Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02577/09.6BEPRT
Data do Acordão:06/09/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:AVALIAÇÃO INDIRECTA
REGULARIZAÇÃO
CONTABILIDADE
Sumário:I - Do carácter subsidiário da avaliação indirecta (cf. art. 85.º, n.º 1, da LGT) resulta que na interpretação das normas legais que a regulam, designadamente nas que se referem à aplicação dos métodos indirectos, se deve privilegiar o sentido que garanta a preferência pela avaliação directa.
II - A possibilidade de suprimento, no prazo legal, contemplada na alínea a) do art. 88.º da LGT, impõe-se em todas as situações ali previstas e não apenas nas situações de falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução e da interpretação das regras contabilísticas não pode extrair-se um sentido que, em termos práticos e ainda que em sede de fiscalização, sempre obviaria à possibilidade, que logra preferência legal, de a tributação se fazer por métodos directos.
Nº Convencional:JSTA000P27833
Nº do Documento:SA22021060902577/09
Data de Entrada:04/09/2021
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A......., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional de sentença proferida no processo de impugnação judicial 2577/09.6BEPRT

1. RELATÓRIO

1.1 O Representante da Fazenda Pública junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto recorre para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que a Juíza daquele tribunal, julgando procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade acima identificada, anulou a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) que lhe foi efectuada com referência ao ano de 2004, após a AT ter feito correcções, com recurso a métodos indirectos, à matéria tributável declarada.

1.2 A Recorrente apresentou a motivação do recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedente a impugnação judicial contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) relativa ao exercício de 2004, no montante de € 149.634, 10.

B. O Tribunal a quo concluiu que falta um pressuposto de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, falha essa que inquina, consequentemente, a liquidação, e consequentemente decidiu pela anulação da liquidação de IRC impugnada (entendimento assente na jurisprudência existente sobre o tema designadamente a constante do Acórdão do S.T.A. de 03/12/2014, proferido no processo n.º 01262/13).

C. Não pode, porém, a Fazenda Pública concordar com tal entendimento e entende ser imperiosa a sua revisão, sob pena de se compelir a inspecção tributária à realização de uma notificação ao contribuinte para a prática de actos que constituem uma franca violação às regras e princípios contabilísticos essenciais, pois, não pode compelir-se a IT a efectuar ao contribuinte uma notificação para a realização de uma actividade legalmente não permitida.

D. Os erros e omissões na contabilidade só podem ser corrigidos no ano da sua ocorrência se as contas do dito ano não estiverem encerradas. Se já se verificou o encerramento, essa correcção não pode ser realizada.

E. Os trabalhos de fim de exercício são uma das etapas mais importantes da contabilidade, sendo nesta fase que se procede à elaboração e apresentação do Balanço, Demonstração de Resultados e seus anexos, de modo a que a empresa possa apresentar a sua situação económico-financeira e o resultado das operações por ela realizadas, durante o período de tempo em causa, ou seja, o ano e efectuado o encerramento das contas, as contas ficam trancadas e não podem ser reabertas.

F. Constatando-se a posteriori erros ou omissões na sua elaboração, a sua regularização não se faz através de alterações das contas do ano em que ocorreu o erro, mas no ano em que o mesmo foi constatado.

G. No ano a que o imposto se reporta e no ano da inspecção, ainda se encontrava em vigor o Plano Oficial de Contabilidade, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47/77, de 7 Fevereiro, e na vigência deste os erros de grande relevo constatados num determinado ano, mas, indubitavelmente, imputáveis a ano(s) anterior(es)/ só podiam ser corrigidos posteriormente, através de regularizações excepcionais.

H. Pois, não seria curial que o resultado de um dado exercício, expresso na conta POC 88 – Resultado Líquido do Exercício, pudesse ser notoriamente influenciado por acontecimentos alheios à gestão desse ano, tais erros (com significado no seio dos capitais próprios, com expressão nos resultados, mas provenientes de exercícios anteriores), deveriam ser contemplados na conta POC 59 – Resultados Transitados, por contrapartida das contas subsidiárias POC das classes 6, Custos (697 – Correcções relativas a exercícios anteriores) ou 7, Proveitos (797 – Correcções relativas a exercícios anteriores).

