Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
253/21.0T8PBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PRAZO PARA A JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
O PRAZO A QUE SE ALUDE NO ARTIGO 423.º
N.º 3
DO CPC
TEM COMO REFERÊNCIA A EFECTIVA REALIZAÇÃO DO JULGAMENTO
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 610.º E 611.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 27.º, DO RCP
ARTIGOS 423.º; 547.º E 598.º, 2, DO CPC
Sumário: 1. Se o A., na fase dos articulados, não juntou aos autos documentação relevante para apreciar do mérito da ação, desconhecendo-se a razão dessa omissão, poderá ainda fazê-lo até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sem prejuízo das consequências decorrentes da sua atuação (art.º 423º, n.º 2 do CPC).
2. O referido prazo de 20 dias tem como referência a efetiva realização do julgamento, não relevando a (anterior) sucessiva marcação/remarcação de datas.
Decisão Texto Integral: Relator: Fonte ramos
Adjuntos: Rui Moura
                  Fernando Monteiro


                                                      *  
                 (…)


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            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

           I. Na ação declarativa comum movida por AA contra BB, e Outros (habilitados do primitivo Réu CC, e DD), na “audiência final” de 20.12.2023 foi proferido o seguinte despacho:

            «Para realização da presente audiência final[1], se designa desde já o dia 22 de janeiro de 2024, pelas 15 horas, neste tribunal, para prestação das declarações de parte e do depoimento de parte do autor, uma vez que não foi prescindida a referida prova.


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               No dia 31.11.2023[2], o autor veio requerer ao tribunal a junção de uma certidão judicial referente ao processo executivo a correr termos no Juízo de Execução ... sob o n.º 2238/07...., nos termos do art.º 423º, n.º 1 e 2 do CPC, os documentos relevantes para a boa decisão da causa devem ser juntos com os próprios articulados, ou até 20 dias antes da audiência final. / No caso vertente, o documento foi junto no dia anterior à audiência final que se encontrava designada, ou seja, em desrespeito pelo prazo de 20 dias exigido pelo último dos citados preceitos para a sua junção. Ainda assim, admite o art.º 423º, n.º 3 do CPC, que possam ser juntos documentos após o referido prazo, desde que a parte que os ofereça, forneça uma justificação no sentido de não ter conseguido apresentá-los dentro daquele limite de temporal ou quando a apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior. / A tal respeito, alegou somente o autor que, o seu ilustre mandatário apenas tinha constituído procuração dias antes da referida junção, no entanto, analisado o documento, verifica-se que, dizendo respeito a matéria que se encontra alegada na petição inicial, o mesmo poderia ter sido junto desde a data que o referido articulado deu entrada neste tribunal. / Posto isto não pode considerar-se que a apresentação tardia não é imputável ao apresentante, restando concluir não estarem reunidos os pressupostos do art.º 423º, n.º 3 do CPC para a sua junção. Não obstante e consagrando o princípio do inquisitório, dispõe o art.º 411º do CPC que o juiz deve "...ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer".  A jurisprudência vem neste sentido entendendo que do citado preceito emerge para o juiz um verdadeiro poder dever que se justifica, independentemente da vontade das partes na realização das diligências ou produção de meios de prova, bem como da tempestividade dessa iniciativa. / Verificado o pressuposto da admissibilidade, o juiz nos termos da lei tem o dever de agir. / No caso em apreço, efetivamente o documento diz respeito a factos que foram alegados na petição inicial, tendo sido aliás um dever que não foi devidamente cumprido pelo tribunal no sentido de junção da referida certidão, o que apenas se poderá compreender, por lapso, uma vez que foi ordenada a junção da outra ação a que se fez referência naquele articulado. / Portanto, consideram-se relevantes os documentos que agora foram juntos, apesar de extemporaneamente para a descoberta de verdade material e para a boa instrução e decisão da causa. / Assim, não obstante a extemporaneidade do requerimento, conclui-se estar indiciado o pressuposto da necessidade da admissibilidade deste meio de prova para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio. / Além disso não se poderá concluir que o autor tenha assumido uma conduta grosseira ou indesculpavelmente negligente, em violação do princípio da autorresponsabilidade das partes. / Por todo o exposto, será de admitir o documento junto naquele dia. / Notifique.»

