pronúncia. O que

J) Mais uma vez revela violação dos princípios da imparcialidade, das garantias de defesa do arguido, bem como do direito a um processo equitativo, do fair trial e do due processo of law, consagrados no art. 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e no art,º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Assim,

K) Com uma decisão de pronúncia tomada ates dos atos instrutórios de produção de prova na instrução e do próprio debate instrutório, o que se verifica é um simulacro da fase de instrução, facticamente existente, mas de tal forma desvirtuada formal e procedimentalmente pela violação daqueles referidos princípios e regras constitucionais, que é de considerar, assim, legal e juridicamente inexistente a instrução.

L) O que mais não significa do que a falta da fase processual de instrução nos termos da al. d) do art.º 119.º do Código de Processo Penal, cominada com nulidade insanável, o que se argui para todos os devidos e legais efeitos, devendo a mesma ser declarada com a consequência da despronúncia do arguido. Acresce que

M) A decisão de pronúncia, no seu dispositivo, decide pronunciar o arguido «pelos factos, pelo crime e norma legal constantes da acusação particular de fls. 62 e seguintes, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais», sendo que a acusação particular da assistente e a de acompanhamento pelo Ministério Público fazem referência à norma legal do art.º 181º, sem, contudo, especificarem discriminadamente se se trata do n.º 1 ou do n.º 2. É que,

N) Sendo o n.º 1 a norma incriminadora do crime de injúria, já o n.º 2 é norma justificadora do tipo, e, perante a ausência daquela especificação discriminada, fica-se sem saber qual das normas está em causa. Ora,

O) À luz da prescrição do art. 283.º, n.º 3, al. c) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art. 308.º, n.º 2, do mesmo diploma, o despacho de pronúncia, remetendo para a acusação particular, a acusação particular e o acompanhamento pelo Ministério Público, incorrendo em violação das normas legais acabadas de referir, padecem de vício de não indicação da disposição legal aplicável, da pertinente norma incriminadora.

P) Sendo tal motivo até para rejeição da acusação, aquando do saneamento do processo nos termos do art. 311.º, n.º 2, a) e n.º 3, c) do Código de Processo Penal, trata-se de uma nulidade atípica insanável.

Q) Assim é em obediência aos direitos e princípios das garantias de defesa do arguido e da acusatoriedade, previstos no art. 32.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, que de outra forma restariam violados. Por conseguinte,

R) Deve também tal nulidade da acusação particular, da de acompanhamento pelo Ministério Público e da própria decisão de pronúncia recorrida, ser como tal declarada com a consequência da despronúncia do arguido.

Termos em que

Deve o presente recurso ser julgado procedente e provido e em consequência revogar-se a recorrida decisão de pronúncia substituindo-a por outra que, reconhecendo as apontadas nulidades insanáveis, despronuncie o arguido do crime de injúria que lhe foi imputado na acusação particular pela assistente.

Assim farão Vossas Excelências Justiça!

5. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

6. O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

1. A decisão recorrida efetuou uma correta ponderação da prova reunida nos autos, como bem se explana na mesma, entendendo-se igualmente que é mais provável a condenação do arguido em julgamento do que a sua absolvição; e não se verificam quaisquer das apontadas nulidades.

2. Tratando-se de um crime particular, tendo sido deduzida acusação pela assistente, acompanhada nos seus precisos termos pelo Ministério Público, e seguindo-se uma decisão instrutória de pronúncia, por esses factos e crime, tal decisão é irrecorrível (cf. art. 310.º, n.º 1 do CPP).

3. O que não ofende as garantias de defesa do arguido e a jurisprudência julgou não inconstitucional, não havendo de fazer apelo aos referidos Acórdãos do STJ nº 6/2000, de 19.01.2000, e n.º 7/2004, de 21.10.2004, que face às alterações introduzidas pela Lei nº 48/2007, se mostram “caducos”.

