Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
465/21.7TXLSB-B.L1-5
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: PERDÃO
RECLUSO
COVID-19
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Perante uma situação de reclusão, posterior à data de entrada em vigor da lei 9/2020, mas no decurso da sua vigência, as razões que determinaram o legislador a criar as normas de excepção, mantém a sua plenitude, devendo a pena do recluso, verificados os demais requisitos, ser objecto de apreciação para aferir da aplicabilidade do regime de perdão.
- Face à Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, embora o recorrente se mostrasse, à data da entrada em vigor da mesma, já definitivamente condenado em pena de prisão, não se encontrava ainda recluso – isto é, não estava em cumprimento de pena, o que ocorreu após a revogação da suspensão de execução da pena de um ano prisão que lhe havia sido aplicada e determinado o cumprimento efectivo da mesma, pelo que reunia as condições para aplicação do perdão aí previsto.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

O arguido J. e o Ministério Público inconformados com o despacho de 01/04/2021, interpuseram do mesmo o presente recurso, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões:
O arguido J.
“ a- A decisão proferida pelo Tribunal "a quo" violou o artigo 13.°da CRP - princípio da igualdade.
b- Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo interpretou de forma manifestamente errada a norma constitucional do princípio da igualdade, que, manifestamente, se acha violado.
c.- Mal andou o tribunal no despacho recorrido, porquanto conforme se extrai da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.°23/XIV, de 2 de Abril de 2020: retira-se que a Proposta do Governo parecia apontar no sentido de serem tomadas medidas para um determinado momento, bem delimitado no tempo, isto é apenas para o imediato, contudo, na versão final da Lei 9/2020, de 10 de Abril, foi mais além da referida proposta e consagrou, expressamente, o seguinte: "Artigo 10.° (Cessação de vigência): A presente lei cessa a sua vigência na data fixada pelo decreto-lei previsto no n° 2 do artigo 7° da Lei n° 1-A/2020, de 19 de Março, o qual declara o termo da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19."
d- Salvo o devido respeito, em termos sistemáticos, este artigo inculca a ideia de que a lei não visou apenas ser dirigida para o imediato, a quem já era recluso, mas pretendeu contemplar situações de futuros reclusos, pois consagra que a vigência da "presente lei" só cessará quando acabar a situação excepcional de "prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19."
e.- Aliás, tal ideia, veio a ser reforçada através da Lei n° 16/2020, de 29 de maio, onde pode ser lido o seguinte: "Artigo 3.° Alteração à Lei n° 9/2020, de 10 de Abril. O artigo 10° da Lei n° 9/2020, de 10 de Abril, passa a ter a seguinte redacção: «Artigo 10.° (...) "A presente lei cessa a sua vigência na data a fixar em lei que declare o final do regime excepcional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica porSARS-CoV-2 e da doença COVID-19."
f.- Ora, o legislador, em 29 de Maio de 2020, veio afirmar que a Lei n° 9/2020, se mantinha em vigor.
g.- Por conseguinte, reiterou a ideia de que os reclusos que se encontrarem nas circunstâncias nela previstas devem beneficiar de perdão, o que só pode querer significar que a lei não se aplica só a quem era recluso à data da entrada em vigor da mencionada Lei n° 9/2020, pois, quanto a tais cidadãos, já os Tribunais De Execução de Penas decidiram nos dias seguintes àquela.
h.- Pelo que violou o tribunal as disposições conjugadas no artigo 2°, n° 1, n° 6 a contrario, n° 5 e n° 7 da Lei n° /2020, de 10/04
Termos em que, se requer a V. Exas., Senhores Juízes Desembargadores, que o presente recurso seja julgado procedente, substituindo a decisão de recusa de aplicação de perdão por uma que conceda o respectivo perdão da pena de prisão.
ASSIM SE CUMPRIRÁ O DIREITO E SERÁ FEITA JUSTIÇA! ”.
