Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0157/16.9BEMDL
Data do Acordão:06/09/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:REVISTA
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CPPT
Sumário:I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
II - Não pode admitir-se a revista que tenha por objecto uma questão que não foi causa decidendi do acórdão recorrido.
III - A questão da dispensa da produção da prova testemunhal, não se revelando a respectiva decisão ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, mas, ao invés, justificada em termos razoáveis, não pode constituir objecto de revista.
Nº Convencional:JSTA000P27837
Nº do Documento:SA2202106090157/16
Data de Entrada:04/19/2021
Recorrente:FARMÁCIA A........, LDA
Recorrido 1:AT- AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 157/16.9BEMDL

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada, não se conformando com o acórdão proferido em 14 de Janeiro de 2021 nos presentes autos pelo Tribunal Central Administrativo Norte (() Disponível em http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/-/edb8078ee07b69e580258669006509b2.) – que, negando provimento ao recurso por ela interposto, manteve a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 2014 –, interpôs recurso de revista excepcional, nos termos do art. 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentando as alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor:

«I. Dispõe o art. 285.º, n.º 1, do CPPT que «Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

II. A primeira questão que a recorrente pretende ver reapreciada consiste em saber se, para efeitos do disposto no n.º 4 do art. 6.o do CIRS, o ónus da prova de que o contrato não corresponde efectivamente a um mútuo se devolve à Autoridade Tributária (AT), ora recorrida, quando esta, sem por em causa a contabilidade do contribuinte, se limita a concluir que o valor registado na conta 26.8.5.12.01, de sócio-gerente, não resulta de nenhum mútuo (apenas) por esse contrato não ter sido celebrado por escritura pública.

III. A relevância social fundamental verifica-se porque a situação acima identificada apresenta contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, até porque, está em causa questão que revela especial capacidade de repercussão social ou de controvérsia relativamente a casos futuros do mesmo tipo, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.

IV. De facto, o douto acórdão recorrido considerou que «... no caso em apreço o ónus da prova (de que o contrato não corresponde efectivamente a um contrato de mútuo) é devolvido à recorrente (art. 74.º da LGT, não tendo esta provado a existência do mútuo (...)», quando a Recorrente entende que esta não é a interpretação correcta da regra tributária de distribuição do ónus da prova, pois este deve ser devolvido à AT, como se irá demonstrar.

V. Em situação semelhante, na qual estava em causa a interpretação da regra tributária de distribuição do ónus de prova, o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou no sentido de se justificar a admissão da revista “atento o interesse social fundamental da questão cuja decisão pode servir de paradigma para casos futuros (Ac. de 02.06.2020, proc. 0614/16.7BEAVR).

VI. As instâncias entenderam, tal como a AT, que o contrato de mútuo não respeita os requisitos exigidos pelo art. 1143.º do Cód. Civil (CC), por não ter sido celebrado por escritura pública, razão pela qual não é válido. Assim, consideraram que estamos perante adiantamentos de lucros, os quais deviam ser tributados em IRS.

VII. Decorre do art. 294.º do CC que os negócios jurídicos celebrados contra disposição de carácter imperativo, como é o caso, são nulos.

VIII. Efectivamente, estamos perante matéria de direito civil, pelo que, face ao disposto no n.º 2 do art. 11.º da LGT, as normas fiscais devem ser interpretadas recorrendo aos termos próprios desta área do direito. Por outro lado, a lei fiscal, ou a aplicação que dela é feita, não pode criar previsões diferentes das existentes nos diplomas próprios.

IX. O Código Civil prevê que os contratos de mútuo que não cumpram os requisitos de forma legalmente estabelecidos são nulos, devendo ser restituído o que houver sido prestado.

X. É esta a cominação legalmente prevista para a falta de cumprimento dos requisitos de forma associados ao contrato de mútuo.

XI. É esta a única consequência do não cumprimento dos requisitos formais previstos na lei. Não resulta, todavia, que do contrato de mútuo nulo possam advir outras consequências. Assim,

XII. Não pode aplicar-se a lei fiscal no sentido de retirar do incumprimento de tal formalidade consequências diferentes das legalmente previstas – n.º 2 do art. 11.º da LGT. Ou seja,

XIII. Se o mútuo é nulo por falta de forma, pode determinar-se a restituição do que foi prestado, mas não pode considerar-se que da invalidade resulta que os montantes pagos ao abrigo do contrato têm outra natureza que não a de mútuo.

