Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2056/14.0TBGMR-A.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
NULIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (da Relatora):

I. Pedindo-se numa acção executiva o pagamento coercivo de uma determinada quantia, titulada por uma letra de câmbio, e tendo-se pedido numa prévia acção declarativa o reconhecimento de um direito de crédito - com base em alegados incumprimento e resolução de um contrato comercial -, inexiste entre ambas identidade de pedido e de causa de pedir; e, desse modo, mostra-se infundada a invocação da excepção dilatória de caso julgado, nos segundos autos interpostos (arts. 576º, nº 1 e nº 2, 577º, al. i), 580 e 581º, todos do C.P.C.).

II. A sentença proferida após produção de prova em audiência final, e onde esteja absolutamente omissa qualquer fundamentação de facto - quer a discriminação dos factos provados e dos factos não provados, quer a explicitação da apreciação crítica feita da prova produzida -, é nula (art. 615º, nº 1, al. b) do C.P.C.); e essa nulidade deverá ser arguida pela parte nela interessada, não sendo de conhecimento oficioso pelo Tribunal da Relação (arts. 614º, nº 1 e nº 2, 615º, nº 2 e nº 4, 617º, nº 1 e nº 6, todos do C.P.C.).

III. É deficiente a decisão proferida pela 1ª instância quando o que tenha dado como provado e como não provado não corresponda a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado pelas partes; e constituirá o grau máximo dessa deficiência a omissão total de fundamentação de facto (art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C.).

IV. Face a uma total ausência de fundamentação de facto, deve o Tribunal da Relação anular oficiosamente a decisão da 1ª instância, por de outro modo ficar a parte que dela pretenda recorrer impossibilitada de cumprir o ónus de impugnação imposto para o efeito pelo art. 640º, nº 1, al. a), do C.P.C., e ficar o próprio Tribunal de Recurso impedido de exercer o seu poder de sindicância (art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C.).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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I – RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. F. C. (aqui, simultaneamente, Recorrente e Recorrido), residente na Rua …, em Guimarães, propôs os presentes embargos de executado, contra J. V., S.A. (aqui, simultaneamente, Recorrido e Recorrente), com sede na Rua …, em Gondomar (fazendo-o por apenso à acção executiva proposta por esta contra Restaurante X, Limitada, com sede no Largo …, em Guimarães, e contra si, para coercivamente haver deles a quantia de € 20.000,00, titulada por uma letra de câmbio), pedindo que

· se julgasse extinta e inexequível a obrigação exequenda.

Alegou para o efeito, em síntese, que a quantia de € 20.000,00, aposta na letra de câmbio apresentada como título executivo nos autos principais (aceite por Restaurante X, Limitada, e avalizada por si próprio) já se encontraria paga: tendo sido discutido - em prévia acção declarativa pendente entre as mesmas partes - o mútuo que estaria subjacente ao título cambiário, veio a dita acção a terminar por transacção, onde ele próprio se reconheceu devedor à aqui Embargada/Exequente (J. V., S.A.) da quantia de € 1.500,00, que de seguida lhe pagou.

Defendeu, por isso, verificar-se, entre a acção executiva que constitui os autos principais e aquela outra (declarativa) a excepção de caso julgado ou, pelo menos, o efeito preclusivo associado ao mesmo (de autoridade de caso julgado), uma e outro obstando ao prosseguimento da aqui principal.

Mais alegou que, tendo a letra de câmbio em causa sido subscrita no âmbito do «Contrato de Comércio 133/06/13», celebrado entre J. V., SA. e Restaurante X, Limitada, ele próprio se limitara a avalizar o título cambiário, e a constituir-se fiador da obrigação desta Sociedade de celebrar ulteriores contratos de compra e venda com aquela outra; e tê-lo feito exclusivamente por ser então seu sócio gerente.

Ora, tendo deixado de o ser em 07 de Novembro de 2006, e não tendo desde então qualquer intervenção na vida social de Restaurante X, Limitada, não poderia agora ser responsabilizado pela garantia prestada de obrigações futuras, que ele próprio ignoraria se teriam chegado sequer a ser assumidas ou incumpridas, sendo ainda indetermináveis (cominando, por isso, com a nulidade a garantia prestada).

Alegou ainda o Embargante/Executado (F. C.) que, não só a letra não teria sido apresentada a pagamento e lavrado o correspondente protesto (sendo por isso nula), como se encontraria prescrita a sua obrigação cambiária de avalista: tendo-se a mesma vencido em 07 de Agosto de 2012 (data de resolução do contrato de comércio que lhe estava subjacente) - e não em 29 de Julho de 2014, data de vencimento que abusivamente lhe foi aposta -, ele próprio só teria sido accionado para a pagar decorridos que foram três anos (isto é, em 2017).

1.1.2. Proferido despacho a admitir liminarmente os embargos de executado, e regularmente notificada a Embargada/Exequente (J. V., S.A.), a mesma veio contestá-los, pedindo que fossem julgados improcedentes, por não provados, prosseguindo a acção executiva os ulteriores trâmites até final.

Alegou para o efeito, em síntese, inexistir qualquer situação de caso julgado, entre a acção executiva dos autos principais e a prévia acção declarativa invocada pelo Embargante/Executado (F. C.): no pedido ali formulado não se teria contido a restituição da quantia mutuada, de € 20.000,00, a Restaurante X, Limitada, no âmbito do «Contrato de Comércio 133/06/13», mas apenas outros pedidos, igualmente justificados pela resolução deste contrato (nomeadamente, de pagamento do montante indemnizatório pré-fixado para o efeito, e de restituição dos bens que lhe tinham sido emprestados).

Defendeu, por isso, inexistir aqui a tríplice identidade - de sujeitos, pedido e causa de pedir -, que fundaria a excepção de caso julgado; e bem assim inexistir qualquer identidade entre a decisão ali proferida e o pedido formulado na acção executiva dos autos principais, que fundaria a autoridade de caso julgado.

Mais alegou que, mercê do texto da fiança prestada pelo aqui Embargante/Executado (F. C.), o mesmo se obrigou como devedor principal das obrigações que decorressem do «Contrato de Comércio 133/06/13» para Restaurante X, Limitada, não o podendo desconhecer, nomeadamente pela já então sua qualidade de advogado; serem as mesmas perfeitamente determináveis, uma vez que desde logo ficou fixado o capital disponibilizado por si (em adiantamento) àquela Sociedade (e cuja restituição pretende obter na acção executiva dos autos principais); e ter sido o Embargante/Executado (F. C.) notificado, na morada por ele previamente indicada como sua, do incumprimento contratual e da subsequente resolução operada.

Alegou ainda a Embargada/Exequente (J. V., S.A.) que, não só a apresentação da letra a pagamento e a realização de protesto por falta do mesmo seriam dispensáveis no caso do avalista do subscritor do título, com este não se encontraria prescrito: mesmo que se considerasse como data de vencimento respectiva 07 de Agosto de 2012, à data da entrada em juízo da acção executiva que constitui os autos principais ainda não se encontravam decorridos três anos.

1.1.3. Dispensada a realização de uma audiência prévia, foi proferido despacho: saneador (certificando tabelarmente a competência do Tribunal, a isenção de nulidades no processo, a personalidade e capacidade judiciárias das partes, a sua legitimidade e a regularidade da respectiva representação em juízo, e julgando improcedente a excepção de caso julgado); fixando o valor da causa de forma coincidente com o indicado no requerimento executivo; definindo o objecto do litígio («Obrigação do embargante pagar à exequente a quantia exequenda») e enunciando os temas da prova («Incumprimento contratual» e «Preenchimento abusivo da letra»); e apreciando os requerimentos probatórios das partes, bem como designando dia para realização da audiência final.

1.1.4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, absolvendo o Embargante/Executado (F. C.) da instância executiva, e ordenando a notificação da Embargada/Exequente (J. V., S.A.) para exercer o respectivo contraditório sobre a eventual condenação respectiva como litigante de má fé, lendo-se nomeadamente na mesma:

«(…)
Pelo exposto, e sem mais delongas, atenta a simplicidade da questão suscitada pelos embargantes em alegações finais, absolvo o embargante da instância, por funcionamento da exceção dilatória, não do caso julgado, mas da autoridade do caso julgado, nos termos supra referidos.- Cfr. artigos 278º, nº 1, al. e), 576º, nºs 1 e 2, 577º, nº 1, al. i) e 578º, todos do C. P. Civil,.
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Atento o supra exposto, determino a notificação da exequente para se pronunciar sobre uma eventual litigância de má-fé, porquanto expôs factos que não correspondiam à verdade e porque fez um uso censurável do processo, nomeadamente, do título executivo apresentado à execução.
(…)»

1.1.5. Foi depois proferida decisão, condenado a Embargada/Exequente (J. V., S.A.) como litigante de má fé, numa multa de 75 Ucs., lendo-se nomeadamente na mesma:

«(…)
Assim, em face do exposto, resultando dos autos que a exequente agiu com intenção (dolosa) de falsear a verdade dos factos que alegou, e de deduzir uma pretensão sem qualquer fundamento, julgamos haver fundamento legal para o condenar como litigante de má- fé.
Nestes termos, atento o valor que a exequente pretendia obter, sem fundamento, no âmbito dos presentes autos, condena-se a exequente numa multa cujo montante se fixa em 75 Ucs e ainda no pagamento aos embargantes das custas de parte.
(…)»
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1.2. Recursos

1.2.1. Recurso do Embargante/Executado (do despacho saneador)
1.2.1.1. Fundamentos do recurso

Inconformado com o despacho saneador, na parte em que julgou improcedente a excepção de caso julgado, o Embargante/Executado (F. C.) interpôs recurso de apelação, pedindo que o mesmo fosse julgado procedente, e se revogasse o despacho recorrido, para então se decidir pela procedência da excepção de caso julgado.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui reproduzidas ipsis verbis):

1ª - Na acção nº 1904/14.9TBGMR do Juízo Local Cível - Juiz 1, Comarca de Braga, Instância Local de Guimarães - a exequente invocando o incumprimento do contrato de comércio nº 133/06/13 - do qual constava um empréstimo titulado por letra que juntou - demandou, entre outros, o embargante pedindo o reconhecimento de que esse contrato foi legalmente por ela declarado resolvido e o pagamento de uma indemnização.

