Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01344/17
Data do Acordão:03/14/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
RECURSO JURISDICIONAL
Sumário:I - É aplicável subsidiariamente ao processo contra-ordenacional tributário, regulado pelo RGIT, a norma do art. 73.º, n.º 2, do RGCO, em que se permite aos tribunais superiores aceitar recursos da sentença, ou do despacho referido no art. 64.º do mesmo RGCO, quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência, mesmo em casos em que o valor da coima é inferior a ¼ da alçada do tribunal tributário.
II - Não se afigura manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência o recurso da decisão judicial que não adoptou entendimento contrário ao sufragado na jurisprudência invocada pelo recorrente e que também não incorreu em erro clamoroso que importe corrigir, sob pena de “afronta ao direito”.
Nº Convencional:JSTA000P23064
Nº do Documento:SA22018031401344
Data de Entrada:11/24/2017
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da decisão proferida no processo de contra-ordenação com o n.º 36/17.2BEBJA

1. RELATÓRIO

1.1 Inconformada com a decisão por que a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja julgou improcedente o recurso judicial por ela deduzido contra a decisão administrativa que lhe aplicou uma coima do montante de € 228,70 pela prática de uma contra-ordenação por falta de pagamento de taxa de portagem, veio a sociedade denominada “A………….., Lda.” (doravante Arguida ou Recorrente), dela recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo, mediante a invocação do regime do art. 73.º, n.º 2, do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, aplicável ex vi da alínea b) do art. 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), apresentando alegação que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«1) Vem o presente recurso interposto da douta sentença que condenou a sociedade arguida;

2) O presente recurso é circunscrito à questão da violação do direito de defesa da sociedade arguida;

3) Em relação a esta questão, entende a Recorrente que o Tribunal “a quo” quanto ao exercício do direito de defesa da sociedade arguida em processo de contra ordenação, decidiu ao arrepio do entendimento perfilhado por toda a jurisprudência;

4) Decidiu ao arrepio do douto acórdão da Relação do Porto de 1 de Abril de 1998, Colectânea de Jurisprudência, n.º 2 pp. 98 a 243 cujo sumário se transcreve: “A aplicação de uma coima sem que ao arguido tenha sido assegurado plenamente o direito de audiência e de defesa constitui nulidade insanável equivalente à ausência do arguido em processo penal”;

5) Decidiu também ao arrepio da jurisprudência emanada do Assento n.º 1/2003 de 28.11.2002, publicado no DR 21 Série I-A, de 2003.01.25;

6) É entendimento uniforme de toda a jurisprudência que a ausência do arguido em relação à sua defesa, não é só a ausência física, mas também a ausência processual, no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa;

7) A consequência de tal vício é equiparável à ausência do arguido, nos casos em que a lei exige a respectiva comparência;

8) A ausência processual do arguido, no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa, conduz a que tais garantias fiquem irremediavelmente prejudicadas;

9) O pleno exercício do direito de defesa no processo contra-ordenacional tem hoje consagração constitucional no n.º 10 do Art. 32.º da CRP e vem previsto no Art. 71.º do RGIT;

10) Tais garantias, consagradas constitucionalmente, só se tornam efectivas, tornando nulo, de forma insanável, o acto em que esses direitos não tenham sido respeitados;

11) Porém, entendimento diverso teve a Meritíssima juiz [do Tribunal]a quo” na sentença recorrida, ao manter a decisão de aplicação da coima, sem que a sociedade arguida, em qualquer fase do processo, tivesse a possibilidade de se defender e de apresentar as provas que julgasse pertinentes ao exercício do seu direito;

12) Na medida em que a sociedade arguida notificada para o exercício do direito de defesa, arguiu a nulidade da notificação por esta não conter os elementos essenciais ao exercício do direito de defesa;

13) Em face da arguição de nulidade da notificação para o exercício do direito de defesa a decisão de aplicação da coima, pura e simplesmente não se pronunciou sobre a Defesa Escrita;

14) Foi essa nulidade arguida em sede de recurso nos termos do Art. 80.º do RGIT, sem que a sentença recorrida sobre ela se pronunciasse;

15) Tendo em conta a unidade do sistema jurídico e a aplicação subsidiária do RGCO neste âmbito, por força da alínea b) do Art. 3.º do RGIT, a sociedade arguida tem legitimidade para recorrer nos recursos de processos de contra ordenação tributária, nos termos do n.º 2 do Art. 73.º do RGCO;

