Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1796/18.9TXLSB-B.L1-3
Relator: FLORBELA SANTOS A. L. S. SILVA
Descritores: PERDÃO
COVID-19
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I.–O perdão, bem como o indulto, previsto na Lei nº 9/2020 de 10-04 é também aplicável aos reclusos que passam a sê-lo apenas após a entrada em vigor da referida lei desde que a sentença que os condenara tenha transitado em julgado antes da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, ocorrida em 11-04, e desde que se mostrem reunidos os outros requisitos previstos no artº 2º da referida lei, nomeadamente que o crime em apreço não pertença ao elenco de crimes excluídos e desde que a vítima não se enquadre em nenhuma das categorias também previstas.

II.–Se a Lei nº 9/2020, que prevê tanto o perdão como o indulto, ambos extintivos das penas ou o que delas sobra, fosse aplicável apenas aos reclusos existentes em EP ao tempo da sua entrada em vigor em 11-04-2020, então a mesma não poderia ter uma norma que prevê a sua vigência por um período indeterminado de tempo (artº 10º), pois que estando todos os reclusos existentes em EP em 11-04-2020 abrangidos pela Lei nº 9/2020 que mais pessoas poderiam ser abrangidas?

III.–A ratio da Lei nº 9/2020 de 10-04 prende-se com razões sanitárias, as quais não só existiam ao tempo da sua entrada em vigor, mas ainda continuam a existir volvidos vários meses, sendo que ainda não foi publicada a Lei que põe termo ao regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, prevista no artº 10º da Lei nº 9/2020.

IV.–Ou seja, o que está verdadeiramente na base da Lei nº 9/2020 de 10-04 é a preocupação de propagação da doença Covid-19 em meio prisional atentas as especificidades que este meio, em Portugal, apresenta com sobrelotação e falta de condições.

V.Se o que preocupa o legislador é o facto das prisões portuguesas, já de si sobrelotadas, criarem focos de infecção, esses focos não deixam de existir porque num determinado momento, em 11-04-2020, foram libertados várias centenas de arguidos, se continuam a dar entrada nos estabelecimentos prisionais outras tantas dezenas ou mesmo centenas.

VI.–A utilização pelo legislador da palavra “recluso” não permite excluir arguidos que só venham a estar nessa condição após a entrada em vigor da Lei nº 9/2020, desde que reúnam os outros requisitos legais porquanto o que o legislador quis acautelar eram precisamente “reclusos” ou seja, pessoas com entrada em estabelecimento prisional, local de possível foco de infecções dadas as suas características fechadas, e não arguidos em liberdade.

VII.–Sendo que recluso é toda e qualquer pessoa fisicamente presa dentro de um EP, independentemente do momento dessa prisão.

VIII.De acordo com artº 9º do Código Civil , respeitando a letra da lei (recluso é toda e qualquer pessoa fisicamente presa dentro de um EP, independentemente do momento dessa prisão) respeita igualmente a ratio da mesma (acautelar um problema de saúde pública dentro de estabelecimentos fechados já de si sobrelotados e sem condições) bem como a sua inserção sistemática, dado que o artº 10º da mesma lei leva a concluir que a vigência do diploma legal em apreço é indeterminada e não está afecta a um único momento temporal.

IX.–Não se pode confundir o trânsito em julgado da decisão que revogou a suspensão da execução da pena de prisão com o trânsito em julgado que é exigido pelo artº 2º da Lei nº 9/2020. É que o trânsito em julgado que releva é o da sentença condenatória pois só esta é que aplica ao arguido uma pena de prisão, embora suspensa na sua execução, sendo que a decisão que revoga a suspensão não é uma sentença condenatória de pena de prisão.


(Ac. Elaborado pela relatora)


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

 
 I.–No âmbito do processo de Liberdade Condicional (Lei 115/2009) que corre termos pelo Juiz 6 do Juízo de Execução das Penas de Lisboa, do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa, sob o nº 1796/18.9TXLSB-B, foi proferida decisão em 19-10-2021, com a refª 8583589, constante de fls. 22 e ss, relativamente ao arguido EVCA______, através da qual o mesmo foi perdoado nos seguintes termos
(transcrição):
 
“Decisão - Perdão   
Por força da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, que estabelece um regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, concretamente do seu artigo 2.º, são, além do mais, perdoadas:   
- as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos – n.º 1;  
- os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior àqueles dois anos se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido pelo menos metade da pena – n.º 2.  
Este perdão estende-se à prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e à execução de pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição – n.º 3, 1.ª parte.   
Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única – n.º 3 in fine.
Por fim, se o recluso estiver em cumprimento de penas sucessivas de prisão, o perdão incide sobre o remanescente do somatório dessas penas, nos moldes acima previstos (faltar dois anos ou menos para o cumprimento integral das penas) – n.º 4.   
O n.º 6 do citado artigo 2.º estabelece um limite ao funcionamento do perdão no que tange a uma série de crimes ali catalogados – als. a) a k) e n). Assim, independentemente do número de penas que o recluso tenha de cumprir, desde que alguma delas seja proveniente do cometimento de algum daqueles ilícitos criminais, não lhe pode aproveitar aquela medida de clemência (mesmo que até já tenha cumprido e se mostre extinta a pena por tal crime, no âmbito da presente reclusão).   
Já as als. l) e m) excluem a aplicação do perdão a reclusos, mas em função da qualidade do condenado, não do crime. Finalmente, o artigo 1.º, n.º 2 da citada tem exclusão semelhante a esta última, mas alargada a todas as demais medidas previstas (indulto, licença de saída administrativa extraordinária e adaptação à liberdade condicional): afasta os condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários e guardas prisionais, no exercício das respectivas funções.
***

