Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
380/19.4T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
MANIFESTA FALTA DE TÍTULO
LIVRANÇA
Data do Acordão: 11/19/2019
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUIZO DE EXECUÇÃO DE COIMBRA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 10º, Nº 5, E 703º, Nº 1, AL. C) DO NCPC; ART.º 65º DO CÓDIGO DO IMPOSTO DO SELO E PORTARIA N.º 28/2000, DE 27/01; ARTº 75º LULL.
Sumário: Não é de entender existir manifesta falta de título executivo – v.g., para assim alicerçar o indeferimento liminar do requerimento executivo -, quando, apesar de essa conclusão ser arrimada na interpretação que, das normas aplicáveis, faz determinada corrente da jurisprudência das Relações, existe, também nos Tribunais Superiores, expressiva corrente jurisprudencial contrária em que se pode confortar a defesa da exequibilidade do título.
Decisão Texto Integral:














Uma vez que, ponderada a questão suscitada no presente recurso, se afigura ser simples a respectiva resolução, passa-se a proferir Decisão sumária (Art.º 656º, 652º, n.º 1, al c), ambos do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, doravante designado com  a sigla NCPC, para o distinguir daquele que o precedeu e que se passará a referir como CPC).
I - Relatório1:
A) - O BANCO I..., S.A, instaurou, fundado em documento que apelidou de livrança, execução para pagamento  de  quantia  certa, contra H..., para obter deste o pagamento coercivo do montante inscrito na livrança e os respectivos  juros  de mora.
Para o efeito, alegou, em  síntese:
No exercício da sua atividade comercial «[…] celebrou com o ora Executado H... um Contrato de Crédito nº ...
Como garantia das obrigações emergentes do contrato o Executado subscreveu e entregou a livrança em  execução.
Sucede que o Executado deixou de cumprir com as suas obrigações contratuais.
Pelo que o Exequente procedeu ao preenchimento da livrança no montante de €10.622,94 (dez mil, seiscentos e vinte e dois euros e noventa e quatro cêntimos) conforme estipulado na autorização de preenchimento.


A livrança não se encontra paga pelo Executado, nem na data de vencimento, nem posteriormente.  […]».
B) Tendo o processo sido distribuído ao Juízo de Execução de Coimbra (Juiz 1), o Mmo. Juiz, por despacho de 04/02/2019, invocando o disposto no art.º 65.º do Código do Imposto do Selo, na Portaria n.º 28/2000, de 27/01, e nos artºs 10.º, 703º, nº 1, c) e 726.º, n.º 2, a), do NCPC, indeferiu liminarmente o requerimento executivo, por entender ser manifesta a falta de título  executivo.
Para o efeito consignou, no referido despacho, entre o mais, o   seguinte:
«[…] Foi apresentado como título executivo um  documento particular emitido a 18-04-2018 que, em nosso entender, não tem qualquer  valor legal como Livrança, logo não configura título de crédito nos termos e para os efeitos previstos no art.º 703.º/1/c) CPC.
Com efeito, a emissão de Livranças está legalmente sujeita não só aos requisitos previsto na Lei Uniforme relativa às Letras  e  Livranças, como também ao art.º 65.º do Código do Imposto do Selo e à Portaria  n.º 28/2000, de 27/01.
A Exequente, ao editar o módulo de Livrança, não observou  os  requisitos legais e técnicos previstos no art.º 65.º  CIS e  na  P.28/2000.
Não existe número sequencial e nem o formato, nem o papel, nem as cores, nem as tintas, nem a impressão, respeitam as obrigações legais decorrentes da P.28/2000.
Em síntese, o documento apresentado é ilegal, pois não reúne as características mínimas para valer como Livrança validamente editada por instituição de crédito/sociedade financeira à luz da lei portuguesa. […]».

