Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
299/21.9TXLSB-C.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: LEI Nº 9/2020
DE 10/04
PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O perdão previsto no artigo 2º da Lei nº 9/2020 não abrange, pois, aqueles cidadãos que hajam sido condenados por decisão já transitada em julgado aquando do início da vigência de tal lei (11-04-2020), mas que, nessa data (11-04-2020), ainda não haviam ingressado num estabelecimento prisional para iniciar a execução da pena de prisão que lhes foi aplicada.
Ou seja, os pressupostos de aplicação do perdão em análise, designadamente a qualidade de “recluso”, têm de estar preenchidos à data da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, de 10/04.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO.

Mediante pertinente despacho, o Tribunal de Execução de Penas de Évora (Juízo de Execuções das Penas de Évora - Juiz 3 -) indeferiu a aplicação do perdão previsto na Lei nº 9/2020, de 10 de abril, ao recluso AJCA.

Inconformado com tal decisão, dela recorreu o recluso, extraindo da respetiva motivação do recurso as seguintes (transcritas) conclusões:

“1 - No atual contexto de emergência, na tentativa de conter a expansão da doença, libertando reclusos particularmente vulneráveis à COVID 19, designadamente (no que para o presente processo interessa) os infratores de baixo risco, o Governo propôs a adoção de medidas excecionais de redução e flexibilização da execução da pena de prisão e de indulto, que minimizassem o risco decorrente da concentração de presos, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade.

2 - Submetida a proposta ao crivo parlamentar, dela resultou a Lei nº 9/2020, de 10 de abril, que atribuiu a competência para aplicação do perdão nela previsto aos tribunais de execução de penas.

3 - Tal perdão tem, desde logo, o limite objetivo do nº 2 do artigo 10º da citada Lei.

4 - Para além desse limite objetivo, existe também outro, do nº 6 do artigo 2º, que aqui se dá por reproduzido.

5 - Existe ainda outro limite à aplicação do perdão, o qual só poder ser aplicado uma vez por cada condenado.

6 - O perdão previsto na citada Lei aplica-se a penas de prisão de duração igual ou inferior a dois anos e ao período remanescente da pena de prisão de duração superior a dois anos ou do somatório de penas em cumprimento sucessivo, igual ou inferior a dois anos, desde que cumprida pelo menos metade.

7 - A aplicação do perdão postula a reclusão e, bem assim, uma condenação transitada antes da data da sua entrada em vigor (11-04-2020) - ex vi o seu artigo 11º -.

8 - Daí resulta que não é aplicável a penas não transitadas em julgado na data da sua entrada em vigor, nem a condenados que não se encontrem a cumprir pena.

9 - No caso de condenações, transitadas antes da entrada em vigor da Lei, em penas de substituição, poderá haver perdão no caso de revogação e suspensão posteriores.

10 - Tal situação, conjugada com a exclusiva competência dos TEP para aplicação do perdão, leva a que tenha de se iniciar a reclusão para haver aplicação do perdão.

11 - Com o devido respeito, afigura-se-nos que o perdão previsto na Lei nº 9/2020, de 10 de abril, não se esgotou no momento da sua aplicação com a sua entrada em vigor, renovando-se, como medida penitenciária, enquanto durar a situação de pandemia e a lei continuar em vigor.

12 - Igualmente, quanto a reclusos que ingressem no sistema prisional durante a vigência da lei, deverá aplicar-se-lhes o perdão, tanto mais que o nº 7 do artigo 2º da citada lei explicita o âmbito de aplicação do perdão, referindo-se à necessária qualidade de reclusos dos destinatários e apenas limitando essa categoria quanto à data do trânsito da decisão condenatória, que tem de ter ocorrido antes da entrada em vigor da lei.

13 - Com o devido respeito, mal andou o tribunal a quo quando entendeu não ser de aplicar ao recluso/recorrente o perdão, por entender que "resulta inequívoco que o legislador apenas quis aplicar o perdão de penas a quem se encontrava em situação de reclusão na data em vigor - 11.04.2020 -".