16) Como resulta do entendimento dos Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos em “Regime Geral das Infracções Tributárias anotado”, 4.ª edição, 2010, em anotação ao Art. 83.º, página 562 e seguintes;

17) É aliás este o entendimento que a jurisprudência uniforme do STA tem acolhido quanto tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito, como é o caso, a título de exemplo, do Acórdão do STA de 08.06.20 no Proc. n.º 0420/11. Disponível em www.dgsi.pt;

18) Bem assim, a recente jurisprudência do STA, de que são exemplos os doutos Acórdãos proferidos no Proc. n.º 0137/15 de [17 de Junho de 2015] e no Proc. n.º 070/15 de 09.09.2015, tendo ambos como relator o Conselheiro Aragão Seia. Disponíveis em www.dgsi.pt;

19) E ainda o Acórdão do STA de 16.11.2005, no Proc. n.º 0524/05, também disponível em www.dgsi.pt;

20) Quanto à subida imediata do presente recurso, entende a sociedade arguida que, no regime previsto no Art. 84.º, do RGIT, complementado pelo RGCO, não é possível a execução das coimas e sanções acessórias antes do trânsito em julgado ou de se ter tornado definitiva a decisão administrativa que as aplicar;

21) Sendo esta a única interpretação que assegura a constitucionalidade material do citado Art. 84.º, do RGIT, nos casos em que o recurso é interposto de decisão condenatória; não sendo necessário a prestação de garantia para que o mesmo recurso goze de efeito suspensivo da decisão recorrida – conforme se doutrinou no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15.11.2011, processo n.º 04847/11;

22) Entendimento perfilhado pelos Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos em “Regime Geral das Infracções Tributárias anotado”, 4.ª edição, 2010, em anotação ao Art. 84.º, página 582 e seguintes;

23) A Meritíssima juiz [do Tribunal] a quo”, na sentença recorrida, ao manter a decisão de aplicação da coima, sem que a sociedade arguida, ora Recorrente, em qualquer fase do processo, tivesse a possibilidade de se defender, violou o seu direito de defesa;

24) Abrindo assim a via do presente recurso interposto nos termos do n.º 2 do Art. 73.º do RGCO “ex vi” da alínea c) do Art. 3.º do RGIT;

25) Entende a Recorrente, que no caso “sub judice” e nos termos em que abundantemente se deixou alegado, é patente que foi proferida decisão contrária à jurisprudência que vem sendo seguida de forma reiterada e pacífica, quanto à questão do direito de defesa;

26) Como resulta do douto entendimento dos Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos em matéria de direito sancionatório, não é compreensível a inexistência de uma válvula de segurança no sistema de alçadas que permita assegurar a realização da justiça nos casos em que se esteja perante uma manifesta violação do direito, sendo essa possibilidade uma exigência do direito de defesa constitucionalmente consagrado;

27) Pelo que à luz dos invocados normativos e da mencionada jurisprudência se justifica a emissão de pronúncia sobre a questão de direito suscitada no presente recurso, com vista a promover a sua uniformidade;

28) O n.º 10 do artigo 32.º da CRP é claro na afirmação de que o arguido em processo contra-ordenacional tem o direito de defesa, norma directamente aplicável por dizer respeito a direitos fundamentais – Art. 18.º n.º 1 da CRP;

29) Essas violações concretizam-se numa nulidade, a prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal e essa nulidade foi tempestivamente arguida pela recorrente;

30) Conforme do douto acórdão da Relação do Porto de 1 de Abril de 1998, colectânea de jurisprudência, n.º 2 pp. 98 a 243 cujo sumário se transcreve: “A aplicação de uma coima sem que ao arguido tenha sido assegurado plenamente o direito de audiência e de defesa constitui nulidade insanável equivalente à ausência do arguido em processo penal”.

31) E também conforme emanado do Assento n.º 1/2003 de 28.11.2002, publicado no DR 21 Série -A, de 2003-01-25, que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa”.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consonância revogada a sentença recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA».

1.3 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

1.4 A Representante do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja apresentou contra-alegações, que rematou com conclusões do seguinte teor:

«1.º- O presente recurso, interposto da douta sentença proferida em 7/04/2017, que julgou improcedente o recurso de impugnação judicial de fixação da coima à arguida, circunscreve-se à questão relativa à invocada violação do direito de defesa da arguida, na parte em que foi proferida a decisão de aplicação da coima sem que a arguida tivesse possibilidade de exercer esse direito.