*


C) O Exequente, notificado que foi desse despacho, dele interpôs recurso, tendo este sido recebido como apelação, a  subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente   devolutivo.
II -   No   final  da   sua  alegação  recursória  o   Apelante  ofereceu  as
seguintes conclusões:
...
A sentença recorrida viola, entre outras disposições que V. Exas doutamente suprirão, os artigos 75.º LULL e 703º, nº 1, al. c) do CPC.
Terminou assim: “...deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos  autos…».
III - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, no domínio da legislação pretérita correspondente, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 2).
E a questão a solucionar consiste em saber se o requerimento executivo podia, com fundamento na manifesta falta de título, ser indeferido liminarmente.
IV - Fundamentação:
A) - O circunstancialismo processual e os factos  a  considerar  na  decisão a proferir são os enunciados em I supra.
B)- De harmonia com o disposto no artigo 10º, nº 5, do NCPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e, consequentemente, o tipo, a espécie da prestação e da execução que lhe corresponde, bem como os limites dentro dos quais se irá desenvolver.  
A livrança consubstancia título de  crédito que se encaixa na previsão  do artº 703, nº 1, c), do NCPC (cfr. al. c) do n.º 1 do art˚. 46º do pretérito CPC).
O      artº      75º      da     LEI      UNIFORME          RELATIVA           ÀS     LETRAS         E
LIVRANÇAS (LULL), estabelece:
«A livrança contém:
1 - A palavra "livrança" inserta no próprio texto do  título e  expressa  na língua empregada para a redacção desse  título;
2 - A promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada;
3 - A época do  pagamento;
4 - A indicação do lugar em que se deve efectuar o pagamento;   5 - Nome da pessoa a quem ou a ordem de quem deve ser   paga;
6 - A indicação da data em que e do lugar onde a livrança é passada;   7 - A assinatura de quem passa a livrança   (subscritor).».
Por sua vez, dispõe o artº 76º da mesma   LULL:
«O escrito em que faltar algum dos requisitos indicados no artigo anterior não produzira efeito como livrança, salvo nos casos determinados nas alíneas  seguintes.
A livrança em que se não indique a época de pagamento  será considerada pagável à  vista.
Na falta de indicação especial, o lugar onde o escrito foi passado considera-se como sendo o lugar do pagamento e, ao mesmo tempo, o lugar do domicílio do subscritor da  livrança.
A livrança que não contenha indicação do lugar onde foi passada considera-se como tendo-o sido no lugar designado ao lado do nome do subscritor.».
A manifesta falta ou insuficiência de título executivo consubstancia, como é sabido, motivo de indeferimento liminar do requerimento inicial executivo, nos termos do artº 726º, nº  2, a), do  NCPC  (art.º  812º-E, nº 1, a), do pretérito CPC, na redacção que a este código foi dada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de  Novembro).
O Exequente, no requerimento inicial, segundo o nosso entendimento, funda a execução, tal como alega, numa livrança putativamente subscrita pelo Executado a que não falta nenhum dos requisitos exigidos no artº 75º da LULL, não lhe faltando, também, qualquer dos requisitos que, nos termos do artº 76º, obstariam a que não produzisse efeito como livrança.
As falhas que, ao documento oferecido como título executivo, são imputadas no despacho recorrido, para não o reconhecer como livrança e, consequentemente, para lhe negar força executiva, não têm, salvo o devido respeito, uma tal  virtualidade.
Efectivamente, concordamos inteiramente  com  o  entendimento expresso no Acórdão da Relação do Porto de 29/4/2008 (Apelação nº 0821381)3, onde se escreveu o seguinte, que, “mutatis mutandis”, é aplicável ao caso “sub judice”: «[…] não é  verdadeira a  afirmação de  que a Portaria n.º 28/2000 veio criar uma nova livrança ou um novo modelo de livrança. O único modelo legal de livrança, enquanto título cambiário, é o que se encontra definido no art. 75.º da LULL  e  não  pode ser alterado unilateralmente pelo Estado Português enquanto estiver vinculado à Convenção de Genebra relativa à  Lei  Uniforme sobre Letras e Livranças, de 7 de Junho de 1930, aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 23721, de 29 de Março de   1934.
A intervenção legislativa que neste domínio tem ocorrido incide apenas sobre o modelo de  impresso a  adoptar como letra e  livrança. Modelo que visa tão só os aspectos relativos ao tipo, ao formato e às dimensões do papel, bem como à cor, à tinta e ao tipo de impressão e outros caracteres similares. Sem qualquer interferência nos requisitos formais e substanciais da livrança como título cambiário, a  que  alude o  art. 75.º da LULL.
E  tal intervenção é  justificada por motivos meramente burocráticos e  de natureza fiscal, completamente à margem das características cambiárias da letra e da livrança. Motivos que têm que ver com a sua adaptação a tratamento informático e à cobrança do imposto de selo, como expressamente é enunciado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 387-G/87, de 30 de Dezembro, que refere que “as alterações introduzidas pelo presente diploma visam a adaptação da Tabela Geral do Imposto de Selo à normalização da letra, tendo em vista o seu tratamento informático”. As mesmas finalidades  têm  sido  realçadas  nos preâmbulos das diversas portarias que, entretanto, têm sido publicadas com as alterações a esses modelos, de que são exemplo as Portarias n.º 142/88, de 4 de Março, 545/88, de 12 de  Agosto, 233/89,  de   27   de   Março,  n.º   1042/98,  de   19   de   Dezembro,  e


