Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
744/13.7TXCBR-P.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 09/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 2.º E 10.º DA LEI N.º 9/2020, DE 10 DE ABRIL
Sumário: O perdão previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, pode ser aplicado tanto a condenados que sejam reclusos à data da entrada em vigor daquele diploma (11-04-2020), como a condenados que, no decurso da vigência da mesma Lei, venham a estar na situação de reclusão.
Decisão Texto Integral:







A - Relatório:

1. No âmbito do Processo n.º 335/20.6TXCBR-A, do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, Juízo de Execução das Penas de Coimbra – Juiz 1, em 22/7/2020, o Ministério Público promoveu o seguinte:

“No atual contexto de emergência, na tentativa conter a expansão da doença, libertando os reclusos particularmente vulneráveis à COVID 19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco, o Governo propôs a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e de indulto, que minimizassem o risco decorrente da concentração de presos, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade.

Submetida a proposta ao crivo parlamentar, dela resultou a lei 9/2020 de 10 de Abril, que atribuiu a competência para aplicação do perdão nela previsto aos tribunais de execução de penas, ao arrepio aliás da nossa tradição jurídica nessa matéria.

Tal perdão tem, desde logo, o limite objetivo do nº 2 do artigo 1º, não se aplicando a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das respetivas funções.

Para além desse limite objetivo, existe também outro, do nº 6 do artigo 2º, que exclui os condenados por:

a) crimes de homicídio (131.º do CP), qualificado (132.º do CP) e privilegiado (133.º do CP);

b) crimes de violência doméstica (152.º do CP) e de maus tratos (152.º-A do CP);

c) crimes contra a liberdade pessoal, de ameaça (153.º do CP), coação (154.º do CP), perseguição (154.º-A do CP), casamento forçado (154.º-B do CP), intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (156.º do CP), sequestro (158.º do CP), escravidão (159.º do CP), tráfico de pessoas (160.º do CP), rapto (161.º do CP) e tomada de reféns (162.º do CP);

d) crimes contra a liberdade sexual: de coação sexual (163.º do CP), violação  (164.º     do     CP),     abuso     sexual     de     pessoa     incapaz     de resistência (165.º do CP), abuso sexual de pessoa internada (166.º do CP), fraude sexual (167.º do CP), procriação artificial não consentida (168.º do CP), lenocínio (169.º do CP), importunação sexual (170.º do CP); crimes contra a autodeterminação sexual: de abuso sexual de crianças (171.º do CP), abuso sexual de menores dependentes (172.º do CP), atos sexuais com adolescentes (173.º do CP), recurso à prostituição de menores (174.º do CP), lenocínio de menores (175.º do CP), pornografia de menores (176.º do CP) e aliciamento de menores para fins sexuais (176.º-A do CP);

e) crime de roubo (artigo 210.º do CP), quando qualquer dos agentes produzir perigo para a vida da vítima ou ofensa à integridade física grave (nº 2 a)) ou se do facto resultar a morte (nº 3), e nessas situações praticar o crime de violência depois da subtração (artigo 211.º do CP);

f) crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal: incitamento à guerra (236.º do CP), aliciamento de forças armadas (237.º do CP), recrutamento de mercenários (238.º do CP), genocídio (239.º do CP), discriminação e incitamento ao ódio e à violência (240.º do CP), crimes de guerra contra civis (241.º do CP), destruição de monumentos (242.º do CP), tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes     ou     desumanos     (243.º     do     CP),     tortura     e     outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos graves (244.º do CP);

g) crimes de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas (272.º do CP), energia nuclear (273.º do CP) e incêndio florestal (274.º do CP), com dolo;

h) crime de associação criminosa (299.º do CP); i) crime de branqueamento (368.º-A do CP);

j) crimes de recebimento indevido de vantagem (372.º do CP), corrupção passiva (373.º do CP) e corrupção ativa (374.º do CP);

k) crimes do artigo 21.º - tráfico e outras atividades ilícitas, do artigo 22.º - precursores, e do artigo 28.º - associações criminosas, todos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro;

l) crime de membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;

m) crime de titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas;

n) crime de ofensa à integridade física grave (144.º do CP), qualificada (145.º, 1 c) do CP) e agravada pelo resultado (147.º do CP).

Existe igualmente outro limite à aplicação do perdão: só pode ser aplicado uma vez por cada condenado (nº 9 do artigo 2º).

O perdão previsto na presente lei aplica-se a:

- penas de prisão de duração igual ou inferior a dois anos

- período remanescente da pena de prisão de duração superior a dois anos ou do somatório de penas em cumprimento sucessivo, igual ou inferior a dois anos e desde que cumprida pelo menos metade.

A aplicação do perdão postula a reclusão e bem assim uma condenação transitada antes da data da sua entrada em vigor (11-04-2020, ex vi o seu art. 11º).

Daí resulta que não é aplicável a penas não transitadas em julgado na data da sua entrada em vigor nem a condenados que se não encontrem a cumprir pena.

Assim se afastam do âmbito da presente lei todas as situações de evadidos, contumazes e condenados em penas de prisão suspensas, que não estejam presos.

No caso de condenações, transitadas antes da entrada em vigor da lei, em penas de substituição, poderá haver perdão no caso de revogação e suspensão posteriores.

Tal situação, conjugada com a exclusiva competência dos TEP para aplicação do perdão, leva a que tenha de se iniciar a reclusão para haver aplicação do perdão.

A aplicação do perdão a penas de prisão por dias livres – categoria hoje residual – parece-nos caber dentro do espírito do legislador uma vez que se trata de prisão intermitente e cujas entradas, aliás, têm sido suspensas pela pandemia.


***

Diversamente do entendimento maioritário, afigura-se-nos que o perdão previsto na lei n.º 9/2020 de 10 de abril se não esgotou no momento da sua aplicação com a sua entrada em vigor, renovando-se, como medida penitenciária, enquanto durar a situação de pandemia e a lei continuar em vigor.

Assim, atingindo-se o valor do remanescente de pena ou penas, igual a dois anos, após a data da entrada em vigor da a lei 9/2020 de 10 de abril, deverá aplicar-se o perdão enquanto essa lei continuar em vigor.

Igualmente quanto a reclusos que ingressem no sistema prisional durante a vigência da lei deverá aplicar-se-lhes o perdão, tanto mais que o nº 7 do artigo 2º da citada lei explicita o âmbito de aplicação do perdão referindo-se à necessária qualidade de reclusos dos destinatários e apenas limitando essa categoria quanto à data do trânsito da decisão condenatória, que tem de ter ocorrido antes da data de entrada em vigor da lei.

No caso de ser efetuado, posteriormente entrada em vigor da referida lei 9/2020, cúmulo jurídico sucessivo de penas transitadas antes dessa data, parece-nos que igualmente se deverá aplicar tal perdão.

Efetivamente não se compreenderia que, na normal execução de duas penas fosse possível a aplicação do perdão quando atingido o quantum legalmente relevante de remanescente e, no caso de cúmulo sucessivo fosse tal situação afastada.