14 - Entendendo ainda o tribunal a quo, no despacho que ora se recorre, que "as leis que consagram medidas de graça devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, não sendo admissíveis interpretações extensivas ou restritivas que nelas não se encontrem expressas, resultando de forma expressa da letra da lei que esta se aplica a reclusos" (i.e., a condenados por decisão transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor desta lei, que se encontrem em cumprimento da pena de prisão à data da sua entrada em vigor), não sendo, pois, beneficiários do perdão os já condenados por decisão transitada em julgado, mas que ainda não se encontrem em cumprimento de pena à data da entrada em vigor da Lei e durante o período de vigência desta, uma vez que os pressupostos de aplicação da Lei devem estar preenchidos à data da sua entrada em vigor, aqui se incluindo a qualidade de recluso.

15 - Concluindo o tribunal a quo, no despacho recorrido, que "não se encontrando o arguido em cumprimento da pena de prisão à data da entrada em vigor da Lei 9/2020 de 10 de abril (a 11 de abril de 2020), não sendo o mesmo "recluso", não se mostram reunidos os pressupostos necessários à aplicação da medida de graça do perdão de pena de prisão", e indeferindo a pretensão do recluso.

16 - Negar-se a possibilidade de concessão do perdão põe em crise o princípio constitucional da igualdade, que sempre está associado a medidas de clemência e, por outro lado, contraria as afirmadas exigências de saúde pública que motivam a instituição de um perdão genérico.

17 - No caso concreto, o recluso deu entrada no EPL em 26-02-2021, tendo a sua sentença transitado em julgado em 16-01-2017, devendo, com o devido respeito, ser considerado "recluso condenado" para efeitos do disposto no nº 1 do artigo 2º da Lei 9/2020, de 10 de abril.

18 - Tanto mais que a Lei nº 9/2020, de 10 de abril, continua em vigor, sendo imprevisível a data da sua cessação (artigo 10º, com as alterações introduzidas pela Lei nº 16/2020, de 29 de maio), e terá, por força das sucessivas alterações, um âmbito de aplicação muito mais abrangente do que inicialmente poderia ser o intuito do legislador.

19 - A interpretação da referida Lei levada a cabo pela decisão do TEP de Évora é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, sendo uma decisão contra legem, por violação de norma expressa.

20 - Os crimes por que o recluso foi condenado não se inscrevem no âmbito do nº 2 de artigo 10º, nem do nº 6 do artigo 2º da Lei nº 9/2020, de 10 de abril.

21 - A sentença foi proferida em 20-12-2016, tendo transitado em julgado em 16-01-2017.

22 - O recorrente encontrava-se a cumprir uma medida de coação de OPH no âmbito do processo 1/20.2PAALM, desde o dia 26-02-2021, estando no EPL à espera que lhe fosse colocada a pulseira eletrónica, o que, tendo em conta a falta de meios humanos agravada com esta pandemia, não foi possível satisfazer com a celeridade que se impunha.

23 - O recorrente foi ligado ao processo 1434/13.6PGALM no dia 26-03-2021.

24 - Requereu de imediato a aplicação da lei do perdão.

25 - É inadmissível que uma decisão que deveria ter sido tomada num curto prazo de tempo se tenha arrastado por tanto tempo, quando estamos a falar de uma medida privativa da liberdade e de um jovem que no seu CRC apenas tem averbados crimes de condução sem carta quando tinha a idade compreendida de 17 a 20 anos de idade, tendo dois crimes de usurpação de direitos de autor e um de ofensas à integridade física simples. Tudo crimes praticados quando era muito jovem, 17 a 20 anos de idade.

26 - Não se aceita, e muito menos se percebe, como pode ser negada a aplicação de uma lei especial, quando não estão verificadas as exclusões para a não aplicação da mesma.

27 - O tribunal a quo, com o despacho proferido, decidiu em clara violação de lei, sendo a norma violada o nº 1 do artigo 2º da Lei 9/2020, de 10-04.

28 - Com o devido respeito, não concorda o recluso com o despacho que não lhe concedeu o perdão, por violação da norma do nº 1 do artigo 2º da Lei 9/2020, de 10-04.

29 - O recluso, aqui recorrente, reclamou do despacho que homologou a liquidação de pena por violação do nº 1 do artigo 80º do Código Penal, estando a aguardar que seja feita nova liquidação, sendo que, com o desconto do tempo em que esteve privado de liberdade à ordem do processo 1/20.2PAALM, a liquidação da pena deverá ser a seguinte: O início da pena ocorre em 24.03.2021; O meio da pena ocorre em 10.09.2021; O Termo da pena ocorrerá em 24.02.2022.