O Ministério Público                     
“ 1- Vem o presente recurso interposto da decisão de não concessão do perdão da pena de um ano de prisão que o recluso está a cumprir pela prática de um crime de furto qualificado em que foi condenado por decisão transitada em julgado antes da entrada em vigor da Lei 9/2010 de 10-4.
2 - Em causa está a interpretação dada às normas previstas no art°2°ns° 1,2,4 e 7 da Lei 9/2020 de 10-4, no sentido de considerar que, verificados os demais pressupostos de aplicação do perdão da pena, obsta contudo à sua aplicação, o fato de o recluso só ter iniciado o seu cumprimento após o dia 11-4-2020, data da entrada em vigor da Lei 9/2020 de 10-4.
3 - A Lei 9/2020 de 10-4, entrada em vigor no dia 11-4-2020, como Lei de excepção, prevê um regime excepcional de flexibilização da execução das penas e medidas de graça no âmbito da pandemia da doença COVID-19, e visa acautelar a propagação da doença em meio prisional, protegendo os reclusos.
4- Sobre a sua interpretação, é uniforme e pacífico o entendimento de que, como providência de excepção, deve ser interpretada e aplicada nos seus precisos termos, só sendo lícito o recurso à interpretação declarativa e nunca à extensiva, restritiva ou analógica.
5- Estabelecendo limites à sua aplicação, consagra no art.º 2° n° 7, os pressupostos gerais de aplicação, definindo, além do mais, o limite temporal da data de trânsito em julgado da(s) condenação(ões) pelas quais o recluso cumpre pena e que releva para a aplicação do perdão, e a obrigatoriedade da condição de recluso.
6-. Contudo, nem nessa norma nem em qualquer outra, define ou limita o momento em que releva a condição de recluso para poder beneficiar do perdão previsto Lei.
7- Patente é, pois, que o legislador teve como preocupação a protecção da população prisional (elemento lógico, correspondente ao espírito da lei) e que estabeleceu a condição de recluso como pressuposto para a aplicação do perdão (elemento gramatical correspondente à letra da lei), condicionando a sua concessão, para além do mais que aqui não é posto em causa, à existência de uma condenação transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor da Lei.
8 - O legislador não disse mais nem menos, ou seja, não disse que para além da condição de recluso também era necessário que a mesma se verificasse à data da entrada em vigor da Lei (interpretação restritiva).
9- O resultado da interpretação no caso concreto deve ser claro e linear, correspondendo à chamada interpretação declarativa, devendo o intérprete atender às regras gerais inscritas no art.9° do C Civil, que no caso concreto suportam o entendimento por nós sufragado.
10- Pois que, socorrendo-nos destas regras, impõe-se também ter presente o facto de a Lei prever, no seu art.º10°, um período de vigência - embora ainda não delimitado com precisão, pois o seu termo foi diferido para momento desconhecido - o que corrobora a interpretação de que enquanto durar a Lei o condenado que reunir os requisitos nela previstas- incluindo aquele que vier a adquirir a condição de recluso- , pode beneficiar do perdão.
11- Interpretação contrária seria manifestamente restritiva dos direitos instituídos pelo diploma.
12- Acresce que a Lei 9/2020, de 10-04, deve ser compreendida de forma integrada com o conjunto de diplomas que o legislador criou dentro do mesmo propósito de combate à pandemia e com as finalidades de cada um, aqui sopesando a Lei 1-A/2020, de 19-03, que criou medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocadas pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19.
13- O art.7° da Lei 1-A/2020, de 19-03, na redacção introduzida pela Lei 4- A/2020, de 06-04, estabeleceu a suspensão de todos os prazos para a prática de actos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, até à cessação da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença Covid-19.
