Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P467
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ASSENTO
ACLARAÇÃO
Nº do Documento: SJ200210170004675
Data do Acordão: 11/28/2002
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR I S-A, Nº 21, DE 25-01-2003, P. 557
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 567/01
Data: 10/03/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA A JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Requerente: A

1. A OPOSIÇÃO DE JULGADOS
1.1. No dia 22 Mar 01, a Relação de Lisboa, no recurso 650/01-9 (1), decidiu que o artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações exige - sob pena de "ausência processual do arguido, constituindo a nulidade prevista no artigo 119.c do Código de Processo Penal" - que, antes da "decisão que aplica a coima" (artigo 58.º), a administração assegure ao arguido - dando-lhe a conhecer os factos imputados, incluindo os que respeitam à verificação dos pressupostos da punição e à sua intensidade e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável - a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação imputada:
É relevante para a sua defesa que o arguido conheça os factos que lhe são imputados, incluindo os que respeitam à verificação dos pressupostos da punição e à sua intensidade e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável. Se, aliás, a decisão que aplica a coima deve conter esses factos (cfr. artigo 58°, n° 1, do Decreto- Lei n° 433/82), não se vê como possa ser menor a exigência para o conteúdo da comunicação prévia da imputação destinada a assegurar a defesa, sob pena de se permitir que o arguido seja surpreendido com o teor da decisão da autoridade administrativa o que não é seguramente intenção do legislador demais a mais quando faz questão de deixar expresso que as autoridades administrativas estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal. E este é um dado decisivo, permitindo considerar que, na fase administrativa do processo, a imputação dos factos respeitantes a uma contra-ordenação equivale à acusação em processo penal. Sendo, nesta, inequívoca a exigência desses elementos (cfr. artigo 283º, n.º 3, Código de Processo Penal), para que se delimite o tema a decidir, semelhante procedimento pode e deve ser respeitado na imputação da contra-ordenação, em nome do respeito pelas garantias de defesa e da compatibilidade que a lei consagra do processo contraordenacional com o processo penal. E não se diga que a circunstância de a imputação dada a conhecer ao arguido referir os factos "objectivos" que constituem a infracção é bastante para cobrir a condenação quer a título doloso quer a título negligente (no sentido de que quem imputa o mais, imputa o menos) porque tal procedimento viola os princípios da justiça e sobretudo da boa-fé a que os órgãos e agentes administrativos devem respeito na sua actuação (artigo 266°, n° 2, CRP). (...) Para que ao menos o princípio do contraditório possa ser respeitado (artigos 18°, n.os 1 e 2, CRP), necessário se torna que na imputação se dêem a conhecer tais factos, permitindo assim que, no exercício do seu direito de defesa, ao arguido, antes de ser proferida a decisão da autoridade administrativa, seja permitido pô-los em causa, produzindo a prova que achar oportuna. A consequência destas omissões, e mormente daquela a que a recorrente alude, qual é? Como se refere no Ac. Rel. Évora de 92.03.24 (CJ 2/92-308 cfr. ainda o Ac. Rel. Porto de 98.04.01, CJ 2/98-243), à audiência da arguida passou a ser conferida dignidade constitucional, a postergação de tal direito só tem protecção adequada se tal omissão se considerar nulidade insanável, na mesma linha do que sucede com a ausência do arguido nos casos em que a lei exige a respectiva comparência. É certo que no aresto citado se abordava uma situação em que a audição do arguido na fase administrativa não tivera lugar, diferente, portanto, da que aqui se aprecia e, claro está, de maior evidência. Porém, o que importa sobrelevar é que também neste caso se pode afirmar que o direito de defesa da recorrente ficou prejudicado ao não lhe ser objectivamente possibilitado que, de forma cabal e eficaz, relativamente a pontos da maior importância, apresentasse os seus argumentos e indicasse as provas que porventura entendesse pertinentes. Havendo, por conseguinte, sobre determinado aspecto a ausência de uma tomada de posição da sua parte como consequência das deficiências apontadas. Como a jurisprudência tem assinalado, a ausência do arguido em relação à sua defesa não é só a ausência física mas também a ausência processual no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa, sendo que as garantias que a lei prevê só se podem tornar efectivas tomando nulo, de forma insanável, o acto em que essas garantias não tenham sido respeitadas. O que significa que em casos tais se comete a nulidade prevista no artigo 119°, al. c), Código de Processo Penal. A consequência é a prevista no artigo 122°, n° 1, do mesmo diploma, ou seja, a invalidade do acto praticado bem como dos que dele dependerem.
1.2. Mas, por acórdão emitido em 03 Out 01 (no domínio, por isso, da mesma legislação) e transitado em julgado no dia 26 Out 01, a Relação do Porto (2) viria, no recurso penal 567/01-4, a decidir a mesma questão em sentido diverso, ou seja, no de que a invocada "ausência processual, por impossibilidade de exercício do direito de defesa" apenas ocorreria "quando o arguido não é ouvido, em preterição nomeadamente do que impõe o artigo 50.º do Decreto-Lei 433/82", não tendo sido isso, porém, "o que aconteceu no casos dos autos, em que o arguido foi notificado, tendo oportunidade de se pronunciar e apontar para omissões como as que ora invoca":
Vem a recorrente invocar a nulidade insanável do artigo 119.c do Código de Processo Penal, com o fundamento de que: a) na "nota de ilicitude" não se faz referência ao dolo ou negligência; b) foi condenado por decisão da autoridade administrativa pela prática dolosa da contra-ordenação, sem que, também aí, constem factos que permitam tal conclusão; c) essa mesma autoridade ponderou factos respeitantes à actividade da recorrente, à sua dimensão e aos seus resultados que não constavam da "nota de ilicitude", donde ter sido prejudicado no seu direito de defesa; d) como a jurisprudência tem assinalado, a ausência do arguido em relação à sua defesa não é só a ausência física, mas também a ausência processual, no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa. É, porém, nulidade que inexiste claramente. O que em algumas decisões se tem dito é que, quando o invocado artigo 119º al. c) proclama que constitui nulidade insanável a ausência do arguido nos casos em que a lei exige a respectiva comparência, "prevê não só a ausência física da pessoa do arguido, mas também a ausência processual, a sua não integração nos autos, por factos imputáveis à autoridade administrativa, e não a desinteresse, desleixo ou inércia da arguida" (RP 1.4.98, CJ XXIII, II, 244; RE 24.3.92, CJ XVII, II, 309, e RE 10.11.98, CJ XXIII, V, 278). Sendo isso o que sucede quando o arguido não é ouvido, em preterição nomeadamente do que dispõe o artigo 50º do dl 433/82 de 27.10. Ora, não foi isso o que aconteceu no caso dos autos, em que a arguida foi notificada, tendo oportunidade de se pronunciar e apontar para omissões como as que agora invoca. Não há, pois, a referida nulidade.