Dizendo-se inconformada, a Ré BB apelou formulando as seguintes conclusões:[3]

           1ª - Os atos e factos retratados no documento que o A. pretende juntar são todos anteriores à propositura da ação, pelo que, atempadamente, podia e devia o A. ter obtido o documento e juntá-lo com a petição inicial (p. i.), para fazer prova do alegado crédito, em cumprimento do n.º 1 do art.º 423º do Código de Processo Civil (CPC) e do disposto no art.º 342º, n.º 1 do Código Civil (CC), de forma a permitir uma atempada definição da estratégia probatória dos Réus.

            2ª - O A., bem sabendo que a existência do crédito que arroga já se encontrava judicialmente consolidado por Sentença, não a juntou na p. i., nem no prazo de dez dias posterior à motivação das contestações apresentadas, nem na resposta às exceções evocadas, nem no despacho saneador, nem nos 20 dias antes da realização da audiência final, nem mesmo quando foi convidado pelo Tribunal para proceder à sua junção.

           3ª - Também se verifica que não se constituiu nenhuma “ocorrência posterior” que justifique a necessidade de apresentação de documento que o A. ora pretende que seja junto aos autos.

           4ª - O processo é constituído por uma série de atos dirigidos a um fim - a decisão judicial que resolve o conflito entre as partes -, devendo obedecer a formas e requisitos adequados a esse escopo. Sem regras o processo fica sujeito à indisciplina das partes e cria insegurança, e presta-se a manobras que prejudiquem a obtenção da decisão em tempo razoável e útil.

           5ª - Um dos princípios do processo civil é precisamente o da autorresponsabilidade das partes, segundo o qual estas sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco.

            6ª - O A. sujeitou, novamente, por vontade própria, matéria para apreciação judicial que já tinha sido discutida e analisada noutro processo, deixando os autos correr os seus termos como nada se tivesse passado, propiciando assim, atos inúteis quanto à discussão, instrução e à reunião de prova quanto a fatos controvertidos, que na realidade já se encontram consolidados

            7ª - O princípio do inquisitório exerce atualmente, é certo, um importante papel no Processo Civil Português, mas, a nosso ver, funciona subordinado ao princípio do dispositivo, parecendo-nos excessiva a sua configuração como um sistema processual híbrido, que se coaduna em par em torno dos dois princípios.

            8ª - O nosso sistema processual civil é norteado pelo princípio do dispositivo, competindo-lhe o “monopólio” dos factos e dos meios de prova.

            9ª - Não pode a Mm.ª Juiz a quo, ao abrigo do inquisitório e da cooperação suprir o incumprimento de formalidades essenciais pelas partes, permitir o atropelo de normas legais e nem pode, obviamente, determinar oficiosamente a junção de documentos cuja junção já foi solicitada ao A. por duas vezes e este bem sabendo que lhe incumbia tal prova, não o fez.

            10ª - Também não pode o A. escamotear e atropelar as regras básicas e os princípios gerais de condução processual, quanto ao momento da apresentação da prova e guardar um “trunfo” para a audiência final com aceno ao princípio do inquisitório.

            11ª - É manifesto que da parte do A. houve manifesta incúria no seu ónus probatório de pesquisar e reunir informação documental, cuja pertinência para o litígio era facilmente e indubitavelmente previsível e até obrigatória, como o A. bem sabia.

            12ª - Essa incúria prolongou-se por 2 anos e 8 meses e só no dia antes da audiência e julgamento que já tinha sido reagendada por 4 vezes é que o A. requereu a junção tardia do documento, sem qualquer justificação plausível.

           13ª - Num contexto desta índole, de grave inobservância do princípio da autorresponsabilidade das partes conexo com o seu ónus probatório e tratando-se de documentos de obtenção fácil ou previsível e de obrigatória junção, não colhe razão de ser a invocação do princípio do inquisitório para suprir a incúria grave do A..