O conhecimento superveniente do concurso não representa uma nova condenação, mas apenas um afinamento da medida da pena, aferida à culpa numa apreciação global, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.

Igualmente se nos afigura, no caso de existir uma condenação transitada em julgado antes da entrada em vigor da lei e sendo, posteriormente, substituída a multa por prisão, não estarmos perante uma nova condenação, mas apenas a executar a pena de multa através da prisão subsidiária por não ter sido possível obter o pagamento coercivo.

Assim verifica-se a existência de condenação anterior à lei e prisão em execução.


***

Nos presentes autos procede-se ao acompanhamento penitenciário do recluso A. que se encontra afeto ao estabelecimento prisional de Castelo Branco, onde deu entrada em 15-07-2020 para cumprir a pena de 1 A e 2 M de prisão imposta no proc. 364/18.0PBCTB por dois crimes de ofensas à integridade física qualificada, como reincidente, previstos e puníveis pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, 132.º, n.º 2, al. h), 75.º e 76.º, do Código Penal.

Os crimes porque foi condenado não se inscrevem no âmbito do nº 2 do artigo 1º, nem do nº 6 do artigo 2º da lei 9/2020 de 10 de abril.

Dada a medida da pena cujo termo ocorrerá em 15-09-2021 (cálculo provisório com os elementos disponíveis), afigura-se ao Ministério Público que deverá ser concedido ao recluso o perdão previsto na lei 9/2020 de 10 de abril, devendo ordenar-se a imediata emissão dos respetivos mandados de libertação, devendo o libertando ser devidamente advertido que o perdão é concedido sob a condição resolutiva de não praticar infração dolosa no ano subsequente.

                                                         ****

2. Na sequência da anterior promoção, em 23/7/2020, foi proferido o seguinte Despacho:

“O recluso A. foi preso em 15.07.2020.

Coloca-se a questão da aplicabilidade da Lei nº 9/2020, de 10 de abril.

A aplicação do perdão concedido por tal Lei postula a reclusão e bem assim uma condenação transitada antes da data da sua entrada em vigor (11 de abril de 2020, ex vi o seu artigo 11º).

Aquela Lei não se aplica a condenados que ingressem no sistema prisional durante a vigência da mesma pois esses não estão, à data da entrada em vigor da Lei, entre os reclusos a quem a mesma se destina.

Na verdade, por referência ao âmbito de aplicação previsto no nº 1, do artigo 2º daquela Lei, o arguido em causa era condenado, mas não era recluso.

A condição de reclusão teria de estar verificada à data da entrada em vigor daquela Lei.

Assim sendo, o condenado, ora recluso, não pode ser beneficiário do perdão previsto no artigo 2º, nº 1, da Lei nº 9/2020, de 10 de abril.

Notifique.

Comunique ao processo da condenação.”


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3. Inconformado com tal despacho, o Ministério Público, em 28/7/2020, veio interpor recurso, extraindo da Motivação as seguintes Conclusões:

“1-    No atual contexto de emergência, na tentativa conter a expansão da doença, libertando os reclusos particularmente        vulneráveis     à          COVID           19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco, o Governo propôs a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e de indulto, que minimizassem o risco decorrente da concentração de presos, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade.

2-      Submetida a proposta ao crivo parlamentar, dela resultou a lei 9/2020 de 10 de abril, que atribuiu a competência para aplicação do perdão nela previsto aos tribunais de execução de penas, ao arrepio aliás da nossa tradição jurídica nessa matéria.

3-      Tal perdão tem, desde logo, o limite objetivo do nº 2 do artigo 1º, não se aplicando a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das respetivas funções.

4-      Para além desse limite objetivo, existe também outro, do nº 6 do artigo 2º, que exclui os condenados por

a) crimes de homicídio (131.º do CP), qualificado (132.º do CP) e privilegiado (133.º do CP);

b) crimes de violência doméstica (152.º do CP) e de maus tratos (152.º-A do CP);

c) crimes contra a liberdade pessoal, de ameaça (153.º do CP), coação (154.º do CP), perseguição (154.º-A do CP), casamento forçado (154.º-B do CP), intervenções     e tratamentos    médico-cirúrgicos arbitrários (156.º do CP), sequestro (158.º do CP), escravidão (159.º do CP), tráfico de pessoas (160.º do CP), rapto (161.º do CP) e tomada de reféns (162.º do CP);

d) crimes contra a liberdade sexual: de coação sexual (163.º do CP), violação (164.º do CP), abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (165.º do CP), abuso sexual de pessoa internada (166.º do CP), fraude sexual (167.º do CP), procriação artificial não consentida (168.º do CP), lenocínio (169.º do CP), importunação sexual (170.º do CP); crimes contra a autodeterminação    sexual:            de        abuso  sexual de crianças (171.º do CP), abuso sexual de menores dependentes (172.º do CP), atos sexuais com adolescentes (173.º do CP), recurso à prostituição de menores (174.º do CP), lenocínio de menores (175.º do CP), pornografia de menores (176.º do CP) e aliciamento de menores para fins sexuais (176.º-A do CP);

e) crime de roubo (artigo 210.º do CP), quando qualquer dos agentes produzir perigo para a vida da vítima ou ofensa à integridade física grave (nº 2 a)-) ou se do facto resultar a morte (nº 3), e nessas situações praticar o crime de violência depois da subtração (artigo 211.º do CP);

f) crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal:       incitamento    à guerra (236.º  do        CP), aliciamento        de        forças     armadas     (237.º     do CP), recrutamento      de    mercenários      (238.º      do  CP), genocídio (239.º do CP), discriminação e incitamento ao ódio e à violência (240.º do CP), crimes de guerra contra civis    (241.º  do        CP),     destruição       de monumentos     (242.º     do     CP),tortura e outros tratamentos     cruéis,     degradantes     ou     desumanos (243.º do CP), tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos graves (244.º do CP);

g) crimes de incêndios, explosões e outras condutas especialmente       perigosas (272.º  do        CP), energia nuclear (273.º do CP) e incêndio florestal (274.º do CP), com dolo;

h) crime de associação criminosa (299.º do CP);

i) crime de branqueamento (368.º-A do CP);

j) crimes de recebimento indevido de vantagem (372.º do CP), corrupção passiva (373.º do CP) e corrupção ativa (374.º do CP);

k) crimes do artigo 21.º - tráfico e outras atividades ilícitas, do artigo 22.º - precursores, e do artigo 28.º -associações criminosas, todos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro;

l) crime de membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;

m) crime de titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas;

n) crime de ofensa à integridade física grave (144.º do CP), qualificada (145.º, 1 c) do CP) e agravada pelo resultado (147.º do CP).

5-      Existe igualmente outro limite à aplicação do perdão: só pode ser aplicado uma vez por cada condenado (nº 9 do artigo 2º).

6-      O perdão previsto na presente lei aplica-se a penas de prisão de duração igual ou inferior a dois anos e ao período remanescente da pena de prisão de duração superior a dois anos ou do somatório de penas em cumprimento sucessivo, igual ou inferior a dois anos e desde que cumprida pelo menos metade.