14- Contudo, a suspensão generalizada dos prazos e de actos, mesmo em alguns processos de natureza urgente, introduzida pela Lei 1-A/2020, de 19-03, cessou com a entrada em vigor da Lei 16/2020, 29-05, diploma que revogou o mencionado art.7 ° daquela Lei. Concomitantemente, esta Lei 16/2020, 29-05, alterou o art.10° da Lei 9/2020, de 10-04, definindo agora que esta cessa a sua vigência em data a fixar em lei que declare o final do regime excepcional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS- CoV-2 e da doença Covid-19.
15- De concluir é assim que a Lei que concede o perdão de penas continua em vigor apesar de os prazos e, salvo algumas exceções, os actos e procedimentos a praticar nos tribunais judiciais retomarem a sua marcha normal.
16 -Esta evolução legislativa, a par da ausência de criação de qualquer norma que expressamente continuasse a acautelar a entrada de condenados no estabelecimento prisional, consolida o entendimento de que enquanto a Lei 9/2020, de 10-04 vigorar, é possível aplicar o perdão previsto no seu art.2.°, n° 1, aos condenados por decisão transitada em julgado até 10-04-2020 que reúnam as condições previstas na lei e assumam nesse período de vigência da lei a condição de recluso.
17- De outro modo, com o inevitável crescimento da população prisional - pois nada impede ou limita agora a emissão e execução de mandados de captura - não se estaria a acautelar o surgimento de novos focos de infecção junto da população prisional, objectivo fulcral da Lei 9/2020, de 10-04, que continua a vigorar.
18 - Não corresponde assim a uma interpretação declarativa do diploma, o entendimento de que o art.2.°, n° 1, da Lei 9/2020, de 10-04 só se aplica aos condenados que, reunindo as demais condições previstas na lei e que aqui não são contravertidas, se encontravam reclusos em 11-04-2020, pois que afinal tal solução não daria a adequada cobertura à preocupação de protecção da população prisional presente no pensamento do legislador.
19 - Os princípios gerais de interpretação da Lei 9/2020 de 10-4 levam assim a concluir que não constitui limite à aplicação do perdão a data em que o recluso inicia o cumprimento de pena(s) abrangidas pela Lei 8/2020 de 10-4, enquanto esta se mantiver em vigor.
20- Assim considerando, de concluir é que nos presentes autos estão reunidos os pressupostos legais que permitam que seja declarado o perdão da pena de um ano de prisão que o recluso está a cumprir desde 22-3-2021.
21- Ao proferir a decisão sob recurso, o Tribunal violou assim, por erro de interpretação, os art°2° n° 1 e 7 da Lei 9/2020 de 10.
Pelo que a decisão recorrida deve ser substituída por outra que conclua poder o recluso beneficiar do perdão da pena que está a cumprir e, em consequência, decidir pela sua libertação.
Porém, Vossas Excelências, decidindo, farão como sempre a costumada JUSTIÇA”
O Ministério Público respondeu às motivações de recurso apresentadas pelo Arguido Recorrente, pugnando pela procedência do mesmo.
Arguido Recorrente respondeu às motivações de recurso apresentadas pelo Ministério Público, pugnando pela procedência do mesmo.
Neste Tribunal o Exmo. Procurador- Geral Adjunto teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido do não provimento do recurso.
Tendo sido dado cumprimento ao disposto no n° 2 do Art.º 417° do C. P. Penal, o recorrente veio responder (cfr. fls. 58 a 61), pugnando no mesmo sentido da respectiva motivação.
Efectuada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.
A DECISÃO RECORRIDA
A medida de graça prevista no artigo 2° da Lei n° 9/2020, de 10 de Abril, tem como destinatários cidadãos reclusos transitadamente condenados, tal como decorre inequivocamente da terminologia empregue nos n°s 1, 2 e 4 daquele artigo.
Quanto ao âmbito temporal do perdão em causa, tendo a lei entrado em vigor em 11.04.2020, a mesma só se aplica a cidadãos que já sejam reclusos naquela data e cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à referida (ou seja, até 10.04.2020), tal como definido no seu artigo 2°, n° 7, disposição que define o limite temporal inicial de aplicabilidade.