I. A solução actualmente decorrente do SNC – Sistema de Normalização Contabilística é idêntica à do revogado Plano Oficial de Contabilidade.

J. No âmbito, actual, do SNC – Sistema de Normalização Contabilística, em vigor desde 2010, as correcções de erros materiais em demonstrações financeiras de períodos anteriores devem ser efectuadas através do procedimento de reexpressão retrospectiva, conforme previsto na NCRF 4 – “Políticas contabilísticas, alterações nas estimativas contabilísticas e erros”.

K. Esta Norma Contabilística e de Relato Financeiro tem por base a Norma Internacional de Contabilidade IAS 8 – Políticas Contabilísticas, Alterações nas Estimativas Contabilísticas e Erros, adoptada pelo texto original do Regulamento (CE) n.º 1126/2008 da Comissão, de 3 de Novembro.

L. Em cumprimento da NCFR 4 quando esses erros afectem resultados de períodos anteriores, sendo situações materialmente relevantes, devem ser imputados à conta de resultados transitados e implicar a reexpressão retrospectiva desde o período comparativo mais antigo apresentado, conforme previsto nos parágrafos 32 a 39 da NCRF 4, e dos parágrafos 36 a 44 da NCFR4 retira-se que quando as demonstrações financeiras dos períodos anteriores já foram aprovadas pelo órgão de Gestão e publicadas (na Conservatória), as correcções desses erros materiais devem ser efectuadas no período corrente, não sendo, sequer, possível proceder à substituição do Anexo A da IES com o objectivo de proceder à alteração da prestação de contas, uma vez que essas contas já foram aprovadas pelos sócios e já estão depositadas pelo que não podem ser objecto de qualquer alteração.

M. Existindo erros contabilísticos nas demonstrações financeiras de períodos anteriores, que sejam materialmente relevantes, a correcção desses erros materiais deve ser efectuada através dos procedimentos da NCRF 4, nas demonstrações financeiras do período corrente através da reexpressão retrospectiva, que se encontram plasmadas nos parágrafos 38 a 43 e parágrafos 45 a 48 da referida NCFR 4.

N. A reexpressão retrospectiva implica que a correcção de erros materiais de períodos anteriores nunca deve ser reconhecida nos resultados do período corrente em que se esteja a efectuar a correcção; no período corrente, o efeito desse erro material, com influência nos resultados de períodos anteriores, passa a estar reflectido nos resultados transitados, pois decorre da correcção nos resultados desse período anterior.

O. Quer em sede do POC, quer em sede do SNC, uma vez encerrada a contabilidade de determinado exercício, perante erros ou omissões relacionadas com esse exercício, não frequentes, mas de grande significado, detectados em período subsequente, não mais é possível “reabrir” a contabilidade do exercício ao qual tais erros ou omissões dizem respeito, procedendo-se, antes, mediante uma contabilização própria, um procedimento próprio, à sua relevação no exercício em que tal foi constatado/verificado.

P. A correcção dos erros tem lugar no decurso do ano em que se constataram os mesmos e apenas para fornecer uma ideia mais segura e fiável das demonstrações financeiras da empresa, isto é, para fornecer uma correta informação sobre a situação da empresa.

Q. O reconhecimento dos erros não implica qualquer alteração do resultado contabilístico do ano da ocorrência do erro e, muito menos, do resultado tributável do dito ano.

R. Contrariamente ao que vem vertido na douta sentença os SIT nunca poderiam conceder um prazo para que a impugnante pudesse suprir as irregularidades encontradas na sua contabilidade. Isto porque, apenas é possível regularizar erros de exercícios anteriores no exercício onde o mesmo é detectado.

S. Os SIT nunca poderiam solicitar à impugnante que em 2009, ano da inspecção, fosse reabrir a contabilidade que já se encontrava encerrada em 2004. Em 2009, se a impugnante quisesse proceder à regularização, voluntariamente, ou seja, sem qualquer imposição da AT, tê-lo-ia que fazer no próprio ano de 2009.

T. Tal regularização, a ser realizada, seria meramente informativa, mas não teria quaisquer consequências a nível fiscal.

