Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6354/2008-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: PROCESSO ABREVIADO
CASO JULGADO
JUIZ NATURAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1 - Não mostram os autos que qualquer sujeito processual tenha impugnado tal despacho do Juiz do TPIC, podendo tê-lo feito. E como consequência dessa não impugnação decorre que tal despacho transitou em julgado pelo que a questão ali tratada – a forma do processo – ficou decidida em termos definitivos.
2 - Malgrado tal questão se encontrar definitivamente assente, o despacho ora recorrido ao reassumir essa querela divergindo na qualificação do vício como nulidade insanável tido no despacho transitado, entendeu tratar-se de uma mera irregularidade, apreciando a mesma nos moldes que ali constam com o retomar daquela questão, embora tratando-a de um modo diferente, só podemos concluir que o despacho recorrido, por violar o caso julgado formal e o disposto no art. 672° n. ° 1 CPC, aplicável ex vi art.° 4° CPP, é nulo nessa parte.
3-E na parte relativa à ali apreciada questão da aplicação da nova lei processual, na medida em que também a mesma já havia sido apreciada no despacho transitado em julgado e que entendeu que o prazo de 90 dias para a realização do julgamento, p. e p. no art.° 391°-D do CPP, era de aplicação imediata, também o despacho recorrido se encontra afectado de nulidade.
4-O despacho recorrido é, pois, violador do caso julgado sendo que o autor desse despacho não tem poderes para modificar a anterior decisão do TPIC já transitada porque dentro da mesma hierarquia de tribunais se encontram ambos inseridos.
5- Daqui decorre que, no momento em que foi proferido o despacho que remeteu os autos para a forma comum, o autor do mesmo – Juiz de Pequena Instância Criminal – tinha a plena jurisdição sobre tal processo e competência para decidir sobre a aplicabilidade da nova lei, competência essa que, como já acima se mencionou não resultava dessa nova lei. Esta nova lei não foi invocada nem para a concretização do juiz que deveria julgar o processo, já sob a forma comum, nem para a concretização da competência do JPIC para decidir a manutenção da forma especial abreviada, o reenvio para a forma comum e o procedimento posterior a tal reenvio com a consequente distribuição pelos juízos criminais.
6-Podemos, consequentemente, concluir que não ocorreu qualquer violação do princípio do juiz natural ou legal em consequência do despacho do M.mo JPIC.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:


