Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7839/15.0TBLSB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: GRAVAÇÃO DE DEPOIMENTOS ORAIS – SUA DISPONIBILIDADE ÀS PARTES.
NULIDADE DESSA GRAVAÇÃO – SUA ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 09/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J.L. CÍVEL DAS CALDAS DA RAINHA – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 155º E 195º DO NCPC
Sumário:
I - Dispõe o 155º, nº 3 do NCPC: “A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respectivo ato.”
E o nº 4 do mesmo artigo estabelece: “A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.”.
II - A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma.
III - Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efetiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes.
IV – Foi intenção do legislador que o procedimento tendente à obtenção de cópia da gravação pelas partes seja o mais simples possível, sem necessidade de realização de qualquer notificação pela secretaria e tendo em vista garantir que algum problema que se verifique com a gravação seja resolvido, com rapidez, no tribunal de primeira instância.
V - Afronta a razão de ser da lei o entendimento de que o início da contagem do prazo para a invocação de eventual deficiência da gravação dos depoimentos fica dependente da livre iniciativa da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação temporal (para além da que decorreria do prazo de apresentação do recurso da decisão final).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I - A) - 1) – No âmbito da sessão de audiência final que teve lugar no dia 07.11.2016, no Juízo Local - Secção Cível (J2), de Caldas da Rainha, foram prestadas "declarações de parte" do Interveniente / Chamado, J...
Na respectiva acta consignou-se que o depoimento desse interveniente “...foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.” e que tal gravação áudio se “...iniciou às 09:54:19, tendo terminado às 10:33:47.”
Tendo sido proferida sentença em 22/02/2018, julgando a acção improcedente, veio o Autor, A..., em 07/03/2018, invocando o disposto no art.° 155.°, n.° 3, do C.P.C. e juntando um CD, requerer que lhe fosse «[…] facultada a gravação de onde conste tudo quanto foi produzido em Audiência Final, designadamente de todos e quaisquer depoimentos, informações, esclarecimentos, requerimentos e respectivas respostas, despachos e alegações orais.».
Em 14.03.2018 exarou-se nos autos o seguinte “termo de entrega”: “Consigno ter procedido à gravação da audiência final, e entregue o respectivo cd ao Ilustre Mandatário do Autor, Dr. ...”
2) - Em 16/03/2018 o Autor apresentou um requerimento com o seguinte teor: «[…] A..., A. nos autos à margem referenciados, vem, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 155.°, n.° 4, do C.P.C., invocar, no que concerne, designadamente, às "declarações de parte" do Interveniente / Chamado, Sr. J..., a manifesta e evidente deficiência da "gravação” disponibilizada no passado dia 14/03/2018 “gravação” essa que, aliás, cfr. resulta da “Acta de Audiência de Julgamento” datada de 07/11/2016, terá sido efectuada "(...)através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.", com início às 09:54:19 horas, e términos às 10:33:47 horas), deficiência de "gravação" essa que, de resto, como é por demais evidente, não permite, de forma alguma, a audição, percepção e compreensão, na sua quase totalidade, dessas mesmas "declarações de parte”, impossibilitando, assim, que o A., no Recurso de Apelação que pretende interpor contra a Sentença proferida, possa, como é seu desejo e direito, impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.[…]».
3) - Sobre esse requerimento veio a recair o despacho de 23-03-2018, que considerando que a nulidade assim arguida havia sido suscitada para além do prazo que a lei prevê para o efeito, considerou-a sanada, julgando-a improcedente.
B) - Inconformado, o Autor - que também interpôs recurso da sentença (que foi distribuído a outra Secção desta Relação) -, recorreu desse despacho de 23-03-2018, em 19.04.2018, tendo terminado as alegações desse recurso - que veio a ser admitido como Apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo -, oferecendo as seguintes conclusões
...
TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE “RECURSO” SER JULGADO PROCEDENTE, POR PROVADO, E, EM CONSEQUÊNCIA:
• DEVE O “DESPACHO” PROFERIDO A 23/03/2018 SER REVOGADO / ANULADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE, ADMITINDO, COMO TEMPESTIVAMENTE ARGUIDA / INVOCADA A NULIDADE DECORRENTE DA DEFICIENTE GRAVAÇÃO DO “DEPOIMENTO DE PARTE” DO INTERVENIENTE / CHAMADO J..., DÊ, PARA OS DEVIDOS EFEITOS E CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, POR, EFECTIVAMENTE, VERIFICADA ESSA MESMA NULIDADE. […]».
A Ré, “C..., S.A.”, na resposta que apresentou à alegação de recurso do Autor, pugnou pela manutenção do decidido no despacho impugnado.
II - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil - doravante NCPC2 -, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
2 Utilizar-se-á a sigla “CPC” para referir o código pretérito, ou, excepcionalmente, nos casos em que transcrevemos texto onde essa sigla foi já utilizada para identificar o novo Código de Processo Civil.
3 Cfr. Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, tal como aqueles que, desse Tribunal e sem referência de publicação, ou com uma outra, vierem a ser citados adiante.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”3 e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.
Assim, o que importa saber é se a Arguição do autor, em 16/03/2018, da deficiência que este imputou à “gravação” das "declarações de parte" prestadas pelo “Interveniente / Chamado, Sr. J...” na sessão de 07/11/2016 da audiência final, deveria ter sido deferida pelo Tribunal “a quo”.
III - A) O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I –A)- supra.
B) – Dispõe o 155º nº 3 do NCPC: “A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respectivo ato.”
E o nº 4 do mesmo artigo estabelece: “A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.”.
Importa dizer primeiro quanto à nulidade atinente à gravação deficiente ou omitida das declarações ou dos depoimentos, que, situando-se a montante da sentença, não se surpreendem razões para se lhe aplicar, v.g., por analogia, o regime que a lei define para essas nulidades.
Por outro lado, ainda que se conceda que o Decreto-Lei 39/95 de 15/5, não foi revogado tacitamente, “in totum”, pelo NCPC, aprovado pela Lei nº. 41/2013, de 26.06, há-de reconhecer que a disciplina vigente quanto ao prazo para as partes invocarem a falta ou deficiência da gravação e, consequentemente, no que concerne à necessidade dessa omissão e dessa deficiência, serem reclamadas pelas partes, é a consignada nos artºs 155º e 195º do NCPC.
A questão que se coloca, pois, é a de saber se a disponibilização que o preceito refere implica uma notificação às partes no sentido de informá-las de que a gravação está apta a ser-lhes facultada, ou mesmo, se com tal termo se pretende significar a efectiva entrega da gravação às partes.
Vários entendimentos têm sido seguidos nas Relações, quer no domínio do CPC, quer na vigência do NCPC, sendo que, consideramos que a solução mais adequada à finalidade que parece ter presidido à disciplina da invocação da falta ou da deficiência da gravação, consagrada neste último código, leva a que se tenha como bom o entendimento que na matéria em causa se expendeu no Acórdão de 12/10/2017 da Relação de Évora4, assim sumariado: «1 – A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma.
4 Apelação nº 1382/14.2TBLLE-A.E1, consultável, em texto integral, em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf?OpenDatabase, tal como os restantes acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, que, sem referência de publicação, vierem a ser citados.
2 – Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes.».
E explica-se nesse aresto da Relação de Évora: «[…] o recorrente acaba por propor duas teses diferentes sobre o que seja “disponibilizar”: na primeira tese, disponibilizar equivale à realização, pela secretaria judicial, da notificação das partes de que a gravação está ao dispor destas; na segunda tese, ainda mais exigente que a primeira, disponibilizar é sinónimo de entregar às partes o suporte digital da gravação.
Porém, nenhuma destas teses encontra sustentação nos n.ºs 3 e 4 do artigo 155.º do CPC.
Por um lado, em parte alguma a lei impõe que a secretaria realize a notificação referida pelo recorrente. Além de resolver as dúvidas que o regime anterior suscitava, foi intenção do legislador que o procedimento tendente à obtenção de cópia da gravação pelas partes seja o mais simples possível, sem necessidade de realização de qualquer notificação pela secretaria e tendo em vista garantir que algum problema que se verifique com a gravação seja resolvido com rapidez, no tribunal de primeira instância. Se fosse intenção do legislador que a secretaria notificasse as partes de que a gravação está disponível, certamente o teria estabelecido expressamente. Todavia, não é, manifestamente, isso que o n.º 3 do artigo 151.º faz.
