Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
78/14.0TBVFX-C.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: SENTENÇA
NULIDADE
FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I- É nula a sentença proferida em incidente de incumprimento das responsabilidades parentais composta apenas pela frase “Uma vez que o requerido não logrou comprovar o pagamento, considera-se verificado o incumprimento”, seguida das habituais menções à responsabilidade por custas e ao registo e notificação.
II- Tal nulidade é de conhecimento oficioso.
Não obstante a nulidade da sentença, não pode o Tribunal da Relação substituir-se ao Tribunal a quo na decisão da causa (art. 665º do CPC), por não dispor de elementos de facto que lhe permitam fazê-lo, dado que permanecem controvertidos factos relevantes.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
Por apenso ao processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais que correu termos no Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira sob o nº …/…, relativo aos filhos de SJ…, titular do nº de identificação civil …, e LJ…, titular do nº de identificação civil …, contribuinte fiscal nº …, veio a progenitora intentar o presente incidente de incumprimento, alegando que o requerido LR… não tem cumprido o determinado nos autos supra identificados no tocante a prestações alimentares, e pedindo “que sejam tomadas as providências necessárias com vista ao cumprimento coercivo da requerida obrigação, bem assim a condenação do requerido LJ… em multa de 10 unidades de conta e indemnização a favor da ora exponente e menores em montante não inferior a 15.000 €”.

Notificado o requerido para, querendo se pronunciar (art. 41º, nº 3 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível[1]), veio o mesmo fazê-lo, impugnando a factualidade invocada pela requerente, e alegando encontrar-se numa situação de insolvência, decretada por sentença de 12-10-2015.

Seguidamente, e após o requerido ter apresentado o requerimento com a referência nº 27191917, datado de 30-10-2017 (fls. 57 a 62), a Mmª Juíza a quo proferiu a sentença com a refª 125717045, datada de 14-12-2017 e cuja cópia se acha a fls. 64, com o seguinte teor:
“Uma vez que o requerido não logrou comprovar o pagamento, considera-se verificado o incumprimento.
Custas pelo requerido.
Registe e notifique.
VFX, d.s.”

Inconformado com tal decisão, veio o requerido dela interpor recurso, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
I- A sentença proferida, nos presentes autos, de que se recorre declarou, por parte do aqui Recorrente, verificado o incumprimento, condenando-o a pagar a quantia de 22.100,00 € (vinte e dois mil e cem euros).
II- O recorrente não se conformando com a sentença proferida vem apresentar o presente recurso.
III- Na sua pronúncia ao Requerimento de Incumprimento das Responsabilidades Parentais apresentado pela aqui Recorrida, o aqui Recorrente, juntou documentos e explicou a sua situação financeira, nomeadamente a impossibilidade de pagar tal quantia, bem como a entrega, em tempo útil, de um Requerimento para retirar tal quantia do acordo das Responsabilidades Parentais em vigor e da sua situação de Insolvência, não tendo sido devidamente apreciados e valorados pelo Tribunal “a quo” tais provas e documentos.
IV- Tais factos e provas deverão ser reapreciados e, consequentemente, verificada a não existência de qualquer incumprimento por parte do aqui Recorrente, por se encontrarem em total desacordo com a verdade material dos factos, o que, salvo o devido respeito, só se pode ter ficado a dever a uma incorreta e desatenta análise da prova carreada e produzida.
V- Assim, em vez de verificado o incumprimento, deveria ter sido dado como provado que o Recorrente requereu, atempadamente, a retirada de tais quantias do acordo regulado e não procedeu ao pagamento das mesmas por incapacidade financeira e económica, bem como estaria, legalmente, impossibilitando de proceder a tais pagamentos pela condição de Insolvente e pelos deveres que sobre o mesmo impendem, nomeadamente o de não favorecer qualquer credor em detrimento dos outros.
VI-  Assim, o Tribunal “a quo” em erro, absoluto e manifesto, de julgamento, não deu, como devia, pelo acima invocado, ter dado como verificado o Incumprimento aqui em causa.
VII- Mais, ao decidir como decidiu, a douta sentença de que se recorre, violou, também, o principio da livre apreciação da prova, quer, por um lado, não ter tido em linha de conta as regras da experiência comum, quer, por outro, não ter tido em consideração todos os elementos de prova que dispunha, encontrando-se, assim, a mesma ferida de erro, notório, na apreciação, valoração e interpretação da prova carreada e produzida.
VIII- Entende-se, ainda, que a douta sentença não se encontra devidamente fundamentada no que concerne a lei aplicável, bem como as razões para a aplicação da mesma pecam por parcas.
IX-  Por todo o acima exposto, deverá a douta sentença ser objeto de revogação, por não refletir todos os elementos constantes do processo e não corresponder a uma plena subsunção dos factos em apreço aos normativos legais, substituindo-se a mesma por uma mais acertada e justa!