2.º- Nos termos do disposto no art. 83.º do RGIT, o presente recurso não deverá ser admissível, atento o montante da coima ap (€ 228,70 acrescida de € 76,50 de custas) não ultrapassar um quarto da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância e não ter sido aplicada sanção acessória, bem como não se verificarem os pressupostos do art. 73.º do RGCO.

3.º- Porém, assim não sendo superiormente determinado, entendemos não se ter verificado a invocada violação do direito de defesa da arguida que de algum modo pudesse conduzir à nulidade da decisão de aplicação da coima.

4.º- Efectivamente, verifica-se ter sido efectuada a análise da invocada violação do direito de defesa da arguida, debruçando-se a douta sentença sobre todos os aspectos relevantes que conduziram ao entendimento de não ter sido preterido o seu direito de defesa.

5.º- Na realidade, a arguida foi correctamente notificada para o exercício da defesa, exerceu-a, foi analisada pela autoridade competente e decidida no processo de contra-ordenação a invocada violação, e notificada desta, a arguida não reagiu.

6.º- Termos em que a douta sentença recorrida não padece, a nosso ver, de qualquer vício, por não se mostrarem violados quaisquer preceitos legais, devendo improceder o presente recurso.

Assim sendo posteriormente decidido, será feita a costumada, Justiça!».

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e a Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso não deve ser admitido, por não se verificarem os pressupostos do n.º 2 do art. 73.º do RGIT. Em síntese, considerou, após tecer diversos considerandos em torno do regime legal do recurso e de mencionar jurisprudência pertinente, que, em face da factualidade provada, «não se justifica a sua admissão, tendo em vista assegurar uma melhor aplicação do direito, considerando a interpretação e a aplicação irrepreensíveis das normas legais convocadas para a decisão judicial em crise».
Para a eventualidade de assim não se entender, no que não concedeu, corroborou a posição assumida pelo Representante do Ministério Público na 1.ª instância, pelo que o recurso nunca poderia proceder.

1.6 Notificada do parecer do Ministério Público, a Recorrente manteve-se silente.

1.7 Cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja deu como provados os seguintes termos:

«A) Foi instaurado o processo de contra-ordenação n.º 0990201406000004881, em 01/06/2016, contra a recorrente com fundamento no auto de notícia levantado pela Ascendi Concessão Rodoviária relativamente a infracção verificada em 01/03/2012, 02/03/2012 e 04/03/2012;

B) Através de ofício datado de 03/06/2016, e recepcionado em 07/06/2016, foi a sociedade recorrente notificada para, no prazo de 10 dias, apresentar a sua defesa perante os factos noticiados ou proceder ao pagamento antecipado da coima;

C) Tal notificação continha cópia do auto de notícia no qual se encontrava descriminada as circunstâncias de tempo, lugar, modo, meio e qualificação jurídica da infracção imputada, ademais de indicar que todos os elementos se encontravam disponíveis para consulta no sítio da internet;

D) Em 22/06/2016 a sociedade Recorrente exerceu a sua defesa;

E) A Recorrente foi notificada de despacho de 21/09/2016 que apreciando a defesa exercida considerou que a mesma não informou os factos noticiados;

F) Em 27/09/2016, pelo Chefe do Serviço de Finanças de Vila Viçosa, foi proferida decisão que resultou na fixação de coima de 228,70 €, na base da qual foram dados como provados os factos constantes do auto de notícia que deu origem ao processo de contra-ordenação;

G) A decisão final foi notificada à sociedade arguida em 29/09/2016;

H) A arguida apresentou impugnação judicial em 12/10/2016».