2ª - Tal acção findou por transacção (através da qual o embargante se obrigou a pagar - e cumpriu - a quantia de 1500,00 euros) homologada por sentença transitada em julgado.

3ª - Através da acção executiva à qual foram opostos os presentes embargos a exequente vem dar à execução a mesma e já referida letra a que alude na acção anterior, pretendendo que o embargante lhe pague o referido valor, ao que o embargante reagiu suscitando a excepção do caso julgado ou o seu efeito impositivo ou reflexo, ou seja, autoridade do caso julgado, com o argumento de que, como tem sido decidido, o caso julgado abrange o que foi objecto de controvérsia, mas também tudo aquilo que as partes tinham o ónus de trazer à colação, nomeadamente os meios de defesa possíveis.

4ª - O despacho recorrido, porém, omitindo de todo qualquer discussão sobre a questão do efeito impositivo do caso julgado, limitando-se a sustentar, no que as partes estavam, aliás, de acordo, que entre as duas acções não havia senão identidade de sujeitos, concluiu que não era possível, por isso, falar de caso julgado, julgando, por isso, a excepção improcedente, decisão de que se leva o presente recurso.

5ª - Erradamente, de facto, se decidiu já que o caso julgado não apenas “preclude todos os meios de defesa” (Manuel de Andrade, apud J.A. dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. V, pág. 174) como, na sua extensão, abarca “todo o objecto da causa” (Ac. STJ de 24/11/77 in BMJ 271, 172), o que significa que a anterior acção - e a decisão dela - consumiu todo o objecto da questão.

6ª - De facto, como vem sendo decidido, são abrangidos pela força do caso julgado os factos que estão “coenvolvidos na pretensão do autor e cuja verificação é necessária, mas não suficiente para a procedência da mesma”, única solução compatível com a “economia processual, o prestígio das instituições judiciárias e a estabilidade e certeza das relações jurídicas” (cfr. Ac. STJ de 10/07/97 im Col. Jurisp. STJ V, II, 165).

7ª - Por outro lado, “estando o Réu (ou o Autor) obrigado a deduzir toda a sua defesa (...) na contestação (ou na petição), de tal princípio da preclusão, conjugado com o princípio da preclusão da sentença e da extensão e da força do caso julgado resulta que aquele mesmo Réu não pode propor uma acção, repondo os mesmos factos e argumentos (...) nem invocar novos factos nem novos fundamentos que pudesse, devesse, tivesse a obrigação de deduzir “aquando da contestação” (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 02/04/1998 in www.dgsi.pt), ou do seu anterior articulado.

8ª - Assim, o despacho recorrido violou, manifestamente, o direito, designadamente o estatuído pelos artigos 580º, 581º e 621º do Código de Processo Civil, pelo que não pode manter-se, pois a propositura e transacção da precedente acção esgotou todas as questões que podiam entre as partes ser discutidas acerca do incumprimento do contrato ajuizado.
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1.2.1.2. Contra-alegações (ao recurso do Embargante/Executado)

A Embargada/Exequente (J. V., S.A.) contra-alegou, pedindo que se negasse provimento ao recurso interposto pelo Embargante/Executado (F. C.), por o despacho recorrido, «além de fazer correcta interpretação da lei, contem todos os elementos necessários e essenciais, além de fazer correcta aplicação do direito».
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1.2.2. Recurso da Embargada/Exequente (da sentença final)
1.2.2.1. Fundamentos do recurso

Inconformada com a sentença final, que absolveu o Embargante/Executado (F. C.) da instância executiva, a Embargada/Exequente (J. V., S.A.) interpôs recurso de apelação, pedindo que o mesmo fosse provido, e se anulasse a sentença recorrida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui reproduzidas ipsis verbis):

1 - O presente recurso vem interposto da mui douta sentença de fls…, que absolveu o «embargante da instância por funcionamento da excepção dilatória, não do caso julgado, mas da autoridade do caso julgado».

2 - Na presente acção, a J. V., S.A., peticiona o pagamento de uma letra da qual é dona e legítima portadora, no valor de € 20.000,00, vencida em 29/07/2014, aceite pelo Restaurante X, Lda e avalizada, além de outros pelo Embargante.

3 - Alegou o Embargante que os presentes autos estão prejudicados pela existência de Sentença anteriormente proferida nos autos de processo n.º 1904/14.9TBGMR, que correu termos em Guimarães - Juízo Local Cível - Juiz 1 da Comarca de Braga.

4 - Não se conforma pois o Recorrente com a Douta Sentença, da qual apresenta recurso.

5 - Do requerimento executivo bem como da sua Contestação, fez o Exequente, agora Recorrente, constar todos os elementos constitutivos do direito que lhe assiste.

6 - O Recorrente alegou os factos constitutivos do direito que lhe assiste, e juntou o documento título executivo, que, por se encontrar conforme com a vontade das partes foi assinado pelo embargante.

7 - Explicou ainda, conforme se pode verificar da Contestação apresentada que o valor peticionado na Acção n.º 1904/14.9TBGMR, não corresponde ao valor agora peticionado.

8 - O que agora vem alegado, foi também corroborado pelo depoimento das testemunhas da Autora.

9 - Não obstante toda a prova produzida, quer pela documentação junta quer pelos depoimentos das testemunhas Fernando e José, o Tribunal a quo não foi capaz de perceber que o peticionado na presente execução é materialmente diverso do peticionado na acção anterior, assim como que o valor peticionado o foi na totalidade por ter sido a dedução da bonificação efectuada sobre o valor indemnizatório devido pela resolução após o incumprimento.

10 - Daí que a prova tenha de ser reavaliada para que se não caia em situações que venham a originar para uma das partes - o Embargante - enriquecimento sem causa, levando a que possa surgir nova acção nesse sentido.

11 - Conforme resulta do depoimento das testemunhas da Autora, os 20 mil euros, objecto da presente acção tratavam-se de uma bonificação inicial, entregue ao cliente e que em caso de incumprimento seria devolvida. Sendo ainda devido pelo incumprimento do contrato 20% do valor correspondente aos quilos de café que não foram consumidos ao preço do quilo do lote estipulado à data do incumprimento (montante peticionado na acção declarativa). Deduzindo-se a estes montantes da bonificação na proporção dos quilos de café já consumidos.

12 - Conforme resulta do depoimento do Dr. Fernando «o valor total seria a verba adiantada, 20 mil euros, mais os 20% do café em falta, portanto 1846kg vezes o valor à data da resolução, 27€. Ficamos aqui com um valor de € 29.968,40, isto abatido portanto da bonificação entretanto concedida de €7693,33 que eu disse há pouco». E do depoimento da testemunha José «Juiz: esses 20 mil euros que foram efectivamente concedidos… tem de devolver a proporção? José: exactamente. Deduzidos dos quilos já comprados, mais 20% de indemnização sobre o valor da facturação dos quilos não comprados».

13 - Resulta claro que, no fim do contrato, havia de ser efectuada a dedução do valor proporcional aos quilos de café consumidos e que essa dedução deveria ter sido feita ao valor da bonificação concedida, acontece que conforme resulta da documentação junta com a Contestação, nomeadamente a PI da acção 1904/14.9TBGMR, essa dedução foi efectivada na indemnização a pagar por conta do incumprimento.

14 - Na verdade, e conforme se pode verificar da referida acção que, para o Sr Juiz a quo, origina a ilusão de autoridade de caso julgado, os 20 mil euros referidos nessa acção apenas surgem para que se proceda à contabilização da bonificação deduzindo-a do montante indemnizatório correspondente aos 20% do café não adquirido.

15 - Ou seja, a dedução que deveria ter sido efectivada nos 20 mil euros, foi-o no valor do referido montante indemnizatório.

16 - Ora, da conjugação da prova produzida com a prova documental junta aos autos, facilmente se verifica que quando muito deveria o Sr, Juiz a quo ter entendido que a quantia peticionada deveria ficar reduzida ao valor correspondente ao abatimento por quilos de café consumidos.

17 - O que ainda assim se condenaria porque claramente esse valor foi já objecto de dedução aquando da contabilização da indemnização, bem como assim do montante estipulado para acordo.