7 - A aplicação do perdão postula a reclusão e bem assim uma condenação transitada antes da data da sua entrada em vigor (11-04-2020, ex vi o seu art. 11º).

8 - Daí resulta que não é aplicável a penas não transitadas em julgado na data da sua entrada em vigor, nem a condenados que se não encontrem a cumprir pena.

09 -  Assim se afastam do âmbito da presente lei todas as situações de evadidos, contumazes e condenados em penas de prisão suspensas, que não estejam presos.

10-    No caso de condenações, transitadas antes da entrada em vigor da lei, em penas de substituição, poderá haver perdão no caso de revogação e suspensão posteriores.

11-    Tal      situação,         conjugada       com     a          exclusiva competência dos TEP para aplicação do perdão, leva a que tenha de se iniciar a reclusão para haver aplicação do perdão.

12- A aplicação do perdão a penas de prisão por dias livres – categoria hoje residual – parece-nos caber dentro do espírito do legislador, uma vez que se trata de prisão intermitente e cujas entradas, aliás, têm sido suspensas pela pandemia.

13- Diversamente    do        entendimento maioritário, afigura-se-nos que o perdão previsto na lei n.º 9/2020 de 10 de Abril se não esgotou no momento da sua aplicação com a sua entrada em vigor, renovando-se, como medida penitenciária, enquanto durar a situação de pandemia e a lei continuar em vigor.

14- Assim, atingindo-se o valor do remanescente de pena ou penas, igual a dois anos, após a data da entrada em vigor da lei 9/2020 de 10 de Abril, deverá aplicar-se o perdão enquanto essa lei continuar em vigor.

15- Igualmente quanto a reclusos que ingressem no sistema prisional durante a vigência da lei deverá aplicar-se-lhes o perdão, tanto mais que o nº 7 do artigo 2º da citada lei explicita o âmbito de aplicação do perdão, referindo-se à necessária qualidade de reclusos dos destinatários e apenas limitando essa categoria quanto à data do trânsito da decisão condenatória, que tem de ter ocorrido antes da data de entrada em vigor da lei.

16- No caso de ser efetuado, posteriormente à entrada em vigor da referida lei 9/2020, cúmulo jurídico sucessivo de penas transitadas antes dessa data, parece-nos que igualmente se deverá aplicar tal perdão.

17- Efetivamente não se compreenderia que, na normal execução de duas penas fosse possível a aplicação do perdão quando atingido o quantum legalmente relevante de remanescente e, no caso de cúmulo superveniente, fosse tal situação afastada.

18- O conhecimento superveniente do concurso não representa uma nova condenação, mas apenas um afinamento da medida da pena, aferida à culpa numa apreciação global, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.

19- Igualmente se nos afigura, no caso de existir uma condenação transitada em julgado antes da entrada em vigor da lei e sendo, posteriormente, substituída a multa por prisão, não estarmos perante uma nova condenação, mas apenas a executar a pena de multa através da prisão subsidiária, por não ter sido possível obter o pagamento coercivo.

20- Assim verifica-se a existência de condenação anterior à lei e prisão em execução.

21- Nos presentes autos procede-se           ao acompanhamento penitenciário do recluso A. que se encontra afeto ao estabelecimento prisional de Castelo Branco, onde deu entrada em 15-07-2020 para cumprir a pena de 1 A e 2 M de prisão imposta no proc. 364/18.0PBCTB, por dois crimes de ofensas à integridade física qualificada, como reincidente, previstos e puníveis pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, 132.º, n.º 2, al. h), 75.º e 76.º, do Código Penal.

22- Os crimes por que foi condenado não se inscrevem no âmbito do nº 2 do artigo 1º, nem do nº 6 do artigo 2º da lei 9/2020 de 10 de abril.

23- Dada a medida da pena cujo termo ocorrerá em 15-09-2021 (cálculo provisório com os elementos disponíveis), deverá ser concedido ao recluso o perdão previsto na lei 9/2020 de 10 de abril, devendo ordenar-se   a imediata emissão dos respetivos mandados de libertação, devendo o libertando ser devidamente advertido que o perdão é concedido sob a condição resolutiva de não praticar infração dolosa no ano subsequente.

24- Foi violada a norma dos nº 1 do artigo 2º da lei 9/2020 de 10-04.

Termos em que, com os do douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se o perdão, pois assim é de DIREITO e só assim se fará JUSTIÇA!

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4. O recurso, em 29/7/2020, foi admitido.

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5. O arguido A., em 18/8/2020, respondeu ao recurso, nos seguintes termos:

“Veio o Ministério Público apresentar recurso da decisão, proferida pelo Tribunal de Execução de Penas de Coimbra no processo em epígrafe mencionado, que rejeitou a aplicação do perdão, previsto no art. 2.º n.º 1 da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, ao recluso A..

O que fez alegando a violação da norma do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril por entender estarem reunidos todos os pressupostos legalmente exigidos para ser concedido ao recluso o requerido perdão de pena.

Isto é, o arguido, ora recluso, foi condenado numa pena de 1 ano e 2 meses de prisão, o que se computa como uma pena inferior a dois anos;

Os crimes aqui em causa também não se circunscrevem no âmbito de aplicação do art. 1.º n.º 2, nem do n.º 6 do art. 2.º ambos da Lei 9/2020 de 10 de Abril, encontrando-se observados e cumpridos os limites objetivos e subjetivos perpetuados pela mesma.

O objeto do recurso, prende-se tão-só com a interpretação da redação daquele preceito legal, na parte em que se refere a “reclusos condenados”, pois como refere a decisão recorrida:

“Na verdade, por referência ao âmbito de aplicação previsto no n.º 1, do artigo 2.º daquela Lei, o arguido em causa era condenado mas não era recluso.

A condição de reclusão teria de estar verificada à data da entrada em vigor daquela Lei”. (sublinhados nossos).

Remetendo-se “para maiores desenvolvimentos” para o parecer do Conselho Consultivo da PGR, n.º 10/20.

Com efeito, o recluso pelo presente adere ao recurso interposto pelo Ministério Público, dando aqui como integralmente reproduzido o seu teor para os devidos efeitos legais.

Mais tendo a acrescentar o seguinte:

Com o devido respeito e que é muito, a decisão recorrida não se encontra devidamente fundamentada remetendo genericamente para um parecer do Conselho Consultivo da PGR que se encontra desatualizado face às novas alterações legislativas entretanto introduzidas pela Lei n.º 16/2020 de 29 de Maio que procedeu à quarta alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e à primeira alteração à Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, entre outras.

Ora, se por um lado se verifica um vício da falta ou insuficiência da motivação da decisão da concessão de perdão da pena, por outro lado, face à diversidade de correntes doutrinárias existentes tão válidas como as do parecer n.º 10/20 e em sentido contrário a este, em relação ao objeto do recurso, deverá aquela decisão ser revogada e substituída por outra que conceda o perdão da pena a que o recluso A. foi condenado.

Senão vejamos,

O Parecer n.º 10/20 que serviu de base à decisão recorrida defende que o perdão de pena previsto no art. 2.º n.º 1 da Lei n.º 9/2020 não é aplicável aos condenados que à data da entrada em vigor desta Lei se não encontrem privados da liberdade apesar de terem sido já condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à entrada em vigor daquela Lei.