2. O RECURSO
2.1. Perante tal oposição de julgados, a acoimada (3), dirigindo-se ao Supremo Tribunal de Justiça, interpôs, em 19 Nov 01, recurso para fixação de jurisprudência:
Há oposição entre o acórdão da Relação do Porto proferido nestes autos e o acórdão da Relação de Lisboa de 22.3.2001 (processo n.º 650/01 da 9.ª Secção), ambos proferidos na vigência do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10 e ambos transitados em julgado, porquanto no primeiro se entendeu que só ocorre a ausência processual do arguido em processo contraordenacional (e, por conseguinte, se comete a nulidade prevista pelo artigo 119.º, al. c) do Código de Processo Penal) quando aquele não é simplesmente ouvido, como o impõe o artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, tal não sucedendo com a notificação realizada nos presentes autos, omissa quantos aos factos constitutivos do elemento subjectivo da contra-ordenação e aos factos que, na decisão da autoridade administrativa, foram ponderados na determinação da medida da coima, ao passo que o acórdão da Relação de Lisboa entendeu que, para a efectivação do direito de defesa em processo contraordenacional, impõe-se que, na fase administrativa e em cumprimento do disposto no artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, ao arguido sejam dados a conhecer não só os factos objectivos, mas também aqueles que traduzam a imputação subjectiva da contra-ordenação e, ainda, os que possam influir na medida da coima, sob pena se estar cometendo a nulidade prevista no artigo 119.º, al. c) do Código de Processo Penal. Deverá fixar-se jurisprudência no sentido da solução consagrada neste último Acórdão, por ser esse o entendimento que se afigura mais consentâneo com os princípios do contraditório e da justiça e boa-fé que vinculam os órgãos a agentes administrativos na sua actuação.

3. A DECISÃO INTERCALAR
O STJ - tendo concluído em 18 Abr 02, pela admissibilidade e tempestividade do recurso, pela legitimidade da recorrente e pela oposição de julgados - determinou que o recurso prosseguisse seus termos (artigo 441.1 e 442.º e ss.).

4. ALEGAÇÕES
4.1. Nas suas alegações de 23 Mai 02, o MP (4) pronunciou-se pela revogação do acórdão recorrido e pela fixação de jurisprudência no sentido da decisão do acórdão/fundamento ("A notificação a efectuar ao arguido pelas entidades administrativas para efeitos do disposto no artigo 50º do DL 433/83, de 27 Out, na redacção dada pelo DL 244/95, de 14 de Setembro, para além dos factos objectivos integradores da contra-ordenação, deve fazer referência aos factos que traduzem a imputação subjectiva bem como aos que podem influir na determinação concreta da sanção a aplicar"):
A solução da questão decidenda não pode deixar de ter em conta a evolução legislativa e jurisprudencial que atrás ficou traçada. Na verdade, a constitucionalização, a partir de 1989, dos direitos de audiência e de defesa no processo contraordenacional envolve necessariamente uma redignificação e projecção desses direitos a nível da lei ordinária. Foi nesse sentido que claramente ela caminhou, com a profunda reforma introduzida pelo DL 244/95 no DL 433/82, que aproximou notoriamente o processo contraordenacional do processo penal. Por último, toda a jurisprudência fixada por este STJ nestes últimos anos tem sido igualmente no sentido de aproximar os dois processos, como já foi acima salientado. Esta aproximação tem aliás a sua razão de ser. Na verdade, é incontestável a expansão permanente do direito contraordenacional e o aumento notório da gravidade das sanções aplicáveis, a par de uma crescente complexidade das previsões típicas. A distinção material, que Eduardo Correia queria clara e inequívoca, entre um direito penal fundado na censura ética e um direito de mera ordenação social de raiz essencialmente ordenadora e axiologicamente neutra tem vindo a esbater-se progressiva e aceleradamente. O artigo 50º da Lei Quadro das Contra-ordenações, o preceito legal cuja interpretação se discute neste recurso, reflecte precisamente esta evolução e a consciência do legislador de que esse agravamento do regime substantivo tem de ser compensado com o reforço das garantias de defesa. Assim, a nova redacção introduzida pelo DL 244/95 veio enfatizar e alargar o direito de audição e defesa do arguido, de forma a ele poder pronunciar-se sobre a contra-ordenação e a sanção correspondente. O que aí se prevê é, pois, algo correspondente à acusação em processo penal, ou seja, uma peça que contenha a imputação dos factos (abrangendo não só os factos objectivos como os que traduzem a imputação subjectiva - dolo ou negligência) e da sanção que lhes cabe (indicando as circunstâncias que podem influir na sua determinação concreta). Só tendo conhecimento dessa "acusação" o arguido está em condições de exercer cabalmente a sua defesa, pois só assim se pode pronunciar "sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre" (parte final do artigo 50º). Assim, e prescindindo de mais considerações, considera-se mais ajustada a interpretação daquele preceito feita pelo acórdão/fundamento.
4.2. Também o recorrente, nas suas alegações de 03 Jun 02, preconizou que se fixasse jurisprudência no sentido de que "o pleno exercício do direito de defesa previsto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 50.º do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas (aprovado pelo Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro), pressupõe que, aquando da comunicação efectuada ao arguido para tanto, esta contenha os factos respeitantes aos pressupostos da punição e à sua intensidade e ainda qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável, designadamente, deverá referir os factos integradores do elemento subjectivo da contra-ordenação e aqueles que poderão ser considerados na medida da coima (v. g. os relativos à situação económica do arguido), sob pena de, assim não ocorrendo e sendo tais factos ponderados na decisão condenatória da autoridade administrativa, esta e os demais termos do processo serem nulos, nos termos dos artigos 119.°, al. c), e 122° n.º 1 do Código de Processo Penal".

5. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

Direito de audição do arguido
Decisão de aplicação da coima
Direito subsidiário
Impugnação judicial
Decreto-Lei 232/79
de 24 Jul
(5)
Artigo 43.º
Não será permitida a aplicação de uma coima sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre o caso (6)
Artigo 49.1.c
A decisão que aplica a coima deve conter (...) a descrição do facto imputado, das provas obtidas e a indicação das normas segundo as quais se pune
Artigo 49.2.a
Da decisão deve ainda constar a informação de que (...) a condenação transita em julgado (...) se não for judicialmente impugnada (...)
    Artigo 50.º
    1 - A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial.
3 - O recurso será feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima no prazo de cinco dias após o seu conhecimento pelo arguido.
Decreto-Lei 433/82
de 27 Out
(7)
Artigo 50.º
Não será permitida a aplicação de uma coima sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre o caso.
Artigo 58.1.b
A decisão que aplica a coima deve conter (...) a descrição do facto imputado e das provas obtidas, bem como a indicação das normas segundo as quais se pune
Artigo 59.2.a
Da decisão deve ainda constar a informação de que (...) a condenação transita em julgado (...) se não for judicialmente impugnada (...)
Artigo 41.1
Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal
    Artigo 59.º
    1 - A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial.
3 - O recurso será feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima no prazo de cinco dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações sumárias e conclusões.
Decreto-Lei 356/89
de 17 Out
(8)
    Artigo 59.º
    3 - O recurso será feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de oito dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações sumárias e conclusões.
Decreto-Lei 244/95
de 14 Set
(9)
Artigo 50.º
Não é permitida a aplicação de uma coima (...) sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção (...) em que incorre.
(10) (11)
Artigo 58.1.
A decisão que aplica a coima (...) deve conter:
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas,
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão.
Artigo 59.2.a
Da decisão deve ainda constar a informação de que (...) a condenação se torna definitiva (...) se não for judicialmente impugnada (...)
Artigo 41.1
Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal
    Artigo 59.º
    3 - O recurso é feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de vinte dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões.