XIV. Assim, tem de concluir-se que, o facto de terem sido preteridas as formalidades previstas na celebração do contrato não pode ter como consequência que o contrato não existiu e, portanto, estamos perante uma realidade diferente - no caso, um adiantamento de lucros.

XV. E não pode considerar-se que, por falta de cumprimento das formalidades que estão associadas à celebração deste tipo de contrato, a operação substancialmente praticada (um mútuo) deve ser qualificada de outra forma.

XVI. De acordo com o n.º 1 do art. 74.º da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos recai sobre quem os invoque, e segundo o n.º 1 do art. 75.º do mesmo diploma, presumem-se verdadeiros e de boa-fé os registos contabilísticos dos contribuintes, quando realizados nos termos da legislação fiscal e comercial.

XVII. Acresce que, nos termos do disposto no art. 293.º do CC O negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos de substância e forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido se tivessem previsto a invalidade”.

XVIII. Assim, no limite, poderia considerar-se estarmos perante um contrato-promessa de mútuo, o qual não teria de respeitar as exigências de forma, conforme o disposto no n.º 1 do art. 410.º do CC, sendo os pagamentos realizados por conta de um contrato de mútuo definitivo, a celebrar em data a indicar, tal como veio efectivamente a acontecer, através da escritura referida em 8. dos factos provados, na qual a recorrente formalizou o mútuo, pagando o respectivo imposto do selo, e facultando uma cópia à AT, como resulta do RIT anexo ao PA.

XIX. De referir ainda que, o registo contabilístico dos montantes pagos à sócia, com o descritivo “empréstimo2013”, foi realizado em 31.03.2014 numa conta “268” que é uma conta de “accionistas/sócios - outras operações” - cfr. 4. dos factos provados.

XX. Habitualmente, são registadas nesta conta as operações com os sócios que não sejam adiantamentos de lucros, resultados atribuídos ou lucros disponíveis, entre outros. O registo a débito reflecte um pagamento realizado pela sociedade, pelo que, o registo feito para efeitos contabilísticos é coincidente com o enquadramento que foi dado à operação.

XXI. Portanto, verifica-se que o registo contabilístico dos movimentos associados a esta operação, no exercício em causa, está realizado em termos semelhantes ao do contrato de mútuo.

XXII. Também aqui deve ser referido o disposto no n.º 1 do art. 75.º da LGT, ou seja, não tendo a contabilidade da recorrente sido posta em causa, deverá considerar-se que a mesma espelha a realidade dos factos – e, portanto, que foi efectivamente celebrado um contrato de mútuo entre a Recorrente e a sócia-gerente.

XXIII. Verifica-se, assim, que a liquidação impugnada, assim como a decisão recorrida, têm como único fundamento o não cumprimento pela recorrente das formalidades associadas à celebração do contrato de mútuo. No entanto, esse fundamento é meramente formal.

XXIV. O n.º 4 do art. 6.º do CIRS estabelece uma presunção nos termos da qual os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultarem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros”.

XXV. As presunções podem ser ilididas, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 351.º do CC, o que se verificou neste caso – como se vê do probatório (cfr. 4. dos factos provados) a recorrente registou contabilisticamente a operação em conformidade, o que permite ilidir a presunção de que a operação configuraria um adiantamento por conta de lucros.

XXVI. Neste contexto, o ónus da prova de que o contrato não correspondia efectivamente a um contrato de mútuo foi devolvido à AT.

XXVII. Sucede que, nenhuma prova foi feita a este respeito – apenas foi alegado que, em virtude de o contrato não ter sido celebrado por escritura pública, o mesmo não era válido e, portanto, deveria qualificar-se como adiantamento por conta de lucros.

XXVIII. Assim, e porque a AT não logrou fazer prova do facto alegado (que os montantes em causa foram entregues a título de adiantamento por conta de lucros), deve considerar-se que a operação existe na ordem jurídica nos termos em que foi definida pela requerente. Estamos, assim, perante um contrato de mútuo, sendo os pagamentos feitos à sócia-gerente entregas dos valores mutuados.

XXIX. Daí que, as disponibilizações de montantes feitas no âmbito contrato de mútuo não configuram rendimentos da sócia-gerente, não estando por isso sujeitas a tributação, pelo que a liquidação impugnada está ferida de ilegalidade, devendo julgar-se procedente a impugnação.