I – Relatório

1. Com referência ao NUIPC nº 154/06.2SNLSB, na 1ª Secção do 3º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, em processo comum com intervenção do tribunal singular, por despacho judicial, proferido em 23 de Abril de 2008 e constante dos autos de fls. 67 a 74, foi decidido declarar a incompetência daquele Juízo Criminal, em razão da forma de processo, para proceder ao julgamento dos autos, determinando a remessa dos mesmos ao Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa por ser o competente para tal julgamento.
É do seguinte teor o aludido despacho:
“Nos presentes autos, na sequência da dedução por parte do Ministério Público de acusação em processo abreviado, remetidos os mesmos a juízo foi proferido o despacho a que alude o artigo 391º-D do CPP na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto, no qual expressamente vem declarada a competência do tribunal – cf. fls. 25/26 e 37/38.
Com efeito, nos termos do artigo 102º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) “Compete aos juízos de pequena instância criminal preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo sumário, abreviado e sumaríssimo” - cf. nº 1.
Em momento subsequente ao despacho exarado a fls. 37/38 entraram em vigor as alterações introduzidas pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto no Código de Processo Penal, as quais motivaram o despacho de fls. 47 a 49 que conclui nos seguintes termos “(…) tendo decorrido 90 dias sobre a dedução da acusação sem que se tenha iniciado a audiência de julgamento, empregaríamos, a partir desse momento, as normas de processo abreviado fora dos casos previstos na lei, cometendo deste modo a nulidade insanável prevista na alínea f) do artigo 119º. As nulidades insanáveis devem ser oficiosamente declaradas – vide proémio do referido artigo. Por conseguinte, declaro a nulidade do processado, salvaguardando-se os seus termos até à acusação, por força do disposto nos artº 118º, nº 1, 119º, alínea f), 122º e 391º - D, todos do Código de Processo Penal (…). Remeta os autos ao Ministério Público ”.
Tal despacho não mereceu qualquer reacção por parte dos sujeitos processuais, aspecto a que certamente não será totalmente alheia a circunstância de, por via da posição nele defendida, muitas centenas talvez mesmo mais de um milhar de processos até então autuados e processados com a forma especial abreviada, transitarem do Tribunal onde se encontravam pendentes (TPIC de Lisboa) para os Juízos Criminais de Lisboa, porquanto a estes cabe o julgamento dos processos a que corresponda a forma comum (singular). Dito de outra forma, para o que consideramos - com todo o respeito - o absurdo resultado a que se chegou, não excluímos que critérios, designadamente de gestão, tenham contribuído para o desfecho.
Por comodidade de análise abordaremos em separado os aspectos que nos parecem pertinentes à decisão que agora nos cumpre tomar, a saber:
a) A consequência da não observância do prazo legalmente previsto para o início da audiência de julgamento em processo abreviado (cf. artigo 391º-D do CPP);
b) A aplicação da lei processual penal no tempo;
c) O princípio do juiz natural ou legal e as consequências da respectiva violação.
a) Quanto à consequência da não observância do prazo legalmente previsto para o inicio da audiência de julgamento em processo abreviado.
No despacho exarado a fls. 47 a 49, aliás com engenho e arte, defende-se a tese de que o prazo de 90 dias, a contar da dedução da acusação, para o início da audiência de julgamento, previsto no artigo 391º-D do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto, constitui um requisito desta forma de processo especial (abreviado) que não sendo observado conduz à nulidade insanável decorrente do “(…) emprego de forma de processo especial fora dos casos previsto na lei”.
Do confronto entre as normas que disciplinam a forma de processo abreviado, na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto e na sua actual redacção, em linhas gerais conclui-se que foi propósito do legislador: vincular ao uso desta forma processual sempre que esteja em causa determinado tipo de criminalidade e verificados os respectivos requisitos; concretizar, ainda que de forma exemplificativa, o que sejam provas simples e evidentes; conferir uma maior garantia de celeridade a esta forma de processo, suprimindo a faculdade até então prevista no artigo 391º - C (debate instrutório), estabelecendo um prazo para o inicio do julgamento e limitando expressamente o direito de recorrer à sentença ou ao despacho que puser termo ao processo.
Dito isto, vejamos então o que se passa relativamente aos requisitos do processo especial abreviado, uma vez que nos mesmos reside o ponto de partida da divergência, embora, como veremos, a solução que vier a ser encontrada não assuma no caso em apreço relevância decisiva.
À luz do anterior regime constituíam requisitos ou pressupostos do processo abreviado: tratar-se de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos, sem prejuízo do disposto no artigo 16º, nº 3 do CPP; existência de provas simples e evidentes de que resultassem indícios evidentes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente; não terem decorrido até à acusação mais de 90 dias desde a data em que o crime foi cometido – cf. artigo 391º-A.
Na actual redacção do CPP surgem indiscutivelmente como requisitos/pressupostos desta forma processual: tratar-se de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos (sem prejuízo do disposto no nº 2); a existência de provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, tendo sido agora concretizado, ainda que de forma não taxativa, o que se tem por provas simples e evidentes – cf. nº 3.