28/2000. E por isso é que os ditos modelos têm variado  com  uma rapidez típica da  voragem legislativa de  cada momento, de  tal modo  que só no ano de 1988 sofreu três alterações. Imagine-se os contratempos que ocorreriam para a actividade bancária, por  exemplo, se os novos modelos viessem inutilizar os  títulos emitidos anteriormente.
É neste âmbito que o preâmbulo da Portaria n.º  28/2000  também  refere que “em consequência da entrada em vigor  do  Código  do  Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, e respectiva Tabela Geral, resulta a abolição definitiva da forma de arrecadação do imposto do selo por meio de papel selado, ainda subsistente na espécie de papel para letras, e a sua  substituição por  meio de guia. Torna-se, pois, necessário adequar a esta realidade os modelos das letras e  livranças”.
Esta interpretação também decorre do art. 65.º  do  Código do  Imposto de Selo, cujo n.º 1 dispõe, de forma bem expressiva, que as letras e as livranças “obedecerão aos requisitos previstos na  lei uniforme relativa   a letras e livranças”. Como não podia deixar  de  ser,  atenta  a  vinculação do Estado Português à Convenção acima referida e  o disposto no art. 8.º da Constituição da República   Portuguesa.
Acresce a tudo isso que, nem o Código do Imposto de Selo,  nem  qualquer das Portarias que criam e recriam os modelos de impresso das letras e das livranças, prevêem qualquer sanção para as letras e  livranças emitidas em desconformidade com  os  modelos  de  impresso que vigoram em cada momento. Designadamente ao nível da sua  validade como letras e livranças, ou ao nível da sua força   executiva.
Por isso, como escreve Pinto Furtado (em Títulos de  Crédito,  Almedina, 2000, p. 141), referindo-se à letra de câmbio, mas que tem plena aplicação relativamente à livrança: “a clássica letra de câmbio é, como qualquer título de crédito, antes de  mais, um  pedaço de  papel onde se inscrevem os elementos literais e  o  tributário …  Estes não se compreenderão plenamente se dissociados da realidade  material  que lhes serve de corpus mechanicum e que alguns autores qualificam de novo e autónomo elemento, a acrescer àqueles: o instrumentum. (…) A obrigatoriedade do emprego de impressos nas condições oportunamente referidas, para servirem de instrumentum a uma letra de câmbio, é obviamente de natureza tributária, não afectando a sua  violação, por isso, a validade das obrigações cambiárias  respectivas”.
Com efeito, nos termos do art. 76.º da LULL, o escrito só deixará de valer como livrança quando lhe  faltar algum  dos  requisitos mencionados no art. 75.º da mesma Lei, com a ressalva das excepções ali previstas. Sucede que o art. 75.º da LULL não se refere a nenhum modelo específico de impresso de livrança. E, por isso, qualquer documento escrito que satisfaça todos os requisitos previstos  no  art. 75.º da LULL vale como livrança. Mesmo que esse documento não corresponda ao modelo de impresso criado por  Portaria.
É, aliás, esta a posição claramente dominante na doutrina e na jurisprudência. Assim, para além do acórdão da Relação  do  Porto citado na  decisão recorrida, defendem esta posição o  acórdão do  STJ de 03-12-1998, no BMJ n.º 482, p. 250, dois acórdãos da Relação de Lisboa de 27-01-1998 ambos sumariados em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ procs. n.º 0010741 e 0093661 e um terceiro de 21-09-2006, em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ proc. n.º 5455/2006-8. Entre todos, destaca-se   o acórdão da Relação de Lisboa de 27-01-1998,  publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano de 1998, Tomo I, p. 95, e também   na Revista da Ordem dos Advogados, ano  60,  Janeiro 2000, vol. I,  com comentário favorável de JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS. […]».