6. APROXIMAÇÃO DOUTRINAL ( 12)
"O programa político-criminal desenhado a partir dos anteprojectos do Código Penal da autoria de Eduardo Correia foi no essencial materializado legislativamente através do CP/82 e do diploma que veio definir o regime jurídico das contra-ordenações. Na presença do Decreto-Lei n.º 433/82, a referida autonomia do ilícito de mera ordenação social face ao ilícito penal (...) desenvolveu-se em três diferentes níveis: dogmático, sancionatório e processual. Reportando-nos ao processo da contra-ordenação (...), a nota de maior saliência vai para a atribuição da competência às autoridades administrativas para a aplicação das coimas (artigo 33.º), com admissão de um controlo judicial de segundo nível, através da possibilidade de impugnação da decisão administrativa para o tribunal da comarca da sede da autoridade decidente (artigo 59.º). O processo segue uma tramitação simplificada - justificada pela necessidade de satisfazer os objectivos de eficácia e celeridade -, mas não deixa de consignar algumas das garantias constitucionalmente admitidas no direito penal, nomeadamente as resultantes dos princípios da legalidade e da aplicabilidade da lei mais favorável, bem como o direito de audiência do arguido (artigos 2.º, 3.º, 43.º e 50.º). O regime processual instituído pelo Decreto-Lei n.º 433/82 assegura, porém, a aplicação a título subsidiário do direito processual penal ("sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo penal" - artigo 41.º, n.º 1)., o que poderá compreender-se, num primeiro momento, pela desnecessidade de introduzir um modelo processual específico em face da relativa inocuidade (do ponto de vista da natureza da conduta e da gravidade da sanção) que caracterizaria o ilícito em causa. O processo assume, em todo o caso, uma feição particular que deriva da distinta natureza das sucessivas fases que o compõem: a primeira, dirigida à investigação, instrução e aplicação da coima, da competência da autoridade administrativa, aproxima-se do procedimento administrativo de tipo sancionador; enquanto que a segunda, correspondendo à impugnação contenciosa da decisão administrativa, caracteriza um processo jurisdicionalizado, com a intervenção de um juiz de direito de primeira instância e eventual recurso para o tribunal da Relação"

7. A DESCARACTERIZAÇÃO DO REGIME JURÍDICO CONTRAORDENACIONAL (13)
"Se apreciarmos a evolução do Direito de Mera Ordenação Social na última década podemos verificar que tal autonomia não se concretizou de todo e que a linha evolutiva do sistema contraordenacional tem sido mesmo em sentido diverso - e em alguns pontos contrário - em relação aos projectos iniciais. Nestes três planos, dogmático, sancionatório e processual, a autonomia do Direito de Mera Ordenação Social tem sido juridicamente hipotecada pela experiência, pela evolução legislativa e pela grande heterogeneidade das matérias que este sector foi abrangendo (...). Mas, para além destes fenómenos, pode identificar-se também em algumas matérias uma crescente descaracterização do regime do ilícito de mera ordenação social, processo esse que (...) se revela actualmente numa aproximação excessiva aos institutos e figuras do Direito Penal. Devem destacar-se como causas da actual descaracterização do Direito de Mera Ordenação Social (...) dois movimentos de sentido perverso em relação ao projecto original: Por um lado, verificou-se entre nós na última década um alargamento das áreas de intervenção do Direito de Mera Ordenação Social a sectores para os quais este sistema sancionatório não foi pensado, em particular a circuitos económicos e tecnológicos complexos. Esta tendência - que não foi acompanhada por qualquer inovação no regime substantivo e processual adequada às novas realidades que foram sendo entretanto abrangidas por este ramo do Direito - originou no plano sancionatório um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis. Por outro lado, mas devido em parte ao aspecto que se acabou de descrever, o legislador tem procurado equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do Direito Penal. (...) Após a revisão do regime geral operada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, a identificação entre a base normativa do regime geral do ilícito de mera ordenação social e as soluções da Parte Geral do Código Penal acentuou-se ainda mais, recorrendo agora o legislador na maior parte dos casos à importação pura e simples das soluções do Direito Penal. Além disso, quando tal equivalência de regimes não se verifica subsiste a dúvida quanto a saber se estamos perante uma omissão intencional do legislador ou perante uma matéria carente de regulamentação por via do regime subsidiário (...). Apesar do fenómeno de expansão, não houve uma evolução do regime geral do ilícito de mera ordenação social no sentido de conciliar a eficácia dos mecanismos de atribuição de responsabilidade pelas autoridades administrativas com a garantia da esfera de liberdade e expectativas dos particulares. Entre a garantia e a eficácia o legislador tem optado, talvez correctamente, por privilegiar a primeira. Mas a opção tem custos severos para a harmonia dos sistemas sancionatórios e de pouco servirá então atribuir esse poder formalmente à Administração se ao mesmo tempo se criam limites que na prática o comprometem. Uma Administração ineficaz é, nestas áreas (...), sinónimo de um "vazio de poder", que na realidade o não é, pois (...) outras forças não legitimadas nem controladas preencherão essas áreas de poder" (...). Tão pouco a evolução legislativa permitiu criar uma evolução dogmática sobre aspectos substantivos e processuais que acompanhasse o alargamento e a complexidade crescentes do Direito de Mera Ordenação Social e, em especial, a heterogeneidade das áreas entretanto abrangidas por este ramo do Direito. Criou-se, no fundo, uma área jurídica muito heterogénea onde por razões de segurança e de garantia se recorreu cada vez mais às categorias e figuras da dogmática penal e aos mecanismos e regras do processo penal. O que poderá ter facilitado a tarefa do legislador, mas criou na generalidade dos casos apenas uma aparência de reforma com soluções nem sempre adequadas aos problemas específicos das diversas áreas de intervenção (...). Um dos problemas centrais que tem ocupado a ciência penal desde esse período é o da criação de mecanismos jurídicos de atribuição da responsabilidade penal, fundamentalmente, a condutas (acções e omissões) de pessoas humanas. (...) Mas quando essa mesma solução é acolhida pelo legislador no âmbito do Direito de Mera Ordenação Social, já não é legítimo nem razoável esperar que a opção legislativa seja feita sobre esse mesmo património científico que foi construído para realidades diferentes (...). Esta tendência é profundamente criticável por três ordens de razões: em primeiro lugar, porque se trata de uma orientação que pode afectar a eficácia do direito de Mera Ordenação Social, já que importa para o seu seio instrumentos teóricos por vezes inadequados às realidades regulamentadas. A este risco acresce, por outro lado, o facto de se estar a hipotecar a própria autonomia substantiva e processual do ilícito de Mera Ordenação Social, pois não se privilegiam soluções específicas e adequadas aos problemas das diversas áreas de intervenção sancionatória em causa. Finalmente, a tendência descrita corresponde a uma significativa erosão do princípio da subsidiariedade do direito penal, na medida em que (...) acaba por ser a estrutura dogmática e normativa do sistema penal que é aplicada por via administrativa e os mecanismos judiciais dos tribunais comuns, com a estrutura simbólica e efectiva do processo penal, que conduzem a apreciação das decisões das autoridades administrativas impugnadas judicialmente"

8. DIFICULDADES DE APLICAÇÃO (14)
"O direito das contra-ordenações nunca foi objecto de uma reflexão que ponderasse a experiência acumulada desde a introdução no ordenamento jurídico português em 1979 e que indagasse da articulação da mesma com os princípios que o inspiraram e com os objectivos que estão subjacentes à sua introdução. A experiência da aplicação deste ramo de direito inspira sérias dúvidas sobre a forma como os vários operadores o têm entendido e levado à prática. Para esse panorama contribuiu, de forma evidente, a falta de uma dogmática que permitisse a teorização da prática a partir dos princípios subjacentes às normas legais (...). Não admira, por isso, que o mundo judiciário nunca conseguisse desligar o direito das contra-ordenações do direito penal e nunca ousasse interpretar as normas consagradas na Lei Quadro fora dos parâmetros penais. Mas se a maioria dos operadores revela dificuldades em entender o direito das contra-ordenações como sistema autónomo do direito penal, condição fundamental para a justificação da sua autonomia, inúmeras vezes o legislador entrou em derrapagens dogmáticas, com a aplicação ao direito das contra-ordenações de soluções substantivas e processuais que podem não ter nada que ver com os princípios que estruturam este ramo do direito e que positivaram as confusões que a prática já vinha produzindo. No âmbito desta regressão são perdas significativas a revisão do DL 433/82, de 27 de Outubro, operada pelo DL 244/95, de 14 de Setembro. Sem uma reflexão ponderada sobre aquilo que era a experiência acumulada na execução do direito das contra-ordenações, o legislador avançou com inovações que em alguns aspectos o aproximam do direito penal. Não admira, por isso, que a doutrina mais autorizada tenha recebido aquela alteração com profunda inquietação".