Citando:

“Em todos os casos, é pressuposto desta medida de graça que o beneficiário seja recluso e esteja condenado por sentença transitada em julgado, id est, que esteja em cumprimento de pena. A linha de fronteira, entre quem beneficia do perdão e quem está excluído do mesmo, passa, portanto, pela condição de recluso na sequência de uma sentença transitada em julgado à data da entrada em vigor da lei (11 de abril de 2020)”

Ou seja, qualifica o termo “recluso condenado” como uma espécie de requisito cumulativo, sem o qual não é possível obter o perdão da pena o que faz recorrendo às regras da interpretação de normas prevista no art. 9.º do Código Civil.

Mas para além do elemento gramatical, aquela solução (“recluso condenado”) é a que, segundo o mesmo Parecer n.º 10/20, se encontra mais conforme à exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV da qual: “resulta que está em causa evitar a devastação nas prisões, mediante a libertação de reclusos particularmente vulneráveis à COVID 19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco. Apenas os reclusos sofrem o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais e de aí ser impossível assegurar o desejável afastamento social.

Para os restantes, há outras medidas que, ainda nos termos daquela proposta, «sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade» permitem obter o mesmo resultado prático. Basta, para o efeito, através da suspensão da tramitação dos respetivos processos, retardar a execução das suas penas.”.

Referindo-se à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março que à data determinou a suspensão de todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID -19 (art. 7.º).

É possível verificar ao longo de todo o documento que é esse argumento que serve de base à tese defendida no Parecer n.º 10/20 cujos trechos se transcrevem de seguida para melhor compreensão do que aqui interessa com sublinhados nossos:

“(…) perante uma decisão tomada no quadro de um processo já pendente, que, pelo menos por impossibilidade de cumprir as recomendações das autoridades de saúde, está suspenso [art. 7.º, n.º 7, alª c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação atual] e, como tal, não poderá ser executada.”

“Se não for assim «poderia ainda beneficiar de tal perdão o condenado em pena de prisão até dois anos por decisão transitada que, andando evadido, se apressasse a entregar-se após a entrada em vigor da Lei com o intuito de beneficiar do perdão nela previsto! O que, para além de absurdo, até porque não haveria aqui expectativas que merecessem ser tuteladas, constituiria uma interpretação da lei contra a sua teleologia e a sua funcionalidade específica»”

Sobre a hipótese de a ser assim tal tese desconsiderar outros casos idênticos, violando-se o princípio da igualdade, tecem-se os seguintes comentários e argumentos que de seguida transcrevemos com sublinhados nossos:

“A escolha deste critério pelo legislador não trata, como já iremos ver, de forma desigual ou discriminatória situações que são afinal semelhantes, assim gerando injustiça. No contexto desta pandemia e dos riscos para a saúde dos reclusos que ela acarreta, a situação daqueles, que já se encontram condenados por sentença transitada em julgado numa pena que seria abrangida pelo perdão previsto nesta lei, não se confunde com a situação daqueles que já ingressaram no estabelecimento prisional para cumprimento dessa mesma pena. Tanto mais que, relativamente aos primeiros, a sua saúde deverá ser assegurada, como já vimos supra, mediante o mecanismo da suspensão dos prazos processuais.”

“Incluir esses condenados seria, violando as legítimas intenções do legislador, aplicar analogicamente o perdão concedido a reclusos condenados, por sentença transitada em julgado, a meros condenados”

“A escolha deste critério pelo legislador não trata, como já iremos ver, de forma desigual ou discriminatória situações que são afinal semelhantes, assim gerando injustiça. No contexto desta pandemia e dos riscos para a saúde dos reclusos que ela acarreta, a situação daqueles, que já se encontram condenados por sentença transitada em julgado numa pena que seria abrangida pelo perdão previsto nesta lei, não se confunde com a situação daqueles que já ingressaram no estabelecimento prisional para cumprimento dessa mesma pena. Tanto mais que, relativamente aos primeiros, a sua saúde deverá ser assegurada, como já vimos supra, mediante o mecanismo da suspensão dos prazos processuais.”

As razões para a discriminação são evidentes e têm um fundamento material bastante. Eliminar os riscos de contágio, que só existem relativamente aos reclusos detidos, uma vez que, relativamente aos já condenados por sentença transitada em julgado, o regime da suspensão dos prazos processuais logra o mesmo resultado. Por isso mesmo, restringindo-se apenas àqueles que são reclusos, não se pode dizer que a solução seja desproporcionada e que quebre a ordem social ou o sentimento de segurança da comunidade. Ainda que assim não fosse, sempre se poderá dizer que o legislador previu esta situação e que, com o alívio que o perdão provocou na lotação dos estabelecimentos prisionais, será possível acomodar aqueles que, excecionalmente, iniciem o cumprimento da sua pena, sem colocar em risco a sua saúde ou a saúde dos que lá já se encontram. A situação dos que entram depois nunca será igual à situação que preexistia a aplicação do perdão.

A melhor prova da conjugação do regime da suspensão dos prazos e da tramitação processual (art. 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de março) com o regime do perdão (art. 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril), resulta do facto de ambos os diplomas terem o mesmo período de vigência (art. 10.º da Lei 9/2020). Quando terminar a suspensão dos prazos, termina, também, o perdão de penas.

Com o devido respeito, não poderia tal previsão estar mais ERRADA! Como errada se apresenta a interpretação da lei e da intenção do legislador que consta do dito parecer n.º 10/20.

De facto, falida de sentido se torna toda a fundamentação do parecer com a revogação do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março, operada pela Lei n.º 16/2020 de 29 de maio, que levantou a suspensão de todos os prazos com efeitos a partir do dia 03/06/2020 e que de igual forma procedeu à primeira alteração do art. 10.º da Lei n.º 9/2020 de 10 de abril, prorrogando a sua aplicação e estadia em vigor até à publicação de lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS -CoV -2 e da doença COVID -19, o que até à data não ocorreu.

Tal opção legislativa é bem representativa da intenção do legislador de separar o regime provisório e excecional da suspensão dos prazos do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, bem como, de que tal diploma (Lei n.º 9/2020 de 10 de abril) se aplica a uma panóplia de situações futuras e que o legislador não consegue prever, nomeadamente a situações de condenados que ainda não se encontram a cumprir a pena, a mandados de detenção não cumpridos, entre outras.

Nem de outra forma poderia ser entendido, pois na realidade o que se pretende é evita o risco de contagio nas prisões que será certamente agravado com a entrada de novos presidiários (e não de “libertar espaço” nas prisões), por motivos de saúde pública atenta a pandemia que assola não apenas Portugal, mas o mundo inteiro.

Tal deve ser o entendimento que se encontra na intenção do legislador na feitura da Lei aqui em análise, sob pena de uma violação subversiva do principio da igualdade.

Tanto mais que o vírus não distingue nem escolhe contagiar “meros condenados” em detrimento de reclusos efetivos, nem se “preocupa” com datas ou aplicação da lei no tempo.