Já no que respeita ao prazo para deduzir acusação, enquanto requisito/pressuposto da forma de processo abreviado, a actual redacção do CPP permite a dúvida. Com efeito, deslocou-se a menção quanto ao referido prazo do artigo 391º-A, com a epígrafe (reportada ao processo abreviado) “Quando tem lugar” para o artigo 391º-B do mesmo diploma legal sob a epigrafe “Acusação, arquivamento e suspensão do processo”, sendo certo que na anterior redacção a menção relativa ao prazo para dedução da acusação integrava o artigo 391º-A, cuja epigrafe “Quando tem lugar” se manteve. É verdade que ao concretizar o que sejam provas simples e evidentes, para efeito do recurso ao processo abreviado, o legislador de forma exemplificativa e em alternativa dispõe, no preceito encimado pela epígrafe “Quando tem lugar” que tal ocorrerá quando “A prova for essencialmente documental e possa ser recolhida no prazo previsto para a dedução da acusação” – cf. al) b do nº 3 do artigo 391º - A do CPP. Mas de tal não decorre, quanto a nós, que uma vez ultrapassado o prazo referido no artigo 391º-B, previsto para a dedução da acusação (termo utilizado pelo legislador na al. b) do nº 3 do artigo 391º-A), fique irremediavelmente comprometido o uso de tal forma processual.
A eventual eliminação, como requisito/pressuposto do processo abreviado, do prazo de 90 dias, contados da aquisição da notícia do crime (tratando-se de crime público) ou da apresentação da queixa (nos restantes casos), para dedução de acusação não encerra, só por si, qualquer contradição com o binómio preferência/celeridade votadas ao processo abreviado. Não se exclui pois, a hipótese de ao estipular o prazo em referência, o legislador ter pretendido estabelecer um limite temporal até ao termo do qual, mostrando-se presentes os requisitos/pressupostos do processo abreviado, seja por via de regra exigível que a acusação seja deduzida, com as eventuais consequências designadamente ao nível disciplinar, no que respeita à respectiva inobservância. Esta posição pode até potenciar um maior recurso ao processo abreviado e nessa medida conferir maior eficácia a esta forma processual, a qual pelo facto de a acusação ser deduzida 91 dias após a aquisição da notícia do crime não se mostraria irremediavelmente comprometida. Se aliarmos à celeridade a eficácia e a responsabilidade, relacionando-as talvez se conclua que o aludido prazo dos 90 dias para deduzir acusação deixou de ser requisito do processo abreviado.
Mas, se ainda admitimos a dúvida relativamente à caracterização do prazo de 90 dias para deduzir acusação, como requisito ou não do processo abreviado, já não concebemos que o prazo previsto no artigo 391º - D, estabelecido ex novo na actual versão do CPP para o inicio da audiência de julgamento em processo abreviado, constitua um requisito de tal forma processual, cuja inobservância precluda o respectivo uso.
A nosso ver o prazo de 90 dias contado da dedução da acusação, para o início da audiência de julgamento em processo abreviado, não representa mais do que um comando normativo que dá corpo ao pensamento legislativo quanto à razoabilidade de um prazo até ao termo do qual, verificando-se os requisitos desta forma processual, se inicie o julgamento, cuja inobservância será susceptível de provocar consequências nomeadamente ao nível disciplinar. Digamos que o legislador quis definir um prazo, que considera o razoável, para o início do julgamento, enquadrando assim esta forma processual com mais uma meta que deve ser atingida em nome de uma maior eficácia do sistema.
Não deixa de ser curioso notar que o artigo 312º do CPP, na anterior e actual redacção, define um prazo até ao qual a audiência de julgamento, em processo comum, se há-de iniciar, o mesmo sucedendo relativamente ao processo sumário, embora neste consoante as circunstâncias se prevejam para o efeito vários prazos (artigo 387º do CPP). E enquanto ao nível das consequências da respectiva inobservância nada vem expresso, no que concerne ao processo comum, já quanto à forma sumária o artigo 390º, al) b prevê expressamente a remessa dos autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual, o que não sucede no processo abreviado. Aliás, tendo em conta o disposto no artigo 398º relativamente ao processo sumaríssimo, o processo abreviado é mesmo a única forma processual (especial) onde não vem prevista o reenvio do processo para outra forma que lhe caiba.
Defender a tese de que o prazo de 90 dias contados da dedução da acusação, previsto para o início da audiência em processo abreviado é um requisito de tal forma processual, conduziria a resultados inaceitáveis a todos os níveis desde logo à incerteza do tribunal competente para a realização do julgamento, uma vez que fixada a respectiva competência sem norma expressa que o consentisse, à revelia dos princípios poderia ver-lhe subtraído o julgamento da causa com resultados inconvenientes daí decorrentes para a tão proclamada celeridade e eficácia processual.
O caso em apreço é bem elucidativo do que se vem referindo.
Uma acusação deduzida em processo abreviado (em 21.11.2006), remetida à fase de julgamento foi objecto despacho de recebimento para julgamento em processo abreviado (em 9.7.2007). Posteriormente, por impossibilidade de iniciar o julgamento no aludido prazo de 90 dias contados da acusação (o julgamento foi marcado para os dias 3.11.2008 e 5.11.2008), considerando a observância do prazo previsto no artigo 391º-D requisito para o uso da forma abreviada, é declarada a nulidade resultante do emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei e o processo vem a ser remetido ao Ministério Público que o volta a acusar sob a forma comum (em 13.2.2008).
Do ponto de vista da celeridade e eficácia do sistema dispensamo-nos de comentar.
Na perspectiva dos princípios, para além da incerteza, inadmissível por não consentida, quanto à competência do tribunal, a nulidade resultante do erro na forma do processo decorrente do emprego fora dos casos previstos na lei, da forma de processo especial (artigo 119º, al. f) do CPP), constituiria uma possibilidade sempre em aberto, susceptível de se projectar retroactivamente, uma vez que o recurso ao processo especial, justificado aquando da remessa dos autos a juízo e fixada a competência, poderia emergir de forma superveniente, por inobservância do prazo previsto para a audiência de julgamento.
Em conclusão, defende-se que a inobservância do prazo previsto no artigo 391º-D do CPP constitui mera irregularidade (cf. no mesmo sentido Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 16ª edição, em anotação ao artigo 391º-D e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, em anotação ao citado artigo).