9. SÚMULA
"O que se revela necessário é desenvolver no campo das contra-ordenações uma dogmática própria que podendo acolher os contributos da dogmática penal não se limite contudo a uma importação acrítica de regimes e figuras" (15)

10. DIREITO DE AUDIÇÃO E DEFESA DO ARGUIDO
10.1. "Tem inteira expressão neste ramo do direito o princípio do contraditório e da audiência, conforme resulta do art. 50.º da L. Q., a entender com o conteúdo que lhe é dado por Figueiredo Dias Direito Processual Penal, I, 1974, p. 153: "oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo (...)". O direito de audição do arguido que se configura neste artigo corresponde àquilo que já Marcelo Caetano ensinava no seu Manual de Direito Administrativo, II, 1280, a propósito do processo administrativo de tipo sancionador, quando referia que "quer a lei o diga ou não, em tais processos há que respeitar o princípio de que ninguém pode ser condenado sem previamente ter sido ouvido, compreendendo-se neste direito natural de defesa a instrução contraditória"" (16).
10.2. "O processamento das contra-ordenações (...) compete às autoridades administrativas (...)" (artigo 33.º do Regime Geral das Contra-Ordenações). Porém, os actos correspondentes não constituirão, propriamente, "actos administrativos" nem a essa actividade se aplicará, directamente, o "direito administrativo" (17). É que, por um lado, "no processo de aplicação da coima (...), as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal (...)" (artigo 41.º, n.º 2, do Regime Geral das Contra-Ordenações). E que, por outro, lhe "são aplicáveis, devidamente adaptados (18), os preceitos reguladores do processo criminal" (artigo 41.º, n.º 1):
"Iniciado um processo de contra-ordenação existe a possibilidade de actos da Administração - que fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto, ao regime e garantias próprias do Direito Administrativo) - passarem a ser regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código de Procedimento Administrativo. Uma solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade sancionatória da administração por cruzamento de regimes e garantias jurídicas" (19)
10.3. Mas será justamente na "devida adaptação" dos "preceitos reguladores do processo criminal" à actividade das autoridades administrativas no "processo de aplicação da coima" que "devem" considerar-se - sob pena de "adaptação indevida" - os preceitos correspondentes do procedimento administrativo.
10.4. Exemplo paradigmático (20) da imprescindível convocação desse preceitos é a realização prática, na instrução do processo contraordenacional (artigo 54.2 do Regime Geral das Contra-Ordenações), do "direito de audição e defesa do arguido" exigido, antes da "aplicação de uma coima" (artigo 58.º), pelo artigo 50.º.
10.5. Com efeito, se "não é permitida a aplicação de uma coima (...) sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção (...) em que incorre" (artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações), a concretização da "forma" (21) e do "prazo razoável" de se assegurar esse "direito de audição do arguido" não poderá prescindir (22) - já que "os preceitos reguladores do processo criminal" não prevêem uma "decisão condenatória", ao cabo do "inquérito", pelo próprio titular deste - da convocação dos correlativos preceitos do procedimento administrativo, designadamente os artigos 100.º a 102.º do Código de Procedimento Administrativo (23):
Audiência dos interessados (artigo 100.º)
"1 - Concluída a instrução (...), os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final (...). 2 - O órgão instrutor decide, em cada caso, se a audiência dos interessados é oral ou escrita"
Audiência escrita (artigo 101.º)
"1 - Quando o órgão instrutor optar pela audiência escrita, notificará os interessados para, em prazo não inferior a 10 dias, dizerem o que se lhes oferecer. 2 - A notificação fornece os elementos necessários para que os interessados fiquem a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito (...). 3 - Na resposta, os interessados podem pronunciar-se sobre as questões que constituem objecto do procedimento, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos"
Audiência oral (artigo 102.º)
"1 - Se o órgão instrutor optar pela audiência oral, ordenará a convocação dos interessados com a antecedência de pelo menos oito dias. 2 - Na audiência oral podem ser apreciadas todas as questões com interesse para a decisão, nas matérias de facto e de direito. 3 - A falta de comparência dos interessados não constitui motivo de adiamento da audiência (...). 4 - Da audiência será lavrada acta, da qual consta o extracto das alegações feitas pelos interessados, podendo estes juntar quaisquer alegações escritas, durante a diligência ou posteriormente".
10.6. É que "o processo de contra-ordenação - constituindo uma realidade sui generis dificilmente enquadrável em qualquer dos tipos de processos sancionadores que a doutrina costuma indicar - nasce como autêntico processo administrativo, sendo o impulso inicial, a instrução e a decisão da competência das autoridades administrativas (...)": "O processo contraordenacional tem portanto uma estrutura complexa, porque, no essencial, resultou da fusão de um verdadeiro processo administrativo do tipo sancionador (desde a instauração até à decisão) com um autêntico processo jurisdicionalizado do tipo criminal (a partir da impugnação contenciosa da decisão administrativa). A fase administrativa do processo de contra-ordenação ainda constitui um modo de realização da função administrativa do Estado (...). Tanto no processo administrativo sancionador (em cujos princípios foi moldada a fase administrativa do processo de contra-ordenação) como no processo penal (cujos princípios enformam a fase contenciosa daquele) sempre foi reconhecida assinalável semelhança e flagrante paralelismo quanto à serventia do processo, como meio de prossecução ou de concretização do direito e quanto ao modo lógico e formal da sua execução (...). A evolução doutrinal, jurisprudencial e até legislativa tem vindo a revelar a aceitação de uma certa interpenetração, ao nível dos princípios fundamentais, entre aqueles dois tipos de processo, sem prejuízo obviamente de se continuar a tentar extremar, com o maior rigor e segurança, os campos do direito administrativo sancionador e do direito criminal, alargando cada vez mais a área de incidência do primeiro à custa da purificação do segundo. Esta última preocupação tem levado a que a construção do processo administrativo tenha sido enriquecida com alguns princípios e exigências que dantes eram privativos do processo criminal e este tenha também sofrido a influência dos métodos do primeiro, especialmente na fase preparatória O processo de contra-ordenação constitui uma realidade sui generis que representa um meio termo um tertium genus entre a tradicional processo administrativo sancionador e o tradicional processo criminal" (24).

11. OMISSÃO DA AUDIÇÃO DO ARGUIDO NA INSTRUÇÃO CONTRAORDENACIONAL
11.1. Sendo proibida (25) a aplicação de uma coima sem prévia ("possibilidade de") audição do arguido, surge a questão de saber qual o vício (e a respectiva sanção) da decisão administrativa que aplique uma coima a quem previamente não tiver sido assegurada "a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação (...) e (...) a sanção (...)".