Em face do exposto e sem prejuízo de se saber existir jurisprudência em sentido divergente, não se poderia ter entendido ser manifesta a falta de título executivo e, com base  nisso,  ter-se  indeferido liminarmente o requerimento inicial  executivo.
Efectivamente, se à luz da interpretação que uma parte expressiva da jurisprudência dos Tribunais Superiores faz dos preceitos legais aplicáveis, o documento escrito em causa pode ser tido como livrança e, como tal, se deve considerar como título de crédito, não pode entender-  se que uma execução fundada num tal documento, padeça de manifesta falta de título executivo.
Perfilhamos, assim, o expendido na Decisão Singular desta Relação de Coimbra de 19/05/2015 (Apelação nº 433/14.5TBSCD.C1)4, quando aí se escreve: «[…] o indeferimento in  limine do  requerimento executivo, com fundamento na falta de título executivo, só é admissível quando essa falta seja manifesta (artº 726 nº 2 a) do   nCPC).
E a falta de título só é manifesta quando seja patente, ostensiva, evidente, quando não possa ser oferecida qualquer dúvida, por mínima que seja, para a inexequibilidade extrínseca do documento no qual o exequente funda a pretensão de realização coactiva  da  prestação objecto do pedido  executivo. Como o  juízo sobre o  carácter ostensivo da falta de título é feito na fase liminar da execução, deve fazer-se um  uso prudente, circunspecto e moderado da prerrogativa  de  indeferimento in limine do requerimento executivo, de que, portanto, só deve lançar-se mão, em casos extremos e  contados. Dito doutro modo:   o requerimento executivo só deve ser liminarmente indeferido com fundamento na falta de título, se for possível fazer, logo  nesse  momento, um juízo consciencioso e seguro sobre a manifesta, evidente, patente ou ostensiva falta dessa condição da acção   executiva.
(…)
No caso, a falta de título não é seguramente manifesta,  evidente, patente, ostensiva ou indubitável. E não o sendo, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que aquela falta mesmo a verificar-se não autorizaria a decisão de indeferimento in limine do requerimento executivo. […]».

O que se acabou de expor é o bastante, pois, para negar a possibilidade de, no presente caso, se ter indeferido liminarmente o requerimento executivo com base na manifesta falta de  título  executivo, o que desde logo justifica a revogação do  despacho  que  assim decidiu.

Afigura-se, assim, que, do exposto, poder-se-á sumariar o seguinte“Não é de entender existir manifesta falta  de  título  executivo  – v.g., para assim alicerçar o indeferimento liminar do requerimento executivo -, quando, apesar de essa conclusão ser arrimada na interpretação que, das normas aplicáveis, faz determinada corrente da jurisprudência das Relações, existe, também nos Tribunais Superiores, expressiva corrente jurisprudencial contrária em que se pode confortar a defesa da exequibilidade do  título”.
V - Decisão:
Em face de tudo o exposto, na procedência da Apelação, revoga-se o despacho recorrido e determina-se que, não havendo outro motivo que a isso obste, se dê seguimento aos normais termos da acção executiva.
Custas pela parte que, a final, suportar as custas da execução. 19/11/20195
O relator - Luiz José Falcão de Magalhães

1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2 Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ que abaixo se assinalarem sem referência de publicação.

3 Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.

4 Consultável em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase.

5 Processado e revisto pelo Relator