Por outro lado, disponibilizar não é entregar o suporte digital da gravação às partes. Desde logo porque, na língua portuguesa, estas duas palavras não são sinónimas. Disponibilizar é colocar algo à disposição de outrem, ainda que o terceiro assuma uma atitude de inércia e não aproveite tal disponibilidade. Entregar é mais que isso, é transferir algo para o poder, para as mãos de outrem. Na hermenêutica jurídica tem de se partir do princípio de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (Código Civil, artigo 9.º, n.º 3, in fine), pelo que o verbo “disponibilizar” deve ser interpretado em sentido próprio e não como sinónimo de “entregar”. A tese do recorrente parte do princípio de que o legislador não se exprimiu adequadamente, utilizando o verbo “disponibilizar” quando queria dizer “entregar”. Ora, tal desconformidade entre a intenção do legislador e a forma como este se exprimiu não está demonstrada. Pelo contrário, a ponderação do resultado a que conduziria a interpretação proposta pelo recorrente confirma que o legislador se exprimiu correctamente ao utilizar o verbo “disponibilizar”. Como bem nota a decisão recorrida, se a contagem do prazo fixado no n.º 4 do artigo 155.º do CPC só se iniciasse a partir da entrega da gravação à parte, tal início ficaria na dependência do arbítrio desta. Bastaria que a parte não solicitasse a entrega da gravação ou, fazendo-o, não diligenciasse, depois, no sentido de ir recebê-la, para que aquela contagem não se iniciasse. Dessa forma ficaria, na prática, a parte com a possibilidade de invocar a falta ou deficiência da gravação quando lhe aprouvesse, até à interposição de recurso da sentença. Ora, não foi, seguramente, isto que o legislador quis ao estabelecer os apertados prazos que as normas que vimos analisando estabelecem. Convém, a propósito, lembrar novamente o disposto no citado artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil: O intérprete deverá presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas. Atento o resultado a que conduz, a segunda tese que o recorrente propõe é tudo menos acertada.
Não se objecte com o argumento de que na hipótese de a secretaria não disponibilizar (em sentido próprio) a gravação no prazo de dois dias a contar do acto, as partes ficariam injustamente penalizadas por verem comprimido o prazo para a reclamação prevista no n.º 4. Nessa hipótese a parte terá o ónus de, através de requerimento dirigido ao juiz, suscitar a questão. Caso se confirme o incumprimento do prazo do n.º 3, o prazo do n.º 4 só começará a contar-se a partir do momento em que a secretaria passe a ter a gravação ao dispor das partes. É isto que decorre do n.º 4, ao estabelecer que o prazo de 10 dias para a arguição da nulidade decorrente da falta ou deficiência da gravação começa a contar-se no “momento em que a gravação é disponibilizada”. Veja-se, neste sentido, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 05.02.2015 (processo n.º 8/13.6TCFUN.L1-2), o qual, além do mais, enfatiza, bem, o dever das partes de cooperarem com o tribunal no sentido de eventuais irregularidades da gravação que possam comprometer a desejável celeridade no andamento dos autos serem remediadas o mais cedo possível. […]».
Aliás, em sentido idêntico escreveu-se no Acórdão desta Relação de Coimbra de 10/07/2014 (Apelação nº 64/13.7T6AVR-A.C1)5, relatado pelo ora Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional, José António Teles Pereira: «[…] Conjugando os nºs 3 e 4 do artigo 155º do Novo CPC, pressuposta a “obrigação de gravar” decorrente do nº 1 do mesmo artigo 155º, resulta dever ser disponibilizada às partes (o que pressupõe um acto expresso da Secretaria com esse alcance) a gravação, “[…] no prazo de dois dias a contar do respectivo acto” (nº3), sendo que, omitido que seja esse acto de disponibilização (estamos a prefigurar a hipótese que aqui tem
5 Consultável, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase, tal como os restantes acórdãos desta Relação de Coimbra, que, sem referência de publicação, vierem a ser citados. interesse prático), deve a parte interessada em recorrer assinalar formalmente essa incidência ao Tribunal de primeira instância (rectius, invocar a nulidade dessa não disponibilização), como forma de desencadear o acto pressuposto nesse nº 3 do artigo 155º (mesmo que esse acto corresponda ao assumir da falta de gravação) e, por essa via, criar a parte interessada o elemento processual que permite desencadear a invocação prevista no nº 4 do mesmo artigo 155º: “[a] falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” (sublinha-se, e é sintomático, que a norma tanto se refere à deficiência como à falta de gravação). […]».