Tal como refere, Jorge Alves da Silva in Lei do perdão: riscos, dúvidas e incongruências - Público - 14 de Abril de 2020 Jorge Alves da Silva disponível em :https://www.publico.pt/2020/04/14/sociedade/opiniao/lei-perdao-riscos-duvidas-incongruencias-1912116:

“(…) todos os reclusos estão sujeitos ao mesmo risco de contágio.” –

Ora, qual a razão de tratar diferentemente os condenados cuja sentença condenatória transitou em julgado no dia 10 de abril daqueles cuja sentença condenatória transitou em julgado no dia 11 ou 12 de abril, enquanto se mantém em vigor esta lei de clemência? Ainda que se trate de opções políticas mitigadas com critérios jurídicos, as mesmas não devem conduzir a tratamentos ostensivamente desiguais.

(…) Dúvidas na aplicação da lei aos condenados com sentença transitada em julgado até ao dia 10/4, mas ainda não detidos (art. 2.º). A lei pressupõe que esses condenados sejam detidos para depois beneficiarem do perdão: ou seja, terão de ser detidos, conduzidos à prisão e posteriormente libertados? É absurdo prender alguém quando de antemão se sabe que irá ser libertado. Mais: é exatamente o oposto ao fim da lei (evitar o contágio), trazendo alguém de fora para dentro de muros e potenciando o contágio. Não pode ser essa a interpretação: apela-se aqui, se necessário, a uma interpretação corretiva da lei (suspender a emissão de mandados e aplicar o perdão sem que o condenado seja detido).

Paralelamente, em sentido contrário ao do Parecer n.º 10/2020, pode ler-se in ESTADO DE EMERGÊNCIA - COVID-19 – IMPLICAÇÕES NA JUSTIÇA 11.3. Jurisdição Penal e Processual Penal – Trabalho coletivo dos/as Docentes da Jurisdição Penal e Processual Penal do Centro de Estudos Judiciários Alexandre Au-Yong Oliveira Juiz de Direito Helena Susano Juíza de Direito José Quaresma Juiz Desembargador Patrícia Nazaré Agostinho Procuradora da República Rui Cardoso Procurador da República Susana Figueiredo Procuradora da República Valter Batista Procurador da República disponível            em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19.pdf (paginas 490 e seguintes aqui transcritas com sublinhados nossos):

“As condições do próprio estabelecimento deverão permitir um alojamento condigno e tendencialmente individual (é, aliás, a regra proposta que se transformou em exceção), sendo imperativo que se garanta a segurança pessoal do condenado.

Se há constrangimentos em meio livre, os mesmos repercutir-se-ão, também, perante os cidadãos em reclusão.

A estes argumentos não se contrapõem outros.

Mesmo para quem imagina a vida intramuros como um mundo à parte, «[s]e as prisões afectassem apenas quem dentro delas vive, não teriam tanta importância». A prisão não é, apenas, o lugar do ‘outro’. A pressão pública pode facilmente conduzir à inflexão do compromisso de tratar os reclusos com justiça e no respeito pelos direitos humanos.”

“A presente medida de clemência, considerando o especial risco de propagação em meios concentrados, em alinhamento com recomendações das Nações Unidas, parte do reconhecimento da necessidade de, no interior das prisões, garantir condições de alojamento que respeitem e possibilitem a implementação dos requisitos de afastamento social e de proteção da população reclusa, bem como dos elementos da Guarda Prisional, pessoal técnico e respetivas famílias, criando espaços de confinamento mais generosos que diminuam o risco, com um índice de ocupação do espaço mais baixo. Tal será possível mercê da libertação de condenados de baixo risco criminal (tendo em conta as exigências de prevenção geral) ou, preventivamente, dos condenados mais débeis, por razões humanitárias e de saúde.”

“O ato político em causa, mais do que a normalmente encapotada razão prosaica da sobrelotação (que aliás não atinge, hoje, os números preocupantes do passado), é verdadeiramente motivado por razões de saúde pública e de proteção do direito fundamental à saúde e integridade física da população reclusa, assim como de quem com ela se relaciona. O perdão genérico incidirá sobre as consequências jurídicas do crime, com antecipação do termo da reclusão, respeitando-se o princípio da igualdade e a motivação do legiferante. Neste último aspeto não se identificam as razões normalmente associadas à sua concessão, como sejam a magnanimidade por occasio publicae laetitia excepcional, política geral de apaziguamento, de correção de ponderações do Direito modificadas por exigências comunitárias entretanto atenuadas, ou da correção do modo de aplicação do Direito, mas, antes e essencialmente, são agora razões de saúde pública que impõem a maximização e otimização do espaço disponível nos equipamentos prisionais, sem tempo para apontar o dedo a quem se deve tal escassez.

Sobre o elemento literal “recluso condenado” e ainda, anteriormente à alteração do art. 10.º da Lei n.º 9/2020 operada pela Lei n.º 16/2020, dispõe-se o seguinte e cujo teor aqui se reproduz com sublinhados nossos (páginas 501 e seguintes):

Por outro lado, e visto o teor literal dos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º, os beneficiários são identificados como “reclusos”, denominação por tradição referente aos condenados que cumprem pena em meio carcerário, levando-nos a afirmar, com dúvidas, que o perdão não se aplicará aos condenados em penas de prisão a executar em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica, exceto, por analogia às situações previstas no n.º 5, se a forma de execução vier a ser revogada, caso em que implicaria o não ingresso em meio prisional por posterior aplicação do perdão. As dúvidas que apontamos quanto à exclusão do benefício do perdão relativamente às penas cumpridas no domicílio derivam do facto de também estas serem, proprio sensu, penas de prisão. Desta forma, a sua exclusão poderá convocar o risco de violação do princípio da igualdade que, ainda assim, deve nortear a aplicação da medida de clemência. Poderá revelar-se particularmente injusto no exemplo que segue. - Dois condenados na pena de 2 anos de prisão pela prática do mesmo crime. - O primeiro, por aplicação do disposto no artigo 43.º, n.º 1, alínea a), do CP, cumpre a pena em regime de permanência na habitação. - O segundo, precisamente por especiais razões de prevenção especial (por exemplo, nova comissão do crime após execução de pena na habitação), em meio carcerário. - O primeiro, que tinha um prognóstico mais benigno, continuará privado da liberdade. - O segundo será libertado, não obstante o dever de confinamento imposto a todos os cidadãos.