U. No âmbito do IRC só nos casos previstos no n.º 2 do citado artigo 52º. (actual 57.º) do CIRC deve ser concedido um prazo para que o contribuinte possa exibir a contabilidade e executar os livros e registos contabilísticos. Ou seja, este normativo legal estabelece o âmbito e a extensão do dever de notificação para regularizar a contabilidade e esse âmbito encontra-se delimitado pelos preceitos contabilísticos relativos às circunstâncias e ao modo como essa regularização deve ser efectuada e constitui desta forma o quadro que deve guiar a interpretação das alíneas a) e c) do art. 88.º, 1 da LGT.

V. Esta é a única interpretação que a norma pode ter por razões de ordem sistemática que, como é sabido, constituem um dos elementos essenciais da interpretação.

W. Destarte, entende a Fazenda Pública que a sentença sob recurso incorreu em erro de julgamento de direito, por errónea interpretação e aplicação do disposto na alínea b) do artigo 87.º, conjugado com na alínea a) do artigo 88.º, ambos da LGT, assim como do disposto no artigo 52.º (actual 57.º) do CIRC.

Pelo exposto e pelo muito que V. Exas doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente, revogada a sentença recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA».

1.3 A Impugnante apresentou contra-alegação, pugnando pela manutenção da sentença, com conclusões do seguinte teor:

«A) A douta sentença ora sob recurso não merece a mais leve censura, uma vez que, com clareza e objectividade, se limita a aplicar a lei aos factos.

B) O duplo grau de jurisdição em matéria de facto impõe ónus à Recorrente, obrigando a uma tomada de posição precisa e concreta quanto aos aspectos que entende mal apreciados.

C) No caso vertente, a Recorrente aponta à sentença recorrida o erro de julgamento de direito, por errónea interpretação e aplicação do disposto na alínea b), do artigo 87.º, conjugado com a alínea a), do artigo 88.º, ambos da LGT, assim como do disposto no artigo 52.º (actual 57.º) do CIRC.

D) Erro que a Recorrida não vislumbra.

E) Na verdade, o Tribunal a quo decidiu que faltou um pressuposto legal para legitimar a determinação da matéria colectável por métodos indirectos, falha que inquina a liquidação, impondo-se a respectiva anulação.

Ora,

F) Dispondo o artigo 81.º da LGT que a matéria tributável é avaliada ou calculada directamente segundo os critérios próprios de cada tributo e que à Autoridade Tributária apenas é permitido o recurso à avaliação indirecta nos casos e condições expressamente previstos na lei,

G) E sabendo que a avaliação directa visa a determinação real dos rendimentos (ou bens tributáveis) sujeitos a tributação, e a avaliação indirecta visa a determinação do valor dos rendimentos (ou bens tributáveis) a partir de presunções ou outros elementos que a Administração Tributária disponha (artigo 83.º LGT),

H) A avaliação indirecta só pode ter lugar nos casos referidos no artigo 87.º da LGT, mormente no caso de impossibilidade de comprovação e quantificação, directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto (al. b)).

I) A impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável para efeitos de aplicação dos métodos indirectos, nos termos da al. b), do artigo 87.º pode resultar da inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução, quando não supridas no prazo legal (artigo 88.º da LGT).

J) Resulta provado nos autos que a Impugnante, aqui Recorrida, não foi notificada para suprir as anomalias da sua contabilidade, pese embora a Autoridade Tributária tenha invocado alegadas insuficiências consubstanciadas em omissão de proveitos.

K) Essa notificação, que constitui pressuposto formal essencial para conferir legitimidade à Autoridade Tributária para recorrer aos métodos indirectos de determinação da matéria colectável, aplica-se a todas as situações previstas na al. a), do artigo 88.º da LGT.

L) Aliás, a possibilidade do contribuinte evitar a utilização de métodos indirectos suprindo as deficiências contabilísticas decorrente do artigo 52.º do CIRC, aplicável à data dos factos (actual artigo 57.º), faz transparecer a ideia de que a avaliação indirecta apenas tem lugar nas situações irremediáveis em que já não é possível, com base na contabilidade do contribuinte, determinar o valor tributável real.

M) Não é o caso dos autos.