           Rematou, pugnando pela revogação do referido despacho e a não admissão do documento em causa.

           Os restantes Réus aderiram àquela alegação.

           A resposta do A. foi desentranhada (cf. despacho do relator de 20.3.2024 e notificação de 17.4.2024).

           Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso[4], importa apreciar e decidir, apenas, da admissibilidade da junção do referido documento.


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            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que consta do relatório que antecede e ainda:

           1) Na p. i., apresentada em 08.3.2021, o A. pediu que seja julgada ineficaz em relação ao A., nos termos e para os efeitos previstos nos art.ºs 610º e seguintes, do CC, a doação dos bens (imóveis e móveis) aludida no art.º 18º da p. i. e, ainda, o consequente cancelamento do registo de aquisição a favor do Réu DD, e de ulteriores registos a favor de eventuais novos adquirentes, sobre os bens imóveis em causa.

            2) Alegou, em síntese: no dia 23.11.2000, emprestou aos Réus e Outros a quantia de 30 000 000$00 (€ 149 639,37); estes, não obstante o acordado, não procederam a qualquer pagamento, razão pela qual propôs, no dia 20.9.2007, a respetiva execução que correu termos sob o n.º 2238/07...., na qual pediu que os Réus procedessem ao pagamento da quantia de € 196 232,56 a título de capital e juros vencidos, acrescida dos juros vincendos (“Doc.º n.º 01”); no decorrer da execução, recebeu dos executados as quantias de € 150 000 (18/10/2013), € 22 500 (16/6/2016) e € 2 500 (17/11/2016), ficando em débito a quantia de € 39 710 acrescida dos juros de mora; através da Escritura Pública de Doação outorgada no dia 11.5.2016 os Réus/executados CC e mulher, BB, pretenderam, unicamente, evitar ser proprietários de qualquer bem que pudesse satisfazer o crédito do A., com o que contaram com o conluio do Réu DD (“Doc.ºs n.º 02 a 020”).

            3) Com a p. i. foram juntos os seguintes documentos: cópia do requerimento executivo apresentado contra os Réus (e os aqui habilitados e esposas, EE e FF) e que deu início à execução n.º 2238/07....; cópia da doação de 11.5.2016; cópia da certidão do registo predial dos bens em causa.

            4) A recorrente, no art.º 4º da contestação, alegou que o A. não fez qualquer prova, quer da existência do crédito, quer da responsabilidade do seu pagamento, quer do seu montante.

           5) Em 19.5.2022, foi proferido pelo Mm.º Juiz o seguinte despacho: “Antes de mais, podendo tal habilitar o Tribunal a decidir de imediato do mérito da causa, ao abrigo do disposto no art.º 590º, n.º 3 do Código de Processo Civil, convida-se o Autor (...) a juntar aos autos, no prazo de 10 dias, certidão judicial extraída do Processo de Execução n.º 2238/07.... que contenha o documento n.º 1 cuja mera cópia ofereceu com a petição inicial, assim como informação quanto ao estado da execução (nomeadamente, se se encontra extinta e por que motivo)”.

           6) Em 20.6.2022, foi proferido o seguinte despacho: “Considerando que o Autor não deu cumprimento ao determinado no despacho que antecede (...), notifique novamente o mesmo para que, no prazo de 5 dias, proceda à junção da referida certidão nos exatos termos anteriormente determinados, sob pena de, não o fazendo, incorrer em multa processual por violação do dever de cooperação, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 417º, n.º 1 e 2 do CPC.

            7) Em 20.6.2022, veio o A. juntar aos autos certidão extraída da Execução Comum n.º 2238/07...., do Juízo de Execução ..., contendo, além do mais, o documento Identificado na p. i., como “Doc.1” - requerimento executivo - e a comprovação de extinção da execução, em 15.11.2016, por falta/insuficiência de bens (pagamento parcial coercivo), nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 849 do CPC.