(…)

Quanto ao mencionado no n.º 7 do artigo, refere-se que o perdão a que aludem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acrescerá a pena ou remanescente perdoado. Por rumo imposto por este normativo e tendo a lei entrado em vigor no dia 11.04.2020, a mesma só se aplica a reclusos cujas condenações que servem de título à execução tenham transitado em julgado em data anterior, ou seja, 10.04.2020. Definido o termo inicial, de acordo com o artigo 10.º do diploma em análise, o mesmo «cessa a sua vigência na data fixada pelo decreto-lei previsto no n.º 2 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o qual declara o termo da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19», com o que fica definido o seu limite temporal final de aplicabilidade, presentemente incerto. Da conjugação do acabado de referir resulta que o perdão beneficiará o recluso que, na data em que a lei entrou em vigor ou em qualquer um dos dias em que vigorar, vier a preencher a totalidade dos pressupostos, substanciais e temporais, de concessão do perdão, desde que com base em condenação transitada em jugado anteriormente e nunca para além do fim da sua vigência, nesta data ainda indeterminado. Trata-se, pois, de uma realidade dinâmica que poderá, não só, implicar uma libertação imediata de reclusos, como libertações diferidas no tempo da vigência da lei, como, ainda, o não ingresso de reclusos condenados em pena de prisão, por sentença já transitada à data da entrada em vigor do diploma, mas com mandados de detenção por cumprir.

É que o regime estabelecido pelos artigos 7.º, n.º 2, da Lei n.º 1-A/2020 e 10.º da Lei n.º 9/2020 não permitirá a suspensão de prazos em processos urgentes, como sucede, aliás, em período de férias judiciais, como sejam os que envolvem presos preventivos ou sujeitos à obrigação de permanência na habitação, que, transitando entretanto em data próxima mas anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, poderá envolver a captura de arguidos condenados em execução dessas decisões, cujas exigências preventivas não se compadecem com a suspensão do ato. Condenados que, ingressados em Estabelecimento Prisional em momento posterior ao da entrada em vigor do perdão, mas com base em decisão transitada anteriormente, poderão, por via, designadamente, do mecanismo do desconto, passar a reunir condições temporais para o benefício do perdão. Por outro lado, nos termos do n.º 7 do artigo 2.º, o perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei, que, por sua vez, apenas cessa a sua vigência nos termos do artigo 10.º. Ora, enquanto vigora, são vários os reclusos que podem, por via de decisão transitada à entrada em vigor do diploma, atingir os limites temporais previstos no artigo 2.º, n.ºs 1 e 2. Negar-se a possibilidade de concessão do perdão poderia pôr em crise o princípio constitucional da igualdade, que sempre estará associado a medidas de clemência e, por outro lado, contrariaria as afirmadas exigências de saúde pública que motivam a instituição de um perdão genérico.

Manda ainda a prudência, atentas as finalidades sanitárias subjacentes ao perdão, que, na iminência do ingresso de condenado cuja pena será extinta por via do perdão, ainda que não seja “recluso” para efeitos do artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, que este não venha efetivamente a ingressar – e a correr os riscos sanitários associados à propagação da COVID-19 –, desde que, claro está, a condenação determinante do ingresso tenha transitado anteriormente ao início da vigência da lei.

Deste modo, no caso concreto o recluso A. foi preso em 15.07.2020, em cumprimento da sentença condenatória deverá, conforme o exposto supra, ser considerado “recluso condenado” para efeitos do disposto no n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril.

Tanto mais que a Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril continua em vigor sendo imprevisível a data da sua cessação (art. 10.º com as alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2020 de 29 de Maio) e terá por força desta alteração um âmbito de aplicação muito mais abrangente do que inicialmente poderia ser o intuito do legislador.

A interpretação do n.º 1 do art. 2.º conjugada com a do n.º 7 do mesmo dispositivo legal da Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril levada a cabo pela Douta decisão do TEP de Coimbra segundo a qual os condenados a reclusão presidiária, mas ainda não privados da liberdade à data da entrada em vigor daquela lei, não beneficiam do perdão por não se encontrarem abrangidos pelo âmbito de aplicação daquela norma, é inconstitucional por violação do art. 13.º da CRP.

A decisão recorrida violou os artigos 2.º n.º 1 da Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril e o art. 13.º da CRP devendo ser revogada e substituída por outra que conceda o perdão do recluso A. ordenando-se a sua imediata libertação com a advertência de que o perdão concedido se encontra sujeito a condição resolutiva de não praticar infração dolosa o ano subsequente.

Assim, formulam-se as seguintes CONCLUSÕES:

1. O recluso A. adere pelo presente ao recurso interposto pelo Ministério Público, dando aqui como integralmente reproduzido o seu teor para os devidos efeitos, por entender estarem reunidos todos os pressupostos legalmente exigidos para ser concedido ao recluso o perdão de pena (art. 2.º n.º 1 da Lei n.º 9/2020 de 10 de abril);

2. A decisão recorrida não se encontra devidamente fundamentada, remetendo sem mais e genericamente para o Parecer do Conselho Consultivo da PGR, n.º 10/20, verificando-se um vício da falta ou insuficiência da motivação da decisão de rejeição da concessão de perdão da pena ao abrigo da Lei n.º 9/2020 de 10 de abril;

3. O parecer do Conselho Consultivo da PGR encontra-se desatualizado face às novas alterações legislativas entretanto introduzidas pela Lei n.º 16/2020 de 29 de Maio que procedeu à quarta alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e à primeira alteração à Lei n.º 9/2020, de 10 de abril;

4. Com a revogação do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março, operada pela Lei n.º 16/2020 de 29 de maio e a prorrogação da aplicação da Lei n.º 9/2020 de 10 de abril no tempo que ainda hoje se encontra em vigor (art. 10.º) toda a fundamentação do Parecer n.º 10/20 fica desprovida de sentido;

5. Tal opção legislativa é bem representativa da intenção do legislador de aplicar a Lei n.º 9/2020 de 10 abril a situações futuras que o legislador não consegue prever, nomeadamente a situações de condenados que ainda não se encontram a cumprir a pena, a mandados de detenção não cumpridos, entre outras;

6. A intenção do legislador com criação da Lei n.º 9/2020 de 10 de abril deve ser entendida como forma de evitar o risco de contagio nas prisões que será certamente agravado com a entrada de novos presidiários, por motivos de saúde pública, atenta a pandemia que assola o mundo inteiro (e não a de “libertar espaço nas prisões”);

7. O recluso A. foi preso em 15.07.2020, em cumprimento da sentença condenatória deverá, conforme o exposto supra, ser considerado “recluso condenado” para efeitos do disposto no n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril;

8. O recluso, foi condenado numa pena de 1 ano e 2 meses de prisão, o que se computa como uma pena inferior a dois anos;

9. Os crimes aqui em causa também não se circunscrevem no âmbito de aplicação do art. 1.º n.º 2, nem do n.º 6 do art. 2.º ambos da Lei 9/2020 de 10 de Abril, encontrando-se observados e cumpridos os limites objetivos e subjetivos perpetuados pela mesma;

10. A Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril continua em vigor sendo imprevisível a data da sua cessação (art. 10.º com as alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2020 de 29 de Maio) e terá por força desta alteração um âmbito de aplicação muito mais abrangente do que inicialmente poderia ser intuito do legislador, sob pena de (assim não se entendendo) incorrer numa violação do principio da igualdade.