Por outro lado, e subsidiariamente:

XXX. Caso se considere que a situação acima identificada não apresenta relevância social fundamental, então ocorre clara necessidade da admissão do recurso para a melhor aplicação do direito, por violação de disposições de direito procedimental e processual, sendo a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo reclamada para cumprir a sua função reguladora, quando se verifique ter a decisão recorrida interpretado e aplicado erradamente e de modo manifesto a lei adjectiva (Ac. STA de 21/03/2012, p. 084/12).

XXXI. Na impugnação judicial a Recorrente peticionou a anulação da liquidação, sustentando que a operação geradora da tributação em causa não se tratou de qualquer distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros, antes representou a rectificação ou regularização de operações subjacentes a diversos contratos de mútuo celebrados entre a Recorrente e a sócia-gerente, durante os anos de 2009 a 2013, contrato esses que, por não excederem, individualmente, o valor de € 25.000, podem ser provados através dos 30 documentos que juntou àquele articulado.

XXXII. A AT apresentou contestação, onde sustentou a manutenção da liquidação impugnada, juntando o PA, composto por 74 páginas digitalizadas, organizado e informado pelo serviço de finanças competente.

XXXIII. Tendo sido notificada para «vir indicar quais os factos invocados na sua pi que não devam ser provados por documentos e que pretende demonstrar por intermédio da diligência requerida. cfr. arts. 13.º, n.º 1, 113.º, n.º 1 do CPPT e 130.º do CPC», a Recorrente respondeu, esclarecendo que «a prova testemunhal foi apresentada unicamente com vista a eventual simples interpretação do contexto desses documentos (art. 393.º n.º 3, do CCivil)».

XXXIV. Após ter sido considerado que «não é necessária ou útil a inquirição de testemunhas arroladas e essenciais ao apuramento da verdade», foi proferida sentença em 1.ª instância, a qual julgou a impugnação improcedente, fundada na falta de prova produzida pela recorrente/impugnante, o que o acórdão recorrido confirmou.

XXXV. Existindo princípio de prova documental, é lícito o recurso à prova testemunhal para interpretar o contexto dos documentos e para completar a prova documental existente, contribuindo, assim, quer para interpretar os mesmos, quer para os integrar (art. 393.º, n.º 3, do CC).

XXXVI. O direito à prova constitui uma trave mestra do processo, um direito estruturante da relação jurídica processual, que entronca com o princípio da tutela jurisdicional efectiva e com as condições de acesso ao direito e à justiça, tutelados no artigo 20.º da Constituição.

XXXVII. No domínio da prova, o processo civil e, ainda mais reforçadamente, o processo judicial tributário, assume claramente natureza inquisitória.

XXXVIII. A interpretação expendida em 1.ª instância, e confirmada no acórdão recorrido, que conduziu ao indeferimento da inquirição da testemunha, limitou e condicionou gravemente o direito à prova, incluído no conceito de processo equitativo, previsto no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, no n.º 1 do artigo 2.º do CPTA e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

XXXIX. Face ao actual CPC, a actividade de instrução não se limita aos factos alegados pelas partes, podendo dela se extraírem factos instrumentais, segundo o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC (ex vi art. 2.º, e), do CPPT) e ainda factos complementares e concretizadores daqueles que hajam sido alegados pelas partes.

XL. A instrução da causa não está limitada aos factos alegados pelas partes, sendo de considerar os factos instrumentais que surjam da instrução, considerando a sua função probatória dos factos essenciais, assim como são de considerar os factos complementares e concretizadores dos factos essenciais alegados que resultem da instrução.

XLI. Em face disso, não podia a decisão recorrida ter negado provimento ao recurso e mantido a sentença recorrida com fundamento na falta de cumprimento do ónus da prova da recorrente sem ter diligenciado ouvir a testemunha por ela indicada, tanto mais que naquela sentença foi posta em causa e desconsiderada prova documental apresentada pela recorrente.

XLII. É incongruente que o tribunal considere que “não é necessária ou útil” a prova testemunhal indicada quando estava em causa interpretação do contexto de documentos, e depois decida com base na ausência de prova.

XLIII. Assim sendo, deve o acórdão recorrido ser anulado de modo a permitir que, no tribunal recorrido, seja promovida a inquirição da testemunha arrolada pela recorrente e feitas as demais diligências probatórias que se mostrarem adequadas e necessárias ao esclarecimento da questão.