            8) Em 08.9.2022, foi proferido despacho saneador que firmou o objeto do litígio - «impugnação pauliana do contrato de doação celebrado entre CC e Ré BB e o Réu DD em 11.5.2016» - e enunciou os temas da prova - «    - dos termos do contrato de mútuo celebrado entre o Autor e CC e os Réus BB e DD; - da entrega de cheques ao Autor para pagamento da quantia mutuada; - da devolução dos cheques por falta de provisão; - da interpelação dos Réus para pagamento por carta de 04.5.2005; - do valor dos prédios e do recheio doados; - das penhoras realizadas no âmbito dos processos judiciais identificados pelo Réu DD no art.º 11º da sua contestação; - do valor dos bens imóveis aí penhorados e da venda de um deles».

           9) Por despacho de 19.12.2022 foi designado o dia 20.02.2023, pelas 14 horas, para a realização da “audiência final”.

           10) Em 09.01.2023, o A. juntou aos autos certidão do mesmo requerimento executivo e doutros documentos: Cheques, Registos CTT, Procuração, Pagamento de Custas Judiciais e Confissão de Dívida.

            11) Por despacho de 30.01.2023, o documento foi admitido por estar em tempo, ser pertinente (por se reportar aos art.ºs 9º e 10º da p. i.) e se afigurar importante para a boa instrução e decisão da causa, com multa, por não ter sido apresentado com o respetivo articulado (art.ºs 423º, n.º 2, do CPC e 27º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais/RCP)

           12) Comunicada a impossibilidade de comparecimento na agendada “audiência final”, por parte da Exma. Advogada do habilitado GG, por despacho de 16.02.2023 foi designada nova data para a sua realização (30.3.2023, pelas 9.30 horas).

            13) Por despachos de 13.3.2023, 15.5.2023 e 06.9.2023 foram designadas novas datas para realização da “audiência final” (a última - 19.10.2023, pelas 14 horas).

            14) Por despacho de 23.10.2023 foi declarada a suspensão da instância, porquanto o A., regularmente notificado da renúncia do seu mandatário, não constituíra novo mandatário no prazo de 20 dias (art.º 47º, n.º 3, alínea a), do CPC).

            15) Em 24.10.2023, o A. constituiu novo mandatário.

           16) Por despacho de 30.10.2023 foi remarcada a “audiência final” para o dia 30.11.2023, pelas 14 horas,

           17) Em 29.11.2023, o A. requereu a junção de documento - certidão de sentença de 13.4.2012 proferida nos autos de oposição execução, proferida no processo 2238/07...., que correu termos no Juízo de Execução ..., transitada em julgado a 30.4.2012, com o fundamento que alguns temas de prova enunciados na presente ação, nomeadamente “dos termos do contato de mútuo celebrado entre o A. e CC e os Réus BB e DD”, “da entrega de cheques ao Autor para pagamento da quantia mutuada”, “da devolução dos cheques por falta de provisão” e “da interpelação dos réus para pagamento por carta de 04.5.2005” já foram objeto de análise e de decisão judicial naqueles autos de execução e assim dada a pertinência do sentenciado, deve a falta da sua junção antecipada ser relevada pelo Tribunal, atento o momento em que o signatário assumiu o patrocínio, e atendendo ao princípio da colaboração processual por forma a facilitar auxiliar a tarefa de julgamento do Tribunal.

           18) Na referida sentença foi dado como provado, nomeadamente, que, em 23.11.2000, o exequente emprestou aos executados a quantia de equivalente a € 149 639,37 e, nessa data, os executados subscreveram o documento junto a fls. 29 dos autos de execução, epigrafado de “Confissão de Dívida”.

           A oposição à execução foi julgada parcialmente procedente, porquanto verificado o pagamento da quantia de € 8 978,32; determinou-se o prosseguimento da execução com o capital no montante de € 140 661,05, acrescido de juros de mora.

            19) Na audiência realizada em 20.12.2023 a Mm.ª Juíza tentou a conciliação das partes, o que não logrou alcançar; “em virtude de todos os presentes terem declarado manter interesse na audição do autor nos termos requeridos”, que faltou à audiência, a Mm.ª Juíza proferiu de imediato o despacho mencionado em I., supra.