11. A interpretação do n.º 1 do art. 2.º conjugada com a do n.º 7 do mesmo dispositivo legal da Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril levada a cabo pela Douta decisão do TEP de Coimbra segundo a qual os condenados a reclusão presidiária, mas ainda não privados da liberdade à data da entrada em vigor daquela lei, não beneficiam do perdão por não se encontrarem abrangidos pelo âmbito de aplicação daquela norma, é inconstitucional por violação do art. 13.º da CRP;

12. O recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado procedente e, em consequência, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que conceda o perdão do recluso A. ordenando-se a sua imediata libertação com a advertência de que o perdão concedido se encontra sujeito a condição resolutiva de não praticar infração dolosa o ano subsequente por violação dos artigos 2.º n.º 1 da Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril e o art. 13.º da CRP.


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6. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 27/8/2020, trouxe aos autos o seu douto parecer, cujo teor é o seguinte:

“1.O presente recurso, interposto pelo Ministério Público, visa impugnar o despacho proferido em 23/07/2020, no Processo n.º 744/20.7TXCBR-P, do Tribunal de Execução de Penas, que se reporta à aplicação do perdão previsto na lei n.º 9/2020 de 10 de Abril, ao caso do arguido A. que, tendo sido condenado, por decisão transitada em julgado à data da entrada em vigor da lei n.º 9/20 de 10-04 que ocorreu a 11-04-2020.

O mesmo arguido apenas foi detido no dia 15-07-2020.

O despacho recorrido considerou que não deveria, à situação exposta, ser aplicado o perdão do citado diploma legal, previsto no seu art.º 2º, n.º 1 na medida em que o mesmo não tinha a condição de recluso à data da entrada em vigor da citada lei, não lhe sendo assim aplicável, apesar de a condenação em causa ter transitado em julgado anteriormente à data da entrada em vigor da mesma lei.

2. Por discordar do sentido desta decisão judicial, apresenta o Ministério Público o presente recurso, pedindo que o despacho seja revogado de modo que possa aplicado o perdão da mesma lei ao arguido, considerando que, de outro modo, se viola a aplicação do art.º 2º, n.º 1, da lei 9/20, tendo ainda em conta a globalidade das normas constantes desta lei, nomeadamente, os nºs 6 e 9 do mesmo artigo, na sua interpretação conjugada.

Fundamentalmente e atentas as conclusões de recurso apresentadas, defende-se que lei n.º 9/2020 deverá aplicada a arguidos que entrem mais tarde no sistema prisional desde que se verifiquem os restantes requisitos legais (por ex. o trânsito em julgado anterior, não constar da lista de crimes excluídos e apenas uma aplicação a cada recluso) tal como é o caso.

Para concluir por pedir a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que ordene a aplicação do perdão.

Ao recurso apresentou resposta o arguido, defendendo e apoiando a posição do Ministério Público no sentido da revogação da decisão recorrida e da aplicação do perdão.

3. O mesmo, porque interposto em tempo, foi admitido para subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, nenhuma circunstância obsta ao seu conhecimento.

4. Sobre o objeto do recurso, deveremos dizer antes de mais que esta questão já tem sido colocada por diversas vezes em sede de recurso neste Tribunal da Relação, embora diga-se em diferente perspetiva pelo próprio Ministério Publico.

Já tivemos também oportunidade de nos pronunciarmos sobre a questão em anteriores pareceres, sendo que o foi em termos não coincidentes com a posição que o presente recurso do Ministério Público apresenta.

Desde já se dirá que, ressalvando o devido respeito por diferentes opiniões, não vislumbramos razões a partir da motivação aprestada para alterar a nossa posição, assim discordante do recurso.

Ora, a lei em causa é uma lei de carácter excecional e temporário justificado pela existência de uma situação de infeção epidemiológica que conduziu à declaração do estado de emergência no país.

Quer o espírito da lei, quer a intenção do legislador, expressa aliás, na exposição de motivos da citada lei, entre outros argumentos, apontam no sentido da interpretação apresentada pelo despacho recorrido.

Com efeito, parece-nos neste aspeto fundamental ter presente os ditames jurisprudenciais resultantes de decisões dos nossos tribunais superiores, em concreto do Supremo Tribunal, quanto à proibição, diríamos, de aplicação de interpretações extensivas ou analógicas das leis que concedem perdões e amnistias. (cf., Acórdãos do STJ de 06-05-1987, Tribuna da Justiça, 1987, pág. 30; de 07-12-1977, BMJ, 272, 111 e de 21-07-1077, em jurisprudência.csm.org.pt).

De facto, o legislador expressou-se no texto legal na exata forma em que o pretendeu fazer, no caso em apreço motivado por razões específicas, excecionais e de natureza temporária que referenciou desde logo na exposição de motivos, quando prevê que o perdão se aplica apenas a cidadãos reclusos, expressão que em termos técnico-jurídicos não apresenta qualquer dúvida quanto ao seu âmbito.

Aliás, acresce que o legislador teve o especial cuidado em atribuir a competência para aplicação da lei em causa, aos Tribunais de Execução de Penas, nos termos do n.º 8 do seu art.º 2, com o mesmo sentido de delimitar, limitando a aplicação da lei aos reclusos à data da sua entrada em vigor, quando é certo que noutras leis de concessão de perdão e de amnistia publicadas no passado tal não acontecia, cabendo aos Tribunais de Condenação a aplicação destas leis.

Em boa verdade, o sentido e o espírito da lei podem encontrar-se na pressão da sobrelotação dos estabelecimentos prisionais no apontado contexto do estado emergência que se vivia à data e, tratando-se de uma lei excecional e temporária não pode aduzir-se como argumento, salvo o devido respeito, que a pandemia ainda não terminou e que o problema de saúde pública não se encontra ultrapassado, na medida em que neste momento não se vive em estado de emergência o qual, nos termos da lei, já cessou.

Sendo certo que a pandemia ainda não terminou, vigoram, porém, neste momento diferentes medidas e restrições impostas por outras normas legais.

Assim, vamos concluindo por considerar que o douto despacho recorrido não deve ser revogado, sendo certo ainda, acrescenta-se, que leis excecionais e temporárias hão ter uma aplicação também restrita e balizada no tempo que as mesmas fixam e que correspondem à sua própria caracterização.


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Pelo exposto, somos de parecer que o recurso não deverá ser merecedor de provimento, mantendo-se o despacho recorrido.

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7. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

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8. Colhidos os vistos legais, realizou-se a legal conferência.

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B - Cumpre apreciar e decidir:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), uma questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal:

- Saber se o recluso A. que se encontra afeto ao estabelecimento prisional de Castelo Branco, onde deu entrada em 15 de julho de 2020, para cumprir a pena de 1 A e 2 M de prisão, deve beneficiar do perdão previsto na Lei n.º 9/2020, de 10 de abril.


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A questão da aplicabilidade do perdão a que se refere a Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, é controversa, como resulta dos presentes autos.

Como princípio geral de direito com relevo para o que agora ocupa a nossa atenção, tem sido entendido, pela doutrina e pela jurisprudência, que as medidas de graça, como providências de exceção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas.

Por isso mesmo, são excecionais as normas que estabelecem perdões, não comportando, por isso mesmo, aplicação analógica (artigo 11.º, do Código Civil), nem admitindo interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa. 