18 - De facto resulta do depoimento das testemunhas da Autora que ao valor total devido (indemnização calculada sobre os quilos de café não adquiridos + restituição do capital mutuado) seria deduzido o montante correspondente à bonificação pelos quilos efectivamente consumidos, que ascenderia a € 7993,33.

19 - Contrariamente ao que refere a douta sentença recorrida, as testemunhas da Autora não concluíram que não eram devidos 20 mil euros atendendo ao pedido 2 formulado na acção n.º 1904/14.9TBGMR, porque em momento algum foram confrontados com a Petição referida. Senão vejamos, refere a testemunha Dr Fernando a instâncias do Ilustre mandatário da Autora que questiona «o abatimento não poderia ser feito ao valor da indemnização que o cliente teria de pagar pelo incumprimento contratual? Fernando: o que eu estava a dizer é que o valor do abatimento é feito anualmente, no entanto, com o processo o valor que é devido já não são os 20 mil euros… existe um valor indemnizatório a pagar, soma-se esse valor ao valor em dívida que existe no contrato nessa altura. Agora se se aplica a uma parte ou a outra, isso já é um bocado… Adv: não sabe aqui no caso concreto o que é que foi feito? Fernando: não sei dizer».

20 - Andou mal o Douto Tribunal a quo ao apresentar motivação contrária à prova produzida, tanto mais que, da análise da referida petição inicial facilmente se verifica que o valor correspondente à bonificação pelos quilos de café efectivamente consumidos, já tinha sido deduzido ao valor da indemnização correspondente a 20% do café não adquirido.

21 - Da conjugação da prova documental junta com os depoimentos das testemunhas, tal ficou demonstrado.

22 - Ainda que assim não fosse, sempre se deveria ter reduzido, ainda que mal em virtude de tal dedução ter já sido contabilizada, à quantia exequenda no valor de € 20 mil o valor dos quilos consumidos, que corresponderia a € 7993,33, conforme foi explicado pela testemunha Fernando.

23 - O valor de € 20mil, apenas foram tidos em consideração na acção comum n.º 1904/14.9TBGMR para efeitos de dedução do valor dos consumos e não para efeitos de contabilização do valor devido à exequente resultante dos 20 mil euros concedidos.
Veja-se, a propósito, que naquela acção declarativa foi peticionada indemnização no montante de € 2.275,07, acrescidos do valor dos bens não devolvidos, sendo que aquele montante foi calculado deduzindo ao valor da indemnização correspondente a 20 % do café não adquirido, no valor de € 9.968,40, o montante relativo à bonificação pelos quantitativos de café adquiridos (€ 7.693,33).

24 - Andou mal o Tribunal à quo, em ter decidido como decidiu, pois claramente ficou elucidado com o depoimento das testemunhas da Autora, incisivamente o Dr. Fernando, que levaram à exaustão a explicação dos valores em divida, sem deixar margem para dúvidas.

25 - A presente sentença favorece claramente o instituto do enriquecimento sem causa por parte dos embargantes e que se nos parece ser de todo contra producente e incoerente para a justiça que se quer integra e sã.

26 - A Recorrente, ao exigir dos Embargantes a quantia peticionada, apenas exige o pagamento de um valor que lhe é devido, uma vez que o emprestou, que o contrato não foi cumprido e ainda que a dedução que se poderia fazer a esse valor já tinha sido efectuada ao montante indemnizatório de 20% dos quilos ainda não consumidos, conforme consta da acção 1904/14.9TBGMR.

27 - A presente acção executiva baseia-se num valor nunca antes peticionado!

28 - Além de uma errada interpretação dos factos a Douta Sentença de que se recorre faz também uma errada interpretação do direito, ao “acionar” a autoridade do caso julgado quando esta não se verifica.

29 - A Recorrente demandou o Recorrido e demais executados em acção condenatória sob a forma de processo comum por incumprimento do contrato 133/06/13 - cfr PI do processo 1904/14.9TBGMR, que se juntou como doc 2 com a Contestação.

30 - Conforme resulta da referida Petição inicial do processo n.º1904/14.9TBGMR, o Pedido consubstanciou-se no seguinte: «01 Seja declarada a resolução do contrato, e consequentemente os Réus condenados a 02 Pagar o montante indemnizatório (…) 03 Proceder à restituição dos bens que lhes foram emprestados (…)».

31 - Atento o petitório da acção (cuja PI se encontra junta com a Contestação apresentada pelo Recorrente) invocada pelo embargante e alegada pelo Sr Juiz para alicerçar a sua convicção de uma alegada autoridade do caso julgado, facilmente se verifica que em momento algum foi peticionada a restituição do valor que havia sido emprestado e que se encontra melhor descrito no ponto 04 do contrato.

32 - Quando há manifesta identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir entre duas acções, parece obvio que ao prosseguimento de uma obsta o efeito directo do caso julgado.

33 - Acontece que, no caso dos presentes autos, inexiste identidade de pedido e de causa de pedir !!

34 - Na verdade, não se pode sequer falar em caso julgado ou autoridade de caso julgado, uma vez que apenas há identidade de sujeitos, sendo, note-se, tudo o demais diverso !!!

35 - Na verdade, aquilo que na acção de processo comum 1904/14.9TBGMR foi peticionado, foi-o com base no mesmo contrato dos presentes autos, mas refere-se apenas ao montante indemnizatório, por falta de compra de café e à restituição dos bens/equipamentos emprestados, tendo sido deduzido o valor da bonificação a que teriam direito pelos quilos de café comprados.

36 - Na presente acção, cujo título é uma letra de câmbio, além do título ser diverso, também é diverso o pedido e a causa de pedir, que respeita a um empréstimo em dinheiro que foi efectuado aos executados no qual se inclui o embargante e que a ora Recorrida tem direito a pedir a sua restituição.

37 - Não há reflexo, nem extensão susceptível de aplicação da excepção da autoridade do caso julgado visto tratar-se de matérias diversas, não se encontrando em discussão a mesma matéria.

38 - O pedido bem como a causa de pedir são diversos nas acções aqui trazidas à colação.

39 - A figura jurídico-processual do caso julgado pressupõe a existência de uma decisão que resolveu uma questão que entronca na relação material controvertida ou que versa sobre a relação processual, e visa evitar que essa mesma questão venha a ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes, pelo mesmo ou por outro tribunal.

40 - Na análise do caso julgado há que ter em conta duas vertentes que não se confundem: uma, que se reporta à excepção dilatória do caso julgado, cuja verificação pressupõe o confronto de duas acções - contendo uma delas decisões já transitada - e uma tríplice identidade entre ambas: de sujeitos, de causa de pedir e de pedido; a outra, respeitante à força e autoridade do caso julgado, decorrente de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão, que se prende com a sua força vinculativa.

41 - No caso concreto inexiste tripla identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido, assim como inexiste qualquer decisão sobre a matéria agora trazida aos autos.

42 - Não se encontram reunidos os pressupostos da verificação do caso julgado, nem da autoridade do caso julgado, conforme se verifica da simples apreciação da Petição inicial referente ao processo 1904/14.9TBGMR.

43 - No entender do Recorrente, nem com uma interpretação extensiva e virtual da mesma se poderia chegar a preencher os referidos pressupostos da existência de caso julgado ou de autoridade de caso julgado.

44 - Voltando mais uma vez ao caso concreto, facilmente se verifica que o que agora vem peticionado na presente execução, por meio de um título diverso do contrato, é um facto diverso dos factos alegados e objecto da causa na acção 1904/14.9TBGMR e que não está coenvolvido na pretensão do Autor na acção de processo comum.

45 - Acresce ainda reforçar-se a ideia de que o Recorrente, era e é portador de uma letra, que querendo poderia accionar, não estando condicionado, com a teoria do Thema Decidendi.

46 - O que agora vem peticionado na acção executiva, não está peticionado na acção de processo comum que vem sendo referida, não integrando assim o referido “objecto da causa” !!

47 - Inexistindo qualquer hipótese de subsumirmos na teoria da autoridade do caso jugado o presente.

48 - Ao decidir como decidiu a Douta Sentença final de que se recorre, não fez uma correta apreciação de todos os elementos de prova carreados, nem do direito aplicável.
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1.2.2.2. Contra-alegações (ao recurso da Embargada/Exequente)

O Embargante/Executado (F. C.) não apresentou contra-alegações, ao recurso interposto pela Embargada/Exequente (J. V., S.A.) (da sentença final, que o absolveu da instância executiva).
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1.2.3. Recurso da Embargada/Exequente (da decisão que apreciou a má fé)
1.2.3.1. Fundamentos do recurso

Inconformada com a decisão que a condenou como litigante de má fé, a Embargada/Exequente (J. V., S.A.) interpôs recurso de apelação, pedindo que o mesmo fosse provido, e se anulasse o despacho recorrido.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui reproduzidas ipsis verbis):

1 - O presente recurso vem interposto do despacho de fls…, proferido pelo Sr. Juiz do Tribunal a quo, no uso do seu poder discricionário, que condenou a exequente/embargada como litigante de má-fé.

2 - O recurso abrange não só a condenação do exequente como litigante de má-fé, como também o montante da multa que ficou fixado em 75 Ucs.