4. Não existindo nulidade da acusação e da decisão de pronúncia, que para aquela remete, pis não ocorre omissão das disposições legais aplicáveis, já que é feita a referência ao artigo 181 do Código Penal, ainda que sem precisar o número.

5. Não se suscitando dúvidas quanto aos factos que são imputados ao arguido, os quais estão suficientemente descritos e asseguram a defesa do arguido; pelo que a não referência ao n.º 1 ou n.º 2 do citado artigo constituiria mera irregularidade e não foi suscitada em tempo (cf. 118º, nº 2 e 123º, nº 1 CPP).

6. Nem se verifica a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, n.º 2 d) do CPP, pois não ocorre a inexistência da fase de instrução; nem tão pouco há insuficiência de instrução, pois foram realizados todos os atos obrigatórios e os que se entenderam essenciais para a descoberta da verdade, mas não tendo sido arguida essa alegada nulidade até ao fim do debate instrutório ficou a mesma sanada (cf. arts. 120.º, n.º 1 e n.º 2 d) e 120.º, n.º 3 c CPP).

7. Na data designada realizadas que foram as diligências requeridas e o debate instrutório, a Senhora Juiz procedeu à leitura da decisão instrutória, de modo sucinto, mas reportando-se à apreciação dos indícios com detalhe e fundamentando a decisão de pronúncia pela qual concluiu.

8. Tal decisão foi proferida com base no documento que já preparara, mas também foi a prova acabada de produzir, quer as declarações das testemunhas, quer o depoimento do arguido, como foi referido aquando da leitura da decisão e como resulta do texto da mesma.

9. Perante a singeleza dos factos e da prova, nada obstaria a que a Senhora Juiz, analisando aquele e o pormenorizado requerimento de abertura de instrução, preparasse a decisão instrutória, que veio a ler, porquanto, como disse, as diligências realizadas não suscitaram outras questões.

10. Concordando-se que as testemunhas ouvidas em instrução não lograram convencer e não infirmaram a prova do inquérito, quer porque há discrepância entre os depoimentos de (…) e as outras testemunhas quanto à hora da deslocação ao rio, quer porque esta versão só surgiu nesta fase, apesar de o arguido ter sido confrontado com estes factos, o que fragiliza estes indícios.

11. Como preceitua o artigo 127.º do CPP, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, pelo que estando esta devida e objetivamente fundamentada, nenhuma censura merece a decisão instrutória, que deverá ser mantida na íntegra.

No entanto, Vossas Excelências decidirão, fazendo JUSTIÇA!

7. O Exmo. Procurador-Geral da República emitiu parecer pronunciando-se pela rejeição do recurso por a decisão ser irrecorrível ou, caso assim não seja entendido, pela sua improcedência.

8. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, uma vez mais, defendeu o recorrente a recorribilidade da decisão, retomando, no essencial, a argumentação já desenvolvida no requerimento de interposição.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita e fixa o objeto do recurso, as questões a decidir traduzem-se em saber se decisão instrutória de pronúncia deve ser considerada inexistente ou se enferma a mesma da nulidade da alínea d) do artigo 119.º do CPP e/ou da nulidade decorrente da falta de indicação das normas legais aplicáveis.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da decisão em crise:

Vem o arguido B. requerer a abertura de instrução em virtude de não concordar com a acusação particular contra si deduzida, pugnando pela sua não pronúncia.

Em síntese, alega que os autos não contêm indícios suficientes do crime de que vem acusado; a testemunha (…), marido da queixosa, diz que o arguido se estava a dirigir às rodas cheias de cimento e não á sua esposa; também a queixosa afirma que o arguido se dirigia ou a si ou aos suportes que tinha no pátio; assim, o arguido não injuriou a assistente; no dia em causa, pelas 17 horas, o arguido e (…) ausentaram-se do local e foram até ao rio á praia fluvial do x (...) , só tendo regressado pelas 19H3; assim, é impossível e é uma invenção da assistente, que o arguido, no dia e hora em casa, tivesse praticado os factos de que vem acusado.