11.2. Mas, antes de a abordar, haverá que tomar em consideração a configuração bifronte, qual cabeça de Janus, da decisão administrativa que, aplicando uma coima, põe termo à instrução contraordenacional: virada a montante, a fronte que, condenando, abrirá lugar - se não impugnada - à execução da coima (artigos 88.º a 91.º do Regime Geral das Contra-Ordenações) e, voltada a jusante, a que, acusando, abrirá lugar - se impugnada - à "comprovação judicial da decisão de deduzir acusação" (26), ou seja, à "impugnação judicial" (artigos 59.º e ss.) (27). E, por isso, a doutrina lhe chama "decisão-acusação" (28).
11.3. Em suma, a decisão administrativa de aplicação de uma coima só virtualmente constituirá uma "condenação", pois que, se impugnada, "tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse uma acusação".
11.4. Mas, consolidando-se, se não impugnada, como "condenação", qual o efeito na exequibilidade desta, de tal vício? Será que - à semelhança do caso julgado em processo penal (29) - o "caso (administrativo) decidido" cobrirá a correspondente "nulidade" (ainda que, eventualmente, insanável), tornando-a inatendível na execução (30)? Ou será que uma condenação não precedida da constituição do visado como "arguido" - porque (in)sustentada em "uma relação jurídica processual que nem sequer chegou a constituir-se, inviabilizando, em definitivo, a formação de caso julgado (31) (32) - enfermará, mesmo, de "inexistência jurídica" (33)?
11.5. Na outra hipótese, ou seja, na de impugnação judicial da "decisão administrativa", já os "preceitos reguladores do processo criminal" a haverão de encarar como se de uma "acusação" se tratasse. Donde que a equiparação da instrução contraordenacional ao inquérito criminal deva conduzir a que a preterição do "direito de audição" no decurso daquela (assemelhável ao incumprimento, neste, da obrigatoriedade de interrogar como arguido a pessoa determinada contra quem corra o inquérito - artigo 272.º, n.º 1, do actual Código de Processo Penal) (34) haja de ser tratada, simplesmente, como "insuficiência do inquérito" (artigo 120.º, n.º 2, alínea d), implicando, por isso, "nulidade dependente de arguição" (artigo 120.1) em prazo limitado (35).
11.6. Se bem que constitua "nulidade insanável" (artigo 119.º) "a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência" (alínea c), essa "ausência" tem a ver - dela sendo o seu reverso - com o "direito processual do arguido" (artigo 61º, n.º 1) de "estar presente aos actos processuais que directamente lhe disseram respeito" (alínea a) e de ser "assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar" (alínea e) (36) e não com a eventual preterição de outros "direitos processuais do arguido" como os de "ser ouvido" (alínea b) e de "intervir no inquérito" (alínea f). Aliás, a "ausência do arguido" do actual Código de Processo Penal corresponde, no anterior (em vigor à data de entrada em vigor do Decreto-Lei 433/82), à nulidade do n.º 8.º do artigo 98.º, em caso - que não se assemelha (e, por isso, não demandando tratamento similar) ao de não audição do arguido durante a instrução contraordenacional - de "discussão e julgamento da causa sem a presença do réu, quando a lei exigisse o seu comparecimento":
I - "Os casos de nulidade insanável, previstos no Código de Processo Penal de 1929, que se mantêm no novo diploma (...) são: 1. (...); 2. Discussão e julgamento da causa sem assistência do MP ou do réu, quando a lei exigisse a sua comparência (n.º 8 do artigo 98.º) - que tem consagração na parte final da alínea b e também na alínea c do artigo 119.º; 3. Falta de nomeação de defensor em audiência de julgamento, quando obrigatória, não arguida até ao interrogatório do réu, a menos que se venha a decretar a absolvição (n.º 4 e § 5.º do artigo 98.º) - que tem consagração nos artigos 119.º, c), e 122.º, n.º 1" (Gil Moreira dos Santos, Noções de Processo Penal, O Oiro do Dia, Porto, 1.ª edição, p. 203)
II - "No artigo 119.º deste Código de Processo Penal, indicam-se as nulidades insanáveis, das quais apenas a relativa ao "emprego de forma especial de processo fora dos casos previstos na lei" poderá ser aplicável em processo contraordenacional" (Lopes de Sousa - Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, Áreas Editora, 2001, p. 373) (37).
III - Alfredo José de Sousa diz mesmo "não haver no processo de contra-ordenação nulidades insanáveis" (Infracções Fiscais Não Aduaneiras, Almedina, p. 167).
11.7. Em síntese: a nulidade (insanável) por "falta do arguido, nos casos em que a lei exigir a sua comparência" restringe-se, no processo penal, aos casos em que, obrigando a lei à presença/comparência do arguido em certos actos processuais, v. g., na audiência de julgamento (art. 332.º do CPP) e no debate instrutório (art. 300.º), esses actos venham a ser praticados sem a sua presença (38).
11.8. De qualquer modo, a eventual preterição, no decurso da instrução contraordenacional, do "direito (processual) de audição" garantido pelo artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, haveria de ficar "sanada" (39) - por força do disposto no artigo 121º, n.º 1, alínea c do Código de Processo Penal - se o arguido viesse a prevalecer-se, na impugnação judicial da "acusação" administrativa, do direito (de defesa) "a cujo exercício o acto anulável se dirigia".
11.9. Com efeito, não faria sentido (e seria, mesmo, processualmente antieconómico) (40) anular a "acusação" (a não ser que a impugnação se limitasse a arguir a correspondente nulidade) se o "participante processual interessado" aproveitasse a impugnação (da "decisão administrativa" assim volvida "acusação") para exercer - dele enfim se prevalecendo - o preterido direito de defesa, em ordem (cfr. artigo 286.º, n.º 1) à "comprovação judicial" (negativa) (41) da "decisão de deduzir acusação".
11.10. Com essa excepção (sanação do vício por os participantes processuais se terem prevalecido da faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia), "o legislador procura evitar a anulação do processado por motivos de mera forma, contribuindo para a construção de um sistema menos formalista e mais preocupado com a justiça material. Se o acto, apesar de imperfeito, cumpriu os objectivos para os quais foi pensado pelo legislador (...), não se justifica a sua repetição" (42).
12. Deficiente cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGC-O
12.1. Não é permitida a aplicação de uma coima - determina o art. 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações - "sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção em que incorre".
12.2. Se - em caso de impugnação judicial da decisão administrativa - constitui nulidade (sanável) a omissão (absoluta) da audição do arguido na instrução contraordenacional, a deficiente satisfação, por parte da administração, desse direito do arguido (nomeadamente, em caso de audiência escrita, por a notificação do interessado "para dizer o que se lhe oferecer" não lhe conceder um "prazo razoável" (43) ou não lhe "fornecer os elementos necessários para que fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito") (44), também não poderá constituir - mesmo que se equipare essa "notificação" à "acusação" que, em processo penal, necessariamente precede a "decisão condenatória" (45) - um vício formal (46) mais gravoso que a "nulidade" (sanável) (47) cominada, pelo art. 283.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, para a acusação penal que não contenha "a indicação das disposições legais aplicáveis" (alínea c) ou "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido ao arguido de uma pena (...), incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada" (alínea b).