Saneamento   
O tribunal é o competente (artigos 2.º, n.º 8 da Lei n.º /2020, de 12 de Abril).  A condenação em questão nestes autos transitou antes da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril.   
Não são conhecidas medidas de coacção privativas da liberdade ou outras circunstâncias impeditivas da libertação do recluso.  
***

Nos presentes autos, o recluso EVCA______encontra-se em cumprimento da pena de 1 ano e 4 meses de prisão à ordem do processo n.º 856/178PBMTA, pela prática de crimes de roubo simples, por sentença transitada em julgado em 10/12/2018, pena inicialmente suspensa na sua execução, suspensão essa revogada por despacho transitado em julgado em 30.09.2020.
O arguido só iniciou o cumprimento da pena em 17.09.2021, na sequência de despacho que determinou a execução da pena de prisão e, consequentemente a sua qualidade de recluso, o qual só transitou em julgado em 30.09.2020, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10.4.      
Estamos cientes da existência de duas posições quanto à aplicação do perdão de penas, previsto no artigo 2º da Lei nº 9/2020 de 10/04. A primeira no sentido de que este só deverá ser concedido a reclusos condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, excluindo da sua aplicação os condenados que não tinham ingressado no estabelecimento prisional até ao  momento da entrada em vigor da lei e uma segunda que admite que o mesmo perdão pode ser igualmente aplicado a condenados que, no decurso da vigência daquela lei, venham a estar na situação de reclusão, cfr. se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07.04.2021, proferido no âmbito do processo 380/12.5TXCBR-B.C1  
Em defesa da segunda posição diz-se nesse mesmo Acórdão que «atenta-se na exposição de motivos da Proposta de Lei 23/XIV, que deu origem à Lei nº 9/2020, da qual resulta que a intenção do legislador foi a de conter a expansão da doença no meio prisional». E com a com a sua prorrogação, como se refere no citado Acórdão: «E a partir do momento em que a vigência da Lei nº 9/2020 foi prorrogada após a nova redacção introduzida ao artigo 10º da lei nº 9/2020, de 10/04, pela lei nº 16/2020, de 29/05), que se justifica pelo estado de permanência da pandemia, (…) tal conduz  a uma interpretação atualista (pois a Proposta do Governo parecia inicialmente apontar em tomada de medidas com um determinado limite temporal mais curto, mais imediato e bem delimitado no tempo) no sentido de que a mesma não só se aplicou e produziu efeitos imediatos quanto aos reclusos no momento da sua entrada em vigor, como será igualmente de aplicar a qualquer condenado com decisão transitada em julgado que adquira o estatuto de recluso durante a sua vigência, ou porque se apresentou (o condenado) voluntariamente no EP para cumprimento da pena de prisão ou porque foi detido e conduzido ao EP em consequência do cumprimento dos mandados de detenção para execução da pena (desde que se verifiquem os necessários requisitos substantivos exigidos)   
No mesmo sentido, escreveu-se  que, “…em termos sistemáticos, este artigo (o art 10º da referida Lei) inculca a ideia de que a lei não visou apenas ser dirigida para o imediato, a quem já era recluso, mas pretendeu contemplar situações de futuros reclusos, pois consagra que a vigência da “presente lei” só cessará quando acabar a situação excecional de “prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV2 e da doença COVID-19”, ideia que veio a ser reforçada através da lei nº 16/2020, de 29/05, que ao alterar o artigo 10º daquela lei veio afirmar que a mesma se mantinha em vigor, assim se afastando da doutrina e jurisprudências há muito existentes em sede de medidas de graça, precisamente porque atendeu “…às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo que estamos a viver, sem paralelo com outros momentos em que foram publicadas leis de amnistia” - cfr. o já supra referido Ac. da Rel. de Coimbra de 30-9-2020, 744/13.7TXCBR-P.C1.  
A esta argumentação pode ainda acrescentar-se que o n.º 7 do artigo 2.º da Lei 9/2020 de 10-4 (onde se refere a condição de recluso do beneficiário do perdão) remete apenas para o n.º 1 e 2, olvidando o n.º 3 onde consta a prisão subsidiária decorrente de conversão de penas de multa nos termos do artigo 49.º do Código Penal. E o n.º 5 de tal normativo diz que “relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão”, o que inculca a existência de penas principais que deverão ser perdoadas independentemente da situação de reclusão se for revogada a pena substitutiva no período de vigência da Lei 9/2020 de 10-4 e posteriormente à data de entrada em vigor desta Lei, uma vez que se tivesse sido intenção do legislador aplicar o perdão apenas a condenados reclusos, ao invés de ter dito, neste n.º 5, “se houver lugar à revogação ou suspensão” deveria ter dito “se tiver havido lugar à revogação ou suspensão” pois é pressuposto da reclusão ter existido, no passado, em momento anterior à entrada em vigor da Lei n.º 9/2020 uma revogação de pena substitutiva – cfr. alegações do Ministério Público, no Ac. da Rel. de Lisboa de 22-2-2021, processo n.º 784/16.4PHNST-A.L1-5».   
Ora, tudo ponderado, concordamos com a posição que entende que perdão pode ser igualmente aplicado a condenados que, no decurso da vigência daquela lei, venham a estar na situação de reclusão, como sucede no presente caso.  
Assim, porque o recluso foi condenado em pena inferior a 2 anos de prisão, não sendo a dita respeitante a qualquer um dos crimes elencados no n.º 6 do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril. Tampouco o(s) crimes(s) foi(ram) cometido(s) contra algum dos sujeitos enumerados no n.º 2 do artigo 1.º do mesmo diploma, está o mesmo, pelas razões expostas, em condições de beneficiar do perdão estabelecido e, desta sorte, sair imediatamente em liberdade.    
***