3 - Na presente acção, a J. V., S.A., peticiona o pagamento de uma letra da qual é dona e legítima portadora, no valor de € 20.000,00, vencida em 29/07/2014, aceite pelo Restaurante X, Lda e avalizada, além de outros pelo Embargante.

4 - O Embargante alegou que os presentes autos estão prejudicados pela existência de Sentença anteriormente proferida nos autos de processo n.º 1904/14.9TBGMR, que correu termos em Guimarães - Juízo Local Cível - Juiz 1 da Comarca de Braga, ao abrigo da figura da excepção do caso julgado.

5 - Em momento algum foi peticionada pelo Embargante a condenação do exequente como litigante de má-fé.

6 - A Exequente explicou ainda, que conforme se podia verificar da Contestação apresentada, o valor peticionado na Acção n.º 1904/14.9TBGMR, cuja petição foi junta aos autos, não correspondia ao valor agora peticionado.

7 - Na Acção n.º 1904/14.9TBGMR, é peticionado o valor correspondente à indemnização de 20% pelo quilos de café prometidos comprar e não adquiridos (3000 - 1154x27,00€ + 20% = 9968,40, deduzido da bonificação a que tiveram direito pelos quilos de café comprados (1154 + 20.000,00/3000 = €7.693,33); restituição dos bens que lhe foram emprestados.

8 - Quando se referem aqui os €20.000,00, estes são apenas para que se possa apurar o montante de bonificação a que tiveram direito pelas compras efectuadas e que se abateu ao montante indemnizatório em dívida.

9 - Pois que refere o contrato na sua clausula 2 a J. V. «concede um desconto/bonificação de €20000,00 quando cumulativamente a totalidade do café em causa se mostrar integralmente adquirida e paga - a regularizar porém, anualmente em função directa e proporcionada dos quantitativos de café adquiridos e pagos em cada ano, sempre sem prejuízo do estabelecido no numero onze».

10 - Refere ainda o contrato no seu número 4 que «a título de adiantamento condicional de desconto/bonificação referido em dois, entrega, nesta data a os SO (executados) a quantia de €20.000,00 para investimento directo em mercadorias e bens…».

11 - O número 11 do contrato refere expressamente que em caso de incumprimento a J. V., SA., pode resolver o contrato e consequentemente reclamar: indemnização em montante correspondente a 20%do valor do café prometido em venda e ainda não adquirido, restituição imediata da quantia adiantada, pelo valor ainda em dívida, restituição imediata dos bens emprestados (…).

12 - Não obstante toda a prova produzida, quer pela documentação junta quer pelos depoimentos das testemunhas Fernando e José, o Tribunal a quo não entendeu que o peticionado na execução é materialmente diverso do peticionado na acção anterior.

13 - Por Sentença de 14 de Novembro de 2017 foi o Embargante absolvido da instância, por funcionamento da excepção dilatória da autoridade do caso julgado.

14 - Na Sentença de 14 de Novembro de 2017 não foi proferida qualquer decisão de condenação da parte, enquanto litigante de má-fé, tendo apenas sido notificado o exequente para se pronunciar sobre uma eventual litigância de má-fé.

15 - Não se tendo conformado o Exequente, ora Recorrente, com a Douta Sentença, desta apresentou recurso.

16 - Posteriormente, por despacho de 22 de Janeiro de 2018, o Sr. Juiz do Tribunal a quo, no uso do seu poder discricionário, condenou a exequente como litigante de má-fé, assim como no pagamento de multa no montante de 75 UCs e ainda a pagar ao embargante as custas de parte.

17 - O Recorrente está convicto que Vossas Excelências, reapreciando os factos e subsumindo-os nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de julgar procedente o presente recurso.

18 - Preliminarmente, entende o recorrente que o despacho de que se recorre é nulo.

19 - Todos os elementos necessários para a formação da convicção do Tribunal a quo, de que a Exequente poderia ter litigado de má-fé, foram trazidos aos autos até à prolação da Sentença.

20 - Inexistiram quaisquer factos supervenientes ou incidentes processuais que viessem trazer aos autos posição diversa da assumida pela exequente, até ao momento da prolação da Sentença.

21 - A condenação da exequente como litigante de má-fé, não tendo resultado de facto superveniente, teria de ser declarada e aplicada na sentença proferida a 14 de Novembro de 2017.

22 - Após a prolação da Sentença, proferida em 14 de Novembro de 2017, o poder jurisdicional do Sr. Juiz do processo, esgotou-se Cfr Art.º 613.º n.º 1 do CPC..

23 - Pelo que, o despacho de 22 de Janeiro de 2018, que condena a exequente como litigante de má-fé, está ferido de nulidade.

24 - Nesta esteira, e corroborando esta mesma posição, está o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no Processo 128/12.4TBVLN.G2 de 02-06-2016, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/AD638F0DE3AA8A738025802D00494DF2

«1. Assumindo a conduta processual da parte, na pendência da causa e até à prolação da sentença, contornos que a permitam qualificar como litigância de má-fé, tem o juiz que o afirmar e proferir a consequente decisão de condenação da parte, enquanto litigante de má-fé, na sentença, ali fixando, ainda, a multa que julgue mais adequada, fixando-a sempre em quantia certa.
2. Não é consentido ao juiz, salvo casos excepcionais (de incidentes ou factos supervenientes à sentença), relegar tal decisão quanto à litigância de má-fé para momento posterior à sentença, por a tanto se oporem os limites do seu poder jurisdicional, que cessa com a prolação da mesma.
3. Apenas quanto à indemnização a arbitrar a favor da parte contrária (e se esta se mostrar pedida) é consentido ao juiz relegar a sua quantificação para momento posterior à sentença e se os autos não contiverem elementos que o habilitem a fazer, desde logo, na sentença, essa quantificação.
4. Todavia, essa quantificação só é viável se, previamente e na sentença, o juiz tiver proferido decisão no sentido de declarar e condenar a parte como litigante de má-fé, ali fixando a multa processual devida em quantia certa.
5. Se tal não tiver sucedido, o poder jurisdicional do tribunal quanto a essa matéria mostra-se esgotado, não sendo lícito reabrir a instância para tal fim.
6. O despacho proferido, após o esgotamento do poder jurisdicional do juiz do processo, à luz do disposto no art. 615º, n.º 1 al. d)- do CPC. e de acordo com a sua interpretação extensiva, é nulo por excesso de pronúncia».

25 - Não poderá senão ter-se como nulo o despacho de que agora se recorre.

26 - Ainda que assim se não entendesse, sempre pugnará pela procedência do presente recurso.

27 - A Autora impugna a sua condenação como litigante de má fé, porquanto, não obstante o entendimento do Tribunal de que o montante de € 20.000,00 aposto na letra já tinha sido peticionado na acção n.º 1904/14.9TBGMR, a verdade é que não o foi.

28 - A quantia de € 20.000,00 apenas se encontra mencionada na acção n.º 1904/14.9TBGMR, para efeitos de abatimento ao montante indemnizatório da bonificação concedida pelos quilos de café comprados, não tendo sido nesta acção peticionada a sua restituição do valor concedido.

29 - Não foi peticionada e os Réus bem sabiam que se encontrava na posse da Autora, a letra dada à execução, como sabiam, que a quantia que lhes foi adiantada no início do contrato teria de ser restituída.

30 - Na verdade, era do conhecimento dos Réus que essa quantia viria a ser peticionada posteriormente pela forma que o foi.

31 - E não pode a Autora conformar-se com a alegação da autoridade do caso julgado quando

«O caso julgado tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, pois como estatui o artº 673º do CPC, “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.
Mesmo para quem entenda que relativamente à autoridade do caso julgado não é exigível a coexistência da tríplice identidade, como parece ser o caso da maioria jurisprudencial e de amplo sector doutrinal, será sempre em função do teor da decisão que se mede a extensão objectiva do caso julgado[1]e, consequentemente, a autoridade deste.

Ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado(exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta». Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc 3210/07.6TCLRL1.S1

32 - No caso em apreço o objecto da decisão não é, clara e evidentemente, o mesmo !!!

33 - As acções são diversas, o petitório também e o direito exercido numa acção não preclude o direito de peticionar o que ainda se encontrava em dívida, numa outra acção.

33 - Esta era, e ainda é a perspectiva da Exequente sobre a presente acção, tendo sido essa uma das motivações que levou à apresentação de Recurso da Sentença.

34 - As relações jurídico-privadas devem pautar-se pelas regras da boa-fé, pelo que, é indispensável que, nesse domínio, exista a confiança necessária entre sujeitos jurídicos.

35 - De acordo com Batista Machado, « O significado profundo do princípio da boa fé (do fides servare) nas relações entre os homens» determina que « a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legitima baseada na conduta de outrem». E acrescenta: « (…) poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens. Mais ainda: esse poder confiar é logo condição básica da própria possibilidade da comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso e à cooperação (logo, da paz jurídica)». (cfr. Tutela da Confiança, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, página 232).

36 - Ora, na sequência deste pensamento, quando as partes pretendem fazer valer o seu direito em juízo devem actuar com verdade, impondo-se, a cada uma delas, «o dever de, conscientemente, não formular pedidos ilegais, não articular factos contrários à verdade, nem requerer diligências meramente dilatórias» (cfr. artigo 264º, nº 2, do Código de Processo Civil).