Em contraponto, de acordo com o estabelecido no artigo 10° da lei em presença, esta “cessa a sua vigência na data fixada pelo decreto-lei previsto no n° 2 do artigo 7° da Lei n° 1-A/2020, de 19 de Março, o qual declara o termo da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, com o que fica definido o seu limite temporal final de aplicabilidade, incerto na presente data.
Assim, salvaguardadas as exclusões legais, o cidadão que na data de 11.04.2020 preencher a totalidade dos pressupostos de concessão do perdão, de natureza substancial, desde logo a apontada condição de recluso, e de cariz temporal (previstos no artigo 2.°, n°s 2 e 4, da lei em presença), podendo o requisito temporal ser adquirido, por via do decurso do tempo, ao longo do período de vigência da lei (posto que já se verificassem os necessários pressupostos de reclusão e trânsito em julgado no momento da entrada em vigor da lei), deverá beneficiar do perdão, mas já não para além do apontado limite temporal final de aplicabilidade, sob pena de os efeitos da lei perdurarem no tempo de forma sequenciada, sem limite temporal definido, bem para além dos resultados pretendidos.
Com efeito, esta medida de graça da lei em causa inscreve-se num contexto excepcional de emergência de saúde pública, com vista à obtenção da finalidade de diminuição da população prisional existente no seu domínio de vigência (e apenas nele), como forma de salvaguarda dos interesses gerais da saúde pública nos estabelecimentos prisionais.
Assim sendo, tem necessariamente de se concluir que não é beneficiário do perdão instituído o condenado que cumpre pena de prisão em regime de permanência na habitação nem, por maioria de razão, aquele que se encontra em liberdade.
Mais sucede que o cidadão recluso que se encontrava sujeito a prisão preventiva no momento da entrada em vigor da lei não pode beneficiar do perdão em causa caso venha a transitar em julgado sentença condenatória durante o período de vigência da lei, tal como decorre do limite temporal inicial acima apontado.
No caso de o condenado dar entrada em estabelecimento prisional durante a vigência da lei a questão é de solução menos evidente, pois a letra do n° 7 do seu artigo 2° pode ser interpretada no sentido de admitir, ainda aqui, a aplicabilidade do perdão.
Resulta do que já acima ficou exposto que se afigura que essa solução não é admissível. Vejamos porquê.
É um princípio geral de interpretação, não exclusivo da análise jurídica, que a conclusão a retirar não seja suscetível de conduzir a um resultado absurdo ou inadequado.
Cabe então perguntar se é razoável que se prenda um cidadão com o fundamento do cumprimento de uma pena de prisão para, logo em seguida, se prover à sua libertação por via da aplicação de perdão.
A resposta deve ser, evidentemente, negativa, não sendo esse resultado apenas inadequado, mas também absurdo à luz de qualquer olhar, jurídico ou não.
Contudo, seria esse o resultado alcançado no caso de se impor apenas, para a aplicação do perdão em análise, o limite do trânsito em julgado da decisão condenatória e não também o de o cidadão condenado se encontrar já recluso em estabelecimento prisional no momento da entrada em vigor da lei.
É que a condição de recluso, no dizer da lei (artigo 2.°, n.ºs 1, 2 e 4), como já se viu, é basilar ao benefício do perdão, cuja aplicação, por seu turno, é da competência especial do tribunal de execução das penas territorialmente competente (artigo 2.°, n° 8), não podendo essa atividade processual ser produzida por qualquer outro tribunal.
A esta solução não se oponha que, desse modo, a finalidade da lei seria perturbada por via da libertação de menos reclusos, pois é a própria lei que, impondo o limite temporal inicial do trânsito em julgado da decisão condenatória, conduz a que um cidadão já recluso em prisão preventiva na data da sua entrada em vigor não seja libertado se, no seu domínio de vigência, vier a ser transitadamente condenado em pena de prisão.