Pelo exposto, tudo visto e ponderado, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, decidimos:   
a)- Com efeitos a partir de hoje, perdoar o período remanescente de prisão que o recluso EVCA____teria de cumprir e cujo acompanhamento é feito nestes autos.  
b)- Este perdão é concedido sob a condição resolutiva de o mencionado recluso não praticar infracção dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acresce a pena perdoada.  
c)- Passe os competentes mandados de libertação para hoje, dia 19.10.2021.  
d)- O Estabelecimento Prisional, antes da libertação do recluso, deverá dar cabal cumprimento ao disposto no artigo 8.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril.
e)- Notifique o Ministério Público.  
f)-Notifique o Ilustre Mandatário/Ilustre Defensor Oficioso nomeado se for caso disso.  
g)-O Estabelecimento Prisional de afectação deve juntar cópia da presente decisão ao processo individual único do condenado.  
h)-De imediato comunique à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.  
i)- Após trânsito em julgado, comunique ao tribunal da pena em execução.
j)- Após trânsito em julgado, remeta boletim ao registo criminal – artigo 6.º, al. b) da Lei n.º 35/2015, de 5 de Maio e 12.º do Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25 de Agosto.”
 
II.–Inconformado com a decisão em apreço, veio o Ministério Público, interpor recurso em 11-11-2021 (refª 1653366), junto a fls. 32 e ss, através do qual oferece as seguintes conclusões:
 
a.- Nos presentes autos o condenado EVCA______ encontra-se em cumprimento da pena de 1 ano e 4 meses de prisão à ordem do processo n.º 856/17.8PBMTA, pela prática de crimes de roubo simples, por sentença transitada em julgado em 10/12/2018, pena inicialmente suspensa na sua execução, suspensão essa revogada por despacho transitado em julgado em 30.09.2020.
b.-O condenado só iniciou o cumprimento da pena em 17.09.2021, na sequência de despacho que determinou a execução da pena de prisão e, consequentemente a sua qualidade de recluso, o qual só transitou em julgado em 30.09.2020, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10.4.  
c.- Por douta decisão judicial, de 19.10.2021, foi determinado que, concordando com a posição que entende que perdão pode ser igualmente aplicado a condenados que, no decurso da vigência daquela lei, venham a estar na situação de reclusão, como sucede no presente caso e, porque o recluso foi condenado em pena inferior a 2 anos de prisão, não sendo a dita respeitante a qualquer um dos crimes elencados no n.º 6 do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, nem tampouco o(s) crimes(s) foi(ram) cometido(s) contra algum dos sujeitos enumerados no n.º 2 do artigo 1.º do mesmo diploma, está o mesmo, pelas razões expostas, em condições de beneficiar do perdão estabelecido. 
d.-E nessa sequência, o arguido foi libertado nessa data. 
e.-A nosso ver, e da interpretação que fazemos da conjugação dos nºs 1 e 5 da referida disposição legal, não só a sentença condenatória, como também o despacho que determina a revogação da suspensão da execução da pena, devem ter transitado em julgado antes da entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10.4., pois só desse modo a pena de prisão é exequível, e por força dessa exequibilidade, o condenado assume a qualidade de recluso e poderá ser beneficiário de perdão de pena, verificados os demais pressupostos legais. 
f.-Assim sendo, o recorrente só assume o estatuto de condenado em pena de prisão efetiva, e como tal, de potencial recluso beneficiário de perdão já depois da entrada em vigor da Lei 9/2020. 
g.-Até lá era um mero condenado que não estava, nem nunca poderia estar preso à data da entrada em vigor da Lei, a qual ocorreu em 11.4.2020, por força do disposto no seu artº11º. 
h.-Como tal, não se enquadra, a nosso ver, no espírito da lei a aplicação do perdão de penas, a condenados que não são reclusos à data da sua entrada em vigor, e que nunca o poderiam ser, uma vez que não estão, nesse momento, condenados em pena de prisão efetiva, mas apenas numa pena de substituição, que ainda não está convertida em prisão efetiva.  
i.-Ou seja, o uso legal da expressão recluso reporta-se a pessoas cuja decisão condenatória já transitou em julgado e a quem foi aplicada pena suscetível de ser executada em estabelecimento prisional, por reporte à data da entrada em vigor da Lei 9/2020.  
j.-Como tal, a douta decisão ora recorrida, ao conceder o perdão de pena ao arguido determinado a sua libertação, incorreu em violação do disposto nos 1, 5 e 7 do artº 2 da Lei nº9/2020, de 10.4., pelo que deve ser revogada e substituída por outra que não aplique essa lei ao caso. 
Contudo, Vªs Exªs. melhor farão JUSTIÇA!”
 