30 - Verifica-se a existência de condenação anterior à lei e de prisão em execução na vigência da lei, sendo evidente a verificação dos requisitos para a aplicação da Lei nº 9/2020.

31 - O número 6 do artigo 2º do referido Diploma Legal exceciona os casos em que a referida Lei não se pode aplicar, sendo que o caso em analise não se enquadra nas exceções.

32 - No caso dos presentes autos, com o devido respeito, os crimes pelos quais o recluso foi condenado, ou pelos quais viu a suspensão da sua pena ser revogada, não caiem na exceção do nº 6 do artigo 2º, pelo que deverá beneficiar de imediato do perdão da citada lei especial. O que se requer.

33 - No direito penal vigora o princípio de aplicação da lei mais favorável, motivo pelo qual se requer, com o devido respeito, que ao arguido seja aplicado, de imediato, o perdão da sua pena, segundo o artigo 2º da Lei nº 9/2020, de 10 de abril.

34 - Por força da citada Lei, são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igualou inferior a dois anos.

35 - No caso sub judice, o recluso foi condenado numa pena efetiva de um ano de prisão, sendo que a mesma não se enquadra em nenhuma alínea do número 6 do artigo 2º.

36 - O recluso encontra-se a cumprir pena de prisão, afeto ao estabelecimento prisional de Setúbal, tendo dado entrada no EP de Lisboa em 26-02-2021, tendo sido ligado ao processo 1434/13.6PGALM em 24-03-2021. Para cumprir um ano de prisão por condução sem habilitação legal.

37 - Com o devido respeito, o perdão previsto na Lei 9/2020, de 10 de abril, não se esgotou no momento da sua aplicação, com a sua entrada em vigor, renovando-se, como medida penitenciária, enquanto durar a situação de pandemia e a lei continuar em vigor.

38 - Verifica-se a existência de condenação anterior à lei, e prisão em execução (estando em curso uma pena de um ano de prisão) após a entrada em vigor da Lei nº 9/2020, de 10 de abril, pelo que deverá aplicar-se o perdão enquanto essa lei continuar em vigor.

39 - Salvo o devido respeito, o artigo 10º da referida Lei refere o seguinte: ( ... ) "a presente lei cessa a sua vigência na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARSCOV-2 e da DOENÇA covid-19".

40 - O legislador, em 29 de maio de 2020, veio afirmar que a Lei nº 9/2020 se mantinha em vigor, reiterando a ideia de que os reclusos que se encontravam nas circunstâncias nela previstas devem beneficiar do perdão, o que só pode querer significar que a lei não se aplica só a quem era recluso à data da entrada em vigor da mencionada Lei 9/2020, pois, quanto a tais cidadãos, já os TEP decidiram nos dias seguintes àquela.

41 - Ao fazê-lo, o legislador afastou-se da doutrina e da jurisprudência há muito existentes em sede de medidas de graça.

42 - Por outro lado, há que atender às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo em que estamos a viver, que em nada se assemelham a outros momentos em que foram publicadas leis de amnistia.

43 - Nunca a sociedade e o mundo se depararam com uma situação como a que estamos a viver, na sequência da infeção epidemiológica por SARSCOV-2 e COVID-19.

44 - É por demais evidente que, ao nível de evitar a disseminação da doença nos estabelecimentos prisionais, a quase totalidade dos governos mundiais visa apenas que os mesmos se destinem a uma criminalidade mais grave, deixando de fora reclusos condenados que tenham cometido crimes considerados menos graves, quando estejam em causa curtas penas de prisão, tendo presentes critérios de manutenção de saúde pública, enquanto se mantiver a pandemia.

45 - Quanto ao recluso aqui recorrente, dada a medida da pena cujo termo ocorrerá em 24-02-2022, deverá ser concedido o perdão previsto na Lei nº 9/2020, de 10 de abril, devendo ordenar-se a imediata emissão dos mandados de libertação, devendo o recluso ser devidamente advertido que o perdão é concedido sob a condição resolutiva de não praticar infração dolosa no ano subsequente.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se o perdão, pois assim é de Direito e só assim se fará Justiça”.

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O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu, entendendo que o recurso não merece provimento.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo pela procedência do recurso.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do C. P. Penal, o recorrente apresentou resposta, aderindo ao “parecer” emitido pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No presente caso, a única questão evidenciada no recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, consiste em saber se é (ou não) de aplicar ao recorrente o perdão de pena previsto na Lei nº 9/2020, de 10/04.