E não se oponha também poderem originar-se situações injustas pois, como é consabido, qualquer lei de amnistia e perdão, por força do seu âmbito temporal de aplicabilidade, conduz necessariamente a situações de injustiça relativa.
Ademais, dir-se-á que por efeito da solução aqui afastada resultaria que um condenado na situação de evadido, não regressado de licença de saída ou contumaz, sabedor da lei de perdão publicada, viesse agora a apresentar-se ao cumprimento da pena de prisão com o único fito de lograr a obtenção da extinção do seu remanescente por via da aplicação do perdão, o que constitui um efeito perverso e, como tal, inadequado.
Por fim, para uma compreensão completa do problema, cumpre dizer uma palavra em relação ao n° 5 do citado artigo 2.°. Esta norma inscreve-se na mesma economia global do artigo, dizendo também ela respeito, unicamente, a cidadãos reclusos que o fossem já na data da entrada em vigor da lei, mantendo algum campo de aplicação em relação a decisões revogatórias que ocorram no seu domínio de vigência, proferidas noutro processo que não aquele em que está decretada a prisão preventiva em execução (sobre este ponto e sobre a questão principal tratada neste despacho, v. o estudo de Vítor Pereira Pinto, com data de 13.04.2020, publicado no SIMP).
Pelo exposto, considerando que o condenado J.não se encontrava recluído em estabelecimento prisional na data da entrada em vigor da Lei n° 9/2020, de 10 de Abril, somente tendo dado entrada no estabelecimento prisional em 22.03.21, nos termos das disposições conjugadas do artigo 2°, n.ºs 1, 2, 4 e 7 da lei em referência, não beneficia de qualquer perdão dessa lei, o que se declara.
Notifique o Ministério Público, o recluso e, existindo nos autos, o seu defensor/mandatário.
Comunique ao processo da condenação.”
O OBJECTO DO RECURSO DO ARGUIDO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO
 Perante os factos considerados provados pela 1ª instância, importa agora curar do mérito do recurso, tendo-se em atenção que é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer - Cfr. o Ac do STJ de 3.2.99 in BMJ 484, pág 271; o Ac do STJ de 25.6.98 in BMJ 478, pág 242; o Ac do STJ de 13.5.98 in BMJ 477, pág 263; SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal” cit., págs. 74 e 93, nota 108; GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, pág. 335; JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387; e ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363) .«São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões [da respectiva motivação] que o tribunal “ad quem” tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem).
A única questão suscitada pelos Recorrentes (nas conclusões das suas motivações) é a seguinte:
 1 - A de saber se estão reunidos os pressupostos legais para aplicação do perdão de pena decretado pela Lei n.°9/2020, de 10 de Abril.
O MÉRITO DO RECURSO DO ARGUIDO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Numa brevíssima resenha dos autos, verificamos que: 
- Por sentença transitada em julgado no dia 13-9-2013, foi o arguido J. condenado pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, no âmbito do proc. nº 6792/08. 1 TA LRS.
- Por despacho transitado em julgado em 15-5-2018, foi revogada a suspensão de execução da pena de um ano prisão aplicada ao arguido J. e determinado o cumprimento efectivo da mesma.
- O arguido J.iniciou o cumprimento dessa pena, em 22-3-2021.
- O Digno Magistrado do Ministério Público veio aos autos requerer a aplicação do perdão concedido pela Lei n.º 9/2020 de 10/4, sob a condição resolutiva fixada no art.º 2º, nº7 da citada Lei, e a consequente restituição imediata do arguido à liberdade.
- Em 01/04/2021 a Mmª Juiz a quo proferiu o despacho ora sob censura, no qual considerou não se verificarem os requisitos legais para a reclamada aplicação ao arguido do perdão introduzido pelo regime excepcional vertido na Lei nº 9/2020, de 10/4.