A requerente não apresentou contra-alegações.

Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o relator proferiu o despacho datado de 12-11-2018 (Refª 13722620), convidando o apelante e a apelada a pronunciar-se acerca da eventual nulidade da sentença recorrida, nada tendo dito.

II- QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, a este Tribunal está vedado apreciar questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
No caso em análise, considerando o teor das alegações de recurso apresentadas pelo recorrente e do despacho com a refª 13722620, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
a) Se as nulidades da sentença são de conhecimento oficioso, e se a decisão recorrida enferma da nulidade previstas na al. b) do art. 615º, nº 1 do CPC;
b) Se o Tribunal deveria ter proferido decisão reconhecendo a impossibilidade de o requerido cumprir as obrigações decorrentes do acordo sobre regulação do exercício das responsabilidades parentais, por se encontrar em situação de insolvência.
*
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*
III- OS FACTOS
Os factos a considerar são os vertidos no relatório que antecede.
*
IV- OS FACTOS E O DIREITO
Estabelecidas as questões suscitadas na apelação cuja apreciação importará fazer, cumprirá então que sobre elas nos debrucemos, respeitando no seu conhecimento a ordem de precedência lógica.

A – Da nulidade da decisão recorrida
Nos termos do disposto no artigo 615º, nº1, alínea b) do Código de Processo Civil, a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Tal vício emerge, pois da violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no art. 208º, nº 1 da Constituição da República, e no art. 154º, do CPC.
Dispõe o nº 1 deste preceito que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
E acrescenta o nº 2 que “a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Esta disposição indicia pois que o dever de fundamentação as decisões judiciais conhece diferentes graus, consoante o tipo de decisão a proferir e a sua complexidade.
O grau máximo da exigência legal de fundamentação das decisões judiciais é representado pela sentença em ação contestada (art. 607º, nºs 3 e 4 do CPC), sendo a lei processual menos exigente, por exemplo, no caso das ações não contestadas (vd. art. 567º, nº 3 do CPC), nas decisões relativas aos incidentes da instância e procedimentos cautelares (arts. 295º e 365º, nº 2 do mesmo Código[4]), e nos despachos interlocutórios em que não tenha sido deduzida oposição e a questão a proferir seja manifestamente simples (art. 154º, n.º 2 do CPC).
No caso vertente, a sentença recorrida foi proferida no âmbito dos presentes autos de incumprimento de responsabilidades parentais. Esta figura processual, que o RGPTC qualifica como processo especial (vd. epígrafe do Capítulo III) constitui na verdade um incidente processual, sempre que o regime do exercício das responsabilidades parentais tenha sido fixado no âmbito de processo judicial (vd. art. 41º, nº 2 do RGPTC).
Sobre a decisão a proferir nesta forma de processo especial apenas rege, de modo expresso, o nº 7 do art. 41º do RGPTC. Porém, tal norma limita-se a afirmar a necessidade de proferir decisão, sem regular o seu conteúdo ou forma (“ … por fim o juiz decide”).
Por sua vez, nem as disposições gerais constantes dos arts. 1º a 11º, nem as disposições processuais comuns constantes dos arts. 12º a 33º do mesmo diploma consagram regras especiais em matéria de fundamentação das decisões a proferir no âmbito dos processos tutelares cíveis, pelo que quanto às sentenças a proferir no âmbito destes processos rege o art. 607º do CPC, aplicável ex vi do art. 33º, nº 2 do RGPTC, sem prejuízo das adaptações decorrentes da natureza de processos de jurisdição voluntária de que estes manifestamente se revestem.
Quanto aos processos de jurisdição voluntária, o art. 986º, nº 2 do CPC consagra um princípio de livre investigação dos factos e de obtenção oficiosa de provas, e no art. 987º consagra a regra de que no julgamento o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, antes deve adotar “em cada caso a solução que junte mais conveniente e oportuna”. Tal critério decisório reflete-se, obviamente, na densificação do dever de fundamentação da sentença.
Aqui chegados, cumpre então aferir em que consiste o dever de fundamentação das decisões judiciais consagrado no art. 154º do CPC, quanto a decisão visada revista a natureza de sentença; entendida esta como “o ato pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa” – art. 152º, nº 2 do CPC.