b) A aplicação da lei processual penal no tempo

Sem conceder, suponhamos agora que o início da audiência de julgamento no prazo de 90 dias, contados da acusação, passou a constituir (a partir das alterações introduzidas no CPP pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto) um requisito/pressuposto da forma do processo abreviado.

Sobre a Aplicação da lei processual penal no tempo dispõe o artigo 5º do Código de Processo Penal:

1. A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (sublinhado nosso).
2. A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:
a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa, ou
b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo (sublinhado nosso).

O despacho em referência (fls. 47 a 49), fazendo a aplicação imediata, segundo uma determinada interpretação (sobre cuja bondade já tivemos oportunidade de nos pronunciar) da nova lei, atingiu (retroactivamente) a validade dos actos realizados na vigência da lei anterior, destruindo-os, o que se afigura insustentável, face ao teor do nº 1 do citado preceito, corroborado pela alínea b) do seu nº 2.

Como refere Castanheira Neves “Os actos e situações processuais praticados e verificados no domínio da lei anterior terão o valor que essa lei lhes atribuir. Só que sendo eles actos e situações de um “processo” – a desenvolver, como tal, num dinamismo de pressuposto para consequência -, decerto que muitas vezes o respeito pelo valor desses actos e situações implicará o ter de aceitar-se o seu intencional desenvolvimento processual. E implicá-lo-á sempre que a nova regulamentação desses desenvolvimentos (os actuais) não puder integrar-se unitariamente com o sentido e valor dos actos seus pressupostos, se houver entre aquela nova regulamentação e este valor uma contradição normativa. Nesses casos o respeito pelo valor dos actos anteriores justifica uma excepção: o desenvolvimento processual desses actos continuará a ser regulamentado pela lei anterior. A menos que para a intenção de verdade e Justiça, porque esteja dominada a nova lei seja intolerável a persistência da lei anterior”- cf. Sumários de Processo Penal, pág. 65 e ss.

Donde resulta que defendendo a posição supra referida (no sentido de que o início no prazo de 90 dias, contados da acusação, da audiência de julgamento em processo abreviado constitui um requisito desta forma processual), a qual não sufragamos, se impunha em nome da salvaguarda da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior e como forma de garantir a harmonia e unidade dos vários actos do processo, o afastamento liminar da aplicação da lei nova (cf. artigo 5º, nº 1 e 2, al) b do CPP), o que em violação dos comandos normativos não ocorreu no caso em apreço.

c) O principio do juiz natural ou legal; consequência da respectiva violação

A competência, pressuposto dos pressupostos processuais, de acordo com o artigo 22º da LOFTJ, fixa-se no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente – cf. o nº 1.
São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa – cf. o nº 2.
Nos termos do artigo 32º, nº 9 da Constituição da República Portuguesa Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior. “Tal mandamento constitucional consagra no ordenamento jurídico português a regra máxima de que nenhuma causa pode ser deslocada “transit judici” do tribunal competente para outro, com o simples objectivo de tornar firme e estável uma garantia para os cidadãos, na medida em que lhes dá a caução e segurança de que o seu processo será decidido pelo tribunal que, segundo a lei processual, lhe foi dada competência para o julgar, libertando-o do temor de ser surpreendido por uma providência do Estado que desvie o processo do tribunal competente para o sujeitar à cognição de outro qualquer. Sanciona-se, deste modo, o velho e clássico principio do juiz natural ou legal, autenticado universalmente, em todos os países civilizados (…)” – cf. Acórdão do STJ de 30.6.1993, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf.
Na doutrina, no sentido de que o princípio do juiz legal ou natural se traduz na proibição “ad hoc” de um juízo para apreciação de uma certa causa penal e na ideia da anterioridade da lei que fixa a competência relativamente à prática do facto veja-se Figueiredo Dias, in Revista Decana, Ano 111, pág. 83.
A proibição do desaforamento de processos, emanação do princípio do juiz natural, encontra ainda consagração no artigo 23º da LOFTJ ao prescrever que “Nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal competente para outro, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”.
A competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada pelas disposições do Código Processo Penal e, subsidiariamente, pelas leis de organização judiciária (cf. artigo 10º do Código de Processo Penal), sendo que no caso em apreço, nem à luz das primeiras nem por aplicação das segundas, ocorreu causa idónea a justificar o desaforamento.
É elucidativa a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, proferida em casos similares, no sentido da proibição do desaforamento. A título exemplificativo, podem ver-se:
a) O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.3.1996 “O direito processual penal é de aplicação imediata; Porém, a aplicação do mesmo já não terá lugar, quando a competência do Tribunal já foi fixada; A competência do Tribunal no domínio do processo penal, fixa-se com a prolação do despacho a receber a acusação (…)”- cf. http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
b) O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.7.1996 “Com a entrada em vigor do DL nº 317/95, de 28.11 (de aplicação imediata), o tribunal singular passou a ser competente para conhecer de processos relativos a crimes cuja moldura penal não ultrapasse os 5 anos de prisão, mesmo que esses processos estejam já pendentes à data da entrada em vigor daquele diploma (…). Tal conclusão não é afastada pela circunstância de, por alteração da lei penal, entretanto ocorrida, o crime ter passado a ser punível com pena de dois a dez anos de prisão, por isso que, uma vez instaurado o processo no tribunal competente, não pode dai ser deslocado, subtraído ou removido, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” - cf. http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf.
c) O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.11.2004 “Constitui direito fundamental dos cidadãos – sendo uma das garantias de processo penal consagradas na Constituição da República – o direito a que o processo seja julgado por um tribunal definido como competente por lei anterior, sem possibilidade de afastamento do respectivo juiz – principio do juiz natural”- cf. http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf.
d) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.1988 “O princípio do juiz natural leva a que se tenha por competente para conhecer de um delito o tribunal que o era, à data da consumação. A própria Constituição proíbe o desaforamento. (…) –  cf. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf.