2 - A decisão recorrida.

O despacho revidendo é do seguinte teor:

“O tribunal é competente, o processo é o próprio e a decisão é exequível, tendo o Ministério Público promovido a respetiva execução (arts. 467º nº 1, 468º a contrario, 469º e 477º, todos do código de processo penal).

A pena exequenda, porque superior a seis meses de prisão, admite liberdade condicional (art. 61º do código penal).

O recluso AJCA foi condenado, por decisão transitada em julgado, proferida no processo nº 1434/13.6PGALM, do J2 do Juízo Local Criminal de Almada, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, na pena de 1 ano de prisão.

Pese embora tenha sido junta a liquidação da pena, solicite ao processo nº 1434/13.6PGALM do J2 do Juízo Local Criminal de Almada, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, que informe sobre se pondera proceder ao desconto do período de privação da liberdade sofrido pelo recluso no processo nº 1/20.2PAALM, do Juízo de Instrução Criminal de Almada, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

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Rfe. 1583710:

O recluso requer que lhe seja concedido perdão de pena.

O recluso foi ligado ao processo nº 1434/13.6PGALM no dia 24.03.2021 e foi preso preventivamente à ordem do processo nº 1/20.2PAALM no dia 26.02.2021.

Antes dessa data encontrava-se em liberdade.

Ora, da conjugação dos artigos 2º, nº 7, e 11º, ambos da Lei nº 9/2020, de 10-04, resulta inequívoco que o legislador apenas quis aplicar o perdão de penas a quem se encontrava em situação de reclusão na data da sua entrada em vigor - 11.04.2020 -.

Deste modo, apenas poderá ser beneficiário do perdão quem já estiver em reclusão aquando da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, de 10 de abril.

Com efeito, as leis que consagram medidas de graça devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, não sendo admissíveis interpretações extensivas ou restritivas que nelas não se encontrem expressas, resultando de forma expressa da letra da lei que esta se aplica a "reclusos" (i.e. condenados por decisão transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor desta lei, que se encontrem em cumprimento da pena de prisão à data da sua entrada em vigor), não sendo, pois, beneficiários do perdão os já condenados por decisão transitada em julgado mas que ainda não se encontrem em cumprimento de pena à data da entrada em vigor desta lei, os quais não passarão a beneficiar de tal perdão se vierem a ser detidos para cumprimento de pena ou iniciarem tal cumprimento nos dias subsequentes à entrada em vigor da Lei e durante o período de vigência desta, uma vez que os pressupostos de aplicação da Lei devem estar preenchidos à data da sua entrada em vigor, aqui se incluído a qualidade de "recluso".

Decorre, assim, do exposto, que, não se encontrando o arguido em cumprimento da pena de prisão à data da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, de 10 de abril (a 11 de abril de 2020), não sendo o mesmo "recluso", não se mostram reunidos os pressupostos necessários à aplicação da medida de graça do perdão de pena de prisão.

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, com os fundamentos supra, indefiro a pretensão do recluso de aplicação da medida de graça do perdão de pena de prisão em que foi condenado no processo nº 1434/13.6PGALM do J2 do Juízo Local Criminal de Almada, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

Notifique”.

3 - Elementos relevantes para a decisão.

Compulsados os autos, há que salientar os seguintes elementos, relevantes para a decisão:

a) O recluso (ora recorrente) AJCA foi condenado, por sentença transitada em julgado em 07-11-2013, proferida no âmbito do Processo Sumário nº 1434/13.6PGALM, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

b) Tal suspensão da execução da pena foi revogada, por despacho transitado em julgado em 16-01-2017.

c) O recluso (ora recorrente) este preso preventivamente à ordem do Processo nº 1/20.2PAALM, desde 26-02-2021, e, em 24-03-2021, foi ligado ao Processo Sumário nº 1434/13.6PGALM, e, assim, nesta última data, iniciou o cumprimento da pena de prisão cuja execução tinha sido suspensa (suspensão que, entretanto, foi revogada).

4 - Apreciação do mérito do recurso.