37 - A Autora não actuou com intenção ou consciência de deduzir uma pretensão absurda ou infundada, cuja falta de fundamento não ignorava ou não devia ignorar.

38 - Na verdade, para a Autora esta ainda é uma pretensão com cabimento, motivo pelo qual da Sentença proferida nos autos, foi apresentado recurso de matéria de facto e de direito.

39 - A posição da Autora, revela uma postura abstractamente defensável, estribando-se em asserções substancial e processualmente admissíveis.

40 - Na verdade, a Exequente apenas fez uso do título que lhe foi entregue, conscientemente, pelos Executados, aquando da entrega do valor de € 20.000,00 aos executados a título de adiantamento condicional de desconto.

41 - O contrato refere que a letra aqui em crise era garantia de tudo o que fosse devido em virtude do incumprimento do contrato.

42 - O contrato prevê que em caso de incumprimento devia ser restituída a quantia adiantada, pelo valor em dívida, conforme cláusula 11 do contrato.

43 - Na data da apresentação da presente ação, estava em dívida, resultante do incumprimento contratual, o valor corresponde aos €20.000,00 adiantados, uma vez que a dedução do valor da bonificação já havia sido efectuada ao montante devido pela indemnização correspondente a 20% do café prometido em venda e ainda em falta, tudo conforme consta da acção nº 1904/14.9TBGMR.

44 - Conforme vem de se referir, tudo o demais devido pelo incumprimento do contrato, já havia sido peticionado nessa acção, à excepção do referido valor de € 20.000,00.

45 - A Exequente apenas accionou a referida letra porque o podia fazer, uma vez que a quantia lhe é devida e porque o objecto deste processo não colidia com o objecto do processo 1904/14.9TBGMR.

46 - Além de não colidir, também a acção declarativa não preclude o direito de peticionar, nos presentes autos, o peticionado e cujo objecto é diverso do peticionado nessa acção.

47 - Esta era(e é!) a convicção da Exequente, que não litiga expondo factos que não correspondem à verdade, nem faz um uso censurável do processo.

48 - Apenas defende uma posição que considera defensável !

49 - Uma das condutas em que se exprime a litigância de má-fé consiste na alegação, voluntária e consciente, de factos que seriam relevantes para a decisão da causa, mas que a parte sabe que, ao alegar como alega, desvirtua a realidade por si conhecida, visando, por isso, intencionalmente um objectivo censurável.

50 - A litigância de má-fé exige a consciência de que quem pleiteia de certa forma, tem a consciência de não ter razão.

51 - Em sentido diverso, «A defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 456º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, todavia se não forem observados os deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé, patenteia-se litigância de má-fé». - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.9.2012, no Processo 2326/11.09TBLLE.E1.S1.

52 - Mesmo que assim não fosse - o que apenas se admite por mero exercício académico de raciocínio - nos termos do disposto no artº 542.º, do Cód. Proc. Civil, exige-se para a má-fé um verdadeiro dolo, não bastando a simples culpa.

53 - Ou seja, a litigância de má-fé tem como pressuposto o dolo, isto é, a consciência de se não ter razão.

54 - A jurisprudência dominante entende que o sentido a dar ao art. 334º, do Cód Civil, é o de que o direito seja exercido de forma clamorosamente ofensiva dos valores de justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante (vide Ac. STJ, de 30/10/2003, in www.dgsi.pt/jstj)

55 - É esta, também, a doutrina perfilhada no Ac. Rel. Évora, de 23/1/1986, in BMJ, 355º- 455): «É necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa e não apenas com leviandade ou imprudência, para que se verifique a má-fé substancial directa».

56 - A Autora defende uma perspectiva que em seu entender é legítima, não obstante a decisão judicial ser diversa, por se fundar em entendimento diverso dos factos.

57 - Acresce que, a lei estabelece que a multa por litigância de má fé é fixada dentro dos limites estabelecidos no Regulamento das Custas Processuais, entre 2 e 100 unidades de conta (UC) – artigo 27.º, n.º 3, do RCP.

58 - A regra será portanto a do 'prudente arbítrio', para tanto devendo ponderar o tribunal os factos apurados quanto à culpa ou das consequências da litigância abusiva no tocante à actividade processual desenvolvida, bem como ao valor da causa e aos fins de prevenção especial e geral no modo de condução dos litígios judiciais.

59 - Conforme se vem pugnando, o agora Recorrente apenas defendeu uma posição que considera defensável, pelo que não se conforma com o valor da multa aplicado, uma vez que não se vislumbra na presente acção uma actuação excepcionalmente grave (clamorosamente ofensivo dos valores da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominantes) que permita que a multa ascenda a 75 Uc’s – tão perto do limite máximo que a lei permite aplicar à litigância de má fé.

60 - Tudo isso ponderado, julgamos que o quantitativo de 75 UC’s fixado é excessivo e desproporcionado face ao valor dos autos, e aos contornos da causa, se se mostrar necessário manter-se a decisão de que se recorre, deverá o quantitativo da multa ser revisto em baixa, por excessivo.

61 - Concluindo, entende a Recorrente que não deveria ter sido condenada como litigante de má-fé, desde logo porque o despacho de que se recorre é nulo, por ter sido proferido após ter-se esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo.

62 - Continuando, entende ainda que está toda a sua pretensão a coberto de um contrato celebrado por vontade de ambas as partes, assim como de um título executivo entregue à Exequente por vontade dos Executados de o habilitar de forma célere a recuperar o valor aqui peticionado e dentro da lei.

63 - Por fim, entende ainda que a condenação de que se recorre, ainda que fosse admissível (o que por mera hipótese de raciocínio se concede) seria excessivamente desproporcional relativamente ao quantitativo da multa aplicada.
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1.2.3.2. Contra-alegações (ao recurso da Embargada/Exequente)

O Embargante/Executado (F. C.) não apresentou contra-alegações, ao recurso interposto pela Embargada/Exequente (J. V., S.A.) (da decisão que a condenou como litigante de má fé, numa multa de 75 Ucs).
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do C.P.C.), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, ambos do C.P.C.).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

2.2.1. Enunciação das questões

Mercê do exposto, 04 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal:

- Deverá ser alterada a decisão proferida no despacho saneador, quando julgou improcedente a excepção dilatória de caso julgado ?

- Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia que se desse como provado que o valor peticionado na Acção n.º 1904/14.9TBGMR (que correu termos na Comarca de Braga - Juízo Local Cível de Guimarães - Juiz 1) não corresponde ao valor peticionado na acção executiva que constitui os autos principais ?

- Deverá ser alterada a decisão de mérito proferida na sentença final (face nomeadamente ao prévio sucesso da impugnação de facto feita), julgando-se os embargos de executado totalmente improcedentes (por não verificação da excepção de caso julgado, então na sua vertente de autoridade de caso julgado) ?

- Deverá ser alterada a decisão proferida após a sentença final, que condenou a Embargada/Exequente (J. V., S.A.) como litigante de má fé (nomeadamente, considerando-se não verificada a mesma nos autos, ou reduzindo o montante da multa de 75 UCs que - a esse título - lhe foi aplicada) ?
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2.2.2. Ordem de conhecimento

Lê-se no art. 663º, nº 2 do C.P.C. que o «acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607º a 612º».
Mais se lê, no art. 608º, nº 2 do C.P.C., que o «juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
Logo, principiar-se-á por conhecer o objecto do recurso de apelação interposto pelo Embargante/Executado (F. C.), já que a sua eventual procedência poderá impedir o conhecimento dos depois interpostos pela Embargada/Exequente (J. V., S.A.).
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III - Excepção dilatória de caso julgado

3.1.1. Caso julgado - Excepção e autoridade

Lê-se no art. do 628º do C.P.C. que uma decisão judicial «considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação».
Quando assim seja (e nos termos dos art. 619º,nº 1 e 620º, nº 1, ambos do C.P.C.) terá força obrigatória: dentro do processo e fora dele, se for sentença ou despacho saneador que decida do mérito da causa (caso julgado material); ou apenas dentro do processo, se for sentença ou despacho que haja recaído unicamente sobre a relação processual (caso julgado formal).

Contudo, a «sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º do C.P.C.).

Ora, a doutrina divide-se quanto aos limites objectivos do caso julgado. Assim, para uns, tais limites confinam-se à parte injuntiva da decisão, não constituindo caso julgado os fundamentos da mesma (v.g. Castro Mendes, Direito Processual Civil, III Volume, 1980, p. 282-283, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, p. 695, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 334, e Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, Volume I, 1970, p. 363); já outros, defendem que reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos, pois que o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão (v.g. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 578).

Reconhece-se que posição actualmente predominante é favorável a uma mitigação do referido conceito restritivo de caso julgado, no sentido de, considerando embora o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada (neste sentido, Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, p. 200 e 201).