            2. Cumpre apreciar e decidir.

           Preceitua o art.º 423º do CPC[5] que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (n.º 1); se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado (n.º 2); após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (n.º 3).

           O referido art.º estabelece o princípio geral relativamente ao momento da apresentação de prova por documentos, adotando regime mais restritivo que o anteriormente definido.[6]

           3. Assim, partindo da regra geral da apresentação dos documentos com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (n.º 1), refere-se, depois, que a apresentação poderá ter lugar até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final [fixando-se um termo final para o efeito, em paralelismo com o limite temporal traçado, no n.º 2 do art.º 598º, para a apresentação do rol de testemunhas][7] mas, neste caso, a parte é condenada em multa, exceto se provar que não os pôde oferecer com o articulado respetivo (n.º 2); a junção poderá ocorrer posteriormente (aos mencionados 20 dias), até ao encerramento da discussão em 1ª instância mas, neste caso, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento ou se tornem necessários em virtude de ocorrência posterior (que provem factos posteriores ou que, provando factos anteriores, se formem posteriormente) (n.º 3).[8]

            4. O ónus de provar os factos alegados em fundamento da ação e da defesa e o dever de apresentar ab initio os documentos que os provem com o articulado em que a alegação seja feita, não colidem com a liberdade que a parte mantém de observar ulteriormente aquele ónus probatório que sobre ela impende, sujeitando-se, contudo, às limitações e sanções pecuniárias que emergem do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 423º[9], a saber: até ao vigésimo dia que antecede a data da realização da audiência final, pode juntar o documento livremente, sujeitando-se ao pagamento de uma multa, a não ser que demonstre não ter podido oferecer o documento com o articulado; ulteriormente, é necessário demonstrar a impossibilidade da apresentação até então ou que a apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior.[10]

           5. Na situação em análise, foi marcada nova data para a realização (o início efetivo) da audiência de julgamento - 22.01.2024.

            Aquando da apresentação do documento (29.11.2023), não se poderia dar sequer por iniciado o prazo previsto no n.º 2 do art.º 423º, pois, o que releva para a determinação do aí enunciado termo final é o início efetivo da audiência final [a antecedência de 20 dias reporta-se à realização efetiva da audiência final e não à simples abertura; deve ser contado tendo como referência a realização da audiência].[11]

           Ademais, o prazo de 20 dias em causa não decorreu, consideradas quaisquer das datas marcadas e hipoteticamente atendíveis, desde logo, e sobretudo, as de 30.11.2023, 20.12.2023 e 22.01.2024 (esta, a do início efetivo da audiência de julgamento/audiência final).

            E ainda que realizada (nova) tentativa de conciliação das partes em 20.12.2023 [cf. II. 1. 20), supra][12], outra/nova tentativa de conciliação sempre deverá/deveria ter lugar na data do início efetivo da audiência de julgamento, observando-se/cumprindo-se, então, os demais atos previstos no art.º 604º, se a eles houver lugar (cf. proémio do n.º 3)[13], sendo que, naquela audiência de 20.12.2023, nenhum outro se praticou.

            6. Por conseguinte, aplicando-se ao caso o regime previsto no citado n.º 2 do art.º 423º (daí, dúvidas não restam quanto à admissibilidade da junção do documento – ocorrida bem aquém dos 20 dias que precediam a última data designada para o início da audiência final), e não sendo de atender, por exemplo, ao preceituado no art.º 411º, restará, à 1ª instância, pronunciar-se sobre se importa ou não sancionar o A./apresentante em multa, em razão da (aparente) intempestividade face ao prescrito nos n.ºs 1 e 2 daquele primeiro art.º, caso se considere não ter provado que o não pôde oferecer com o articulado inicial - questão não colocada no recurso (art.ºs 423º, n.º 2 do CPC e 27º do RCP).[14]

           7. De resto, como também se diz no arrazoado da recorrente (Ré/executada) BB, as partes bem sabiam que o crédito de que o A. se arroga “já se encontrava judicialmente consolidado por sentença”, pelo que, dada a natureza e razão de ser da ação de impugnação pauliana (cf. art.ºs 610º e 611º do CC), importa, e acresce, respeitar a autoridade do caso julgado, obstando a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, garantindo, pois, a coerência e dignidade das decisões judiciais, a certeza e a segurança nas relações jurídicas.