A questão suscitada pelo recorrente resume-se a saber se o perdão concedido pela Lei nº 9/2020, de 10/04, é (ou não) aplicável a um arguido que, tendo sido condenado por sentença transitada em julgado antes da entrada em vigor dessa lei, não se encontre (à data da entrada em vigor de tal lei) na situação de recluso, mas que, entretanto, após a entrada em vigor da lei, foi colocado em situação de reclusão e para cumprimento da pena aplicada na aludida sentença (transitada em julgado antes da entrada em vigor da referida lei).

Estabelece o artigo 2º, nºs 1, 2 e 7, da mencionada lei:

“1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.

7 - O perdão a que se referem os nºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada”.

Este regime foi estabelecido no âmbito da pandemia da doença COVID-19, enquanto “regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça”, com vista a evitar a propagação da doença nos estabelecimentos prisionais, uma vez que a concentração de reclusos no interior dos estabelecimentos é uma condição favorável à propagação da doença.

O que se pretendeu foi, pois, aliviar (diminuir), em certa medida, a população reclusa, de molde a lograr uma menor pressão nos estabelecimentos prisionais, com vista à contenção preventiva da epidemia de COVID-19.

Isso mesmo foi anunciado na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 23/XIV, que deu origem à Lei nº 9/2020.

Para a aplicação do perdão parcial de penas de prisão previsto na Lei nº 9/2020 é necessário:

1º - Que a pena de prisão aplicada seja igual ou inferior a dois anos;

2º - Que a decisão condenatória tenha transitado em julgado em data anterior à data da entrada em vigor da Lei nº 9/2020 (11-04-2020);

3º - Que o condenado já se encontre em cumprimento de pena (ou seja, a pena já esteja em execução).

Ora, no caso destes autos, verifica-se estarem reunidos os dois primeiros enunciados requisitos:

- A pena aplicada está compreendida nos limites definidos na lei em apreço.

- A sentença condenatória transitou em julgado antes da entrada em vigor da Lei nº 9/2020.

Porém, e a nosso ver, não está preenchido o terceiro dos referidos requisitos previstos na Lei nº 9/2020, porquanto o ora recorrente, na data da entrada em vigor de tal lei (11-04-2020), não se encontrava ainda em cumprimento de pena (não estava “recluso” num estabelecimento prisional, em cumprimento da pena em causa).

Com efeito, o recorrente este preso preventivamente, desde 26-02-2021, à ordem do Processo nº 1/20.2PAALM, e, em 24-03-2021, foi “ligado” ao Processo Sumário nº 1434/13.6PGALM (ou seja, em 11-04-2020 o recorrente estava em liberdade, e só iniciou o cumprimento da pena de prisão cuja execução tinha sido suspensa - suspensão que, entretanto, foi revogada - em 24-03-2021).

Em suma: o disposto no artigo 2º da Lei nº 9/2020 não é aplicável ao caso em apreço, uma vez que, em 11-04-2020, o ora recorrente estava em liberdade.

Na verdade, o artigo 2º, nº 1, da mencionada lei, estipula que são perdoadas as penas de prisão de “reclusos”, e o nº 7 do mesmo artigo refere, expressamente, que “o perdão a que se referem os nºs 1 e 2 é concedido a reclusos”.

O perdão previsto no artigo 2º da Lei nº 9/2020 não abrange, pois, aqueles cidadãos que hajam sido condenados por decisão já transitada em julgado aquando do início da vigência de tal lei (11-04-2020), mas que, nessa data (11-04-2020), ainda não haviam ingressado num estabelecimento prisional para iniciar a execução da pena de prisão que lhes foi aplicada.

Por outras palavras: os pressupostos de aplicação do perdão em análise, designadamente a qualidade de “recluso”, têm de estar preenchidos à data da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, de 10/04.

Esta nossa interpretação não se baseia apenas na letra da lei (onde se escreve, sempre, que o perdão é aplicado a “reclusos”), mas também nas intenções do legislador, uma vez que, em nosso entender, o legislador visou, com a lei em causa, retirar, rapidamente, pessoas dos estabelecimentos prisionais, devido ao perigo de contágio dos “reclusos” com o vírus causador da doença COVID-19, e não evitar a entrada, no futuro, passados meses e até anos, de novos “reclusos”.

O legislador não pretendeu conceder um “perdão” geral de penas, mas, isso sim, retirar “reclusos”, urgentemente, das prisões portuguesas.