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

À sociedade ora Recorrente foi aplicada uma coima, do montante de € 228,70, pela prática de uma contra-ordenação por falta de pagamento de taxa de portagem, infracção prevista e punida pelos arts. 5.º, n.º 2, alínea a) e 7.º, da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho.
A sociedade arguida recorreu dessa decisão administrativa de aplicação da coima para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, cuja Juíza (decidindo o recurso por despacho, nos termos permitidos pelo disposto no art. 64.º do RGCO e depois de ter notificado a Recorrente e o Ministério Público nos termos do n.º 2 do mesmo artigo), julgou o recurso improcedente.
Considerou a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, em resumo, que se não verificava a invocada violação do direito defesa. Nos termos da decisão judicial recorrida, no caso a Arguida foi notificada, nos termos do art. 70.º do RGIT, para apresentar a respectiva defesa e, «ao invés do que invoca», «não só essa defesa foi admitida, como apreciada e devidamente notificada a visada como resulta do probatório – veja-se facto E)».
Assim, concluiu a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, «não ocorreu a invocada recusa de consideração da defesa apresentada pela recorrente, antes tendo sido viabilizado o exercício do direito da mesma no seio do presente processo de contra-ordenação», motivo por que, «inexistindo o apontado vício», manteve a decisão recorrida.
A Arguida não se conformou com o assim decidido e, invocando o disposto no art. 73.º, n.º 2, do RGCO, aplicável por força do art. 3.º, alínea b), do RGIT, recorreu dessa decisão para o Supremo Tribunal Administrativo. Em ordem à admissão do recurso à luz daquela norma legal, alegou que a questão da violação do direito de defesa da sociedade arguida – questão à qual, expressamente, circunscreveu o recurso (cfr. conclusão 2) – foi decidida «ao arrepio do entendimento perfilhado por toda a jurisprudência», designadamente a emanada do acórdão da Relação do Porto de 1 de Abril de 1998 (Com sumário disponível em
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/48d3f6c10951381f8025686b00671410.) e do Assento n.º 1/2003, de 28 de Novembro de 2002 (Publicado no Diário da República, Série I-A, n.º 21, de 25 de Janeiro de 2003
(https://dre.pt/application/conteudo/120260), págs. 547 a 558, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/56d433df8df5db7180256cc5004d8fd5.), «ao manter a decisão administrativa, sem que a sociedade arguida, em qualquer fase do processo, tivesse a possibilidade de se defender e de apresentar as provas que julgasse pertinentes ao exercício do seu direito».
Alega também a Arguida, ora Recorrente, que a decisão recorrida também enferma de nulidade por omissão de pronúncia, na medida em que não se pronunciou sobre «a nulidade arguida em sede de recurso nos termos do Art. 80.º do RGIT».
Antes do mais, há que apreciar se é admissível em processo contra-ordenacional tributário o recurso ao abrigo do disposto no art. 73.º, n.º 2, do RGCO, aplicável ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT, – uma vez que o tribunal ad quem não se encontra vinculado pela decisão a esse propósito proferida pelo tribunal a quo –, e, sendo-o, se estão reunidos os requisitos para a sua aceitação.
Só depois, caso a essa questão seja dada resposta positiva, haveremos de apreciar e decidir a nulidade e o erro de julgamento assacados à decisão judicial recorrida.

2.2.2 DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO (INTERPOSTO AO ABRIGO DO ART. 73.º, N.º 2, DO RGCO)

2.2.2.1 O presente recurso vem interposto ao abrigo do n.º 2 do art. 73.º do RGCO, ou seja, para «melhoria da aplicação do direito» ou «promoção da uniformidade da jurisprudência».
Na verdade, porque o valor da causa – determinado pelo valor da coima, ou seja, € 228,70 – não atinge 1/4 do valor da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância (Esse valor foi fixado em € 5.000,00 pelo art. 44.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.) e porque não foi aplicada sanção acessória, não é permitido o recurso ao abrigo do disposto no art. 83.º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, normas legais que dizem, respectivamente, o seguinte: «O arguido, o representante da Fazenda Pública e o Ministério Público podem recorrer da decisão do tribunal tributário de 1.ª instância para o Tribunal Central Administrativo, excepto se o valor da coima aplicada não ultrapassar um quarto da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância e não for aplicada sanção acessória» (Note-se que só com a redacção dada ao preceito pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2013) o representante da Fazenda Pública passou a ter legitimidade para interpor recurso da decisão proferida pelo tribunal em sede de contra-ordenação, que antes estava reservada apenas ao arguido e ao Ministério Público.) e «Se o fundamento exclusivo do recurso for matéria de direito, é directamente interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo».
No entanto, como a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a afirmar há muito (Vide, entre outros e por mais antigos, os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 18 de Junho de 2003, proferido no processo n.º 503/03, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/396bbbf3dc1e9c4680256d50003bd38c;
- de 16 de Novembro de 2005, proferido no processo n.º 524/05 disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6516372085d10671802570c2003de02e;
- de 17 de Janeiro de 2007, proferido no processo n.º 1116/06, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d70e24eba82e81228025726e003fc9f6.), mesmo em casos em que o valor da coima é inferior à alçada e não há aplicação de sanção acessória, o recurso pode ser admitido ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 73.º do RGCO, aplicável ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT, «quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
Note-se ainda que, apesar de o art. 73.º, n.º 2, do RGCO se referir apenas a sentença – e a decisão recorrida ter sido proferida, ao abrigo da faculdade concedida pelo art. 64.º, n.º 2, do RGCO, aplicável ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT, por despacho –, tem vindo a entender-se que não há razão para não estender a admissibilidade desse recurso aos despachos, pois, como dizem JORGE LOPES DE SOUSA e SIMAS SANTOS (Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2.ª edição, pág. 505 e segs.), «não existe nenhuma diferença de natureza entre as duas decisões», sendo que «a alternativa da decisão por despacho ou sentença não radica na complexidade das questões a decidir pelo que aquele n.º 2 do dito art. 73.º se deve aplicar indiferentemente a ambas as decisões».
Foi ao abrigo dessa disposição legal que a Arguida interpôs e a Juíza do Tribunal a quo recebeu o recurso, pelo que cumpre verificar se estão reunidos os requisitos para a aceitação do mesmo por este Supremo Tribunal Administrativo.