A questão suscitada pelos Recorrentes resume-se a saber se o perdão concedido pela Lei 9/2020, de 10/04, é aplicável ao arguido que, tendo sido condenado por sentença transitada em julgado antes da entrada em vigor dessa lei, não se encontre - à data da entrada em vigor dessa lei - na situação de recluso.
Apreciando:
A Lei n.º 9/2020, de 10/4 aprovou um «regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19», concedendo perdão a «penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos» (artigo 2.º, n.º 1), dele excluindo os condenados pela prática de determinados crimes, que foram discriminados no n.º 6 do mesmo artigo 2.º.
A razão de ser dessas medidas de caracter excepcional consta da exposição de motivos que acompanhou a respectiva «Proposta de Lei 23/XIV», aí se referindo que “a Organização Mundial de Saúde qualificou, no dia 11 de Março de 2020, a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como uma pandemia internacional, e como calamidade pública. Face a essa qualificação e ordenado pelo fundamento final de conter a expansão da doença, o Presidente da República decretou, no dia 18 de Março o estado de emergência. Portugal tem actualmente uma população prisional de 12 729 reclusos, 800 dos quais com mais de 60 anos de idade, alojados em 49 estabelecimentos prisionais dispersos por todo o território nacional … As especificidades do meio prisional, quer no plano estrutural, quer considerando a elevada prevalência de problemas de saúde e o envelhecimento da população que acolhe, aconselham que se acautele, ativa e estrategicamente, o surgimento de focos de infeção nos estabelecimentos prisionais e se previna o risco do seu alastramento. … Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade. Estas medidas extraordinárias constituem a concretização de um dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito”.
Ou seja, no âmbito do combate àquela doença e de molde a evitar a entrada e transmissão do vírus no interior dos estabelecimentos prisionais, visa a aludida medida de graça reduzir a população prisional, dentro dos limites traçados.
Razão por que, a lei se dirige aos «reclusos» cuja condenação já houvesse transitado em julgado, sendo competente para a concessão do perdão e emissão dos respectivos mandados de libertação o Tribunal de Execução das Penas (n.º 8 do artigo 2.º). [Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-02-2021, proferido no Proc. nº 784/16.4PHSNT-A.L1-5 no site htpp//www.dgsi.pt].
Preceitua o artigo 2°, n° 1, da mencionada lei, que:
"1- São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
2- São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena." (sublinhado nosso)
Relativamente a condenações em penas de substituição, preceitua o n.º 5 do citado artigo que o perdão só deve ser aplicado se houver lugar à revogação de tal pena, isto é quando o arguido recolher ao estabelecimento prisional para cumprimento da prisão que havia sido substituída.
Por sua vez, o n.º 6 do artigo 2º da Lei n.º 9/2020 elenca os crimes relativamente aos quais o condenado não pode ser beneficiário do perdão referido nos n.ºs 1 e 2.
No caso em apreço, a questão trazida à apreciação deste tribunal é a de saber se, tendo o Recorrente J.sido condenado na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de crime excluído do elenco impeditivo da aplicação do perdão [furto qualificado] – cfr. art. 2º, nº6, da Lei nº 9/2020 - e, uma vez revogada tal suspensão com determinação do cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional, pode aquele beneficiar da aplicação do perdão de pena previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, independentemente de, à data da entrada em vigor do referido diploma, ainda não ter a condição de recluso?
A temática ora submetida à apreciação deste Tribunal da Relação, tem sido objecto de variadas decisões, umas no sentido pretendido pelos Recorrentes conforme foi devidamente salientado nas suas motivações de recurso, outras no sentido contrário.
Assim, e ressalvado sempre o devido respeito por diversa opinião, desde já se refere que o nosso entendimento quanto à questão em apreço é, no essencial, coincidente com a dos Recorrentes e com o decidido no citado acórdão desta Relação.