*

Realizaram-se as diligências instrutórias requeridas que se consideraram relevantes para a descoberta da verdade.

Realizou-se o debate instrutório com observância do legal formalismo.


*

O Tribunal é competente.

Não há nulidades, ilegitimidades, exceções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.


*

Cumpre apreciar e decidir.

*

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Por sua vez, determina o artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal que, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos, devendo, em caso contrário, proferir despacho de não pronúncia.

Assim, a função da presente instrução é a de apreciar se nos autos existem indícios da prática pelo arguido do crime de injúria de que vem acusado que sejam suficientes para o submeter a julgamento.

Face ao disposto nos artigos 283º, nº2 e 308º, nº 2 do Código de Processo Penal, consideram-se indícios suficientes “sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.”

Haverá indícios suficientes quando está em causa um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados, isto é, vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele. 

Consequentemente, fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia quando:

- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;

- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou

- quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura.

Para a pronúncia não é necessário uma certeza da existência da infração, bastando uma grande probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Deve assim o Juiz de Instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.


*

Vem o arguido acusado por um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1 do Código Penal. 

Nos termos do artigo 181º do Código Penal, “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.

“A honra é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, á probidade, à retidão, á lealdade, ao carácter”. 

Por outro lado, a “consideração é o património de bom nome, de crédito, de confiança, que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspeto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros. 

A consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objetiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública” (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, “O Código Penal de 82, vol. 2, pág. 196).

Acresce que o crime em causa é um crime doloso, o que quer significar que só estão arredadas do seu âmbito subjetivo as condutas negligentes, sendo, por isso, suficiente a imputação baseada tão só em dolo eventual.

Por outro lado, é de salientar que, hoje, está superada a antiga controvérsia no que tocava á exigência de um chamado dolo específico. E superada no sentido de que não se pode conceber uma tal exigência. Basta uma atuação dolosa, desde que se integre numa das modalidades do artigo 14º do Código Penal.


*

Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos tanto em sede de inquérito, como em sede de instrução.

Tal como consta no auto de denúncia de fls. 4, a ofendida disse que, no dia 2.10.2017, pelas 18 horas, estava na cama, ouviu ruídos e foi para a rua. O arguido, da janela, começou a injuriá-la dizendo “eu vou aí e parto essa merda toda, vai para o caralho, vai para a puta que te pariu, vá para o caralho que a foda, vai para a cona da tua mãe”. Não falou com o arguido e ele entretanto viu o seu marido que estava a chegar ao local e fechou a janela, não tendo havido mais diálogo ou contacto.

A fls. 30, a ofendida prestou declarações, confirmando a queixa. Tendo-lhe sido perguntado a quem ou a quê foram dirigidas as ameaças, respondeu a si ou então aos suportes que ali tinha no pátio. Disse que “eles querem parte do nosso pátio, já são problemas antigos”.

Relembra-se que as ameaças denunciadas foram “eu vou aí e parto essa merda toda”. Todas as restantes expressões denunciadas não são ameaças mas injurias.

Assim, segundo a assistente, o arguido disse que ia partir esses objetos que estavam no pátio, ou então parti-la a ela.

A fls. 32 foi ouvido o marido da ofendida, (…). Disse ele que estava a cerca de 15 metros quando começou a ouvir umas batedelas, foi ver e ia caminhando na serventia entre a sua casa e a da sogra do arguido. Então ouviu o arguido dizer para a ofendida “isto é nosso, vou aí e parto essa merda toda, vai para o caralho, vão todos para o caralho, vão para a puta que vos pariu, vai para a cona da tua mãe, vá para o caralho que a foda”. 

Mais disse que assim que o arguido o viu, recolheu-se da janela e nunca mais o viu. Ficou bastante admirado e chocado com a atitude. Nunca tiveram nada com ele. Disse ainda que, relativamente às ameaças, o arguido devia estar a referir-se às 4 rodas cheias de cimento, aos tijolos e blocos que tem no pátio e estão no espaço que fica em frente da tal janela.