No caso em apreço a competência do tribunal foi fixada, expressamente declarada, e bem, no despacho exarado a fls. 37/38. Posteriormente, à revelia de todos os princípios, primeiro através de uma interpretação, quanto a nós não consentida, da natureza do prazo previsto no artigo 391º - D do CPP, depois - mais grave - por intermédio da aplicação imediata da lei processual penal, atingindo (retroactivamente) a validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (mormente do que fixou a competência do tribunal), em clara violação do disposto no artigo 5º, nº 1 e 2, al) b do CPP, provocou um verdadeiro desaforamento do processo, ilegal desde logo por imperativo constitucional (artigo 32º, nº 9 da CRP), intolerável à luz de qualquer critério técnico, já que eventuais motivações de gestão são, obviamente, inidóneas a provocar tal resultado.
Admitir o contrário seria abrir o caminho para o desaforamento, sujeito a contingência facilmente manipulável, bastando para tanto inviabilizar o início da audiência de julgamento até ao limite do prazo dos 90 dias, contados da dedução da acusação.
E pese embora sufragarmos o entendimento que a anterioridade da lei que fixa a competência pode suscitar dificuldades, não parecendo razoável uma interpretação do princípio do juiz natural que sistematicamente constitua obstáculo a reformas da organização judiciária (vg. os casos de extinção ou criação de tribunais, com alteração das regras da competência), no caso concreto, não estando em causa a criação ou a extinção de tribunais, tão pouco a alteração das regras da competência, ainda que se defendesse a tese plasmada no despacho de fls. 47 a 49 (o que não sucede) e ainda que não tivesse ocorrido (como ocorreu) violação das normas respeitantes à aplicação no tempo da lei processual penal, por força da volatilidade que tal interpretação é susceptível de projectar nos princípios inerentes à atribuição e fixação da competência do tribunal – que, uma vez fixada e declarada, no momento adequado, poderia vir a ser (a posteriori) sistematicamente posta em causa - sempre haveria violação do principio constitucional do juiz natural.

Em conclusão:

a) O despacho proferido a fls. 47 a 49 ao configurar o prazo previsto no artigo 391º-D do CPP, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto, como requisito da forma especial do processo abreviado, fez errada interpretação da lei;

b) Ainda que assim não seja entendido, o que não se concede, o despacho de fls. 47 a 49 violou as normas de aplicação no tempo da lei processual penal com o que atingiu (retroactivamente) a validade dos actos realizados na vigência da lei anterior, com quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo (artigo 5º, nº 1 e 2, al) b do CPP);

c) E isto porque decidindo (contra legem) pela impossibilidade da tramitação do processo mediante a forma especial abreviada, declarando a nulidade de todo o processado até à acusação com a consequente remessa dos autos ao Ministério Público para - excluído que estava o recurso a qualquer forma de processo especial - obviamente seguirem a forma comum, colocou em crise a competência do tribunal, anteriormente fixada – cf. despacho de fls. 37 a 38;

d) Por via do que violou as normas e princípios gerais concernentes à competência material e funcional do tribunal, mormente o princípio constitucional do juiz natural, em frontal desrespeito do disposto nos artigos 32º, nº 9 da CRP, 10º do CPP, 22º e 23º da LOFTJ;

e) Na medida em que em violação das ditas normas tende a um desaforamento (não consentido) do processo (susceptível de introduzir uma inadmissível e sempre aproveitável volatilidade no pressuposto da competência - o que no caso é manifesto - com vocação para, a posteriori, vir a ser sistematicamente posta em causa), sendo certo que não ocorreu qualquer caso de criação ou extinção de tribunais, com alteração das regras da competência;

f) Violação, essa, que acarreta a nulidade insanável do despacho de fls. 47 a 49, ele próprio nulo (artigo 119º, al) e do CPP), com a consequente invalidade de todos os actos processuais subsequentes (artigo 122º, nº 1 e 2 do CPP);