Nesta nossa interpretação da lei atendemos, pois, ao preceituado no artigo 9º do Código Civil (preceito legal que genericamente regula a matéria da interpretação da lei), onde se estabelece, como principal marca orientadora, que a interpretação da lei deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Interpretar uma lei mais não é do que determinar o seu sentido e o alcance com que ela se deve impor na comunidade jurídica a que se destina.

Uma interpretação meramente literal do preceito em análise dá apoio à tese aqui sustentada (porquanto a letra da lei só prevê o perdão para “reclusos”).

Porém, como decorre dos princípios gerais de interpretação, a letra da lei, se bem que constitua um importante elemento de interpretação, não é o único, nem, porventura, o mais importante.

Só que o meio racional também não sustenta, segundo julgamos, interpretação diversa daquela que o elemento literal inequivocamente nos dá.

Na teleologia da norma em evidência, visando o legislador reduzir drasticamente (e imediatamente) a população prisional, existe uma razão para a excecionalidade do perdão concedido apenas àqueles que, nessa altura, possuíam a qualidade de “reclusos”, deixando de fora todos os outros condenados.

Com efeito, o perdão em causa teve como objetivo evitar uma situação de alastramento dramático, nos estabelecimentos prisionais, da pandemia causada pelo vírus COVID.19, naquele concreto momento temporal e naquela conjuntura sanitária específica (em que todo o país se encontrava em confinamento rigoroso, e em que se corria o sério risco de infeção generalizada da população prisional).

Dito de outro modo: as razões de política legislativa que estiveram na base da previsão legal da concessão do perdão em apreço esgotaram-se no momento dessa concessão, não subsistindo depois dela.

Face ao que vem de dizer-se, e em jeito de sínteses conclusiva, é de entender que o perdão concedido pela Lei nº 9/2020, de 10/04, não é aplicável a um arguido que, tendo sido condenado por sentença transitada em julgado antes da entrada em vigor dessa lei, não se encontre, à data da entrada em vigor de tal lei, na situação de recluso.

Por último, alega o recorrente que “a interpretação da referida Lei levada a cabo pela decisão do TEP de Évora é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade” (cfr. conclusão 19ª extraída da motivação do recurso).

Resta, assim, verificar se o perdão previsto na Lei nº 9/2020, de 10/04, padece de vício de constitucionalidade, por violação do princípio da igualdade.

A este propósito, sufragamos o que ficou escrito no Ac. do T.R.L. de 09-12-2020 (sendo relatora Margarida Ramos de Almeida - Ac. disponível in www.dgsi.pt): “a Lei nº 9/2020 teve por objetivo reduzir a população prisional, considerando o risco de disseminação do vírus nos estabelecimentos prisionais, no momento concreto em que foi publicada. Não teve por objeto proceder a uma redução mensal ou sistemática de tal população, nem sequer de se manter ao longo de um determinado período temporal específico (como constava da proposta acima mencionada, que não foi aprovada) - teve um propósito específico e temporalmente limitado, de diminuir o número de reclusos nas prisões nacionais, libertando-os (estamos em abril de 2020), para diminuir o que, à data, se considerava como um risco de disseminação viral, potencialmente incontrolável. Foi uma medida de cariz único e temporalmente circunscrita, que teve o único objetivo de reduzir, nesse momento, o número de reclusos nas prisões portuguesas, de modo a prevenir uma putativa situação de emergência sanitária. Se o propósito da lei era, naquele momento, diminuir o número de presos nas prisões portuguesas, através de medidas de clemência, afigura-se razoável e adequado ao objetivo proposto, que tais medidas se circunscrevessem a um universo restrito e determinado, desde logo a quem já se encontrava detido em tais estabelecimentos prisionais. Assim, situações da mesma categoria essencial foram tratadas da mesma maneira (presos em cumprimento de pena em 11 de abril de 2020) e situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tiveram tratamento diferente (condenados ainda em liberdade). Esta diferenciação de tratamento mostra-se fundada naquele objetivo racional. Entende-se pois que, neste respeito, a norma em questão se mostra de acordo com os princípios constitucionais vigentes”.

Em conclusão: a interpretação legal levada a cabo no despacho revidendo não enferma de inconstitucionalidade, ao contrário do que invoca o recorrente.

Posto tudo o que precede, é de improceder o recurso interposto pelo recluso AJCA.

III - DECISÃO.

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se, consequentemente, o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 22 de junho de 2021

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Edgar Gouveia Valente)