12.3. "Neste domínio são de realçar os deveres de diligência e de boa fé processuais (...). O segundo impede que os sujeitos processuais possam "aproveitar-se de alguma omissão porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um trunfo para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado" (TC, ac. 429/95 de 6 de Julho, DR II, 10 Nov 95). ... O legislador português (...) criou um sistema responsabilizador e progressivo, onde os sujeitos processuais são convidados a participar na marcha processual e a denunciar, com prontidão, as infracções cometidas e onde as possibilidades de sanação do vício vão aumentando à medida que o processo se afasta do acto imperfeito e se aproxima do seu epílogo (...). No fundo, o legislador estruturou o processo penal em etapas sucessivas que servem de barreiras à propagação de certos defeitos do acto processual penal. Ultrapassados aqueles prazos fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo acto processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos. Regime que, embora seja uma clara manifestação do princípio da conservação dos actos imperfeitos, se destina também a evitar que o interessado, em vez de arguir de imediato a nulidade, guarde esta possibilidade para utilizar no momento mais oportuno, se e quando for necessário. Conduta processual que, para além de ser muito reprovável, teria como consequência necessária a inutilização de todo o processado posterior, muitas vezes apenas na sua fase decisiva e no fim de uma longa marcha, que só com muito custo poderia ser refeita" (João Conde Correia, ob. cit., ps. 146, nota 328, e 177 a 179).

13. CONCLUSÕES (48)
I - Quando, em cumprimento do disposto no art. 50.º do RGC-O, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contraordenacional, pela audiência escrita do arguido (49), notificá-lo-á para - no prazo que o regime específico do procedimento previr ou, na falta deste, em prazo não inferior a 10 dias - dizer o que se lhes oferecer (cfr. artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo) (50).
II - A notificação fornecerá os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito (art. 101.2) e, na resposta, o interessado pode pronunciar-se sobre as questões que constituem objecto do procedimento, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos (art. 101.3) (51).
III - A omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida "acusação", o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo "acusado", no acto da impugnação (artigos 120.º, n.os 1, 2, alínea d, e 3, alínea c, e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações) (52). Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa (artigos 121º [120], n.os 2, alínea d, e 3, alínea c, e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações). Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada (art.s 121.º, n.º 1, alínea c, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações).
IV - Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, Regime Geral das Contra-Ordenações), no prazo de 10 dias após a notificação (artigos 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação (artigos 121.º [120], n.º 3, alínea c, e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações) (53). Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa (artigos 121.º [120], n.os 2, alínea d, e 3, alínea c, e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.1 do Regime Geral das Contra-Ordenações). Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada (artigos 121.º, n.º 1, alínea c, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações).
V - No caso, a nulidade decorrente da insuficiência/incompletude do teor da notificação operada ao abrigo do disposto no artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações ficou sanada logo que o interessado não a arguiu nem no prazo de dez dias perante a administração nem, depois, na impugnação judicial da subsequente decisão/acusação administrativa.

14. DECISÃO
Tudo visto, o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência, delibera, na improcedência do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência interposto em 19 Nov 01 pela sociedade comercial "A", Hipermercados, S.A., fixar jurisprudência nos seguintes termos:
Quando, em cumprimento do disposto no art. 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contraordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Outubro de 2002
Carmona da Mota
Pereira Madeira
Simas Santos
Borges de Pinho
Costa Pereira
Armando Leandro
Virgílio Oliveira
Flores Ribeiro
Abranches Martins
Lourenço Martins
Oliveira Guimarães
Dinis Alves
Tem voto de conformidade do Conselheiro Franco de Sá, que não assina por não estar presente.
Nunes da Cruz
______________________
(1) Mediante acórdão transitado em 5 Abr 01 (fls. 32).
(2) Desembargadores Teixeira Mendes, Dias Cabral e Veiga Reis.
(3) Adv. Miguel Mayordomo Cunha.
(4) P-G Adj. Eduardo Maia Costa.
(5) "Nenhum Estado que promova a justiça social e que, portanto, desenvolva nesse sentido uma larga intervenção da Administração, pode atingir os fins que se propõe sem uma aparelhagem de ordenação social a que corresponde um ilícito e sanções próprias. É certo que da intervenção do Estado nos domínios da economia, saúde, habitação, cultura, ambiente, etc., pode resultar a conformação de infracções tão socialmente danosas e tão eticamente censuráveis que em tudo se justifique o seu tratamento como autênticos crimes (...). O normal será, contudo, que as infracções às leis vigentes nestes domínios não atinjam relevo penal, antes configurem uma forma autónoma de ilicitude que reclame um quadro próprio de reacções sancionatórias e um novo tipo de processo (...). Hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas uma diferença de natureza. A contra-ordenação "é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando portanto sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal" (Eduardo Correia, Direito penal e direito de ordenação social, BFDUC, 1973, p. 266). E isto pese embora o facto de ainda não se verificar acordo quanto ao critério ou sinal único verdadeiramente identificador do direito de mera ordenação social e capaz de explicar todas as características do seu regime" (Preâmbulo).
(6) "Para obviar, contudo, a quaisquer perigos ou abusos, submete-se a aplicação da coima a um estrito princípio de legalidade e ressalva-se, sem reservas, um direito de defesa e audiência e um inderrogável direito de recurso para as instâncias judiciais" (Preâmbulo)
(7) "A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções. Só que tal não pode fazer-se, como unanimemente reconhecem os cultores mais qualificados das ciências criminais e penais, alargando a intervenção do direito criminal. Isto significaria, para além de uma manifesta degradação do direito penal, com a consequente e irreparável perda da sua força de persuasão e prevenção, a impossibilidade de mobilizar preferencialmente os recursos disponíveis para as tarefas da prevenção e repressão da criminalidade mais grave. Ora é esta que de forma mais drástica põe em causa a segurança dos cidadãos, a integridade das suas vidas e bens e, de um modo geral, a sua qualidade de vida (...). Apesar de se tratar de um diploma de enquadramento, manifesta-se a vontade de progressivamente se caminhar no sentido de constituir efectivamente um ilícito de mera ordenação social. Manteve-se (...) a fidelidade à ideia de fundo que preside à distinção entre crime e contra-ordenação. Uma distinção que não esquece que aquelas duas categorias de ilícito tendem a extremar-se, quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos quer pela desigual ressonância ética. Mas uma distinção que terá, em última instância, de ser jurídico-pragmática e, por isso, também necessariamente formal" (Preâmbulo").
(8) "Com a introdução no ordenamento jurídico português do regime geral das contra-ordenações (...) deu-se um passo fundamental no sentido se dar um tratamento jurídico autónomo a infracções verificadas em domínios nos quis se assiste a uma crescente intervenção conformadora do Estado e que, submetidas à tutela do direito penal, o vinham descaracterizando, retirando-lhe eficácia persuasiva e preventiva. Conferiu-se assim ao direito de ordenação social a tutela de uma área em que as condutas, sem constituírem ofensas graves aos bens essenciais da vida em comunidade, são apesar disso, merecedoras de sanção" (Preâmbulo).
(9) "Não pode o direito de mera ordenação social continuar a ser olhado como um direito de bagatelas penais. É nesta perspectiva que deve entender-se a presente reforma do regime geral das contra-ordenações, especialmente orientada para o efectivo reforço das garantias do arguidos perante o crescente poder sancionatório da Administração. Por outro lado, cumpre acentuar a eficácia do sistema punitivo das contra-ordenações, tão mais necessário quanto mais extenso o domínio de intervenção e a relevância daquele sistema na ordenação da vida comunitária. Por último, afigura-se adequado, no momento presente, proceder ao aperfeiçoamento da coerência interna do regime geral de mera ordenação social, bem como da coordenação destes com o disposto na legislação penal e processual penal" (Preâmbulo).