XLIV. Ao decidir em contrário, com o devido respeito, o acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 11.º, n.º 2, 74.º, n.º 1, 75.º, n.º 1, e 99.º, n.º 1, da LGT, 286.º, 293.º, 294.º, 393.º, n.º 3, 410.º, n.º 1, e 1143.º, do CC, 13.º, n.º 1 do CPPT, n.º 2 do art. 5.º do CPC, e n.º 4 do art. 6.º do CIRS.

Termos em que, deve ser concedido provimento ao recurso, com todas as consequências legais, assim se fazendo inteira Justiça!».

1.2 A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

1.3 Tendo verificado a tempestividade do recurso e a legitimidade da Recorrente, a Desembargadora relatora no Tribunal Central Administrativo Norte ordenou a sua remessa o Supremo Tribunal Administrativo.

1.4 Recebidos neste Supremo Tribunal, os autos foram com vista ao Ministério Público e a Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que «[a]o Ministério Público não compete emitir Parecer sobre a admissão ou não admissão do Recurso de Revista, mas apenas quanto ao seu mérito e só no caso de o Recurso de Revista ser admitido».

1.5 Cumpre apreciar e decidir da admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPT.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 6, e 679.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do art. 281.º do CPPT, remete-se para a matéria de facto constante do acórdão recorrido.


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do art. 285.º do CPPT e do n.º 1 do art. 150.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) a excepcionalidade do recurso de revista. Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Ou seja, o recurso de revista excepcional não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
Como a jurisprudência também tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, i.e., que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis).
Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que «[…] o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» (() Cf. acórdão de 2 de Abril de 2014, proferido no processo com o n.º 1853/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.2.2 O CASO SUB JUDICE