III.–O recurso foi admitido por despacho de 16-11-2021, com a refª 8649146, constante de fls. 39.
 
IV.–Não foi oferecida qualquer resposta.
 
V.–Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto proferido douto parecer em 31-01-2022 (refª 17975029), junto a fls. 50, no qual adere aos argumentos do MºPº de 1ª instância.
 
VI.–Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
 
VII: Analisando e decidindo.
 
O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.1

                                                 
1 Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº
1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do


Das disposições conjugadas dos artºs 368º e 369º, por remissão do artº 424º nº 2, e ainda o disposto no artº 426º, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:
 1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, aqui incluindo-se as nulidades previstas no artº 379º e os vícios constantes do artº 410º, ambos do CPP;
 2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artº 412º do CPP;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.
 
CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de
28.12.95).”.

Está em causa decidir nos autos se a Lei 9/2020 de 10-04 é aplicável ao arguido EVCA______ no sentido de se apurar se tal diploma pode ser aplicado a arguidos que não estão reclusos à data da sua entrada em vigor.
 
Antes de entrarmos na análise do recurso vejamos, primeiro, os factos processuais com interesse para se decidir a questão em referência.
 
a)-Por sentença proferida em 15-10-2018, e transitada em 10-12-2018, no âmbito do procº nº 856/17.8PBMTA, que correu termos pelo Juiz 2 do Juízo Local Criminal do Barreiro, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi o arguido EVCA_____condenado numa pena única de 1 ano e 4 meses, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com regime de prova, pela prática de dois crimes de roubo simples, um na forma consumada e outro na forma tentada. sentença junta a fls. 12 e ss com a certidão de fls. 9 e ss.
b)-A suspensão decretada no âmbito do procº nº 856/17.8PBMTA foi revogada por sentença proferida em 30-06-2020, transitada em julgado em 30-09-2020, tendo-se
determinado a execução da pena de prisão aplicada ao referido arguido. certidão de fls. 20
c)-Consequentemente, o arguido deu entrada no EP de Lisboa para cumprimento da referida pena de 1 ano e 4 meses em 17-09-2021. cfr. fls. 2
d)- a pena foi liquidada nos seguintes termos:
- a metade cumprir-se-á em 17-05-2022;
- os 2/3 cumprir-se-ão em 06-08-2022;
- a totalidade da pena cumprir-se-á em 17-01-2023. cfr. despacho de fls. 15 e ss
 
Vejamos, agora, o objecto do recurso.
 
A base legal necessária à análise do objecto dos presentes autos encontra-se na Lei nº 9/2020 de 10-04 que veio estabelecer o “Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID -19”.
 
A lei em causa “estabelece, excepcionalmente, no âmbito da emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19, as seguintes medidas:
a)- Um perdão parcial de penas de prisão;
b)- Um regime especial de indulto das penas;
c)- Um regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados;
d)- A antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional.” – artº 1º nº 1.
 
Sendo que, nos termos do artº 2º, subordinado à epígrafe “perdão” e o que interessa para o que se discute nos presentes autos:
 
“1– São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
2– São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.
3– O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.
4– Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos.
5– Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão.
6– Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos n.ºs 1 e 2 os condenados pela prática:
a)- Do crime de homicídio previsto nos artigos 131.º, 132.º e 133.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual;
b)- Do crime de violência doméstica e de maus tratos previstos, respetivamente, nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal;
c)- De crimes contra a liberdade pessoal, previstos no capítulo IV do título I do livro II do Código Penal;
d)-De crimes contra a liberdade sexual e autodeterminação sexual, previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal;
e)- Dos crimes previstos na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 210.º do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211.º do mesmo Código;
f)- De crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal;
g)- Dos crimes previstos nos artigos 272.º, 273.º e 274.º do Código Penal, quando tenham sido cometidos com dolo;
h)- Do crime previsto no artigo 299.º do Código Penal;
i)- Pelo crime previsto no artigo 368.º-A do Código Penal;
j)- Dos crimes previstos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do Código Penal;
k)-Dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual;
l)-De crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;
m)- De crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas;
n)- Dos crimes previstos nos artigos 144.º, 145.º, n.º 1, alínea c), e 147.º do Código Penal.
7– O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.
8– Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.
9– O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 só pode ser aplicado uma vez por cada condenado.”
 