Neste sentido, por considerarmos pertinente, citamos, de seguida, parte do Acórdão de Fixação de Jurisprudência, datado de 25/10/2001, Processo n.º P00P3209, in www.dgsi.pt:

“(…) Com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os atos de graça são atos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. O que se refletiu nos próprios termos da distinção entre amnistia e indulto, evidenciando que na primeira se trata sempre de uma medida formalmente legal (competindo às câmaras legislativas) e, deste modo, dotada das características de objetividade, generalidade e impessoalidade, enquanto no indulto se trata de intervenções executivas através das quais, no caso concreto, são afastadas, reduzidas ou suspensas as consequências jurídicas de uma condenação penal, transitada em julgado.

É assim que a Constituição dispõe hoje que «compete à Assembleia da República [...] conceder amnistias e perdões genéricos» - artigo 161.º, alínea f) -, competindo ao Presidente da República «na prática de atos próprios [...] indultar e comutar penas, ouvido o Governo» - artigo 134.º, alínea f).

Em ambos os casos fica derrogado o sistema legal punitivo; daí o intitular-se, por vezes, o regime das medidas de graça como um jus non puniendi. O direito de graça é, no seu sentido global e abrangente, «a contra face do direito de punir estadual» (Figueiredo Dias, Direito Penal ..., parte geral II, 1993, p. 685).

Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.

Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «exceção», revestindo-se de «excecionais» todas as normas que o enformam.

É pela natureza excecional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de exceção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de exceção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas suscetíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).

Sendo, assim, insuscetíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147.

Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto direta e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185. (…)” – negrito e sublinhado nossos.

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Em sede de interpretação de normas, há que atender ao que dispõe, de modo imperativo, o artigo 9.º, do Código Civil:

«1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

Como deve, então, ser interpretado o n.º 1, do artigo 2.º, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril? cujo teor, relembre-se, é o seguinte:

“1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

Nos termos da lei ora em causa, são apenas reclusos os cidadãos que o eram, de facto, à data da sua entrada em vigor ou todos aqueles que o vierem a ser após tal data, respeitadas que sejam as restantes circunstâncias previstas no mesmo diploma legal?

Do exame literal do texto do citado n.º 1, como resulta, aliás, da existente falta de unanimidade sobre o assunto, não resulta a solução dos problemas de interpretação, desde logo porque o elemento literal, ainda que claro quanto à palavra em si (recluso é aquele que está preso), não delimita no tempo tal realidade.

O recurso aos demais elementos de interpretação mencionados no já citado artigo 9.º apresenta-se, pois, como determinante.

Há, portanto, que considerar a interpretação lógico-sistemática, assim como a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica, bem assim a história da génese do preceito, que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e, finalmente, a interpretação teleológica.

No que concerne ao elemento histórico, há que ter em devida conta os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência e, aqui, não vemos como não pode deixar de se reiterar que uma lei que prevê a aplicação de perdão deve sempre ser vista como lei excecional e temporária, com tudo o que isso implica, como já vimos, nos seus apertados limites.

Por sua vez, em termos de interpretação lógico-sistemática, merece especial ponderação a circunstância da lei ora em causa ter surgido inserida numa legislação abundante e diversificada que visou responder a uma situação de emergência, na tentativa de obstar à expansão de determinada doença nos estabelecimentos prisionais durante um determinado período, no âmbito de uma pandemia, cujo termo se afigura, ainda hoje, incerto.

Pode ser lido na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, de 2 de abril de 2020:

“(…) Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto, que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade.

Estas medidas extraordinárias constituem a concretização de um dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito. Assim, o Governo propõe o perdão das penas de prisão aplicadas por decisão transitada em julgado, cuja duração não exceda os dois anos ou, no caso de penas aplicadas de duração superior, se o tempo remanescente até cumprimento integral da pena for também igual ou inferior a dois anos. O perdão abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, a pena única, excluindo, porém, as penas aplicadas por crimes relativamente aos quais permaneçam prementes as exigências relativas de prevenção, geral e especial, e de estabilização dos sentimentos de segurança comunitários. O perdão é, ainda, concedido sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar.” – negritos e sublinhados nossos.

Daqui retiramos que a Proposta do Governo parecia apontar no sentido de serem tomadas medidas para um determinado momento, bem delimitado no tempo, isto é apenas para o imediato,

Contudo, constatamos que a versão final da Lei 9/2020, de 10 de abril, foi mais além da referida proposta e consagrou, expressamente, o seguinte:

Artigo 10.º

Cessação de vigência

A presente lei cessa a sua vigência na data fixada pelo decreto-lei previsto no n.º 2 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o qual declara o termo da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”

Salvo o devido respeito, em termos sistemáticos, este artigo inculca a ideia de que a lei não visou apenas ser dirigida para o imediato, a quem já era recluso, mas pretendeu contemplar situações de futuros reclusos, pois consagra que a vigência da “presente lei” só cessará quando acabar a situação excecional de “prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”

Aliás, tal ideia, veio a ser reforçada através da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, onde pode ser lido o seguinte:

Artigo 3.º

Alteração à Lei n.º 9/2020, de 10 de abril.

O artigo 10.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, passa a ter a seguinte redação:

«Artigo 10.º

[...]

A presente lei cessa a sua vigência na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.»

Ora, o legislador, em 29 de maio de 2020, veio afirmar que a Lei n.º 9/2020, se mantinha em vigor.

Por conseguinte, reiterou a ideia de que os reclusos que se encontrarem nas circunstâncias nela previstas devem beneficiar de perdão, o que só pode querer significar que a lei não se aplica só a quem era recluso à data da entrada em vigor da mencionada Lei n.º 9/2020, pois, quanto a tais cidadãos, já os Tribunais De Execução de Penas decidiram nos dias seguintes àquela.

Sem dúvida que, ao fazê-lo, está o legislador a afastar-se da doutrina e jurisprudências há muito existentes em sede de medidas de graça.

Porém, há que atender às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo que estamos a viver, sem paralelo com outros momentos em que foram publicadas leis de amnistia.

Com efeito, nas últimas décadas, nunca a sociedade se deparou com uma situação como aquela que surgiu na sequência da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

Ao nível de evitar a disseminação da doença nos estabelecimentos prisionais, é bem claro que a quase totalidade dos governos mundiais visa apenas que os mesmos se destinem a uma criminalidade mais grave, deixando de fora reclusos condenados que tenham cometido crimes considerados menos graves, quando estejam em causa curtas penas de prisão, tendo presentes critérios de manutenção de saúde pública, enquanto se mantiver a pandemia.

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Pelo exposto, sempre salvo o devido respeito, sufragamos a ideia exposta no recurso interposto pelo Ministério Público.

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C. Decisão:

Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, concedendo-se, assim, o perdão previsto na Lei n.º 9/2020 ao recluso A., ordenando-se a imediata passagem dos respetivos mandados de libertação, caso não interesse a prisão à ordem de outro processo, devendo o mesmo ser advertido que o perdão é concedido sob condição resolutiva de não praticar infração dolosa no ano subsequente.

Sem custas.

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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).


Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Coimbra, 30 de Setembro 2020

José Eduardo Martins - Relator

Maria José Nogueira - Adjunta