N) No caso vertente, a Autoridade Tributária procedeu às correcções em sede de IRC que estão na origem da liquidação impugnada por métodos indirectos, ao abrigo da al. b) do artigo 87.º e da al. a) do artigo 88.º, ambos da LGT.

O) Impunha-se, pois, a prévia notificação para suprir as irregularidades.

P) Bem andou a douta sentença recorrida ao julgar a anulação da liquidação em causa com base na falta de um pressuposto de determinação da matéria tributável por métodos indirectos.

Q) Os argumentos de ordem contabilística invocados no recurso da Recorrente não são susceptíveis de alterar a interpretação legal determinada na decisão recorrida, desde logo porque enquanto não caducar o direito de liquidação dos tributos – artigo 45.º da LGT – a matéria tributável é sempre susceptível de ser alterada.

R) A própria Autoridade Tributária incentiva os contribuintes, nestes casos, a proceder à regularização voluntária.

S) A Recorrente não identifica as normas e os princípios contabilísticos violados.

T) A jurisprudência desse Venerável Tribunal, firmada nesta matéria, acolhe a interpretação vertida na douta sentença em recurso.

U) A decisão recorrida, ao julgar ter sido preterido um pressuposto legal de determinação da matéria tributável por métodos indirectos não merece, portanto, a censura que a Recorrente lhe dirige, devendo manter-se válida, com todas as consequências legais.

Termos em que, negando provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, farão Vossas Excelências, Veneráveis Juízes Conselheiros, a costumada JUSTIÇA!».

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e a Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso. Isto, após enunciar os termos do recurso e discretear sobre a avaliação indirecta enquanto modo de determinar a matéria tributável, com a seguinte fundamentação: «[…]
A questão em apreciação consiste, pois, em saber se a recorrida deveria ter sido notificada para suprir a irregularidade contabilística.
Entende a FP que a notificação apenas se impõe no caso de inexistência de escrita e falta e atrasos na execução da contabilidade e já não no caso de regularização de deficiências da contabilidade.
A dúvida que subsiste à interpretação do art. 88.º, al. a) da LGT, é, saber se apenas abrange as irregularidades na organização ou execução da contabilidade ou, também, as restantes situações ali enunciadas.
Sobre esta questão a jurisprudência tem vindo a debruçar-se no sentido de a interpretação mais correta da norma, veja-se entre os demais, os Acs. do STA n.ºs 01316/16 de 13.09.2017; 02024/16 de 18.11.2020; 01262/13 de 3.12.2004, que apontam no sentido da interpretação correcta ser a interpretação mais abrangente que abarca todas as situações previstas no normativo.
A AT procedeu à correcção da matéria tributável por métodos indirectos, ao abrigo do disposto no artigo 87.º, al. b) da LGT, por irregularidades na sua organização ou execução, pelo que nos termos dos normativos dos artigos 88.º, al a) da LGT e 52.º do CIRC deveria, previamente, notificar a recorrida para suprir a irregularidade, o que não veio a se suceder, pelo que falta um pressuposto de determinação da matéria tributável por métodos indirectos.
A decisão recorrida, a nosso ver e salvo melhor juízo, não merece censura.
Assim, em face de todo o exposto e em conclusão, emito parecer no sentido da improcedência do recurso, mantendo-se a sentença recorrida».

1.5 Cumpre apreciar e decidir se a sentença fez correcto julgamento ao anular a liquidação com fundamento na ilegalidade do recurso aos métodos indirectos na fixação da matéria tributável por a ora Recorrida não ter sido previamente notificada para suprir as irregularidades contabilísticas verificadas pelos Serviços de Inspecção Tributária, o que passa por saber se tal notificação, como sustenta a Recorrente, apenas se impõe nos casos de atraso ou não exibição da contabilidade e, sempre, se «as contas do dito ano não estiverem encerradas», uma vez que as normas contabilísticas vedam a possibilidade de correcções relativamente a exercícios anteriores ao que esteja em curso.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto deu como assentes os seguintes factos:

«A. Com data de 25.03.2009, foi elaborado “Relatório de inspecção tributária”, por referência à impugnante, com o seguinte teor – cfr. fls. 31 e ss. do PA apenso:
(…)
Ordem de serviço n.º OI200705113
(…)


[segue-se cópia parcial do relatório dos SIT];

B. Em 26.03.2009, sobre o relatório que antecede recaiu despacho de concordância – cfr. fls. 33 do PA apenso.

C. Em 27.04.2009, contra a fixação da matéria colectável por métodos indirectos deduziu a impugnante pedido de revisão – cfr. fls. 89 e ss. do PA apenso.