Ora, a questão que se coloca no âmbito deste recurso prende-se com o facto do arguido não ser um “recluso” ao tempo em que a Lei nº 9/2020 entrou em vigor uma vez que o arguido só viria dar entrada no respectivo EP em 17-09-2021.
 
Sendo que existem duas correntes jurisprudenciais: 
- uma que propugna que a Lei nº 9/2020 só pode beneficiar os arguidos que já se encontravam reclusos ao tempo da sua entrada em vigor, em 11-04-2020, e que é maioritariamente seguida pela jurisprudência2, e
- outra que entende que a sua aplicação pode ocorrer mesmo em relação a arguidos que em momento posterior à sua entrada em vigor deram entrada num estabelecimento prisional, desde que tenham sido condenados por sentença transitada em julgado antes de 11-04-2020 e desde que se verifiquem também os restantes requisitos previstos no citado artº 2º.


                                                 
2 Acs. da Relação de Coimbra de 30-09-2020, de 07-10-2020, de 28-10-2020, e de 30-09-2020 in http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/df68eec7fd6c5e14802585f9003e24b3?OpenD ocument; 
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/33d484700ed87aaf802585fc0052e89f; https://trc.pt/perdao-de-pena-10/
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/df68eec7fd6c5e14802585f9003e24b3?OpenD ocument;

de             Évora                     de                     22-06-2021                  in
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b8906606e4d9eda480258706007093d7?Open Document;
Ac.   Relação    de                 Lisboa                 de                  01-06-2021                  in
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c7f2ccf2273481ba802586f4004e800f?OpenDo cument
 
 
Esta segunda orientação assenta, essencialmente, no facto do nº 10 da Lei nº 9/2020 determinar o seguinte:
“A presente lei cessa a sua vigência na data fixada pelo decreto-lei previsto no n.º 2 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o qual declara o termo da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”
 
E de tal nº 10 ter sido alvo de alteração por parte do artº 3º da Lei nº 16/2020 de 29-05 que diz o seguinte:
“A presente lei cessa a sua vigência na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”
 
Ou seja, porque a Lei em apreço ainda se mantém em vigor e porque “atendendo à intenção legislativa de evitar a expansão da Covid-19 no meio prisional”[1] o perdão previsto no artº 2º tanto se deve aplicar aos arguidos já reclusos como àqueles que o venham a ser, desde que os restantes requisitos legais também se verifiquem.
 
Já a primeira orientação, que é minoritariamente seguida nas várias Relações[2], assenta num fundamento estritamente literal que, dada a natureza excepcional do diploma em questão, terá de se sobrepor sobre qualquer outro argumento eventualmente viável.
 
Vejamos.
 
Em abono da tese de que a Lei nº 9/2020 só se aplica a arguidos que estivessem presos no momento de entrada em vigor daquela Lei temos Nuno Brandão que, na Revista Julgar On-Line, de Abril de 2020, subordinado ao tema “A libertação de reclusos em tempos de COVID-19. Um primeiro olhar sobre a Lei n.º 9/2020, de 10/4”,[3] refere o seguinte:
             
“As circunstâncias extintivas ou flexibilizadoras do cumprimento da pena de prisão previstas na Lei n.º 9/2020 só são aplicáveis a condenados que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor (11.04.2020). Com efeito, além de exigirem o trânsito em julgado da sentença condenatória em pena de prisão[4], tais medidas pressupõem ainda que a execução dessa pena se encontre já em curso.  
As razões excepcionais que determinaram a aprovação da presente Lei só valem em relação aos condenados que se encontrem privados da liberdade no momento da sua entrada em vigor. Nessa medida, e para que fique claro que só esses condenados são destinatários deste regime excepcional, nos artigos 2.º/1, 3.º/1e 4.º/1 faz-se menção expressa aos reclusos – sc., os condenados privados da liberdade – como destinatários deste regime excepcional.  
Assim, o perdão que se prevê no art. 2.º não abrange, desde logo, crimes que não hajam sido objecto de uma decisão condenatória transitada em julgado à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020. Por exemplo, o agente de um crime de furto simples cometido em 2019 que venha a ser condenado em 2021 não beneficiará do perdão concedido pelo art. 2.º, sendo-lhe inaplicável o disposto no art. 2.º/4 do CP. Do mesmo modo, tendo em conta o disposto no art. 2.º/7, não haverá perdão (e concomitante libertação ao abrigo do art. 2.º) nos casos de reclusos que se encontrem em regime de prisão preventiva no momento da entrada em vigor do diploma e cuja condenação transite em julgado ainda durante o período da pandemia da doença COVID-19. 
De fora deste perdão ficarão ainda aqueles que hajam sido condenados por decisão já transitada em julgado aquando do início de vigência da Lei n.º 9/2020, 11.04.2020, mas que nessa data ainda não haviam ingressado num estabelecimento penitenciário para iniciar a execução da pena de prisão que lhes foi aplicada. Voltando ao exemplo do furto simples cometido em 2019, se a condenação transitou em julgado em Janeiro de 2020, sem que, todavia, se tenha iniciado a execução da pena antes do dia 11.04.2020, não haverá lugar a perdão. Nestas situações, será aconselhável aguardar pelo termo da presente situação excecional[5] para se dar início ao cumprimento de tais penas.”[6] – sublinhado nosso
             