2.2.2.1 Nos autos foi impugnada a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 2014, efectuada à sociedade ora Recorrente, ao abrigo do disposto nos arts. 5.º, n.º 2, alínea h), e 71.º, n.º 1, alínea a), e 98.º, n.º 3, todos do Código do IRS (CIRS), na redacção aplicável à data, com o fundamento de que esta não reteve na fonte o imposto devido relativamente aos lançamentos que constam na contabilidade, por contrapartida do débito da conta “26.8.5.12.01 - accionistas/sócios”, em nome da sua sócia-gerente, e que a AT considerou deverem ser considerados como adiantamentos por conta de lucros, nos termos do n.º 4 do art. 6.º do CIRS, norma que dispõe que «[o]s lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros».
A ora Recorrente impugnou essa liquidação com o fundamento de que esses lançamentos respeitavam a mútuos por ela efectuados à sua sócia-gerente, mas o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, em julgamento que foi corroborado pelo Tribunal Central Administrativo Norte no acórdão recorrido, entendeu que a Impugnante não logrou provar a existência dos invocados mútuos e, assim, ilidir a presunção do n.º 4 do art. 6.º do CIRS, motivo por que os lançamentos contabilísticos em causa se devem ter como respeitantes a adiantamentos por conta de lucros.
A Recorrente interpôs o presente recurso de revista pedindo que este Supremo Tribunal revogue o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte porque considera que este padece de erro de julgamento, na medida em que confirmou o julgado em 1.ª instância, de que os lançamentos efectuados na contabilidade a favor da sua sócia-gerente – não se tendo provado os mútuos invocados pela Impugnante – se deviam presumir como adiantamentos por conta de lucros.
Se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, a Recorrente pretende que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre a questão que enunciou como sendo a de saber «se, para efeitos do disposto no n.º 4 do art. 6.o do CIRS, o ónus da prova de que o contrato não corresponde efectivamente a um mútuo se devolve à Autoridade Tributária (AT), ora recorrida, quando esta, sem por em causa a contabilidade do contribuinte, se limita a concluir que o valor registado na conta 26.8.5.12.01, de sócio-gerente, não resulta de nenhum mútuo (apenas) por esse contrato não ter sido celebrado por escritura pública».
Salvo o devido respeito, apesar do esforço argumentativo da Recorrente, a sua tese assenta toda ela num pressuposto que não tem correspondência na realidade, tal como revelada processualmente, qual seja a de que os lançamentos contabilísticos respeitam a um contrato de mútuo e que a AT apenas desconsiderou esse contrato por não terem sido respeitadas as respectivas condições formais para sua validade (celebração por escritura pública, atento o disposto no art. 1143.º do Código Civil e no art. 270.º-F do Código das Sociedades Comerciais); e, por isso, sustenta que, «para efeitos do disposto no n.º 4 do art. 6.o do CIRS, o ónus da prova de que o contrato não corresponde efectivamente a um mútuo se devolve à Autoridade Tributária (AT), ora recorrida».
No entanto, as instâncias, apreciando e decidindo a questão de saber se a ora Recorrente tinha ou não logrado afastar a presunção estabelecida pelo n.º 4 do art. 6.º do CIRS, designadamente através da existência de um contrato de mútuo, nunca deram este como provado; e não foi por falta de celebração da escritura pública, contrariamente ao que sugere a Recorrente. O que as instâncias disseram foi que a Recorrente não apresentou os documentos que lhe foram solicitados pela AT em ordem à comprovação dos invocados empréstimos, que o contrato de mútuo que a ora Recorrente apresentou, e se encontra titulado por escritura pública, não servia o efeito pretendido, porque celebrado em 2015, e que os demais documentos, que apresentou com a petição inicial, não comprovam a existência de mútuo algum.
É certo que no acórdão recorrido se afirma: «impunha-se que, a ser um mútuo, o mesmo para ser válido teria que ser celebrado mediante escritura pública». Porém, essa afirmação, como resulta do usa da locação verbal “a ser”, aqui usada com o sentido “caso fosse”, não permite que se dê como estabelecido que o acórdão considerou que existia um contrato de mútuo, ainda que inválido.
Assim, porque as instâncias nunca deram como provada a existência de mútuo algum que pudesse sustentar os lançamentos contabilísticos em causa – num juízo que escapa à sindicância deste Supremo Tribunal (cf. n.º 4 do art. 285.º do CPPT) –, torna-se despiciendo indagar se esse mútuo obedeceu ou não às formalidades legais, se foi desconsiderado com fundamento no incumprimento dessas formalidades e a quem competia demonstrar a sua existência.
Salvo o devido respeito, apesar de a Recorrente pretender erigi-la em fundamento da decisão recorrida, a referida afirmação de que «a ser um mútuo, o mesmo para ser válido teria que ser celebrado mediante escritura pública» não constitui uma ratio decidendi, mas um mero recurso argumentativo – como bem o revela a expressão “a ser um mútuo” –, ou seja, aquilo que a jurisprudência caracteriza como um obiter dictum ou, de modo mais impressivo, como «uma excrescência em relação ao silogismo judiciário que motivou e estruturou a decisão» e «cuja supressão não prejudica o comando da decisão, mantendo-a íntegra e inabalada» (() Cf. os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 25 de Setembro de 2013, proferido no processo n.º 511/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/5d5a0bbcf303621780257bf8005550d6;
- de 11 de Março de 2015, proferido no processo n.º 197/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/51f17429bfd53bf580257e0b004b4e3b;
- de 23 de Maio de 2018, proferido no processo com o n.º 409/17, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/20e3e23f2fef60ea802582980047367d.).
Concluímos, pois, que o recurso assenta num pressuposto que não tem correspondência no processo, ou seja, o recurso tem por base um pressuposto diverso daquele em que o acórdão recorrido assentou a sua decisão.
Assim, não se mostram reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista previstos no art. 285.º do CPPT quanto à primeira questão suscitada pela Recorrente.