Relembra-se, mais uma vez, que as ameaças dizem respeito á expressão “isto é nosso, vou aí e parto essa merda toda”, nada tendo a ver com as demais.

O arguido foi interrogado nos autos e negou a prática dos factos. Disse “nem sequer a vi e nem ela me viu”. Porém, não disse que não estava no local como veio fazer no RAI.

De facto, a ser verdade que não estava no local e que tinha ido á praia, o mais natural seria ter dito logo isso quando foi interrogado.

A testemunha (…), companheira do arguido, ouvida a fls. 48, disse que não ouviu o arguido ameaçar ou insultar a queixosa. Referiu que “o (…) só falou com o (…) no final e da janela da casa da minha mãe, não o tratou mal, avisou-o só por causa de me ter tirado as fotos, para tirar o que tinha encostado á parede da casa da minha mãe porque senão mandava aquilo para o caralho”. Não viu a ofendida mas apenas o (...).

Afinal, por este depoimento, sempre teria havido uma troca de palavras onde foi utilizada a palavra caralho e também uma referência aos objetos que estavam encostados á janela da casa da mãe.

Também esta testemunha não disse que não estava presente e nada referiu acerca da ida á praia.


*

Estes são os indícios mais relevantes recolhidos no inquérito.

Assim, temos a palavra da assistente, corroborada pelo depoimento pormenorizado do seu marido, tendo este, inclusive, juntado fotografias para demonstrar onde os factos ocorreram e onde se encontrava.

Os indícios apontam no sentido de existir um conflito relacionado com um espaço existente junto às casas da assistente e da mãe da testemunha (…).

Em sede de instrução não foi produzida prova que infirmasse a recolhida no inquérito, sendo esta suficiente para indiciar a matéria vertida na acusação particular.

A testemunha (…) disse que não assistiu a nenhuns factos e que, da parte da tarde do dia em causa, o arguido saiu para o rio por volta das 14 ou 15 horas e regressaram pelas 17H30 ou um pouco depois desta hora.

Assim, pelo depoimento desta testemunha, o arguido poderia ter ido ao rio e isso não o impediu de estar no local dos factos á hora indicada e de ter praticado os mesmos.

(…) disse que chegou ao local dos factos por volta das 17H15 ou 17H30 do dia em causa e que o arguido não estava porque tinha ido ao rio, á praia fluvial. Chegou ao anoitecer, por volta das 19H30.

Assim, este depoimento está em contradição com da testemunha (…) no que respeita às horas da ida e volta do rio.

(…) disse que o arguido foi para o rio por volta das 16H00 ou 16H30 e regressou pelas 19H00 ou 19H30.

Ora, esta questão da ida ao rio foi uma questão nova surgida em sede de instrução, não referida no inquérito e as testemunhas ouvidas nesta sede vieram em defesa do arguido. No entanto, por tudo o que fica dito supra, não conseguem convencer e nem infirmar a prova já anteriormente recolhida e supra analisada.

Assim, da conjugação dos indícios acabados de referir, entende-se que existem indícios suficientes dos factos vertidos na acusação, que se subsumem no crime de injúria de que o arguido vem acusado. Por essa razão, deve o arguido ser pronunciado por existir uma probabilidade de futura condenação do mesmo. 

O Tribunal não pode deixar de formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma reação criminal por tal crime, devendo, por isso, o arguido ser submetido a julgamento pela prática do mesmo.


*

Assim sendo, pronuncia-se:

- B., divorciado, empresário, nascido a 14.7.1961, filho (…) e de (…), natural da freguesia e concelho de (…), residente na Rua (…), nº (…), (…), (…),

pelos factos, pelo crime e norma legal constantes da acusação particular de fls. 62 e seguintes, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, nos termos do artigo 307º, nº 1 do Código de Processo Penal.