g) E bem assim a incompetência material/funcional deste tribunal para proceder ao julgamento, o que se declara, determinando, após transito em julgado deste despacho, a remessa dos autos ao Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, por ser para o efeito o competente (artigos 32º, nº 9 da CRP, 22º, 23º e 102º da LOFTJ, 10º, 32º e 33º do CPP).” (fim de transcrição).
2. Inconformado com tal decisão dela veio recorrer o Ministério Público, apresentando motivação (fls. 90 a 97) com as seguintes conclusões:
1ª - Decidindo o JPIC a aplicação da disposição do artigo 391°-D do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela revisão de 2007, em processo que estava em curso sob a forma abreviada, à data do início de vigência dessa disposição, não tendo sido interposto recurso dessa decisão, constituiu-se caso julgado sobre essa questão;
2ª - Caso julgado que abrange a qualificação do vício de incumprimento do prazo de 90 dias aí previsto como nulidade insanável;
3ª - Decidindo o JPIC, em consequência desse vício, o reenvio do
processo para a forma comum e não sendo interposto recurso desta decisão, constituiu-se caso julgado impeditivo do julgamento na forma abreviada;

4ª - A decisão de aplicação da nova disposição do artigo 391°-D não ofende o princípio do juiz legal ou natural porque a nova lei não interfere nos critérios legais de determinação de competência para cada uma das formas de processo;
5ª - Devendo o processo seguir a forma comum, a competência para a fase de julgamento pertence aos Juízos Criminais, por aplicação do artigo 100° da LOFTJ;
6ª - A decisão recorrida, por erro de apreciação, violou o caso julgado formal constituído pela decisão do JPIC, não sujeita a recurso e já transitada:
a. - Sobre a aplicabilidade do prazo de 90 dias estabelecido pela nova lei - artigo 391-D,  CPP - aos processos abreviados pendentes à data do início da sua vigência;
 b. - Sobre a natureza do vício de incumprimento desse prazo;
c. - Sobre a fixação da forma comum do processo;
7ª - A violação do caso julgado abarca a violação, por omissão de aplicação, da disposição do artigo 672°, n°. l, do CPC, aplicável subsidiariamente em processo penal por força do artigo 4° do CPP;
8ª - E, ao declarar-se incompetente para o julgamento do processo, que deve seguir a forma comum, com fundamento nos segmentos de decisão violadores do caso julgado e com fundamento em inexistente violação do princípio do juiz legal, violou a disposição estabelecida no citado artigo 100° da LOFTJ.
9ª - Nestes termos, pede-se o provimento do presente recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida e substituição por outra que, nos termos dos artigos 311° e 312°, do CPP, designe data para realização do julgamento em processo comum.” (fim de transcrição).

3. Não se verificou qualquer resposta ao recurso.

4. O M.mo Juiz a quo admitiu o recurso e sustentou o despacho recorrido, mantendo-o (vd. fls. 87/88).

5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer a fls. 93, pronunciando-se no sentido da procedência do recurso interposto.