Deste modo, e aderindo a este último entendimento, ainda que os limites objectivos do caso julgado se restrinjam à parte dispositiva da sentença, sem tornar extensiva a sua eficácia a todos os motivos objectivos da mesma, deve alargar-se a respectiva força obrigatória à resolução de questões preliminares que a sentença teve necessidade de resolver, como premissa da conclusão retirada: embora as premissas da decisão recorrida não revistam, por via de regra, força de caso julgado, deve reconhecer-se-lhes essa natureza, quer quando a parte decisória se referir a elas, de modo expresso, quer quando constituam antecedente lógico necessário e imprescindível da decisão final.

Face ao exposto, e ainda ao teor dos arts. 576º, nº 1 e nº 2, 577º, al. i), 580º e 581º, todos do C.P.C., compreende-se que se distinga entre a excepção dilatória de caso julgado e a força e autoridade de caso julgado (efeitos distintos da mesma realidade jurídica), a saber:

. a excepção dilatória de caso julgado - pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira - entre as mesmas partes, sobre o mesmo objecto e baseada na mesma causa de pedir - ter sido decidida por sentença que não admita recurso ordinário, obstando ao conhecimento do mérito da segunda causa e importando a absolvição da instância. Logo, pressupõe o confronto de duas acções (uma delas contendo uma decisão já transitada em julgado), e a tríplice identidade entre ambas, de sujeitos, de causa de pedir e de pedido.

Definindo esta tríplice identidade, lê-se no art. 581º do C.P.C. que repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos (isto é, quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica), ao pedido (isto é, quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico), e à causa de pedir (isto é, quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico).

Precisando, e quanto aos sujeitos, dir-se-á que não se exige aqui que, em ambas as acções, assumam invariavelmente a posição de respectivos autor ou réu, importando apenas que se esteja em presença das mesmas pessoas jurídicas.

Quanto ao pedido, estará em causa numa e outra acção «o mesmo direito subjectivo cujo reconhecimento e(ou) protecção se pede, independentemente da sua expressão quantitativa». Contudo, para haver «identidade de pedido não é necessária uma rigorosa identidade formal entre um e outro, bastando que sejam coincidentes o objectivo fundamental de que dependa o êxito de cada uma delas» (Ac. do STJ, de 06.06.2000, Garcia Marques, Processo nº 00A327, in www.dgsi.pt, como qualquer outro citado sem indicação de origem).

Compreende-se, por isso, que se afirme que «há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem», bastando para a identidade de efeito jurídico referida no nº 3 do art. 581º do C.P.C. uma identidade relativa, abrangendo, «não só o efeito preciso obtido no primeiro processo, como qualquer que nesse processo houvesse estado implicitamente mas necessariamente em causa» (Castro Mendes, Direito Processual Civil, II Volume, A.A.F.D.L., p. 350). Logo, haverá identidade de pedido quando o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor em ambas as acções é substancialmente o mesmo.

Já quanto à causa de pedir, precisa-se que, «quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstrato, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal» (Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1985, p. 121 e 123).

Por outras palavras, sendo a causa de pedir o acto ou o facto jurídico em que o autor se baseia para fundamentar o seu pedido, radicará aquela nestes e não na valoração que se lhes atribua. Logo, para que a excepção de caso julgado ocorra é necessário que a pretensão deduzida nas duas acções proceda do mesmo facto jurídico.

Compreende-se, por isso, que a excepção (dilatória) de caso julgado vise o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, por forma a evitar a repetição de causas (colocando o tribunal «na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior», conforme art. 580º, nº 1 do C.P.C.).

. a força e autoridade de caso julgado - decorre de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão, e prende-se com a sua força vinculativa. Logo, visa o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito; e pode funcionar independentemente da tríplice identidade exigida pela excepção, pressupondo apenas «a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida», isto é, sendo «entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado» (Ac. do SJ, de 21.03.2012, Álvaro Rodrigues, Processo nº 3210/07.6TCLRS.L1.S1).

Por outras palavras, neste segundo caso (de força e autoridade do caso julgado) «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressuposto da decisão» (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 579, com bold apócrifo).

Assim, se, «exemplo, numa acção de condenação o réu for condenado a entregar certa coisa ao autor, a sentença proferida, uma vez transitada, obstará a que, em nova acção proposta pelo vencedor para obter a indemnização do dano proveniente da falta de cumprimento da obrigação de entrega, o réu volte a levantar a questão da existência desta obrigação. Essa questão prejudicial está definitivamente julgada» (Antunes Varela, Sampaio e Nora, J. M. Bezerra, Manuel de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 2ª edição, p. 309, em nota).

Num outro exemplo, dir-se-á que, se numa primeira acção foi reconhecida a existência e validade de um contrato de compra e venda de imóvel, com base no qual os Adquirentes pretenderam - e lograram - reaver o prédio dele objecto, o seu anterior Ocupante não poderá depois, numa segunda acção, pretender invalidar o dito contrato (causa de pedir nos primeiros autos), invocando para o efeito a sua simulação: «a possibilidade de conhecimento deste pedido de declaração de nulidade colocaria o tribunal “na alternativa de contradizer ou de reproduzir” a decisão anterior (nº 2 do artigo 497º do Código de Processo Civil); tanto basta para que proceda a excepção de caso julgado e para que não possa ser apreciado o pedido correspondente.

À mesma conclusão (naturalmente) chegamos por uma outra via. Embora o conhecimento das excepções não adquira por princípio força de caso julgado material (nº 2 do artigo 96º do Código de Processo Civil), o trânsito em julgado de uma decisão de mérito faz precludir a possibilidade de, em acção subsequente, poderem vir a ser utilizadas para a contrariar questões que, na primeira acção, poderiam ter sido invocadas como meios de defesa. Assim resulta do princípio da concentração, expressamente definido no nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil: se nem como oposição a uma eventual execução (cfr. al.g) do nº 1 do artigo 814º) podem ser utilizados, muito menos podem servir de causa de pedir em acções cujo desfecho possa conduzir à referida contradição» (Ac. do STJ, de 08.04.2010, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo nº 2294/06.9TVPRT.S1, com bold apócrifo).
*
3.1.2. Função (do instituto do caso julgado)

Face ao exposto, compreende-se que se afirme que o instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva (exercida através da autoridade do caso julgado) e uma função negativa (exercida através da excepção dilatória do caso julgado); logo, a autoridade de caso julgado (de sentença que transitou) e a excepção de caso julgado são efeitos distintos da mesma realidade jurídica.

Contudo, enquanto que a excepção dilatória do caso julgado pressupõe uma identidade entre relações jurídicas (sendo a mesma relação - perfeitamente individualizada nos seus aspectos subjectivos e objectivos - objecto de sucessiva e repetida apreciação jurisdicional), a autoridade do caso julgado pressupõe uma prejudicialidade entre objectos processuais («julgada, em termos definitivos, certa matéria numa acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto desta primeira causa, sobre essa precisa questio judicata, impõe-se necessariamente em todas as outras acções que venham a correr termos entre as mesmas partes - incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda acção», conforme Ac. do STJ, de 24.04.2013, Lopes do Rego, Processo nº 7770/07.3TBVFR.P1.S1).

Por outras palavras, a «excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito», enquanto que «a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (…) Este efeito positivo assente numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida» (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª edição, p. 354, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, «O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material», BMJ nº 325, p. 49, onde se lê - com bold apócrifo - que «a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior», enquanto que «quando vigora como autoridade e caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior»).

Compreende-se, igualmente, que se afirme que, para se aferir da repetição - ou não - da acção, deve atender-se «não só ao critério formal (assente na tríplice identidade dos elementos que definem a acção), fixado e desenvolvido no art. 498º [hoje, art. 581º], mas também à directriz substancial traçada no nº 2, do art. 497º [hoje, nº 2 do art. 580], onde se afirma que a excepção de caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior» (Antunes Varela, Sampaio e Nora, J. M. Bezerra, Manuel de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 2ª edição, p. 302, com bold apócrifo).
Conforme já visto, «as decisões de mérito proferidas num determinado processo, na medida em que confirmem ou constituam situações jurídicas, podem, em certos casos, ser vinculativas noutro processo - não podendo nele ser negadas ou contrariadas - em que se pretenda a apreciação ou constituição de outras situações jurídicas com ela conflituantes. Para tal, importa que exista entre o objecto de uma e de outra uma relação (de identidade, prejudicialidade ou de concurso) tal que implique a possibilidade de divergência ou contradição da decisão anterior com a decisão a proferir na acção intentada posteriormente. A força de caso julgado assenta, pois, na necessidade de assegurar a certeza das situações jurídicas apreciadas, nos termos em que o foram, que é inerente às decisões definitivamente julgadas» (Ac. da RL, de 21.06.2007, Aguiar Pereira, Processo nº).
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3.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, veio o Embargante/Executado (F. C.) defender que se verificaria entre a acção executiva que constitui os autos principais e uma prévia acção declarativa (Processo nº 1904/14.9TBGMR, que correu termos na Comarca de Braga, pelo Juízo Local Cível de Guimarães, Juiz 1) a excepção de caso julgado, já que nesta teria sido apreciado o mesmo crédito que a Embargada/Exequente (J. V., S.A.) ali exige, ficando o dito crédito definitivamente fixado pro transacção então lavrada.

Ora, a «sentença homologatória de transacção há muito transitada em julgado» obstaria «naturalmente ao prosseguimento da execução, pois as partes são as mesmas, o pedido é o mesmo e a causa de pedir é também idêntica, nas duas acções».