3. Apreciação

§1. Da irrecorribilidade da decisão em crise

Quer na resposta apresentada em primeira instância, quer no parecer proferido na Relação, suscita o Ministério Público a questão da irrecorribilidade da decisão instrutória de pronúncia.

Vejamos.

Nos termos do artigo 310.º do Código de Processo Penal:

“1 – A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para julgamento

2 – O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.

3 – É recorrível o despacho que indeferir a arguição de nulidade cominada no artigo anterior”.

A disciplina introduzida - enquanto acrescentou ao n.º 1 “… formulada nos termos do artigo 283º ou do n.º 4 do artigo 285º …” e “… mesmo na parte em que em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais …” - pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, veio resolver as divergências que se faziam sentir, designadamente no seio da jurisprudência, quanto à irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciasse o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, na parte relativa à apreciação de nulidades e outras questões prévias ou incidentais, tornando, assim, inaplicável, aos processos instaurados após a sua entrada em vigor, a jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2000 (DR, I – A, de 07.03.2000) no sentido de que “A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais”. Do mesmo modo é de ter por “caduco” o AFJ n.º 7/2004 (DR, I – A, de 02.12.2004 onde foi decidido: “Sobe imediatamente o recurso da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público”.

Significa, pois, que para além da irrecorribilidade da decisão instrutória de pronúncia do arguido, dentro do condicionalismo prevenido no n.º 1 do artigo 310.º, com fundamento em razões de natureza substantiva, como a inexistência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (artigo 308.º, n.º 1 do CPP), também as nulidades, questões prévias ou incidentais, apreciadas na decisão instrutória de pronúncia, são agora insuscetíveis de sindicância através de recurso interposto nos sobreditos termos. Na verdade, o regime decorrente da Lei n.º 48/2007, de 29.08, no que tange à irrecorribilidade nesta parte da decisão instrutória acabou por acolher a jurisprudência do Tribunal Constitucional, firmada no acórdão n.º 216/99, o qual concluiu que a irrecorribilidade do despacho de pronúncia na parte em que conhece de questões prévias ou incidentais não viola a Constituição da República Portuguesa.

Como a propósito escreve Maia Costa, in Código de Processo Penal Comentado, 2016, Almedina, pág. 986 “A nova solução legal, embora recusando o direito ao recurso, não agrava a posição processual do arguido, não podendo, portanto, ser arguida de inconstitucional. Do novo n.º 2 resulta que a decisão sobre nulidades e questões prévias e incidentais não faz caso julgado formal no processo, podendo o tribunal de julgamento reapreciar tais questões. Assim, perdendo o arguido o direito de recurso da decisão instrutória naquela parte, ganhou, porém, a possibilidade de ver essas questões reapreciadas em sede de julgamento, com o inerente direito a recurso da sentença”. No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional nos acórdãos n.º 387/2008, n.º 95/2009 e n.º 247/2009 enquanto considerou que a decisão de pronúncia que incida sobre nulidades e questões prévias não forma, sobre elas, caso julgado formal [Idêntica orientação é defendida por Nuno Brandão, A nova face da instrução, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 18º, nºs 2-3, pág. 239].

Sucede, porém, que na situação em apreço sobre as invalidades (inexistência e nulidades) arguidas pelo recorrente não se pronunciou a decisão instrutória, nem assim podia ter sido porquanto alegadamente se tratam de vícios da própria decisão.

E se não merece contestação a irrecorribilidade da mesma (decisão instrutória) no que respeita à afirmação da existência de indícios suficientes da prática pelo arguido/recorrente dos factos e crime pelos quais foi pronunciado, sendo, em consequência, nesta parte, rejeitado o recurso, afigura-se-nos, à luz da regra da recorribilidade das decisões judiciais, cuja irrecorribilidade não esteja expressamente prevista (artigo 399.º do CPP), no que concerne às alegadas invalidades da decisão instrutória, ser esta recorrível.