Contudo, a nosso ver, se a Lei nº 9/2020 de 10-04 fosse aplicável apenas a reclusos existentes em 11-04-2020, isto é, a arguidos que já se encontravam encarcerados à data de entrada em vigor da referida Lei, ou seja, já se encontravam presos em EP em 11-042020, por sentença transitada em julgado também em momento anterior a 11-04-2020, então a referida lei teria aplicação única, abrangendo apenas a situação existente ao tempo da sua entrada em vigor, não dispondo para o futuro.
 
O que contraria o disposto no artº 10º da mesma Lei nº 9/2020, cuja redacção foi alterada pela Lei nº 16/2020, que prevê a vigência da Lei 9/2020 até que essa vigência seja declarada cessada por outra Lei que ponha fim ao regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
 
Ou seja, se a Lei nº 9/2020, que prevê tanto o perdão como o indulto, ambos extintivos das penas ou o que delas sobra, fosse aplicável apenas aos reclusos existentes em EP ao tempo da sua entrada em vigor em 11-04-2020, então a mesma não poderia ter uma norma que prevê a sua vigência por um período indeterminado de tempo, pois que estando todos os reclusos existentes em EP em 11-04-2020 abrangidos pela Lei nº 9/2020 que mais pessoas poderiam ser abrangidas?
 
Nenhumas.
 
E, se mais nenhumas pessoas poderiam ser alvo da aplicação da Lei nº 9/2020 de 10-04, porque motivo então o legislador previu no artº 10º da Lei a vigência da mesma para além da sua entrada em vigor em 11-04-2020, e que até alterou em 29-05, com a Lei nº 16/2020 para durar por um tempo indeterminado, porquanto não se sabe quando vai ser elaborada a Lei que põe fim ao regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19?
 
Isto é, a interpretação oferecida por Nuno Brandão e pela jurisprudência que segue essa orientação é a de que a Lei nº 9/2020 seria de aplicação instantânea e única o que é contraditado pela existência do artº 10º.
 
Ora, quer se concorde ou não com a solução adoptado pelo Legislador para acautelar a propagação da doença Covid-19 no meio prisional – pois há quem entenda que não era preciso perdoar penas para se acautelar o problema sanitário em curso[7] – a verdade é que objectivamente o legislador, tendo consciência de que a prisões portuguesas revelam graves deficiências a nível de acomodações da população prisional, que agravam a situação epidemiológica provocada pela doença Covid-19, decidiu aliviar a população prisional durante a existência da pandemia e não só em relação a um momento específico.
 
Como resulta da exposição dos motivos da Proposta de Lei nº23/XIV que deu origem à Lei citada «A Organização Mundial de Saúde qualificou, no dia 11 de março de 2020, a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como uma pandemia internacional, e como calamidade pública.
Face a essa qualificação e ordenado pelo fundamento final de conter a expansão da doença, o Presidente da República decretou, no dia 18 de março o estado de emergência.
Portugal tem atualmente uma população prisional de 12 729 reclusos, 800 dos quais com mais de 60 anos de idade, alojados em 49 estabelecimentos prisionais dispersos por todo o território nacional.
As Nações Unidas, através de mensagem da Alta Comissária para os Direitos Humanos de 25 de março, exortaram os Estados membros a adotar medidas urgentes para evitar a devastação nas prisões, estudando formas tendentes a libertar os reclusos particularmente vulneráveis à COVID 19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco.
As especificidades do meio prisional, quer no plano estrutural, quer considerando a elevada prevalência de problemas de saúde e o envelhecimento da população que acolhe, aconselham que se acautele, ativa e estrategicamente, o surgimento de focos de infeção nos estabelecimentos prisionais e se previna o risco do seu alastramento.
(…)
Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto, que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade. Estas medidas extraordinárias constituem a concretização de um dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito.».
 