D. Em 25.05.2009, no âmbito do procedimento de revisão, foi elaborado o parecer do perito da Fazenda Pública (acta n.º 58) com o seguinte teor – cfr. fls. 74 e ss. do PA apenso:

[segue-se cópia do parecer do perito da Fazenda Pública]

E. Em 29.05.2009, foi proferida decisão de indeferimento do pedido de revisão com o seguinte teor – cfr. fls. 80 e ss. do PA apenso:

[segue-se cópia da decisão de indeferimento]

F. Em nome da impugnante foi emitida a liquidação de IRC e correspondentes juros compensatórios relativa ao exercício de 2004, no montante global de € 149.634,10 – cfr. fls. 51 e ss. do PA apenso.

G. Em 06.10.2008, foi assinada a ordem de serviço do procedimento de inspecção externa em causa – cfr. fls. 109 do PA apenso.

H. Em 02.03.2009, a impugnante foi notificada do projecto de relatório de inspecção – cfr. fls. 49 do PA apenso.

I. Em 24.03.2009, a impugnante emitiu pronúncia sobre o projecto de relatório que antecede – cfr. fls. 129 e ss. do PA apenso.

J. Em 27.03.2009, a impugnante foi notificada do relatório de inspecção – cfr. fls. 11 do PA apenso.

K. Em 12.06.2009, a liquidação impugnada foi notificada à impugnante – acordo.

L. A actividade da impugnante consiste na aquisição de produtos hortícolas a pequenos, médios e grandes produtores e posterior venda dos mesmos nas instalações da empresa e directamente para grandes superfícies – cfr. fls. 2 do relatório de inspecção.

Não se provaram quaisquer outros factos para além dos referidos com relevância para a decisão da causa, designadamente o seguinte:

1. A facturação com numeração antecedida da letra D corresponde a encomendas efectuadas e posteriormente anuladas pelos clientes respectivos».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

2.2.1.1 Na sequência de uma acção de fiscalização, a AT entendeu que a contabilidade da ora Recorrida, com referência ao exercício do ano de 2004, não reflectia a sua verdadeira situação patrimonial nem os resultados efectivamente obtidos, impossibilitando a comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável, motivo por que, mediante a invocação do disposto nos arts. 75.º, n.º 2, alínea a), 87.º, n.º 1, alínea b) e 88.º, alínea a), da Lei Geral Tributária (LGT), procedeu à correcção do lucro tributável declarado, com recurso a métodos indirectos e, após ser decidido o pedido de revisão formulado por aquela sociedade ao abrigo do disposto no art. 91.º da LGT, à consequente liquidação adicional do IRC.

2.2.1.2 A ora Recorrida impugnou judicialmente a liquidação, invocando como fundamentos do pedido de anulação a «caducidade do direito de liquidar os tributos», a «preterição de formalidade essencial», «erro na verificação dos pressupostos de aplicação dos métodos indirectos» e «errónea qualificação e quantificação da matéria colectável».
No que respeita ao erro na verificação dos pressupostos de aplicação dos métodos indirectos – que, como veremos adiante, é o único fundamento que cumpre relevar em sede de recurso, pois foi com base nele que a sentença anulou o acto impugnado –, a Impugnante alegou que não se verificam aqueles pressupostos pois, tendo a AT procedido à determinação da matéria tributável ao abrigo do disposto nos arts. 87.º, n.º 1, alínea b) e 88.º, alínea a), da LGT, por ter considerado que a contabilidade enfermava de diversas irregularidades, não lhe deu a possibilidade de as suprir, pois não cumpriu com a prévia e necessária notificação ao sujeito passivo para esse efeito, como lho impunha o disposto na referida alínea a) do art. 88.º da LGT e no n.º 2 do art. 52.º do CIRC (Na redacção do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, que é aquela a que nos referiremos por ser a que estava em vigor à data dos factos. Após a republicação do Código operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, passou a corresponder-lhe o art. 57.º, numeração que não sofreu alteração com a republicação operada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro.).