Conhecendo a dita excepção no despacho saneador que proferiu, o Tribunal a quo viria a considerar não restarem «dúvidas, nem tal foi posto em causa, que são os mesmos os sujeitos nas duas acções», circunscrevendo-se assim «a questão (…) à delimitação objetiva do caso julgado, ou seja, ao pedido e à causa de pedir»; e considerou ainda que, mercê «duma leitura atenta dos documentos juntos pelas partes, (…) no âmbito da ação comum peticionou-se “seja declarada a resolução do contrato, e consequentemente os Réus condenados a Pagar o montante indemnizatório (…) e a proceder à restituição dos bens que lhes foram emprestados (…)”, o que» diferia «substancialmente do âmbito do título executivo apresentado na ação executiva comum apensa», pelo que julgou «improcedente a alegada exceção do caso julgado invocada pelo embargante».

Face ao exposto, uma conclusão se pode desde já enunciar: ao conhecer do instituto do caso julgado invocado pelo Embargante/Executado (F. C.), o Tribunal a quo fê-lo apenas na vertente de excepção dilatória de caso julgado (função negativa) e não também de autoridade de caso (função positiva); e por isso se compreende que haja apreciado detalhadamente esta última, e decidido a mesma, em sede de sentença, após a produção de plúrima prova - nomeadamente, pessoal - em sede de audiência de julgamento.

Independentemente do juízo que se possa fazer sobre esta sua opção (de cindir, e proceder à apreciação do mesmo instituto do caso julgado, em dois momento distintos, de despacho saneador - limitado à excepção do caso julgado - e de sentença final - limitada à autoridade de caso julgado), certo é que a mesma limitou o objecto do recurso em apreciação ao efeito negativo do caso julgado.

Dir-se-á, então, que estando em causa uma acção declarativa e uma acção executiva, não se vê como é que entre ambas poderia ocorrer uma identidade de pedido e de causa de pedir (necessários pressupostos, recorda-se, da verificação da dita excepção).

Com efeito, enquanto que na acção executiva que constitui os autos principais se pede o pagamento (coercivo) de uma determinada quantia, já previamente definida como sendo devida, invocando-se para o efeito o título executivo (letra de câmbio) que documenta a sua existência e exigibilidade, na prévia acção declarativa referida pelo Embargante/Executado (F. C.) visava-se o reconhecimento do direito de crédito invocado sobre si pela Embargada/Exequente (J. V., S.A.), com base nos alegados incumprimento e resolução de um contrato comercial, cujo adimplemento ele próprio afiançara.

Logo, e sem necessidade de ulteriores considerações, inexiste a necessária identidade de pedido e de causa de pedir que permitiria afirmar que entre aqueles dois autos se verifica uma repetição de causas; e, por isso, é infundada a invocação da excepção dilatória do caso julgado (que exige, precisamente, a identidade do objecto das repetidas apreciações jurisdicionais).

Precisa-se, porém, que neste juízo não se contem a apreciação e decisão da eventual verificação (entre as ditas acção executiva dos autos principais, e a prévia acção declarativa) da autoridade de caso julgado (isto é, não se conhece aqui da eventual prejudicialidade existente entre o decidido nesta última e invocado naquela primeira), por a questão ter sido exclusivamente conhecida na posterior sentença (constituindo o preciso objecto do primeiro recurso de apelação interposto pela Embargada/Exequente - J. V., S.A.).

Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela total improcedência do recurso de apelação interposto pelo Embargante/Executado (F. C.), do despacho saneador que julgou improcedente a excepção dilatória de caso julgado, por ele arguida.
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IV - Vício da sentença - Anulação da sentença

4.1.1. Vícios da sentença - Nulidades versus Erro de julgamento

As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do C.P.C. (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo nº 00858/14).

Precisando, «os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença», já que «a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de dar lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662º, nº 2, c) e d) do nCPC)» (Ac. da RC, de 20.01.2015, Henrique Antunes, Processo nº 2996/12.0TBFIG.C1, com bold apócrifo. No mesmos sentido, de distinção das nulidades da sentença dos vícios que afectam a própria elaboração da decisão de facto - estes últimos entendidos como passíveis de serem qualificados como nulidades processuais, nos termos do art. 195º, nº 1 do C.P.C. - Ac. da RL, de 29.10.2015, Olindo Geraldes, Processo nº 161/09.3TCSNT.L1-2).
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4.1.2. Dever de fundamentação de facto

Enunciando as regras próprias de elaboração da sentença, lê-se no art. 607º, nº 2 e nº 3 do C.P.C. que a «sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, e enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer», seguindo-se «os fundamentos de factos», onde o juiz deve «discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regaras jurídicas, concluindo pela decisão final».

Mais se lê, no nº 4 do mesmo art. 608º citado, que, na «fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção»; e «tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados a presunções impostas pela lei ou por regras da experiência».

Por fim, lê-se no nº 5 do mesmo art. 607º que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», não abrangendo porém aquela livre apreciação «os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão da partes».

Reafirma-se, assim, em sede de sentença, a obrigação imposta pelo arts 154º do C.P.C., e pelo art. 205º, nº 1 da C.R.P., do juiz fundamentar as suas decisões (não o podendo fazer por «simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade», conforme nº 2 do art. 154º citado).

Com efeito, visando-se com a decisão judicial resolver um conflito de interesses (art. 3º, nº 1 do C.P.C.), a paz social só será efectivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação (M. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 348).

Reconhece-se, deste modo, que é a fundamentação da decisão que assegurará ao cidadão o respectivo controlo; e, simultaneamente, permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do bem ou mal julgado. «A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível (…) de garantia do direito ao recurso» (Ac. da RC, de 29.04.2014, Henrique Antunes, Processo nº 772/11.7TBBVNO-A.C1).

Logo, e em termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz que, na sentença, em parte própria, discrimine os factos tidos por si como provados e como não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respectiva natureza).

Impõe-se-lhe ainda que deixe bem claras, quer a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objecto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito), desse modo explicitando não só a respectiva decisão («o que» decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram («o porquê» de ter decidido assim).

A explicitação da formação da convicção do juiz consubstancia precisamente a «análise crítica da prova» que lhe cabe fazer (art. 607º, nº 4 do C.P.C.): obedecendo aos princípios de prova resultantes da lei, será em função deles e das regras da experiência que irá formar a sua convicção, sobre a matéria de facto trazida ao respectivo julgamento.

Com efeito, «livre apreciação da prova» (art. 607º, nº 5 do C.P.C.) não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).

«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).

«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 591, com bold apócrifo).

Compreende-se, por isso, que se afirme que este esforço, exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida, «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 281).
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4.1.3. Omissão de fundamentação de facto - Nulidade

Lê-se no art. 615º, nº 1, al. b), do C.P.C., que «é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».

Precisa-se, porém, que vem sendo pacificamente defendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa - nomeadamente, a falta de discriminação dos factos provados, ou a genérica referência a toda a prova produzida na fundamentação da decisão de facto, ou conclusivos juízos de direito -, e não apenas a mera deficiência da dita fundamentação (por todos, José Lebre de Freitas, Código de Processos Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 703 e 704, e A Acção declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 332).

A concreta «medida da fundamentação é, portanto, aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e, em caso de recurso, pelo tribunal ad quem a que seja lícito conhecer da questão de facto» (Ac. do STJ, de 11.12.2008, citado pelor Ac. da RC, de 29.04.2014, Henrique Antunes, Processo nº 772/11.7TBVNO-A.C1).

Reitera-se, porém, que saber se a «análise crítica da prova» foi, ou não, correctamente realizada, ou se a norma seleccionada é a aplicável, e foi correctamente interpretada, não constitui omissão de fundamentação, mas sim «erro de julgamento»: saber se a decisão (de facto ou de direito) está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma (conforme Ac. do STJ, de 08.03.2001, Ferreira Ramos, Processo nº 00A3277).
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4.1.4. Anulação (oficiosa) da sentença - Art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C.

Lê-se no art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C. que a «Relação deve (…), mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que (…) permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (…)».

Com efeito, a «decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento», resultando nomeadamente de se revelar, total ou parcialmente, deficiente, obscura ou contraditória (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Julho de 2013, p. 239).

A decisão será: deficiente quando aquilo que se deu como provado e não provado não corresponde a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado (isto é, não foram considerados todos os pontos de facto controvertidos, ou a totalidade de um facto controvertido); será obscura quando o seu significado não possa ser apreendido com clareza e segurança (isto é, os pontos de facto considerados na sentença são ambíguos ou poucos claros, permitindo várias interpretações); e será contraditória quando pontos concretos que a integram tenham um conteúdo logicamente incompatível, não podendo subsistir ambos utilmente (isto é, diversos pontos de facto colidam entre si, de forma inconciliável).

(Em sentido conforme, Alberto dos Réus, Código de Processo Civil Anotado, IV Volume, Coimbra Editora, Limitada, p. 553; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 656; ou José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 664.)