           8. A solução a que se chega, além de justificada à luz do disposto no art.º 423º, n.º 2, respeita, igualmente, o princípio de que as regras processuais devem ser interpretadas de molde a assegurarem a melhor tutela judicial (e são as formas processuais que devem - e podem - adaptar-se às necessidades da tutela, não estas necessidades que têm de ficar por satisfazer por causa daquelas formas/art.º 547º)[15], bem como o princípio da verdade material (estruturante de todo o processo civil)[16], e, por último, o princípio de que o juiz deve julgar segundo a verdade.[17]

9. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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           III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se, embora com fundamentação distinta, o despacho que deferiu a junção do documento, sem prejuízo de eventual condenação em multa a proferir na 1ª instância.

            Custas pelos Réus/apelantes.


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07.5.2024



[1] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[2] Existe lapso manifesto, sendo a data correta 29.11.2023 – cf. fls. 125.
[3] Expurgadas dalguns excertos ou pontos tidos como desnecessários enquanto “conclusões”.

[4] Admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo [artigos 629º, n.º 1, 631º, n.º 1, 638º, n.º 1, 644º, n.º 2, alínea d), 645º, n.º 2, e 647º, n.º 1, do CPC].
[5] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[6] Preceituava o art.º 523º, do CPC de 1961 (revisão de 1967): Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (n.º 1). Se não forem apresentados com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em 1ª instância, mas a parte será condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado (n.º 2)

  Comparando esta norma com o regime atual, ressalta a inovação constante dos n.ºs 2 e 3 do art.º 423º do CPC de 2013.
[7] Densificando-se, assim, “uma regra de estabilização dos meios de instrução a partir do vigésimo dia que antecede a data em que se realize a audiência final” - vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, Os artigos da reforma, Vol. I, Almedina, 2013, pág. 340.

[8] Vide J. Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, pág. 250 e Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, Ediforum, Lisboa, 2013, pág. 158, este, salientando que os atuais n.ºs 2 e 3 correspondem, com um grau de exigência bastante superior, ao n.º 2 do art.º 523º, do CPC de 1961.    
[9]  E também nos art.ºs 424º e 425º do CPC, sendo caso disso.
[10] Neste sentido, vide Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2.º, Coimbra, 2001, pág. 423, à luz do art.º 523º do CPC de 1961, reportando-se ao momento preclusivo do encerramento da discussão de facto em lª instância (art.º 652º, n.º 1) a que agora o legislador deixou de aludir no art.º 423º, embora se lhe refira o art.º 425º, ao estabelecer que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
  Cf., ainda, o acórdão da RP de 17.12.2014-processo 436/13.7TTVNG-A.P1, publicado no “site” da dgsi.