6. Foi cumprido o preceituado no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo havido resposta.

7. Efectuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

8. Foram colhidos os vistos e, em conferência, cumpre apreciar.


II – Fundamentação

À primeira vista o tema decidendum parece tratar-se de uma questão de competência ou conflito de competências, mas assim não é.
A questão que aqui se levanta é a da natureza e oportunidade do processo abreviado. Ou seja, qual a utilidade e finalidade do mesmo e ainda a questão da força de caso julgado do despacho proferido no TPIC.
Recorde-se que o legislador entendeu criar uma figura mais célere que a do processo comum e mais metódica que a do processo sumário tendo em conta a natureza do crime em causa e ainda a necessidade de resposta pronta por parte da Justiça e, portanto, dos Tribunais.
Dito isto, atente-se que o objecto do presente recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, diz respeito às seguintes questões:
- Se o despacho recorrido viola o caso julgado decorrente do despacho do M.mo Juiz da Pequena Instância Criminal
e
- se a decisão recorrida fez errada aplicação do principio do juiz natural.
Estas questões e situação processual foram já objecto de várias decisões neste Tribunal da Relação, mormente as proferidas nos recursos nº 5748/08 da 3ª Secção em 2.07.2008 em que foi relator o Exmo. Desembargador Rui Gonçalves (inédita e que com a devida vénia seguiremos de muito perto pela clareza do tratamento dado às questões) e n.° 6343/08 datada de 25.07.2008 (embora com argumentos mais sucintos até porque se tratou de decisão sumária) em que foi relator o Exmo. Desembargador Carlos Almeida, também  daquela 3ª Secção. No mesmo sentido têm sido proferidas decisões, seja em decisão sumária seja por acórdão em conferência, nesta da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em processos em que foram relatores os Exmºs Desembargadores Cid Geraldo, Adelina Barradas de Oliveira, Rui Rangel e ainda os ora 1º e 2º signatários (vd., entre outros, os procºs nºs 7375/08, 7261/08, 6355/08, 7898/08, 7407/08, 7871/08, 8072/08 e 6376/08, estando este último, proferido em 11.09.2008, publicado in www.dgsi.pt).
A declaração de incompetência tomada no despacho, com a consequente ordem de remessa dos autos ao Tribunal de Pequena Instância Criminal que considerou competente para o julgamento, invoca três fundamentos:
A existência de divergência quanto à natureza do vício que foi invocado no despacho do JPIC — que qualificou de nulidade insanável a não observância do prazo de 90 dias para a realização do julgamento do processo originariamente classificado de processo abreviado, prazo aquele tido como requisito daquela forma especial de processo;
Errada aplicação do principio da aplicação da lei processual no tempo ao atingir retroactivamente a validade dos actos realizados na vigência de lei anterior;
Violação do princípio do juiz natural — ao determinar a impossibilidade de continuação da tramitação dos autos segundo a forma especial, reconduzindo-o por essa via à forma comum, cair-se-ia num desaforamento do processo sem que isso decorresse de uma alteração por criação ou extinção do tribunal com alteração das regras de competência material.
Sem nos estendermos sobre o instituto do caso em processo penal, fixaremos apenas como linha mestra, na esteira de Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado, III, 92 -93, que "o caso julgado exerce duas funções: a) uma função positiva; e b) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade (...) a função negativa exerce-se quando através da excepção do caso julgado. Mas quer se trate da função positiva, quer da função negativa, são sempre necessárias as três identidades."
Em suma, uma vez proferida decisão sobre uma concreta questão processual, está esgotado o poder jurisdicional do Julgador, a esse respeito, no processo em causa, que se encontra assim impedido de a alterar – nisto se consubstancia o caso julgado formal previsto no art.° 672° do CPC.
Revertendo ao caso concreto:
Resulta dos autos que o M.° P.° havia exercido a acção penal requerendo o julgamento com a inerente dedução de acusação contra o arguido em Processo Especial Abreviado.
Com a redacção introduzida ao Código de Processo Penal pela Lei 48/2007, de 29.08.2007, vigente desde 15.09.2007, o julgamento em processo abreviado passou a dever ter início no prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação (art.° 391°-D do CPP).
O M.mo Juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, exarou despacho em que, com fundamento no disposto no art.º 391°-D do CPP, que teve como imediatamente aplicável, e uma vez que se mostrava já ultrapassado aquele prazo de 90 dias, considerou verificada, por esse motivo, nulidade insanável [a da alínea f) do art.º 119° do CPP] e daí a impossibilidade de manutenção da forma especial que o processo vinha seguindo, devendo passar à forma comum, razão pela qual ordenou a remessa dos autos ao M°P°.
Não mostram os autos que qualquer sujeito processual tenha impugnado tal despacho do Juiz do TPIC, podendo tê-lo feito. E como consequência dessa não impugnação decorre que tal despacho transitou em julgado pelo que a questão ali tratada – a forma do processo – ficou decidida em termos definitivos.
Malgrado tal questão se encontrar definitivamente assente, o despacho ora recorrido ao reassumir essa querela divergindo na qualificação do vício como nulidade insanável tido no despacho transitado, entendeu tratar-se de uma mera irregularidade, apreciando a mesma nos moldes que ali constam com o retomar daquela questão, embora tratando-a de um modo diferente, só podemos concluir que o despacho recorrido, por violar o caso julgado formal e o disposto no art. 672° n. ° 1 CPC, aplicável ex vi art.° 4° CPP, é nulo nessa parte.
E na parte relativa à ali apreciada questão da aplicação da nova lei processual, na medida em que também a mesma já havia sido apreciada no despacho transitado em julgado e que entendeu que o prazo de 90 dias para a realização do julgamento, p. e p. no art.° 391°-D do CPP, era de aplicação imediata, também o despacho recorrido se encontra afectado de nulidade.
O despacho recorrido é, pois, violador do caso julgado sendo que o autor desse despacho não tem poderes para modificar a anterior decisão do TPIC já transitada porque dentro da mesma hierarquia de tribunais se encontram ambos inseridos.
O despacho do M.mo Juiz do TPIC, como acima se disse, esgotou a jurisdição relativamente às questões tratadas no mesmo – a aplicação da nova lei processual e o incumprimento do prazo processual para o julgamento constituir uma nulidade insanável e o reenvio do processo para a forma comum – em virtude da não interposição de qualquer recurso pelos sujeitos processuais pelo que a decisão, então e ali, tomada sobre aquelas questões tem força obrigatória dentro do processo, ficando impedida nova apreciação dessas questões dentro do processo – isto é a consequência natural do caso julgado formal a que se refere o artº 672° do CPC.
E nesta perspectiva mostra-se prejudicado o conhecimento por este tribunal superior das questões suscitadas pelo primeiro e segundo dos fundamentos vertidos no despacho recorrido.
Quanto à segunda das questões suscitadas no recurso – se a decisão recorrida fez errada aplicação do princípio do juiz natural – importa fazer uma primeira abordagem no enfoque constitucional desse princípio que se mostra vertido no art.° 32° nº 9 da CRP. A propósito deste princípio referem os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, 2007, pág. 525 e seguintes: "O princípio do juiz legal consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, proibindo o criação de tribunais ad hoc ou a atribuição da competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime. A escolha do tribunal competente deve resultar de critérios objectivos predeterminados e não de critérios subjectivos... " "Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em primeira instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais colectivos.
A doutrina costuma salientar que o princípio do juiz legal comporta várias dimensões fundamentais:
(a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais de uma forma o mais possível inequívoca;
(b) princípio da fixação da competência, o que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação de preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa;
(c) observância de determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial).
Do despacho recorrido resulta que o entendimento seguido pelo seu autor assenta na alteração da regra da competência por parte do M.mo JPIC ao aplicar a nova lei processual decorrente da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, embora, na verdade, o que os autos revelam é uma impossibilidade de efectivação do julgamento seguindo a forma especial abreviada, com a consequente remessa para os termos do processos comum como resultado da aplicação daquela nova lei.
Na lei penal adjectiva, a possibilidade de um determinado processo
seguir a forma especial, seja abreviada seja sumária e porque especial face à regra geral de jurisdição no processo comum, determina que, logo que se aquela se mostre inviável, forçoso será a sua tramitação como comum.
E nesta perspectiva, em virtude da organização judiciária vigente na Comarca de Lisboa, a nível de julgamento por tribunal singular, sempre o processo comum foi competência própria dos Juízos Criminais e os processos especiais (sumário ou abreviado) da competência dos Juízos de Pequena Instância Criminal. Por outro lado, a apreciação dos fundamentos e a decisão de remessa dos autos da forma de processo especial para a forma comum pertence ao tribunal que, no momento da decisão, tiver a jurisdição sobre tal processo. Tal situação verificava-se quer antes da alteração ao CPP pela Lei 48/2007 quer posteriormente à mesma.