Pelo que, limitado embora o conhecimento do recurso a tal matéria, passaremos a conhecê-lo.

§2. Da inexistência e nulidade da própria decisão instrutória de pronúncia

A alegada inexistência/nulidade da decisão instrutória com fundamento na preterição do dever de imparcialidade, da presunção de inocência, do direito a um processo equitativo, do fair trial e do due processo of law (artigos 32.º, n.ºs 1 e 2 da CRP; artigo 6.ºda CEDH), das garantias de defesa e do princípio da instrução contraditória, sustentada na circunstância de a Senhora juiz ter de imediato, após a realização das diligências instrutórias e do debate instrutório proferido (lido/dado a conhecer) a decisão, ainda que “incompleta”, tendo esta vindo a ser notificada já com a menção expressa ao depoimento das (três) testemunhas e declarações do arguido prestadas na instrução, não pode senão estar votada ao insucesso.

Com efeito, a simplicidade dos factos e da prova, não olvidando os meios de prova produzidos durante o inquérito e há muito integrados nos autos, logo, de per si, suscetíveis de apreciação “antecipada”, permitiam, sem que daí se possa concluir pela violação dos deveres, princípios e normas enunciados pelo recorrente, que finda a produção da prova levada a cabo na fase de instrução – que se cifrou na audição de três testemunhas, cujo depoimento incidiu, no essencial, sobre um aspeto particular, qual seja a hora a que o arguido se teria deslocado ao rio e, bem assim, a hora do seu regresso, e nas declarações do arguido – e realizado o debate instrutório, fosse de imediato proferida (dada a conhecer) a decisão instrutória. E nem a circunstância de só no dia seguinte ter sido disponibilizado/remetido às “partes” o texto integral com os segmentos indicados pelo recorrente é passível de conduzir a diferente conclusão, a qual, com o devido respeito, é de todo abusiva. Quando muito poderia semelhante procedimento traduzir-se numa irregularidade, arguível nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal, o que não sucedeu.

Também incompreensível surge, com idêntico fundamento, a invocada nulidade da alínea d) do artigo 118.º do Código de Processo Penal, traduzida na falta de instrução, desmentida pela realização integral das diligências que integram tal fase processual, quais sejam os “atos de instrução” e o “debate instrutório”, oral e contraditório, com a participação dos sujeitos processuais (artigo 289.º do CPP).

Por fim, ainda carecida de fundamento se mostra a alegada nulidade decorrente da decisão instrutória de pronúncia, enquanto remeteu para as razões de facto e de direito, enunciadas na acusação (artigo 307.º, n.º 1 do CPP), não haver especificado, relativamente ao ilícito típico em questão (injúria), se a incriminação o era como referência ao n.º 1 se ao n.º 2 do artigo 181.º do Código Penal, revelando as conclusões de recurso estar, afinal, o arguido/recorrente bem ciente de que o “tipo incriminador” reside no seu n.º 1, constituindo o n.º 2 a “norma justificadora”! Então, pergunta-se, que dúvida quanto à incriminação?

Não se verifica, pois, a invocada nulidade, contendo a pronúncia suficiente indicação das normas legais aplicáveis. De qualquer modo ainda que a considerássemos – e não consideramos –, não integrando as nulidades insanáveis, teria sempre de ter sido suscitada nos termos e prazo prevenidos na alínea a), do n.º 3 do artigo 120.º do Código Penal, o que não sucedeu.

Um recurso assim gizado, que apenas parece configurar um derradeiro esforço em provocar a sindicância de uma decisão que, em termos normais, a não admitia, só pode conduzir à respetiva improcedência.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Custas, com taxa de justiça que se fixa em 2 (duas) UCs, a cargo do recorrente – artigos 513.º e 514.º do CPP; 8.º, n.º 9 e Tabela III, do RCP.

Coimbra, 5 de Junho de 2019

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)