 Daí que, aderindo nós à argumentação aí aduzida, permita-se-nos que passemos, de imediato a transcrever a mesma:
«… em caso de condenação em penas de substituição, manda o n.º 5 do mesmo artigo que o perdão seja aplicado se houver lugar à revogação de tal pena, ou seja, quando o arguido tiver de recolher ao estabelecimento prisional para cumprimento da prisão que havia sido substituída.
Sendo, pois, de aplicar o perdão se tal revogação ocorrer ainda durante a vigência da Lei 9/90, sendo certo que, tal vigência só cessará com a publicação de nova Lei que “declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-Cov2 e da doença COVID-10”, conforme decorre do artigo 10.º daquela Lei, na redação da Lei 16/2020, de 29/5.
Dúvidas não há em como a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada nestes autos ao ora recorrente, bem como a revogação do regime de permanência na habitação, que substituiu aquela, com a consequente imposição do cumprimento da prisão, pelo arguido W. Freire, em estabelecimento prisional, ocorreram na vigência da Lei 9/90, a qual ainda não cessou.
Se o arguido, na sequência do despacho recorrido, for detido e apresentado em estabelecimento prisional para cumprimento da respetiva pena de prisão, terá de ser imediatamente equacionada a aplicação do perdão em causa, sendo-lhe o mesmo aplicável, do nosso ponto de vista e em concordância com a jurisprudência existente de que temos conhecimento acerca desta concreta questão, de que é exemplo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7/10/2020, proferido no P. 719/16.4TXPRT-F.C1, do Juízo de Execução das Penas (j3) de Coimbra, em cujo sumário se pode ler:
«I. O perdão de pena previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional.
II. Todavia, o perdão do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos substantivos legais, pode ser igualmente aplicado a condenados que, no decurso da vigência daquela Lei, venham a estar na situação de reclusão
Consequentemente, perante uma situação de reclusão, posterior à data de entrada em vigor da lei 9/2020, mas no decurso da sua vigência, dúvidas não temos que as razões que determinaram o legislador a criar as normas de excepção, mantém a sua plenitude, devendo a pena do recluso, verificados os demais requisitos, ser objecto de apreciação para aferir da aplicabilidade do regime de perdão.
Nestes termos, não restam dúvidas de que face à Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, o Recorrente J. reunia as condições para aplicação do perdão aí previsto, uma vez que embora se mostrasse, à data da entrada em vigor da mesma, já definitivamente condenado em pena de prisão, não se encontrava ainda recluso – isto é, não estava em cumprimento de pena, o que ocorreu em 22-3-2021, após a revogação da suspensão de execução da pena de um ano prisão que lhe havia sido aplicada e determinado o cumprimento efectivo da mesma.
Em conformidade com o exposto, e na procedência dos recursos do Ministério Público e do arguido J., revoga-se, consequentemente, o despacho recorrido e declara-se perdoada a pena de 1 ano de prisão em que o arguido J. foi condenado nestes autos, nos termos do disposto no art.º2º, nº1 da Lei nº9/2020 de 10/4, sob a condição resolutiva a que alude o nº 7 do citado artigo, ordenando-se a sua imediata restituição à liberdade.

DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes da 5ª Secção deste Tribunal da Relação em conceder provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido J., revogando-se, consequentemente, o despacho recorrido e declarando-se perdoada a pena de 1 ano de prisão em que o arguido J. foi condenado nestes autos, nos termos do disposto no art.º2º, nº1 da Lei nº9/2020 de 10/4, sob a condição resolutiva a que alude o nº7 do citado artigo.
Passe mandado de libertação imediata do arguido J., a não ser que a prisão deva manter-se por outro processo.
Comunique de imediato ao Tribunal recorrido, independentemente do trânsito em julgado da presente decisão.
Sem Tributação

Lisboa, 01-06-2021
Margarida Bacelar
Agostinho Torres