Assim, e não obstante o RGPTC não contenha disposições legais que qualifiquem como sentença a decisão final do processo de incumprimento das responsabilidades parentais, o certo é que se trata de um incidente com a estrutura de uma causa, visto que corre termos em autos próprios, e a lei prevê uma tramitação própria, com articulados, a saber, o requerimento inicial e as alegações do/a requerido/a, e uma audiência de pais, além de outras diligências eventuais – vd. art. 41º, nºs 2, 3, e 7 do RGPTC.
Tal remete-nos, pois, para os normativos que regem a fundamentação da sentença, a saber, os nºs 3 e 4 do art. 607º do CPC.
A primeira destas normas esclarece que por fundamentos da sentença devemos entender os factos que o Tribunal considera provados e não provados, e as razões de Direito decorrentes da indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes; sendo certo que tratando-se no caso vertente de um processo de jurisdição voluntária, o conceito de Direito aplicável é mais amplo, visto que o julgador não está sujeito a critérios de estrita legalidade, antes deve buscar a solução mais adequada ao caso.
No caso vertente, analisando a sentença recorrida, verificamos que para além de não conter relatório, ou seja, identificação das partes e do objeto do litígio, como decorre do disposto no nº 2 do art. 607º do CPC, a mesma não também não contém nenhum elenco de factos provados e não provados, como prevêem nºs 3 e 4 do mesmo preceito.
É certo que, na única frase que dedica à decisão da causa, a sentença recorrida alude à circunstância de que “o requerido não logrou comprovar o pagamento”, para daí extraír a conclusão “considera-se verificado o incumprimento”, mas o certo é que a mesma decisão não esclarece sequer que obrigação considera incumprida, sendo certo que, como sabemos, a expressão “pagamento” traduz um conceito de Direito.
Cremos por isso que a sentença recorrida carece em absoluto de fundamentação de facto.
E também entendemos que a mesma não contém fundamentação de Direito, na medida em que não indica uma única disposição legal, ou qualquer fundamento jurídico, ainda que baseado na natureza de jurisdição voluntária do processo, que justifique a decisão.
Temos por claro que a nulidade da sentença por falta de fundamentação constitui uma figura de muito difícil verificação, na medida em que a doutrina e a jurisprudência têm salientado com insistência que tal vício só se verifica em situações de falta absoluta ou total ininteligibilidade de indicação das razões de facto e de Direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência, laconismo ou mediocridade, se deve considerar a fundamentação deficiente.
Com efeito, já ALBERTO DOS REIS[5], ensinava que «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.»
Por outro lado, como bem salientou TOMÉ GOMES [6], «(…) a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão7.»
No mesmo sentido se pronunciou o ac. STJ de 26-04-1995 (Raul Mateus), CJ 1995 – II, p. 58[7], “ (...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.”
O mesmo Tribunal tem de forma uniforme e constante sustentado o entendimento de que o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação não ocorre em situações de escassez, deficiência, ou implausibilidade das razões de facto e/ou direito indicadas para justificar a decisão, mas apenas quando se verifique uma total falta de motivação que impossibilite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final – vd. ac. STJ 15-12-2011 (Pereira Rodrigues), p. 2/08.9TTLMG.P1.
No fundo, como lapidarmente sintetizou no sumário do ac. STJ 02-06-2016 (Fernanda Isabel Pereira), p. 781/11.6TBMTJ.L1.S1, “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.”.
E porque assim é, concluímos, como fez o ac. RL 17-05-2012 (Gilberto Jorge), p. 91/09.9T2MFR.L1-6, em cujo sumário se pode ler que “A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (…)”.
Tendo presente estas considerações, estamos convictos que as mesmas em nada beliscam a conclusão de que, no caso em análise se verifica efetivamente uma das raras ocasiões em que importa considerar verificado o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação, na medida em que como expusemos, a sentença recorrida não contém em absoluto a indicação dos factos e razões de direito em que se estriba.
A nosso ver, o recorrente não invocou tal vício, ou pelo menos não o fez de forma expressa, na medida em que ao afirmar no ponto VIII das conclusões que “a douta sentença não se encontra devidamente fundamentada no que concerne a lei aplicável, bem como as razões para a aplicação da mesma pecam por parcas”, sem referir em que disposição legal estriba tal afirmação, parece reportar-se a uma situação de insuficiência da fundamentação a que alude o art. 662º, nº 2, al. c) do CPC, e não à nulidade a que se reporta a al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC.
Por isso, tal situação remete-nos para a questão de saber se a nulidade da sentença decorrente de falta de fundamentação de facto é ou não de conhecimento oficioso.