(10) "Em ordem ao reforço das garantias dos arguidos (...) procede-se a uma explicitação mais rigorosa dos direitos fundamentais de audiência e defesa do arguido. Deve, a este propósito, ser também referido (...) o dever de fundamentação da decisão administrativa, assim como da decisão judicial, o alargamento significativo do prazo para impugnação da decisão administrativa (...) e do prazo de recurso da decisão judicial (...)" (Preâmbulo).
(11) O direito de audiência do arguido em processo contraordenacional tinha obtido, entretanto, consagração constitucional. Com efeito, a revisão constitucional de 1989 aditara ao artigo 32.º da Constituição um n.º 8 com a seguinte redacção: "Nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa".
(12) Cfr. Parecer 19/2001, de 22 Nov 01, da Procuradoria Geral de República (DR II 8 Fev 02).
(13) Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "O Ilícito de Mera Ordenação Social e a Erosão do Princípio da Subsidiariedade da Intervenção Penal", Direito Penal Económico e Europeu/Textos Doutrinários, ps. 209 e ss.
(14) A. Leones Dantas, "O Ministério Público no Processo das Contra-Ordenações", Questões Laborais VII - 2001, ps. 16/18.
(15) Frederico de Lacerda da Costa Pinto, ob. e loc. citados.
(16) António Leones Dantas, Considerações sobre o processo das contra-ordenações - A fase administrativa, Revista do Ministério Público, n.º 61, ps. 107 e 117.
(17) Manuel Ferreira Antunes, Reflexões sobre o direito contraordenacional, SPB Editores, 1997, ps. 157 e 161.
(18) E "sempre que o contrário não resulte do presente diploma" (Decreto-Lei 433/82 de 27 de Outubro).
(19) Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal, RPCC, VII, Janeiro-Março 1997, pp. 14 e segs.
(20) "A consagração do direito de audiência prévia do interessado como princípio geral do Direito Administrativo português não poderia deixar de ter reflexos ao nível do procedimento de aplicação de sanções (...) pela prática de contra-ordenações. Trata-se, aliás, de uma área prioritária da sua aplicação (...)" (Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social, RFDUL XXXVII, n.º 2, 1996, ps. 557 e ss.).
(21) "Uma formalidade essencial é a audição do arguido, sem a qual o processo é inválido. Mas há muitas maneiras práticas de dar satisfação à correspondente norma. E não se está de modo algum a pensar numa acusação articulada (...). A lei será respeitada e o espectro da nulidade afastado se puder demonstrar que o arguido foi ouvido, quer no auto inicial quer no decurso da investigação ou da instrução, em flagrante ou fora de flagrante, por qualquer forma admissível em direito, sem necessidade de uma acusação formal, a não ser quando esta não possa ser dispensada porque falharam ou não foram possíveis outras maneiras de "assegurar a possibilidade de se pronunciar sobre o caso", como diz a lei (...). Não haverá nulidade insuprível se, por qualquer modo idóneo, lhe for dado conhecimento de que contra ele pende um processo por contra-ordenação, com a conveniente descrição dos factos que a integram" (Manuel Lopes Rocha, Contra-Ordenações, Notas e Comentários, Escola Superior de Polícia, ps. 120/121).
(22) A menos que preceitos legais próprios - como é o caso do direito contraordenacional estradal - especifiquem o "procedimento" a seguir. Com efeito, o artigo 155.1. e 2 do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, determinava: 1 - Antes da decisão sobre a aplicação das sanções, os interessados devem ser notificados: a) Dos factos constitutivos da infracção; b) Das sanções aplicáveis (...). 2 - Os interessados podem, no prazo de 20 dias a contar da notificação apresentar a sua defesa, por escrito (...). Na sua redacção actual (resultante do Decreto-Lei 162/2001 de 22 de Maio), a "comunicação da infracção" passou a dever fazer-se, não "antes da decisão", mas logo "após o levantamento do auto de notícia" e com a indicação adicional "da legislação infringida". Também o Código dos Valores Mobiliários (aprovado pelo Decreto-Lei 486/99 de 13 de Novembro), de que o "regime geral dos ilícitos de mera ordenação social" é "direito subsidiário" (artigo 407.º), contém "disposições processuais" próprias (artigos 408.º e ss.), que pressupõem um "acto processual de imputação ao arguido da prática de contra-ordenação" (artigo 411.º, n.º 2), dito, no artigo 414.º, n.º 1, de "acusação formal". O mesmo se passa com o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro e Decreto-Lei n.º 201/2002 de 26 de Setembro), que, no seu artigo 219.º, prevê a dedução, uma vez concluída a instrução, de uma específica "acusação" (em que "serão indicados o infractor, os factos que lhe são imputados e as respectivas circunstâncias de tempo e lugar, bem como a lei que os proíbe e pune"), seguida da sua "notificação ao arguido", da "realização das diligências tornadas necessárias em consequência da defesa" e, finalmente, da "decisão".
(23) Aprovado pelo Decreto-Lei 442/91 de 15 de Novembro e alterado e republicado pelo Decreto-Lei 6/96 de 31 de Janeiro.
(24) Mário Gomes Dias, Contra-Ordenações, Notas e Comentários, Escola Superior de Polícia, ps. 130-133.
(25) "Não é permitida" (artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações)
(26) Usando a terminologia que o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal emprega para definir o objectivo da instrução criminal.
(27) "A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial" (artigo 59.º, n.º 1)
(28) Manuel Ferreira Antunes, ob. cit., p. 172: "Quando o recorrente interpõe o recurso, ainda não há acusação, mas, logo que o recurso seja introduzido em juízo, tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse uma acusação (...). Na verdade, com a interposição do recurso, a decisão condenatória transforma-se em acusação".
(29) "A formação do caso julgado torna insindicáveis todos os vícios susceptíveis de constituir causa de nulidade - seja qual for a sua natureza - permitindo a sua conservação" (João Conde Correia, Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, Coimbra Editora, 1999, p. 169)
(30) Tanto mais que "as decisões penais condenatórias transitadas em julgado" (artigo 467.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) só não são exequíveis quando "não reduzidas a escrito" ou "não determinarem a pena aplicada ou aplicarem pena inexistente na lei portuguesa" (artigo 468.º).
(31) Cfr. João Conde Correia, ob. cit., p. 164 e nota 376.
(32) É certo que "assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação" (artigo 57.1 do Código de Processo Penal), mas, na hipótese, a "condenação" não só não fora precedida de audição do visado como, pois que não impugnada", não se volvera, retroactivamente, em "acusação".