E também no Acórdão da Relação de Lisboa de 05/02/2015 (Apelação nº 8/13.6TCFUN.L1-2)6, se explica bem o mecanismo da invocação da falta ou deficiência da gravação, e o dever de diligência que pende sobre a parte que preveja a necessidade de, em recurso da sentença, vir a ter de chamar à colação a gravação que haja sido feita da prova produzida em audiência. Aí se escreveu7:
6 Consultável em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase, tal como os restantes acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, que, sem referência de publicação, vierem a ser citados.
7 Os sublinhados são nossos.
«[…] afronta a razão de ser da lei o entendimento de que o início da contagem do prazo para a invocação de eventual deficiência da gravação dos depoimentos fica dependente da livre iniciativa da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação temporal (para além da que decorreria do prazo de apresentação do recurso da decisão final).
Em sentido semelhante se fixou jurisprudência no âmbito do CPP, mediante o acórdão do STJ de 03.07.2014 (Acórdão n.º 13/2014, in D.R., 2.ª série, de 23.9.2014, pág. 5042 e seguintes), em que se enunciou a seguinte proposição: “A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal [falta de documentação na ata das declarações prestadas oralmente] deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar–se sanada.”
Ou seja, perante um quadro legislativo que, segundo se entendeu nesse acórdão, comina com a nulidade a falta ou deficiência de gravação devida da audiência, nulidade essa sujeita a alegação pela parte interessada, no prazo de 10 dias, e em que, nos termos do n.º 3 do art.º 101.º do CPP, na redação dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto “sempre que for realizada a gravação, o funcionário entrega no prazo de quarenta e oito horas uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira e forneça ao tribunal o suporte técnico necessário”, entendeu-se que sobre as partes recai um dever de diligência que as onera com o encargo de diligenciarem, o mais tardar logo após o termo da audiência, pela rápida obtenção da gravação dos depoimentos e, num prazo curto, averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância.
É semelhante a solução que, a nosso ver, propugna o atual regime processual civil, nos termos já supra referidos. […]»8.
8 No mesmo sentido cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 19/05/2016 (Apelação nº 941/08.7TBMFR-H.L1-2).
O entendimento que se perfilha sobre a matéria em causa em nada contende com o que é estabelecido nos artigos do NCPC que o Apelante diz terem sido violados, ou com quaisquer normas ou princípios constitucionais, como, aliás, resulta, embora que tratando de questão semelhante no âmbito processual penal, do Acórdão nº 118/2017, de 15/03/2017 (proc. nº 636/2016) do Tribunal Constitucional9. 9 Consultável em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20170118.html.
Como vimos, uma das razões que justifica o entendimento que temos das normas do NCPC que disciplinam a invocação da deficiência ou da falta da gravação, está na necessidade da proximidade temporal, que relativamente à gravação em questão, se pretende que, reconhecida que seja impor-se a repetição da prova em causa, se produza a tomada de declarações ou de depoimentos cuja gravação foi omitida ou foi efectuada deficientemente.
É que, o que tem sentido, face à necessidade de, por questões que se prendem com a memória daqueles que terão de depor de novo e com a eventual necessidade de confrontação desses depoimentos com outros produzidos em sentido contrário, é que a tomada de declarações ou depoimentos que tenha lugar na sequência do reconhecimento da respectiva omissão da gravação ou da deficiência desta, ocorra em ocasião temporalmente próxima da data em que tais depoimentos ou declarações foram inicialmente prestados.