Em sentido negativo se pronunciaram os acs. da Relação de Guimarães de 17-05-2018 (Mª João Matos), p. 2056/14.0TBGMR-A.G1 e de 04-10-2018 (da mesma relatora), p. 4981/15.1T8VNF-A.G1. Este entendimento estriba-se na circunstância de várias disposições legais aludirem, em determinadas circunstâncias, à possibilidade do suprimento oficioso de nulidades da sentença de modo que indicia que o conhecimento desse vício constituirá a exceção, e não a regra, que em contrapartida, seria a necessidade de alegação – vd. arts. 614º, nº 1, 615º, nº 2 e nº 4, e 617º, nº 1 e nº 6, todos do CPC.
Não obstante, esta mesma corrente salienta que nos casos de falta absoluta de fundamentação de facto, o Tribunal de Recurso pode e deve anular a decisão recorrida ao abrigo do disposto no art. 662º, nº 2, al. c) do CPC, na medida em que a falta absoluta de fundamentação de facto constitui o grau mais elevado da deficiência da mesma decisão.
Em sentido contrário, sustenta outra corrente jurisprudencial que a nulidade da sentença decorrente da falta de fundamentação de facto é de conhecimento oficioso, na medida em que sendo tal nulidade um vício mais grave do que a anulabilidade decorrente da deficiência da decisão sobre matéria de facto, não faria sentido que a lei processual admitisse o conhecimento oficioso do vício menos grave, mas fizesse depender o conhecimento do vício mais grave de arguição da parte interessada – vd. acs. RL 27-10-2009 (Maria José Simões), p. 3084/08.0YXLSB-A.L1-1, e RC de 19-02-2013 (Virgílio Mateus), p. 618/12.9.
Havendo que tomar posição sobre esta questão, diremos que nos convencem os argumentos invocados pela tese do conhecimento oficioso da nulidade a que alude o art. 615º, nº 1, al. b) do CPC, pelos argumentos já expostos e também porque entendemos ser incongruente que uma mesma situação – falta absoluta de fundamentação de facto – seja suscetível de configurar o vício da nulidade da sentença quando seja invocada, e de anulabilidade da decisão sobre matéria de facto nela contida, quando seja objeto de apreciação oficiosa.
Em consequência, cumpre declarar nula a sentença recorrida.
Aqui chegados, importa chamar à colação o disposto no art. 665º, nº 1 do CPC que dispõe que “ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”.
Cremos que este comando legal pressupõe que os elementos constantes dos autos permitam conhecer do objeto do recurso, e por inerência, do mérito da causa.
Na verdade, como refere ABRANTES GERALDES[8], “a anulação da decisão (…) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo quando não dispuser dos elementos necessários. Só nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo.
Ora, no caso vertente não pode este Tribunal substituir-se ao Tribunal recorrido, na medida em que a argumentação do recorrente se estriba na alegação da sua declaração de insolvência, que não se acha provada (visto que juntou cópia simples de sentença, e não certidão com nota de trânsito em julgado), e bem assim no impacto dessa declaração na sua situação financeira, que também não se acha aquilatado, nem demonstrado nos autos.
Assim sendo, limitar-nos-emos a declarar a nulidade da sentença recorrida, cabendo ao Tribunal a quo determinar os termos adequados ao reatamento da tramitação da causa, seja proferindo nova sentença que obedeça ao disposto no art. 607º do CPC, nomeadamente quanto à sua fundamentação de facto e de Direito, seja determinando as diligências tidas por convenientes com vista a aquilatar das questões de facto e de Direito invocadas pelo requerido.

V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em declarar nula a sentença recorrida por absoluta falta de fundamentação de facto e de Direito – art. 615º, nº 1, al. b) do CPC.
Custas pela parte vencida a final (art. 527º n.º 1 do CPC).

Lisboa, 20 de dezembro de 2018 [9]

 Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa

[1] Aprovado pela Lei nº 141/2015, de 08/09, e alterado pela Lei nº 24/2017, de 24/05.
[2]  Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116.
[3] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116.
[4] Cremos que a expressão “com as necessárias adaptações”, constante do art. 295º do CPC permite concluir que face à natureza urgente e tramitação simplificada dos procedimentos cautelares, se justifica que a sua fundamentação seja igualmente aligeirada.
[5] “Código de Processo Civil Anotado”, V Volume, 3ª Ed., Coimbra Editora, p. 140.
[6] “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[7] Tanto quanto apurámos, este aresto não se acha publicado nas bases de dados de jurisprudência de acesso livre e gratuito.
[8] “Recursos no novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 335.
[9] Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificado aposto na primeira página.