2.2.1.3 A sentença recorrida, depois de julgar improcedentes as invocadas caducidade do direito de liquidar, falta de fundamentação da decisão do pedido de revisão, passou a apreciar o vício de erro nos pressupostos. Foi com fundamento na verificação desse vício que julgou procedente a impugnação judicial.
Em síntese, após enumerar o quadro legal que estabelece os pressupostos para a avaliação da matéria tributável por métodos indirectos e que estabelece a presunção de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados da sua contabilidade, bem como os motivos de cessação dessa presunção, e de elaborar em torno da matéria, concluiu, com referências às concretas circunstâncias do caso sub judice, que apreciou detalhadamente, e à distribuição do ónus da prova, que a AT «carreou elementos suficientemente aptos a concluir pela falta de credibilidade da escrita da sociedade» e que «cabia aqui à impugnante alegar e provar de que modo poderia ser apurada a matéria colectável sem recorrer à avaliação indirecta», o que não logrou.
De seguida, sobre a alegação de que a AT incorreu «[n]a violação da alínea a) do artigo 88.º da LGT e do n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC por não lhe ter sido concedido prazo para efectuar regularização», a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, após enunciar o disposto na alínea a) do art. 88.º do LGT, referiu que «[t]al norma abrange não só as irregularidades na organização ou execução da contabilidade mas também as restantes situações ali enunciadas uma vez que a avaliação indirecta é subsidiária da avaliação directa (neste sentido, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03.12.2014, processo n.º 01262/13 (in www.dgsi.pt)»; em abono da sua tese, convocou também o disposto no art. 52.º, n.º 2, do CIRC, na já referida redacção do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho (Ver nota anterior.).
Concluiu, assim, que «[n]o caso em apreço, a Administração Tributária procedeu à determinação da matéria tributável por métodos indirectos, ao abrigo da alínea a) do artigo 88.º da LGT com fundamento em deficiências da contabilidade, consubstanciadas em omissão de proveitos, sem que previamente tenha notificado a impugnante para suprir tais deficiências, como se impunha, nos termos das normas acima citadas» e, por isso, que «falta um pressuposto de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, falha essa que inquina, consequentemente, a liquidação, impondo a respectiva anulação».
Em virtude da procedência deste fundamento da impugnação judicial, considerou prejudicados os demais fundamentos invocados pela Impugnante.

2.2.1.4 O Representante da Fazenda Pública discordou da sentença e dela recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo. Se bem interpretamos a motivação do recurso, a AT considera que a sentença laborou em erro quando entendeu que, para que o recurso aos métodos indirectos na determinação da matéria tributável estivesse legitimado, se impunha que a AT tivesse previamente notificado a sociedade ora Recorrida para regularizar a contabilidade.
Sustenta, em síntese, que apenas as situações previstas no n.º 2 do art. 52.º da LGT – atraso na organização da contabilidade ou a sua não exibição imediata – são susceptíveis de regularização e, esses, ainda que esses «erros e omissões na contabilidade só podem ser corrigidos no ano da sua ocorrência se as contas do dito ano não estiverem encerradas» e que, «[s]e já se verificou o encerramento, essa correcção não pode ser realizada», o que dispensa a notificação em causa.
Sustenta ainda, mais radicalmente, que o entendimento perfilhado na sentença recorrida equivaleria a «compelir a inspecção tributária à realização de uma notificação ao contribuinte para a prática de actos que constituem uma franca violação às regras e princípios contabilísticos essenciais, pois, não pode compelir-se a IT a efectuar ao contribuinte uma notificação para a realização de uma actividade legalmente não permitida».
Assim, com o fundamento de que a notificação se não impunha no caso sub judice, a Recorrente invoca que a sentença incorreu em erro de julgamento ao anular a liquidação.
A questão que cumpre apreciar e decidir é, pois, a de saber se, no caso, a notificação do sujeito passivo para regularizar a contabilidade era, ou não, um dos pressupostos da decisão de avaliação da matéria tributável por métodos indirectos.