(33) Vício que, nas suas consequências práticas e nos seus efeitos jurídicos, se assemelharia ao da "nulidade de direito administrativo" ("O acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade" - artigo 134.1 do Código de Procedimento Administrativo; "A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal" - artigo 134.2; "Não são susceptíveis de ratificação, reforma e conversão os actos nulos ou inexistentes" - artigo 137.1) que afecta "os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental" (artigo 133.2.d), que "incluem, além dos que o violam pelo seu conteúdo ou motivação, também aqueles em que cujo procedimento se postergaram direitos, dessa natureza, dos interessados", como "acontece com os direitos de participação, informação e audiência dos interessados: se e quando o direito de audiência (ou o de fundamentação) constituir um direito fundamental, o acto praticado sem que o mesmo haja sido dado é de considerar nulo" (Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, II, Almedina, 1995, p. 156). E a verdade é que - nos direitos e deveres constitucionais fundamentais - se inclui a garantia de que "nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa" (artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa)
(34) Ao tempo da entrada em vigor do Decreto-Lei 433/82, em que o Código de Processo Penal de 1929 ainda estava em vigor, também era nula a acusação "não precedida de interrogatório do arguido" quando "obrigatório" (artigo 268.º, parte final). O regime das nulidades era o dos artigos 98.º e 99.º, constituindo "nulidade em processo penal, entre outras", a "insuficiência de corpo de delito" (artigo 98.1), que ficaria "sanada" logo que transitasse em julgado o "despacho de pronúncia" ou, "em qualquer caso", a partir do momento em que "os actos omitidos já não pudessem praticar-se ou a sua realização já não aproveitasse ao descobrimento da verdade" (artigo 98.º, § 2.º). Em contrapartida, as nulidades "que se não devessem considerar sanadas" poderiam ser arguidas em qualquer estado da causa", mas "os tribunais superiores poderiam sempre julgar suprida qualquer nulidade que não afectasse a justa decisão da causa" (artigo 99.º, § 3.º).
(35) a) "Até cinco dias após a notificação" da decisão (se, equiparando-se esta à "acusação", se aplicar, depois de adaptado, o disposto no artigo 120.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal); b) até ao despacho que decidir a impugnação - artigo 64.2 do Regime Geral das Contra-Ordenações - ou ao encerramento dos debates na audiência de 1.ª instância - artigos 66.º a 70.º (se se equiparar a impugnação judicial à instrução criminal), ou c) até à (ou, melhor, na) "impugnação perante os tribunais" (solução interpretativa que concentrará na "impugnação judicial" - coerentemente com a função desta - toda a "defesa" do "acusado").
(36) Nomeadamente quando "obrigatória a assistência de defensor" (artigo 64.º, n.º 1): interrogatório judicial de arguido preso, debate instrutório, audiência (maxime, audiência de julgamento realizada na audiência do arguido) e recursos.
(37) Já, porém, "parece" a Simas Santos - Lopes de Sousa, "dever considerar-se uma nulidade insanável a não concessão ao arguido da possibilidade de ser ouvido sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre" (Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, Vislis Editores, 2001, p. 295): "Com efeito, embora na alínea c) do n.º 1 do art. 119.º do CPP se preveja como nulidade insanável a ausência do arguido ou seu defensor quando a lei exigir a respectiva comparência, o objectivo evidente desta obrigatoriedade de comparência é a concessão ao arguido da possibilidade de exercer os direitos de defesa que a lei e a CRP impõem que lhe seja concedida e, por isso, esta norma deve ser interpretada extensivamente como visando todas as situações em que não foi concedida ao arguido, antes de lhe ser aplicada uma sanção, possibilidade de exercer direitos de defesa que obrigatoriamente lhe deve ser proporcionada".
(38) Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1999, p. 77. Cfr., ainda, STJ 16 Set 92, apud Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 8.ª ed., ps. 263-264, anotação ao art. 119.º: "A nulidade da alínea c do art. 119.º do Código de Processo Penal só se verifica quanto às situações em que a lei exige a comparência do arguido ou do seu defensor".
(39) Ou, no âmbito do Código de Processo Penal de 1929, "suprida pelos tribunais superiores" por "não afectar a justa decisão da causa" (artigo 99, § 3.º).
(40) O fundamento desta causa de sanção da nulidade é claramente a economia processual. Com efeito, se, não obstante a nulidade do acto, o efeito a que se dirigia vier a ser igualmente produzido, é inútil recomeçar do princípio para não obter nada de mais do que o que já foi alcançado" (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1999, p. 85). "Seria um exagero formal, destituído de qualquer fundamento substancial, inutilizar a actividade processual desenvolvida, principalmente porque a sua repetição não traz nada que já não tenha sido alcançado" (João Conde Correia, ob. cit., p. 180).
(41) Mediante decisão judicial de "arquivamento do processo" ou de "absolvição do arguido" (art.s 64.º, n.º 3, e 66.º e 68.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações).
(42) João Conde Correia, ob. cit., p. 155. Mas "a nulidade só não será declarada quando o participante processual usufruir da concreta faculdade a cujo exercício o acto anulável se destinava" (ibidem).
(43) E sê-lo-á o que, em concreto, for inferior ao decorrente do regime específico ou, na falta deste, a "10 dias" (cfr. art.s 41.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
(44) Cfr. art. 101.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo.
(45) Perspectivada esta - na sua bifrontalidade - como o termo final do procedimento.
(46) "É necessário ter presente que os vícios do acto processual que a lei trata sob a epígrafe "Das Nulidades" se referem apenas aos vícios formais" (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1999, p. 68).
(47) Cfr. artigos 120.º, n.º 1, 120.º, n.º 3, alínea c, e 121.º, n.º 1, do actual Código de Processo Penal.
(48) "Adaptação" ao processo contraordenacional dos correspondentes "preceitos reguladores do processo criminal".
(49) "A lei quadro das contra-ordenações põe a tónica na necessidade, insuprível, de audiência do arguido (art. 50.º do Decreto-Lei 433/82), mas não impõe um formalismo especial. Por isso (...), será dado cabal satisfação a essa exigência desde que ao arguido, como diz a lei, "seja assegurada a possibilidade de se pronunciar sobre o caso", o que pode fazer-se logo no próprio auto pela autoridade maxime quando a contra-ordenação é verificada em flagrante" (Manuel Lopes Rocha, Contra-Ordenações, Notas e Comentários, Escola Superior de Polícia, ps. 110/111).
(50) "O dirigente do serviço tributário competente notificará o arguido do facto ou factos apurados no processo de contra-ordenação e da punição em que incorrer, comunicando-lhe também que no prazo de 10 dias pode apresentar defesa e juntar ao processo os elementos probatórios que entender" (art. 70.º do Regime Geral das Infracções Tributárias)
(51) "Não pode deixar de se entender que no processo de contra-ordenações devem ser dadas ao arguido possibilidades de contestar as provas contra ele recolhidas, de formular a sua defesa, de sugerir diligências probatórias, de arrolar testemunhas, etc." (Mário Gomes Dias, Contra-Ordenações, Notas e Comentários, Escola Superior de Polícia, p. 138)
(52) Constitui nulidade insuprível no processo de contra-ordenação tributário (...) a falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa" (RGIT, art. 63.1.c), de conhecimento oficioso e arguível "até a decisão se tornar definitiva" (n.º 5) e com o efeito de "anulação dos termos subsequentes do processo que deles dependam absolutamente" (n.º 3). "Embora a nulidade subsista enquanto não for efectuada tal notificação e tenham de ser anulados todos os termos subsequentes do processo contraordenacional que dependam dessa nulidade, a entidade competente para o processo, na sequência da declaração de nulidade e dos termos subsequentes, poderá vir a efectivar tal notificação, praticando novamente todos os actos subsequentes que tenham sido anulados" (Lopes de Sousa - Simas Santos, ob. cit., p. 371).
(53) Lopes de Sousa e Simas Santos, a ps. 372 e 401 da sua ob. cit., sustentam que, no âmbito do processo de contra-ordenação tributária, "a falta destes outros elementos constitui uma mera irregularidade processual com o regime de arguição p. no art. 123.º do Código de Processo Penal, aplicável por força do preceituado na alínea b) do art. 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias e do n.º 1 do art. 41.º do Regime Geral das Contra-Ordenações".