Daqui decorre que, no momento em que foi proferido o despacho que remeteu os autos para a forma comum, o autor do mesmo – Juiz de Pequena Instância Criminal – tinha a plena jurisdição sobre tal processo e competência para decidir sobre a aplicabilidade da nova lei, competência essa que, como já acima se mencionou não resultava dessa nova lei. Esta nova lei não foi invocada nem para a concretização do juiz que deveria julgar o processo, já sob a forma comum, nem para a concretização da competência do JPIC para decidir a manutenção da forma especial abreviada, o reenvio para a forma comum e o procedimento posterior a tal reenvio com a consequente distribuição pelos juízos criminais.
Podemos, consequentemente, concluir que não ocorreu qualquer violação do princípio do juiz natural ou legal em consequência do despacho do M.mo JPIC.
Em suma, uma vez proferida decisão sobre uma concreta questão processual, está esgotado o poder jurisdicional do Julgador, a esse respeito, no processo em causa, que se encontra assim impedido de a alterar. Nisto se consubstancia o caso julgado formal previsto no art° 672° do CPC.
Deve entender-se pois o despacho recorrido ferido de nulidade por não ter poderes para modificar despacho já transitado em julgado.
Finalmente, dir-se-á que não se verifica nos presentes autos qualquer irregularidade que possa ser integrada nas disposições conjugadas dos artigos 118º nº 2 e 123º, ambos do Código de Processo Penal, já que a lei não impõe a dedução de nova acusação no caso de o processo abreviado ser remetido para outra forma, sendo certo que os factos imputados ao arguido constam da acusação proferida nos autos a fls. 25/26, de que o arguido foi notificado com as legais advertências.
Entendendo-se que não há necessidade de dedução de uma nova acusação, devendo a partir de agora seguir-se a forma do processo comum, bem como que a economia e celeridade processual cada vez mais se impõem e considerando-se o vício de incumprimento do prazo de 90 dias nulidade insanável há que ordenar o reenvio do processo para a forma comum – artº 100º da LOFTJ.
Assim sendo, e face à inevitabilidade verificada, outra solução não nos resta qual seja a de decidir dar provimento ao recurso interposto revogando-se o despacho recorrido, determinando-se a substituição do mesmo por outro que designe data para julgamento em processo comum, devendo aceitar o 2º Juízo Criminal de Lisboa a competência que agora lhe cabe.

III – Decisão

Por todo o exposto, acordam os Juízes desta 9ª Secção em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento do processo, ou seja, que, nos termos dos artigos 311º e 312º do CPP, receba a acusação proferida pelo Ministério Público contra o arguido (N) e designe data para realização do julgamento em processo comum, aceitando a competência que agora lhe cabe (ao 3º Juízo Criminal de Lisboa).
Não são devidas custas. Notifique. (Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal)
Lisboa, 23 de Outubro de 2008



               J. S. Calheiros da Gama


          Maria de Fátima Mata-Mouros