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2.2.2 DA NOTIFICAÇÃO PARA CORRIGIR A CONTABILIDADE – CONSEQUÊNCIA DA OMISSÃO

O legislador, depois de no n.º 1 do art. 87.º da LGT enunciar taxativamente as situações em que é admitida a avaliação indirecta – entre as quais se contam a «[i]mpossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto» –, logo no artigo seguinte daquela Lei (art. 88.º) enumera as «anomalias e incorrecções» de que podem resultar a «impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável para efeitos de aplicação de métodos indirectos», começando, na alínea a), pela «[i]nexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal, mesmo quando a ausência desses elementos se deva a razões acidentais» (sublinhado nosso).
Também o art. 52.º do CIRS (a que hoje corresponde o art. 57.º), dispõe no seu n.º 2, que «[o] atraso na execução dos livros e registos contabilísticos, bem como a sua não exibição imediata, a que se refere o artigo 88.º da Lei Geral Tributária, só dá lugar à aplicação de métodos indirectos após o decurso do prazo fixado para a sua regularização ou apresentação sem que se mostre cumprida a obrigação» (sublinhado nosso).
Resulta das referidas normas legais, em consonância com a natureza subsidiária da tributação por métodos indirectos (cf. art. 85.º, n.º 1 da LGT), que a AT só possa recorrer à avaliação indirecta da matéria tributável quando logre demonstrar os pressupostos da respectiva aplicação (cf. art. 74.º, n.º 3, da LGT), designadamente, quando estes decorram da situação de impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável por a contabilidade não constituir ponto de partida credível na determinação da matéria tributável [cf. art. 75.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) da LGT], mas apenas depois de ter sido dada ao sujeito passivo a possibilidade de corrigir as falhas que impedem que a contabilidade beneficie da presunção de veracidade.
Ou seja, do carácter subsidiário da avaliação indirecta resulta que na interpretação das normas legais que a regulam, designadamente nas que se referem à aplicação dos métodos indirectos, se deve privilegiar o sentido que garanta a preferência pela avaliação directa
Afigura-se-nos, pois, que, assumindo a tributação por métodos indirectos por impossibilidade de determinar a matéria tributável com base na contabilidade a natureza subsidiária, que a jurisprudência tem vindo a afirmar como a ultima ratio nas relações entre os sujeitos passivos e a AT, só deverá ter-se como impossível essa determinação depois de a AT ter concedido ao sujeito passivo, e este a não ter aceitado, a faculdade de corrigir as anomalias ou incorrecções que impedem que a contabilidade goze da presunção da veracidade que lhe é conferida pelo n.º 1 do art. 75.º da LGT, sob condição de estar organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal.
Entendemos, pois, com a sentença, que a Recorrida deveria ter sido notificada para suprir o incumprimento das suas obrigações a nível contabilístico na medida em que a AT considerou que foi esse incumprimento que impossibilitou que a matéria tributável fosse determinada directa e exactamente.
Aliás, não é a primeira vez que a questão é trazida à apreciação deste Supremo Tribunal.
Como ficou dito no acórdão de 13 de Setembro de 2017, proferido no processo com o n.º 1316/16 (Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/a2dbd101b1362184802581a8004a9920.), também invocado pela Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal, cuja fundamentação é em tudo transponível para a situação sub judice:
«Esta questão atinente à interpretação do disposto na convocada al. a) do art. 88.º da LGT (saber se apenas estão abrangidas as irregularidades na organização ou execução da contabilidade ou, também, as restantes situações ali enunciadas) foi já expressamente apreciada no acórdão desta Secção do STA, proferido em 03/12/2014, no proc. n.º 01262/13 [(Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/7acf7b433f00f8a680257daa005bf347.)], onde se concluiu que «[e]mbora a letra da alínea a) do artigo 88.º da LGT não seja inequívoca, pois tanto permite sustentar que a condição nela ínsita - “quando não supridas no prazo legal” – se aplica a todas as situações nela previstas (assim, ANTÓNIO LIMA GUERREIRO, Lei Geral Tributária Anotada, Rei dos Livros, 2000, pp. 371/372 – nota 3 ao art. 88.º da LGT), como apenas às situações de falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução (como parecem entender DIOGO LEITE DE CAMPOS/BENJAMIM SILVA RODRIGUES/JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, p. 765 – nota 2 ao art. 88.º da LGT), a interpretação acolhida na sentença recorrida – a mais abrangente – , é a que melhor se ajusta à natureza subsidiária, de ultima ratio, da avaliação indirecta (artigo 87.º, n.º 1 da LGT), atento a que o legislador prevê expressamente a notificação para regularização da situação tanto nas situações de inexistência de escrita como nas de atraso na execução desta e em ambos os casos “independentemente do procedimento para a aplicação da coima prevista nos números anteriores” (cfr. os artigos 120.º n.º 2 e 121.º, n.º 2 do RGIT)».