2.2.2.2 A Recorrente pretende ainda, a título subsidiário, que este Supremo Tribunal conheça da questão que enunciou como sendo a de saber «[s]e a falta de inquirição da testemunha por si indicada afectou o julgamento da matéria de facto, implicando a existência de erro de julgamento», assacando ao acórdão recorrido “erro manifesto”, na medida em que este confirmou o decidido pela 1.ª instância, de «considerar que a Recorrente não cumpriu o seu ónus de provar os factos que alegou, sem ter sido promovida a inquirição da testemunha por si indicada». Sustenta que não podia o Tribunal Central Administrativo Norte ter negado provimento ao recurso e mantido a sentença recorrida com fundamento na falta de cumprimento do ónus da prova da Recorrente sem ter diligenciado ouvir a testemunha por ela indicada, tanto mais que naquela sentença foi posta em causa e desconsiderada prova documental apresentada pela Recorrente. Vejamos:
O acórdão recorrido apreciou a questão da falta de inquirição da testemunha arrolada pela Impugnante, questão que foi suscitada como nulidade processual, mas, bem, foi apreciada como erro de julgamento de facto, mais concretamente, por défice instrutório.
Em síntese, aí ficou salientado que Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela deu conhecimento à Impugnante de que não se lhe afigurava útil ou necessária a inquirição da testemunha arrolada e, do mesmo passo, convidou a Impugnante a «vir indicar quais os factos invocados na sua PI que não devam ser provados por documentos e que pretende demonstrar por intermédio» da inquirição, ao que esta respondeu que «atenta a prova documental já existente nos autos, a prova testemunhal foi apresentada unicamente com vista a eventual simples interpretação do contexto desses documentos (art. 393.º, n.º 3 do CCivil), motivo por que o Juiz proferiu despacho no sentido de que, em face da posição assumida pela Impugnante, «não é necessária a inquirição de testemunhas».
Depois, a propósito da falta de inquirição da testemunha, o acórdão deixou dito o seguinte:
«Ora, a Recorrente foi instada nos autos a esclarecer o que pretendia provar com as testemunhas que arrolou e esclareceu o Tribunal nos moldes supra transcritos, nunca, em momento algum, indicou os artigos da P.I. que refere no recurso com vista à inquirição, bem pelo contrário, deu a entender que seria desnecessária, pois a mesma destinava-se unicamente a eventuais esclarecimentos e interpretação do contexto dos documentos.
Por outra banda, o acervo fáctico indicado pela Recorrente nas alegações de recurso e que consta do articulado da petição inicial (artigos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14.º da PI), configurando, em parte, juízos conclusivos, nunca seriam alvo de inquirição, e no que tange aos documentos que indicam e que constam do ponto 10 aditado ao probatório, o certo é que os mesmos não têm o mínimo reflexo na sua contabilidade para que pudessem ser considerados nos moldes em que o pretende.
Efectivamente, aqueles recibos, que apenas agora foram apresentados mostram-se inexistentes na contabilidade, uma vez que não foram registados/lançados na alegada data da emissão, tal como resulta do RIT, também não foram exibidos no decurso do procedimento inspectivo ou em sede de direito de audição ao projecto de relatório inspectivo, sendo certo que podem ser datados à livre vontade e imaginação da Recorrente e da sócia gerente».
Daqui resulta que o acórdão sufragou a decisão da 1.ª instância, no sentido da desnecessidade da produção da prova testemunhal oferecida. Será que incorreu em erro manifesto, como invoca a Recorrente?
Note-se que CPPT não estabelece a obrigatoriedade de produção de prova (testemunhal ou outra), conferindo ao juiz o poder de avaliar ou ajuizar da necessidade da sua produção (cf. art. 113.º). No caso, as instâncias julgaram inútil ou desnecessária a prova testemunhal, que a Impugnante, expressamente e em resposta a solicitação que lhe foi feita pelo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, disse que «foi apresentada unicamente com vista a eventual simples interpretação do contexto desses documentos».
Ora, as instâncias, no exercício dos poderes que lhe assistem em matéria do julgamento da matéria de facto, designadamente o princípio da livre apreciação da prova [cf. art. 123.º, n.º 2, do CPPT e art. 607.º, n.º 5, do CPC, este aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT], não conferiram aos documentos em causa qualquer relevância probatória, pelas razões explicadas no acórdão, motivo por que nenhuma utilidade poderiam retirar da prova testemunhal oferecida, expressa e exclusivamente, em ordem à «eventual simples interpretação do contexto desses documentos».
Esse julgamento da matéria de facto efectuado pelas instâncias está legalmente subtraído à apreciação deste Supremo Tribunal em sede de revista, como resulta do n.º 4 do art. 285.º do CPPT, norma que dispõe: «O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».
Por tudo o que deixámos dito, sendo manifesto, por um lado, que este Supremo Tribunal não pode sindicar o juízo sobre a irrelevância da prova documental produzida e, por outro, que o juízo sobre a inutilidade de produção da prova testemunhal não se revela ostensivamente errado ou juridicamente insustentável, a revista também não pode ser admitida em relação à segunda questão suscitada pela Recorrente.

2.2.3 CONCLUSÃO

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - Não pode admitir-se a revista que tenha por objecto uma questão que não foi causa decidendi do acórdão recorrido.

III - A questão da dispensa da produção da prova testemunhal, não se revelando a respectiva decisão ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, mas, ao invés, justificada em termos razoáveis, não pode constituir objecto de revista.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso.


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Custas pelo Recorrente.

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Assinado digitalmente pelo relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente acórdão os Conselheiros que integram a formação de julgamento.
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Lisboa, 9 de Junho de 2021. - Francisco Rothes - Isabel Marques da Silva - Aragão Seia.