Logo, quando se verifique que a decisão sobre a matéria de facto omitiu a «pronúncia sobre factos essenciais ou complementares», possui uma «natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa», ou revela «incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso», deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, anulá-la, quando não lhe seja possível» suprir tais vícios (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Julho de 2013, p. 239 e 240).

Contudo, importa ter presente que «os Recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram ainda submetidas ao contraditório e decididas pelo Tribunal Recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso» (António Santos Abrantes Geraldes, op, cit., 98 e 99).

Por outras palavras, «o regime consagrado entre nós para os recursos ordinários é de (…) reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último» (Ac. da RC, de 27.05.2015, Isabel Silva, Processo nº 416/13.2TBCBR.C1).
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4.1.5. Reenvio (oficioso) da sentença - Art. 662º, nº 2, al. d), do C.P.C.

Mais se lê, o art. 662º, nº 2, al. d), do C.P.C. que a «Relação deve (…), mesmo oficiosamente, determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados».

Recorda-se que no prévio art. 607º, nº 4 e nº 5 do C.P.C., se impõe que, na «fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados, e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas», as quais são apreciadas livremente por si, «segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto».

Dir-se-á ainda que este dever - constitucional e processual civil - que impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, leva a que se imponha igualmente ao recorrente, que pretenda impugná-la, que apresente a sua própria.

Com efeito, lê-se no art. 640º, n 1 do C.P.C. que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (art. 640º, nº 2, al. a) citado).

Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada

Esta deverá consubstanciar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1).

Por outras palavras, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, p. 595, com bold apócrifo).
Assim, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recuso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228, com bold apócrifo).

As exigências do art. 640º, nº 1 do C.P.C. vêm «na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciadas à luz de um critério de rigor enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129, com bold apócrifo).

Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

Compreende-se agora melhor o dever cometido ao Tribunal da Relação de, perante «decisão proferida sobre algum facto essencial» que não esteja «devidamente fundamentada», «determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, a fim de preencher essa falta com base nas gravações efectuadas ou através de repetição da produção de prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto» (António Santos Abantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 244).
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4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

4.2.1. Concretizando, compulsada a sentença de mérito proferida nos autos, após a realização da audiência final (com prestação de declarações de parte por dois co-Executados e inquirição de cinco testemunhas), verifica-se que a mesma omitiu completamente qualquer discriminação dos factos provados e não provados, para alicerçar o seu posterior juízo de verificação nos autos da dita «exceção da autoridade do caso julgado».

Com efeito, logo após o relatório respectivo, encontra-se a explicitação do dito instituto, seguindo-se a subsunção do caso dos autos ao mesmo, e concluindo depois pela sua procedência, sem que em parte alguma - nomeadamente, prévia - se identifiquem os factos (provados e não provados) que resultaram da audiência final, relevantes para aquele fim.

Verifica-se ainda que da mesma sentença (e necessariamente, dir-se-á, face à posição assumida antes pelo Tribunal a quo) não consta igualmente, ainda que de forma perfunctória, qualquer apreciação crítica da prova produzida, nomeadamente a que permitisse justificar a aplicação do direito ao caso dos autos (atentos os contornos deste apurados).

Logo, tem-se como verificada a nulidade dessa decisão, consistentes na falta de especificação dos respectivos fundamentos de facto (isto é, não só a discriminação dos factos provados e não provados, como a apreciação crítica da prova produzida que houvesse permitido o seu apuramento), prevista na al. b), do nº 1, do art. 615º do C.P.C..

Contudo, a mesma não foi arguida pela Embargada/Exequente (J. V., S.A.), no recurso de apelação que interpôs da dita sentença, considerando este Tribunal da Relação que tal vício não é de conhecimento oficioso (atento o disposto nos arts. 614º, nº 1, 615º, nº 2 e nº 4, e 617º, nº 1 e nº 6, todos do C.P.C.).
(Aparentemente em sentido contrário, isto é admitindo o conhecimento oficioso de uma tal nulidade, quando «quando haja controversão de factos julgados ou a julgar, para que se apreciar a aplicabilidade dos critérios substantivos constantes da norma ou normas jurídicas elegíveis», Ac. da RC, de 19.02.2013, Virgílio Mateus, Processo nº 618/12.9TBTNV.C1.)
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4.2.2. Dir-se-á, porém, que não obstante essa falta de oportuna arguição da nulidade incorrida pela sentença em apreciação (por vício pertinente à sua elaboração e estruturação), consubstanciando a dita omissão simultaneamente um outro e distinto vício (desta feita, próprio do conteúdo da própria decisão de facto), pode o mesmo - nesta segunda vertente - ser apreciado oficiosamente por este Tribunal da Relação, ao abrigo do distinto regime previsto no art. 662º, nº 2, als. c) e d) do C.P.C..
(Aparentemente no mesmo sentido - uma vez que então se pronunciava sobre o art. 712º do anterior C.P.C. -, Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2ª edição aumentada e reformulada, Almedina, Outubro de 2009, p, 227.)

Com efeito, se a lei, no art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C., permite a anulação oficiosa da decisão proferida na 1ª Instância quando a decisão de facto respectiva seja deficiente, por maioria de razão tê-lo-á que permitir quando a mesma seja absolutamente omissa, por esta omissão total ser o grau máximo daquela deficiência.

Assim, na expressão «deficiência» caberá necessariamente, não só a falta de decisão sobre um facto essencial, como a falta absoluta de decisão sobre todos os factos essenciais (conforme Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV Volume, Coimbra Editora, Limitada, p. 553; ou Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, p. 611. Na jurisprudência, Ac. da RL, de 27.10.2009, Maria José Simões, Processo nº 3084/08.0YXLSB-A.L1-1; ou Ac. da RC, de 19.02.2013, Virgílio Mateus, Processo nº 618/12.9TBTNV.C1, onde se lê que, «se a lei concede tal poder nos casos em que a decisão sobre a matéria de facto é meramente deficiente ou escassa para decisão de todos os pontos controvertidos da questão de direito, por maioria de razão também o concede quando se verifique uma total ausência da fixação da matéria de facto na sentença»).

Compreende-se que assim seja (como cabalmente o justifica o caso dos autos), já que «se houver uma total ausência de decisão sobre a matéria de facto, não pode este Tribunal exercer o poder censório, não só quanto à matéria de facto provada, como também sobre o direito aplicado e aplicável».

Dir-se-á mesmo que não será só o Tribunal de Recurso que ficará impedido de exercer a sua função de sindicância, outro tanto sucedendo relativamente a pretendido recorrente, já que «tal procedimento também impede as partes» de cumprirem o ónus de impugnação que lhes está cometido pelo art. 640º, nº 1, als. a) e b) do C.P.C., incluindo «de cabalmente argumentarem na defesa das suas posições (…) porquanto desconhecem a convicção do Mmº Juiz a quo, restando-lhes supor que factos terá considerado como provados para concluir como o fez» (Ac. da RL, de 27.10.2009, Maria José Simões, Processo nº 3084/08.0YXLSB-A.L1-1, com bold apócrifo).

Acresce, no caso dos autos, que também o art. 662º, nº 2, al. d), do C.P.C. sempre imporia que este Tribunal da Relação se abstivesse, neste momento, de julgar o remanescente objecto do recurso de apelação interposto da sentença de mérito pela Embargada/Exequente (J. V., S.A.), face ao total desconhecimento da apreciação crítica da prova produzida feita pelo Tribunal a quo.

Concluindo, impõe-se anular oficiosamente a sentença proferida pelo Tribunal a quo, para que ele, face nomeadamente à prova produzida em audiência de julgamento, a fundamente de facto (conforme imposto pelo art. 607º, nº 3, nº 4 e nº 5 do C.P.C.), já que cabe a este Tribunal da Relação sindicar esse juízo de facto que realize, e não substituir-se-lhe no mesmo (produzindo-o de forma inédita e integral).

Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela anulação da sentença proferida pela 1ª instância, por forma a que seja colmatada a sua actual e absoluta falta de fundamentação de facto.
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Fica, do mesmo passo, prejudicado o conhecimento do remanescente objecto do recurso interposto da dita sentença, bem como do posterior despacho que condenou a Embargada/Exequente (J. V., S.A.) como litigante de má fé (este último afectado na sua subsistência por aquela prévia anulação), o que aqui se declara, nos termos do art. 608º, nº 2 do C.P.C., aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma.
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V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Embargado/Executado (F. C.), e em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto da sentença final pela Embargada/Exequente (J. V., S.A.) e, em consequência, em:

· confirmar integralmente o despacho saneador, na parte em que julgou improcedente a excepção dilatória de caso julgado, arguida pelo Embargado/Executado (F. C.):

· anular a sentença recorrida, por forma a que seja fundamentada de facto, conforme imposto pelo art. 607º, nº 3, nº 4 e nº 5 do C.P.C.;

· declarar prejudicado o conhecimento, quer do remanescente objecto do recurso de apelação interposto da sentença final pela Embargada/Exequente (J. V., S.A.), quer do recurso de apelação interposto por ela do despacho que a condenou como litigante de má fé.
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Custas de ambas as apelações conhecidas pelo Embargante/Executado (F. C.) (art. 527º, nº 1 do C.P.C.).
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Guimarães, 17 de Maio de 2018.

Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Martins Moreira Dias
António José Saúde Barroca Penha