E na verdade assim é.
A possibilidade de o contribuinte suprir as deficiências da escrita, após notificação, evitando a utilização de métodos indirectos, decorre, no âmbito do IRS, do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 39.º do CIRS e, em sede de IRC, do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 57.º do CIRC e a tal possibilidade se referem, igualmente, os arts. 120.º e 121.º do RGIT, evidenciando-se «a preocupação do legislador em reservar a avaliação indirecta para aquelas situações irremediáveis em que já não é possível, como base na contabilidade ou nos elementos dos contribuintes, determinar o valor tributável real por avaliação directa» (LGT Comentada e anotada, Almedina, 2015, [José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes], Comentário n.º 4 ao art. 88.º, pp. 911 e 912.)
E, no caso, tendo a AT procedido à correcção, por métodos indirectos, da matéria tributável da impugnante, ao abrigo do disposto na al. b) do art. 87.º e da al. a) do art. 88.º, ambos da LGT, por irregularidades na organização ou execução da respectiva escrita, impunha-se, como diz a sentença recorrida, a prévia notificação daquela (cfr. o art. 52.º do CIRC) para suprir a irregularidade.
E no que respeita aos demais argumentos (incluindo os de ordem contabilística) invocados pela recorrente, também eles não são susceptíveis de alterar a interpretação legal determinada na decisão recorrida, desde logo porque, como bem sublinha o MP, a serem válidos, teriam plena aplicação às situações que a recorrente também entende poderem ser supridas, acrescendo que enquanto não caducar o direito de liquidação dos tributos (art. 45.º da LGT) a matéria tributável é sempre susceptível de ser alterada, quer através de correcções meramente aritméticas, quer através de métodos indirectos.
A decisão recorrida, ao julgar ter sido preterida formalidade legal essencial à avaliação indirecta da matéria colectável, não merece, portanto, a censura que a recorrente lhe dirige».
Em sentido idêntico decidiu também o acórdão de 18 de Novembro de 2020, proferido no processo com o n.º 2024/06.5BEPRT (Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/a9a43c59031eb51a8025862c00413557.).
Tal como no acórdão vindo de citar, também nós entendemos que os argumentos que a Recorrente pretende extrair das normas contabilísticas não relevam, sob pena de, com excepção das muito raras situações em que a fiscalização incidisse sobre o exercício em curso, nunca ser permitida a regularização da contabilidade e, consequentemente, ficar vedada a possibilidade, que logra preferência legal (cf. art. 85.º, n.º 1, da LGT), de a tributação se fazer por métodos directos, o que, manifestamente, não foi a intenção do legislador.


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2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - Do carácter subsidiário da avaliação indirecta (cf. art. 85.º, n.º 1, da LGT) resulta que na interpretação das normas legais que a regulam, designadamente nas que se referem à aplicação dos métodos indirectos, se deve privilegiar o sentido que garanta a preferência pela avaliação directa.

II - A possibilidade de suprimento, no prazo legal, contemplada na alínea a) do art. 88.º da LGT, impõe-se em todas as situações ali previstas e não apenas nas situações de falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução e da interpretação das regras contabilísticas não pode extrair-se um sentido que, em termos práticos e ainda que em sede de fiscalização, sempre obviaria à possibilidade, que logra preferência legal, de a tributação se fazer por métodos directos.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.


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Custas pela Recorrente (cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT).

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Assinado digitalmente pelo relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente acórdão os Conselheiros que integram a formação de julgamento.

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Lisboa, 9 de Junho de 2021. - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Paulo José Rodrigues Antunes.