Ora, o caso “sub judice” é um exemplo perfeito de uma situação que contraria o apontado escopo, caso fosse perfilhado o entendimento que o Apelante tem da tempestiva invocação da deficiência da gravação.
Vejamos, em concreto.
As declarações em causa foram prestadas e gravadas na sessão da audiência final de 07/11/2016. Se, (considerando o entendimento por nós seguido quanto ao termo “disponibilizar”) a gravação dessas declarações estava disponível, ou não, ao ora Apelante no prazo de 2 dias depois da data da audiência, é coisa que se desconhece.
O que se pode dizer é que, acautelando a futura necessidade de recorrer, impugnando a decisão proferida quanto à matéria de facto, uma conduta diligente mandaria que, passados esses dois dias o Apelante solicitasse a gravação em causa, para que, constatando a deficiência da mesma quanto a determinados depoimentos, depois de o Tribunal assim o reconhecer, se pudesse repetir a produção de prova que se mostrasse deficientemente gravada, no mais curto espaço de tempo possível.
Acontece que o Apelante, realizada a sessão da audiência em 07/11/2016, nada requereu quanto à respectiva gravação e tendo requerido, só em 07/03/2018, que lhe fosse «[…] facultada a gravação de onde conste tudo quanto foi produzido em Audiência Final […]», veio em 16/03/2018, sem fazer reparo a qualquer omissão da secretaria, reclamar a deficiência da gravação das “declarações de parte" do Interveniente / Chamado, Sr. J...”, o que ocorreu, pois, cerca de um ano e quatro meses depois de estas declarações terem sido produzidas na referida sessão.
Estamos, assim, concordantes com o tribunal “a quo” quando este entende ter sido extemporânea a invocação da deficiência da gravação em causa, dizendo:
«[…] através da reforma de 2013, o legislador processual civil pretendeu esclarecer a controvérsia existente à luz do regime processual pretérito no que concerne ao prazo para arguir a nulidade decorrente da omissão ou deficiência da gravação, afastando o entendimento de que o início da contagem do prazo para a invocação de eventual deficiência da gravação dos depoimentos fica dependente da livre iniciativa da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação temporal (para além da que decorreria do prazo de apresentação do recurso da decisão final).
Entendeu-se, ao invés, que sobre as partes recai um dever de diligência que as onera com o encargo de diligenciarem pela rápida obtenção da gravação dos depoimentos e, num prazo curto, averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância, ou seja, no prazo máximo de 12 dias (sem prejuízo do acréscimo de eventual atraso do tribunal na disponibilização efectiva da gravação à parte que a tenha solicitado ainda dentro do aludido prazo global de 12 dias).
Descendo ao caso dos autos, constata-se que a prova em referência foi produzida 07.11.2016, pelo que deveria o autor ter diligenciado pela obtenção da gravação dos depoimentos prestados nessa sessão no prazo de dois dias a partir desse dia, de molde a suscitar a necessidade de se repetir a produção da prova eventualmente afectada por deficiência no seu registo, o mais tardar até ao dia 21 de Novembro de 2016 (2.ª feira). Ora, o requerente apenas solicitou o registo da gravação dos depoimentos em 07.03.2018, ou seja, decorrido que foram os prazos aplicáveis e acima enunciados. […]».
Concluindo dir-se-á, pois, que a nulidade em causa, quando foi invocada pelo apelante, foi-o muito para além do prazo que a lei estabelece para o efeito, pelo que outro destino não podia ter essa arguição senão o respectivo indeferimento.
Em face do exposto entende-se, pois, que sem infracção dos preceitos legais e constitucionais que o Apelante refere como violados, foi acertada a decisão ora sob recurso, o que implica, consequentemente, que se a confirme, julgando-se a apelação improcedente.
IV - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes desta Relação de Coimbra em, julgando a apelação improcedente, confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo Apelante (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).
Ainda que com nota de que não transitou em julgado, dê-se conhecimento deste Acórdão ao processo que pende nesta Relação para apreciação do recurso que o ora Apelante também interpôs da sentença.