E, na realidade, como nota o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa:  
“em muitos países europeus, a pandemia surge num contexto de prisões sobrelotadas e de más condições de privação da liberdade em celas colectivas de pequenas dimensões, com serviços de saúde insatisfatórios, bem como altos índices de infecções e doenças crónicas entre os reclusos, como tuberculose, diabetes e HIV.”[8] – sublinhado nosso
 
Sendo que: “Alguns destes males fazem-se sentir no sistema carcerário português. 
Numerosos estabelecimentos prisionais registam sobrelotação: no final de 2018, embora a taxa de ocupação das prisões fosse de 99% da capacidade instalada, havia 25 penitenciárias (num total de 49) com excesso de lotação7. A taxa de incidência de tuberculose é elevada, quer na comparação com a população portuguesa em geral, quer com a população reclusa na União Europeia[9]. Subsistem estabelecimentos penitenciários com condições de salubridade que deixam ainda muito a desejar, para dizer o menos[10]. A taxa de encarceramento é das mais elevadas da União Europeia: em Janeiro de 2018, ascendia a
124,9 reclusos por cada 100.000 habitantes.”[11]
 
Ou seja, o que está verdadeiramente na base da Lei nº 9/2020 de 10-04 é a preocupação de propagação da doença Covid-19 em meio prisional atentas as especificidades que este meio, em Portugal, apresenta com sobrelotação e falta de condições.
 
Sendo que, a Provedora de Justiça  “recomendou uma libertação temporária dos reclusos que já hajam beneficiado, com sucesso, de licenças de saída”[12]enquanto que o Comissário  para os Direitos Humanos “lançou um forte apelo, dirigido a todos os Estados Membros, para que, sempre que possível, façam uso de meios alternativos à privação da liberdade, incluindo libertações temporárias ou antecipadas, amnistias, prisão domiciliária ou atenuações de penas.”[13]  
 
Assim, a ratio da Lei nº 9/2020 de 10-04 prende-se com razões sanitárias, as quais não só existiam ao tempo da sua entrada em vigor, mas ainda continuam a existir volvidos vários meses, sendo que ainda não foi publicada a Lei que põe termo ao regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
 
Se o que preocupa o legislador é o facto das prisões portuguesas, já de si sobrelotadas, criarem focos de infecção, esses focos não deixam de existir porque num determinado momento, em 11-04-2020, foram libertados várias centenas de arguidos, se continuam a dar entrada nos estabelecimentos prisionais outras tantas dezenas ou mesmo centenas.
 
Ora, conforme impõe o artº 9º do Código Civil quanto à interpretação a dar a qualquer norma:
1.-A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2.-Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3.- Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
             
Aqueles que defendem a tese de que apenas estariam em causa os reclusos ao tempo da entrada em vigor da Lei nº 9/2020 precisamente porque o legislador utilizou a palavra “recluso”, esquecem-se não só da existência do artº 10º da Lei nº 9/2020, bem como da ratio por detrás da lei, excluindo, assim, uma interpretação sistemática e teleológica da lei em abono de uma interpretação estritamente literal.
 
Mas mesmo a interpretação meramente literal do diploma em análise não se mostra, a nosso ver, correcto.
 
Vejamos.
 
A utilização pelo legislador da palavra “recluso” não permite excluir arguidos que só venham a estar nessa condição após a entrada em vigor da Lei nº 9/2020, desde que reúnam os outros requisitos legais – trânsito em julgado da sentença condenatória e não verificação do leque de crimes enumerados no artº 2º nº 6 do referido diploma, nem crimes cometidos contra certo tipo de vítima – porquanto o que o legislador quis acautelar eram precisamente
“reclusos” ou seja, pessoas com entrada em estabelecimento prisional, local de possível foco de infecções dadas as suas características fechadas, e não arguidos em liberdade.
 
Ou seja, a condição de aplicação da Lei nº 9/2020 é a de que o arguido já se encontra dentro de um EP, quer tenha dado entrada em momento anterior a 11-04-2020, quer venha a dar entrada em momento posterior, desde que a sua condenação seja anterior à publicação da Lei nº 9/2020.
 
Porque é precisamente a situação de entrada num Estabelecimento Prisional que eleva o risco de infecção e contágio da doença Covid-19.
 
A palavra “recluso” apenas visa abranger arguidos fisicamente presos e não apenas arguidos presos em 11-04-2020.
 
A interpretação que aqui seguimos afigura-se-nos ser a mais consentânea com as regras interpretativas plasmadas no artº 9º do Código Civil uma vez que, respeitando a letra da lei (recluso é toda e qualquer pessoa fisicamente presa dentro de um EP, independentemente do momento dessa prisão) respeita igualmente a ratio da mesma (acautelar um problema de saúde pública dentro de estabelecimentos fechados já de si sobrelotados e sem condições) bem como a sua inserção sistemática, dado que o artº 10º da mesma lei leva a concluir que a vigência do diploma legal em apreço é indeterminada e não está afecta a um único momento temporal.
 
E esta interpretação não belisca o facto da Lei nº 9/2020 ser uma lei excepcional porquanto a interpretação realizada respeita o diploma no seu todo e não extrapola para situação análogas.
 
Como se disse, a palavra “recluso” não tem qualquer temporalidade associada sendo antes uma palavra que visa definir uma condição de encarceramento em EP.
 
Portanto, recluso é todo aquele que vem a estar preso em EP quer ao tempo da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, quer posteriormente, durante a vigência do mesmo.
 