2.2.2.2 Indaguemos, pois, se o recurso da decisão que rejeitou se assume como «manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
Está em causa nos autos uma coima aplicada por falta de pagamento de taxa de portagem.
A Arguida sustentou que foi violado o seu direito de defesa, que está constitucionalmente consagrado no n.º 10 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, o que constitui a nulidade insanável prevista nos arts. 119.º, alínea c), e 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal. Isto porque a defesa que aduziu na fase administrativa do processo «não foi considerada para efeitos de decisão».
A esse respeito, a sentença considerou que não há violação alguma do direito de defesa. Isto porque a defesa apresentada pela Arguida, contrariamente ao alegado em sede de recurso judicial, «não só […] foi admitida, como apreciada e devidamente notificada a visada como resulta do probatório».
Será que, ao assim decidir, a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja contrariou “toda a jurisprudência”, como alega a Recorrente, que invoca como exemplos um acórdão do Tribunal da Relação do Porto e o Assento n.º 1/2003, do Supremo Tribunal de Justiça?
O sumário do referido acórdão da Relação do Porto consignou: «A aplicação de uma coima sem que ao arguido tenha sido assegurado plenamente o direito de audiência e de defesa constitui nulidade insanável equivalente à ausência do arguido em processo penal». Por seu turno, o referido assento diz: «Quando, em cumprimento do disposto no art. 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa».
Salvo o devido respeito, não vislumbramos como a decisão recorrida contraria a doutrina firmada na referida jurisprudência, afigurando-se-nos que o presente recurso assenta em pressupostos que não correspondem à realidade do processo.
Assim, não há como considerar que o entendimento adoptado pela Juíza do Tribunal a quo se apresenta como manifestamente contrário à jurisprudência, nem que configura uma solução de direito manifestamente errada ou injusta, um caso de erro claro na decisão judicial, que, por isso, repugne manter na ordem jurídica por constituir uma afronta ao direito, a justificar a utilização do recurso previsto no n.º 2 do art. 73.º do RGCO para promoção da uniformidade da jurisprudência ou para melhoria da aplicação do direito, que, como a própria Recorrente alega, tem natureza de “válvula de segurança”.
Entendemos, pois, tal como a Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, que não é de admitir o recurso, por falta de verificação dos respectivos pressupostos, o que prejudica o conhecimento de todas as questões nele suscitadas.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - É aplicável subsidiariamente ao processo contra-ordenacional tributário, regulado pelo RGIT, a norma do art. 73.º, n.º 2, do RGCO, em que se permite aos tribunais superiores aceitar recursos da sentença, ou do despacho referido no art. 64.º do mesmo RGCO, quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência, mesmo em casos em que o valor da coima é inferior a ¼ da alçada do tribunal tributário.
II - Não se afigura manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência o recurso da decisão judicial que não adoptou entendimento contrário ao sufragado na jurisprudência invocada pelo recorrente e que também não incorreu em erro clamoroso que importe corrigir, sob pena de “afronta ao direito”.


* * *

3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em não admitir o recurso.

Custas pela Recorrente.

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Lisboa, 14 de Março de 2018. - Francisco Rothes (relator) - Isabel Marques da Silva - Ascensão Lopes.