[11] Neste sentido, vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol. 2º, 3ª edição, págs. 241 e 675 e seguinte e M. Teixeira de Sousa, designadamente, “post” de 22.3.2019 e “post” de 24.6.2019, no blogue do IPPC, aderindo à orientação segundo o qual, “para efeitos de aplicação do disposto no art.º 423º, n.º 2, CPC, o que conta é o início da audiência final, embora se deva ter em consideração o início efetivo dessa audiência”. Cf. ainda, de entre vários, acórdãos da RP de 17.12.2014-processo 436/13.7TTVNG-A.P1 [sumariando-se: «I - Quando a parte não junta o documento com o articulado respetivo, a par da alegação do facto ´probando`, e só mais tarde o faz, sujeita-se às condições estabelecidas na lei, a saber: até ao vigésimo dia que antecede a data da realização da audiência final, pode juntar o documento livremente, sujeitando-se ao pagamento de uma multa, a não ser que demonstre não ter podido oferecer o documento com o articulado; depois desse marco temporal, é necessário demonstrar a impossibilidade da apresentação até então ou que a apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior. II - O prazo de 20 dias antes da realização da audiência previsto no artigo 423º, n.º 2 do CPC para a junção de documentos após os articulados, deve ser contado tendo como referência a realização da audiência e o uso daquela faculdade cabe tanto quando ocorre um adiamento (ainda que verificado logo após a sua abertura) como uma repetição da audiência, v. g., por se verificar a nulidade da primeira, ou para ampliação da matéria de facto.»] e 15.11.2018-processo 11465/17.1T8PRT-B.P1 [concluindo-se: «O prazo limite para a apresentação de documentos (bem como o da alteração do rol de testemunhas) tem por referência não a data inicialmente designada para a audiência final mas a data da efetiva realização da audiência, quer haja adiamento ou continuação da audiência.»], RC de 08.9.2015-processo 2035/09.9TBPMS-A.C1 [com o sumário: «O prazo de 20 dias a que alude o art.º 598º, n.º 2 do CPC refere-se à data da efetiva realização da audiência de discussão e julgamento, pelo que a possibilidade de alteração ou aditamento do rol de testemunhas como que se “renova” relativamente a cada uma das novas marcações que venham a ter lugar.»] e decisão sumária da RC de 14.12.2016-processo 3669/14.5T8VIS.C1 [com o sumário: “O prazo de vinte dias, previsto no art.º 598º, n.º 2, do NCPC, para aditamento ao rol de testemunhas tem como referência a efetiva realização do julgamento, ainda que, anteriormente, tenha ocorrido abertura da audiência final, com tentativa de conciliação, seguida de suspensão, sem produção de quaisquer provas, para conclusão das negociações entre as partes e designação de nova data para realização da audiência.”], publicados no “site” da dgsi.

   Sobre a matéria da derradeira asserção do cit. acórdão da RP de 17.12.2014-processo 436/13.7TTVNG-A.P1, em sentido contrário, cf. acórdão da RC de 06.6.2017-processo 2890/13.8TBPRD-A.C1 [com o sumário: «1. Perante a anulação da sentença proferida nos autos principais apenas e tão só para ser reinquirida uma testemunha, dada a inaudibilidade da gravação do depoimento por ela prestado, não estamos em face da realização ´ab initio` da audiência de julgamento, mas somente perante a repetição de um concreto acto que dela faz parte – a inquirição de uma testemunha. 2. Dado que a audiência de discussão e julgamento já tinha tido lugar e a autora poderia ter requerido a junção dos documentos que agora pretendeu fazer, desde que apresentados até 20 dias antes da data em que se realizou, atento o disposto no n.º 2 do artigo 423º do CPC, já não é admissível a pretendida junção de documentos.»], pulicado no mesmo “site”.
[12] Uma primeira tentativa teve lugar em sede de audiência prévia (realizada a 08.9.2022) – cf. doc. de fls. 98; o A. não compareceu à audiência de 20.12.2023, mas havia outorgado ao seu Exmo. Mandatário “poderes especiais para confessar, desistir e transigir em juízo” (cf. procuração junta aos autos em 24.10.2023).
[13] Aliás, assim resulta da ata da “audiência final” realizada em 22.01.2024.
[14] Cf. o cit. acórdão da RP de17.12.2014-processo 436/13.7TTVNG-A.P1.

[15] Vide, nomeadamente, o blogue do IPPC, de 14.01.2019, em comentário ao acórdão do STJ de 26.9.2018-processo 10118/16.2T8VNG-A.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[16] Desde há muito que o legislador (cf., por exemplo, preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12.12) pretende evitar que formalismos processuais impeçam a descoberta da verdade material, afirmando o princípio de que as regras processuais devem ser interpretadas de molde a assegurarem a melhor tutela judicial e de que as normas que fixam preclusões processuais têm de ser interpretadas em consonância com o princípio da prevalência do mérito (“prevalência do fundo sobre a forma”).

[17] Manuel Rodrigues, apud Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. IV (reimpressão), Coimbra Editora, 1987, pág. 7.