No fundo a Lei nº 9/2020 obriga a que o arguido condenado em pena de prisão tenha já recolhido a um EP, não sendo aplicável o perdão (ou indulto) a um arguido condenado mas em que o cumprimento da pena de prisão não se tenha iniciado, pois de resto, nunca faria sentido a aplicação das medidas também previstas nas al.s c) e d) do nº 1 do artº 1º da Lei nº 9/2020, ou seja, um regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados (al. c) e a antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional (al. d) que pressupõem a condição de recluso e não apenas de condenado, sem contudo, estabelecer o momento temporal.
 
Por fim, a interpretação por nós propugnada é a única que respeita o princípio da igualdade plasmado no artº 13º da CRP uma vez que trata de forma igual os arguidos que reúnem as mesmas condições, cabendo perguntar, em relação à tese oposta, qual a justificação dada pelo facto de um recluso ao tempo da entrada em vigor da Lei nº 9/2020 poder ver a sua pena perdoada e outro, preso em momento posterior mas nas mesmíssimas condições (sentença transitada em julgado em momento anterior a 11-04-2020) ter de cumprir pena de prisão?
 
Ora, no caso em apreço, o arguido EVCA______ foi condenado numa pena única de prisão de 1 ano e 4 meses (portanto numa pena inferior a 2 anos) por sentença transitada em julgado em 10-12-2018[14], ou seja, antes da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, pela prática de um crime de roubo simples, p. e p. pelo artº 210º do CP, na forma tentada e outro na forma consumada (portanto por crime fora do leque de crimes proibidos).
 
Preenche, consequentemente, os requisitos previstos para aplicação da Lei nº 9/2020 sendo que passou a condição de recluso em 17-09-2021, ou seja, ainda na vigência da referida Lei.
 
Reúne, pois, todos os requisitos legais para beneficiar do perdão previsto na Lei nº 9/2020 e aplicado pela Tribunal a quo.
 
Sendo que, a nosso ver, o MºPº recorrente confunde o trânsito em julgado da decisão que revogou a suspensão da execução da pena de prisão com o trânsito em julgado que é exigido pelo artº 2º da Lei nº 9/2020.
 
É que o trânsito em julgado que releva é o da sentença condenatória pois só esta é que aplica ao arguido uma pena de prisão, embora suspensa na sua execução.
 
A decisão que revoga a suspensão não é uma sentença condenatória de pena de prisão, aliás, nem sequer é uma sentença mas um despacho decisório.
 
Ora, o artº 2º da Lei nº 9/2020 é claro ao referir-se a “penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado…”
 
A decisão que revoga a suspensão da execução da pena não é uma decisão condenatória do recluso, não sendo essa decisão que releva para efeitos de apuramento da aplicação da Lei nº 9/2020.
 
Consequentemente tem de improceder o recurso interposto pelo MºP.
 
Decisão:

Em face do acima exposto decidem os Juízes Desembargadores da 3ª secção em negar provimento ao recurso interposto pelo MºPº e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
 
Sem custas.



Lisboa, 09 de Março de 2022.
                                     

Florbela Sebastião e Silva
  (Relatora)
                                    
Alfredo Costa
  (Adjunto)



[1]Acórdão Relação do Porto de 21-10-2020 procº nº 150/14.6GBILH.P2 in www.dgsi.pt.
[2]Vide a título meramente exemplificativo: Ac. Relação de Lisboa de 26-01-2021, procº nº 665/13.9TXLSBO.L1-5 in https://jurisprudencia.pt/acordao/198266/; Ac. Relação de Guimarães de 09-12-2020, procº nº 242/15.4GEBRG.G1 in www.dgsi.pt.
[3] In Downloads/20200411-ARTIGO-JULGAR-Libertação-de-reclusos-Análise-Lei-9-2020-Nuno-randão.pdf  
[4]Cf., v. g., o art. 2.º/7.
[5]Cf. artigos 7.º/2 da Lei n.º 1-A/2020 e 10.º da Lei n.º 9/2020.
[6]Nuno Brandão, ob.cit., pp. 6 e 7.
[7]Veja-se, Nuno Brandão in ob.cit., pp. 11 a 13.
[8]“Statement: COVID-19 pandemic: urgent steps are needed to protect the rights of prisoners in Europe” –   https://www.coe.int/en/web/commissioner/-/covid-19-pandemic-urgent-steps-are-needed-toprotect-the-rights-ofprisoners-in-europe
[9]Karla Tayumi Ishiy, “Relatório sobre população reclusa em Portugal em 2018”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2/2019,  p. 435 e s.
[10]Cf. o relatório do Comité para a Prevenção da Tortura, reportado à visita efectuada no ano 2016, publicado em 27.02.2018 (https://hudoc.cpt.coe.int/).
[11]Nuno Brandão, ob.cit., p. 3.
[12]Recomendação n.º 4/B/2020 da Provedora de Justiça, dirigida à Ministra da Justiça, datada de 26.03.2020.
[13]Nuno Brandão, ob.cit., p. 4.
[14]É esta condenação que releva e não da decisão que revoga a suspensão da execução da pena.